Chapter Text
===Tingsi===
A noite de filmes tinha sido boa, mas acordei com uma sensação vazia no peito. Talvez fosse saudade ou talvez fosse o buraco que estava me sugando nos últimos dias, tentando me fazer olhar para o abismo.
- Parece que teve uma noite agitada.
- É, não foi ruim. Xuanwu, por que vocês criaram algo tão horrível assim?
- Não criamos. As coisas foram evoluindo e se adaptando. No fim, somos autores que perderam o controle sobre sua própria narrativa.
- Conversei com a Miiko ontem. – Resolvi mudar de assunto. – Ela me disse para não culpar Valkyon inteiramente pelo que aconteceu.
- A velha história de mandante e executor. O que você acha?
- Eu não sei. Não é como se ele fosse coagido a isso. Eu quero entender o lado deles, mas não consigo.
- Decisões tomadas pelo desespero podem ser incrivelmente mais danosas do que benéficas.
- Eu quero acreditar que ele não teve escolha, mas ao mesmo tempo não consigo.
- O mesmo com Miiko?
- Eu acho que sim. Não faz sentido.
- Às vezes o que não faz sentido faz mais sentido ao invés daquilo que deveria fazer sentido.
- Ótimo, você acabou de dar um nó na minha cabeça.
- Desculpe, força do hábito.
- Deve ser um fardo ser um sábio o tempo todo.
- Às vezes. Tem vezes que eu gosto de desligar meu cérebro e deixar as coisas fluírem em seu curso.
- Já se arrependeu?
- Vocês mortais têm uma visão em que deuses são perfeitos e não cometem erros, não têm arrependimentos, são inteiramente bondosos ou arrogantes a níveis extremos. Eu diria que vocês nos interpretam da forma como bem entendem e tentam impô-la aos outros.
- Por falar em deus, Nevra outro dia disse algo sobre Leviatã ser uma espécie de deus antigo que é mais história para boi dormir. Ele realmente existe?
- Eu não o vejo há muito tempo. Leviatã foi selado nos mares de Eldarya e não pode mais governá-los.
- Por quê?
- Alguns o acham um deus maligno, quando na verdade ele é apenas temperamental e facilmente irritável. Ele já causou alguns estragos na Terra e ainda os causa, mesmo em sua prisão. Não o leve à mal, ele apenas visa o bem-estar dos seres marinhos.
- Até imagino que ele jogue toneladas de lixo que estão nos mares nos humanos quando ele sair e for para a Terra.
- É provável que Zhuniao o impeça de fazer isso. Afinal, não podemos interferir diretamente.
- E você estando aqui e me treinando não seria uma interferência?
- Seria, se a relação mestre e aprendiz não fosse uma exceção. Quem você acha que ensinou as primeiras artes aos primeiros seres?
O bom de conversar sobre Xuanwu é que posso falar tudo o que eu penso e perguntar sobre tudo, se ele vai responder o que eu quero é outra história.
- Como está sua relação com os membros da guarda?
- Indo.
- Quanto aos chefes?
- Nevra e Ezarel eu não consigo sentir mais raiva deles, nem de Leiftan. Estou com um pé atrás em relação à Miiko e Valkyon, bem, estou magoada, mas não mais com raiva.
- Entendo. Está preparada para se reconectar ao mundo espiritual?
- Acho que sim. Vamos treinar agora de manhã?
- Acho melhor tirar o dia para as tarefas. Podemos nos encontrar depois.
- Obrigada, Xuanwu. Eu não sei o que faria sem você.
- Eu apenas dou orientações.
- Mas você não sabe o quão importante é para mim. – Segurei sua mão. – Ainda mais nesse momento.
- Cuide-se, está bem?
Saí do quarto para tomar café e começar o dia. Ouvi rumores sobre flores estranhas terem surgido no parque do chafariz, então fui vê-las.
- Mas são flores de lótus.
- Mesmo?! – Perguntou Kero. – Eu nunca as tinha visto.
- Bem, não vou dizer que são comuns de onde eu venho, mas na Ásia elas são.
Realizei algumas missões para os purrekos, eles estavam felizes em me ver. Purral me pediu para pegar algo na floresta. Trombei em alguém e tive que me desculpar até ver quem era. Era o velho fodido do Feng Zifu.
- Senhorita Tingsi, estava à sua procura. Queira me acompanhar até a sala do cristal.
- Depois, tenho mais o que fazer. – Eu posso estar no estado que for, mas não vou deixar esse cuzão me ver destruída.
- Senhorita Tingsi!
- É senhorita Zhu para você. E eu estou em uma missão dos purrekos. A menos que você queira ir até o Purral e se oferecer para compensar pelos danos, é bom me deixar fazer o que eu tenho que fazer.
Fui para a floresta e deixei o velho plantado lá. Peguei tudo que tinha de pegar e fui entregar para o Purral antes de seguir para a sala do cristal. Jamon nos deixou passar sem dar um pio. Huang Hua estava lá e dando um esporro na Miiko na frente da Guarda Reluzente e de Dagma. Fui até a ninfa.
- Dagma, que porra eles estão fazendo aqui?
- Escrevi à Huang Hua sobre o que tinha acontecido. Isso a coloca em uma posição delicada, pois compromete a reputação da dinastia Ren por causa da aliança que fizeram com a guarda.
- Eu acho que a Miiko está ciente até demais do que ela fez. Ela até me pediu desculpas ontem.
- Você aceitou?
- Eu não sei se devo.
- Quer conversar sobre isso?
- Conversei com um amigo, mas ele se recusa a se intrometer nas minhas decisões, mesmo que sejam ruins.
- Ele ainda é seu amigo?
- É complicado.
Huang Hua decidiu ficar para supervisionar até ter certeza que a Guarda de Eel está cumprindo com seu papel. Elas estavam discutindo também a promoção de Ewelein à Guarda Reluzente. Dagma sugeriu que puséssemos um fim ao conflito entre os balenvianos e os myconides. Miiko concordava e Huang Hua e os rapazes se juntaram a ela para cochichar.
- Como você está? – Peguntou ninfa.
- Indo.
- Você não esconde quando não está bem.
- Um amigo me disse que não é fraqueza admitir que precisa de ajuda, fraqueza é ignorar traumas.
- Seu amigo é muito sábio.
- Você não imagina o quanto.
- Eu queria ser mais como você.
- Nem queira. Minha amiga Latifah é pior que eu e a gente vive somando problemas. Eu gosto da Dagma peste.
- Pena que só consegui recuperar essa parte aqui com vocês.
Como esperado, todos concordavam que tinham que resolver as divergências, mas ninguém tinha uma solução. Pedi para que relembrassem qual era o problema mesmo, já que eu estava tão puta com aquele povo que tinha esquecido. A maluca morreu por furar bloqueio sanitário e a guarda temia entrar em confronto com o povo escroto. Também pensaram em entrar em contato com os myconides, mas tinha o lance do envenenamento. Então deram um desafio de 72 horas para Dagma.
- Nem vai precisar de tudo isso. – Falei.
- Por que, você já tem a solução perfeita?! – Perguntou Miiko.
- Está bem aqui. – Fiz uma apresentação dramática para Huang Hua.
- Eu?!
- Bem, você é influente e carismática e não tem ligações diretas com a guarda. Pode entrar em contato com a Hanglaé e retomar as negociações.
- Isso mesmo! – Exclamou Dagma. – Ninguém vai se opôr à aprendiz de fênix, mas e se mesmo assim tiver um confronto direto?
- Bem, se tiver alguma poção que faça os outros adormecerem ou que os acalme, podemos soltá-la para acalmar os ânimos.
- Me diz que você não está falando sério.
- No meu mundo a polícia usa gás de pimenta, jatos de água, cassetetes e balas de borracha para dispersar pessoas durante as manifestações e dependendo do governo manda matar mesmo. Quer uma solução mais agressiva?
- É O QUE ISSO AÍ?! – Perguntaram os faeries.
- Vocês acham que aprendi a fazer Molotov por qual motivo?
- Acho que uma poção calmante deve resolver, mas seria uma péssima ideia. Poderíamos estar no meio do fogo cruzado.
- Tudo vai depender de como as negociações fluírem. Podemos fazê-las no portão da vila por ser território neutro. Também teremos que falar com os myconides.
- Mas não dá para chegar até eles. Vamos morrer envenenados.
- Me dá papel e caneta.
- Como?
- Só me dá logo. – Comecei a rabiscar. – No meu mundo nós manipulamos gases de diversos tipos. Seja para agricultura, tinta, combater pragas, mas boa parte da tecnologia se desenvolve com a guerra. O que acham? – Mostrei a eles o desenho de uma máscara de gás. – Vai dar para respirar, o problema é fazer isso aqui.
- É perfeito! A gente pode usar fragmentos de oxigênio nesses compartimentos. Posso ver isso com Ewelein ainda hoje!
- Isso estava rabiscado nos nossos muros antes de limparmos. – Disse Valkyon incrédulo. – Foi você?!
- Vocês que não foram, não sabiam nem o que era isso.
- Mas mantivemos o desenho de asas. – Assegurou Leiftan. – As crianças o adoram.
- Espere aí, era você que estava rabiscando as paredes do QG inteiro?! – Surpreendeu-se Ezarel. – Até do lado de fora você fez!
- Isso é arte, está bem?!
- Onde que isso é arte?!
- Grafite é arte de rua, ora.
- Pelo Oráculo!
- Na próxima eu faço uma caricatura sua, Dobby.
- Não ouse!
- Vai ficar lindo de bigode.
- Eu vou te matar!
- Parem com isso já! – Ordenou Miiko. – É uma boa ideia e você conseguiu resolver o problema mais difícil, vejam com Ewelein.
Discutimos mais um pouco para acertarmos os detalhes. Huang Hua estava encantada com o meu conhecimento do mundo humano. Eu não contei a eles como as máscaras surgiram, senão teria que entrar na história do gás mostada na 1ª GM. A solução provisória que os canadenses encontraram foi encharcar um pano com urina e tapar o nariz, mas acabaram adotando essas máscaras tanto para gente como para cavalos e cachorros.
Passamos o resto do dia para nos organizarmos. Iríamos montar o acampamento na floresta próxima da caverna e achar outra entrada ou então cavaríamos uma. Iríamos pedir aos Myconides para assinarem um acordo de intervenção, a Guarda Absinto manteria os lacres para impedir que mais algum idiota furasse a barreira sanitária e para a segurança dos myconides, a Guarda Obsidiana iria impedir o povo de se matar e fazer merda como uma guerra civil.
Aproveitei para ir ao laboratório de alquimia. Claro que rejeitaram a ideia de jogar poção calmante, então preparei Molotov mesmo, do tipo que não precisava acender um pano, era só agitar e jogar. Espero não precisar. Também coloquei a minha máscara de gás na bolsa junto com os óculos de solda, vai que eu preciso dela dessa vez. Também comprei um traje todo preto e de corpo todo para o caso dos esporos. Eu sei que a Ewelein verificou que a pele não absorveu os esporos em mim e no Valkyon, mas se a gente tirar a máscara e coçar o nariz ou o olho, fodeu!
Me ofereci para encontrar os Myconides, afinal eu sei onde estão e sou a única com acesso ao limiar. Dagma viria comigo, pois era o desafio dela que eu roubei. Os rapazes queriam vir conosco às grutas, assim como a Hua. Tirei o resto do dia para treinar.
- Aonde você vai? – Perguntou Dagma.
- Treinar.
- Posso ir com você? Eu também queria te pedir para me ensinar os seus golpes.
- Não.
- Por quê?
- Olha, eu não estou 100% ainda e não estou nem sombra do que era antes daquela maldita poção. Eu também não consigo entrar no mundo espiritual.
- Mas você garantiu que....
- Eu sei e é por isso que preciso ir sozinha. É algo que eu preciso fazer sozinha e nenhum de vocês pode me ajudar com isso.
- Entendo.
- Um dia, quando eu aprimorar minhas habilidades, eu te ensino, pode ser?
- Claro!
- Vai socar e chutar árvore que nem uma condenada.
- Se depender de você, vai mesmo.
Fui para a minha área de treinamento. Não vi nenhum avatar de deus nenhum, mas eu estava mesmo planejando retomar o controle do limiar. Da última vez consegui com o taichi, então foi assim que tentei. Não funcionou com o taichi, mas minha mente estava mais clara naquele momento. Comecei a dançar para expressar toda a minha dor e as minhas alegrias recentes. Consegui recuperar em partes, é melhor não forçar.
Meditei, treinei meu equilíbrio e revisei alguns golpes com as armas que tinha aprendido. Me ajudou a focar bastante e por fim fiz mais uma sessão de taichi. Dessa vez retomei o controle, então resolvi treinar adentrando no limiar. Taichi no limiar era tão diferente, não sei explicar, mas me fazia bem.
Miiko anunciou nossa missão no dia seguinte, bem como a partida de Kero. Ele não concordava com o que tinham feito e por isso queria sair da guarda. Expressei meu apoio a ele e desejei que fosse feliz. Os purrekos estavam estudando a máscara, então passei o resto do dia treinando. Os avatares dos deuses retomaram meu treinamento onde parei, melhorando as habilidades com a lança, as adagas, o martelo, o arco e os leques. Gronk tinha se tornado um adulto, então fiz dele meu companheiro de treinos, o que foi uma péssima ideia. O Grookhan era forte, também o que eu podia esperar de uma montanha de pedra?
Eu também meditava e entrava no mundo espiritual, quando tudo ficava branco, para mergulhar no lago ou no mar. Eu conseguia ver as pedras no fundo, as algas, mas não a vida marinha, no máximo espíritos. Era estranho, assustador, mas bem interessante.
- Vai ficar olhando essa pedra até quando? – Perguntou Zhuniao, ele estava em sua forma original, embora estivesse meio turva.
- Eu só estou apreciando. Não é todo dia que entro neste plano. Posso fazer o que eu quiser aqui?
- Nem tudo, mas pelo menos seu corpo estará a salvo, embora desprotegido por algum tempo.
- Quanto tempo?
- Depende de quanto tempo ficar aqui. O tempo funciona de forma diferente em cada plano.
Durante à noite eu ficava por entre as árvores, observando um Black Dog que passeava no entorno do QG. Achei por bem estudar seu comportamento, já que pouco sabia sobre eles.
- O que está fazendo?! – Perguntou Leiftan do chão.
- O que você está fazendo?! Suba já nessa árvore.
- Como?!
- Anda!
No instante que ele subiu na mesma árvore que eu, o Black Dog apareceu. Eu não tinha dúvidas que era o mesmo que tinha atacado a mim e ao Elliot naquele dia, mas ele parecia diferente. Ele rosnou para nós enquanto Leiftan escalava o galho onde eu estava.
- Precisamos fazer alguma coisa.
- Não vamos fazer nada. – Falei. – Vamos ficar aqui até ele ir embora.
- Mas....
- Não precisamos fazer nada. Eu tenho o observado. O que faz aqui?
- Eu estava sem sono, então achei que um passeio me faria bem.
- Na floresta? Ainda mais nessa profundidade?
- Eu não queria ficar dentro dos muros do QG e fiquei preocupado quando não a encontrei em lugar algum. O que você faz a essa hora da noite na parte mais profunda da floresta?
- Eu estou estudando o comportamento do Black Dog. Achei uma boa ideia saber mais sobre eles.
- Entendo. Devemos enfrentá-lo?
- Pelos deuses, não! Nós é que estamos invadindo o território dele.
- Território dele?
- Ele não é diferente dos animais selvagens do meu mundo. Ele vai atacar se estiver com fome, assustado ou para proteger seu território. É como um lobo.
- Então devemos nos retirar com cuidado.
- Eu quero falar com ele.
- Não acho que isso seja possível.
- Quando entrei no limiar naquela missão do kappa, nós conseguimos conversar por lá. Quer vir comigo?
- Não acho que seja uma boa ideia. Deveríamos voltar, nossa missão não será fácil.
- Eu sei. O que espera dessa missão?
- Espero que ocorra tudo bem.
- É o que eu gostaria de acreditar.
- Algo sobre esta missão a incomoda?
- Não é bem sobre a missão, é a ignorância desse povo. Eu sei o que um bando de idiotas é capaz de fazer quando estão juntos, um bando de idiotas armados é ainda pior.
- Não irei deixá-los te machucar. – Ele segurou a minha mão.
- Não é comigo que estou preocupada. Eu tenho medo de que algo de ruim aconteça e vire uma confusão generalizada.
- Vamos cuidar para que isso não aconteça. Eu prometo.
- Não devia prometer coisas que você não será capaz de cumprir. Isso não depende só de você, Leif.
- Vem cá. – Ele me puxou cuidadosamente para que ficasse no colo dele. – Não vamos pensar nisso, está bem? Não adianta sofrer por antecipação.
- Tem razão.
Descansei minha cabeça em seu ombro observando o Black Dog se afastar. Mesmo ele estando bem longe, nós não saímos daquela posição, até eu perceber que estava realmente cansada. Descemos da árvore e voltamos para o QG juntos.
Finalmente chegou o dia de partir. Antes de irmos, Alajéa nos apresentou à sua irmã adequadamente. Colaia estava com o cabelo curto e pernas, ela parecia tímida e pelo que elas nos disseram, a reabilitação estava indo bem. Pelo menos uma boa notícia.
Fomos até o local de acampamento usando montarias e armamos nossas barracas. Eu tive que ir com Valarian, pois estava em um dia que eu não queria ter saído da cama. Chegamos ao local alguns dias depois e montamos acampamento. Eu iria dividir a tenda com Dagma e Ewelein, pois como ela estava ajudando Ezarel no laboratório e Dagma tinha sido de grande ajuda com Enthraa na enfermaria e Ewelein estava ciente da minha condição, era melhor eu ficar perto delas.
Ainda era dia, mas todos estavam exaustos da viagem. Dagma e eu fomos à tenda juntas quando escutamos Ewelein discutindo com Ezarel. Rapidamente ela pegou meu braço e me levou para um esconderijo.
- A menos que você tenha um problema médico, é bom que saia daqui! – Escutamos a elfa dizer.
- Ewe, eu sei que não te disse toda a verdade, mas você não pode fingir que eu não existo.
- É exatamente o que estou fazendo.
Eles discutiram mais um pouco, mas era visível que Ewelein estava indignada. Ela até citou o que tinham tentado fazer comigo, mas isso não era tudo.
- Você nunca levou isso a sério!
- Ewe, espere!
Ewelein passou por nós correndo sem nos ver. Decidimos sair do esconderijo na mesma hora que Ezarel saiu da tenda.
- Dagma? Tingsi? Desde quando vocês estão aqui?
- Acabamos de chegar. – Respondeu a ninfa. – O que aconteceu com a Ewelein?
Ele simplesmente abaixou a cabeça e foi embora. Antes que ela pudesse dizer algo, entrei na tenda e desabei na cama. Do jeito que eu estava cansada, dormiria até no chão. Não que fosse um problema para mim.
- O que você acha que aconteceu?
- Não sei e nem quero saber.
- Mas o Ezarel....
- Dagma, isso é problema deles. Se eles quiserem falar, que falem. A gente não pode se meter assim.
Adormeci. Acordei no meio da noite ouvindo soluços, Ewelein estava chorando. A ninfa também estava desperta. Nos entreolhamos e sabíamos que tinha o nome de Ezarel. Suspirei. Quando a elfa percebeu que estávamos acordadas, ela enxugou as lágrimas.
- Ewelein, está tudo bem? – Perguntei.
- Sim, está. Eu só estou cansada.
- É por causa do Ezarel, não? – Disse Dagma.
- Como?
- Ouvimos sua discussão com ele.
- Estávamos esperando vocês terminarem de conversar para desabarmos na cama. – Justifiquei.
- Ele te fez algo? Você pode nos contar se quiser.
- Ezarel e eu começamos a sair juntos há um ano. – Já vi tudo.
- Então vocês eram....
- Não. Nós concordamos que não seria nada sério, apenas diversão. Ele é bonito e eu gosto dele....
- Esqueceu de irritante e com senso de humor duvidoso. – Complementei e recebi um olhar irritado da ninfa.
- Vocês devem achar que eu sou fácil.
- Se você é fácil, eu sou o tutorial. Esqueceu que eu algemei o Nevra durante o sexo e apostei com ele para ver quem pegava mais mulher? O que você faz da sua vida é problema seu, ninguém tem o direito de te julgar se você dorme com o Ezarel, o Jamon, a Miiko ou todos ao mesmo tempo.
- O que ela quer dizer é que não ninguém deveria te julgar por isso.
- Obrigada.
- Deixe-me adivinhar, você se apaixonou pelo cretino de cabelo azul.
- Exatamente. Eu sei que é burrice de minha parte e ele sempre foi muito claro sobre isso.
- Você não tem culpa por isso, isso às vezes acontece. Não dá para mandar no coração e nem obrigar uma pessoa a corresponder esse sentimento. Às vezes a gente se ilude.
- Pelo menos ele não foi um cretino e te iludiu com um monte de promessas. – Lembrou Dagma.
- Sim. Devo desculpas a vocês.
- Que isso, a gente está aqui para isso mesmo, certo, Tingsi?
- É. Vamos dormir, amanhã vai ser um dia cheio.
Elas concordaram e voltamos a dormir. No dia seguinte, eu sabia que ia ser um daqueles dias. Para começar, eu mal conseguia levantar da cama.
- Tingsi, nós precisamos ir. – Disse Dagma. – Estão todos esperando.
Tentei me levantar e caí igual bosta no chão. Percebendo que eu estava em um daqueles dias, a ninfa foi até sua mochila e pegou um frasco.
- Eu achei que isso poderia acontecer, então touxe um elixir do bem-aventurado.
Ela me ajudou a beber o elixir e eu tive a pior sensação que poderia ter. Senti uma felicidade tomar conta do meu ser e fiquei bem-disposta, mas ao mesmo tempo eu estava tão cansada da vida a ponto de levantar da cama ter sido um desafio. Se tivesse um ônibus passando na minha frente, eu iria me jogar na frente dele.
Encontramos com os chefes da guarda e a Huang Hua na saída do acampamento. Nós entraríamos nas grutas primeiro. Eles estranharam eu estar feliz, claro, eu estava sorrindo o tempo todo.
- Vejo que alguém acordou bem-disposta. – Disse a Huang Hua alegre.
- Sim! – Respondi entusiasmada. – Principalmente se for para pular de uma ponte. – Eles me olharam com uma cara que matou todo o clima.
- Ela não estava conseguindo se levantar da cama, então dei a ela um elixir do bem-aventurado.
- Agradeço sua intenção, Dagma. – Disse Nevra fazendo um cafuné na cabeça dela.
Valkyon massageava as têmporas em um “puta merda” silencioso e Ezarel preferiu não dizer nada. Fomos até o local da caverna com os três chefes e encontramos outra entrada. Eu disse que lembrava o caminho, então Valkyon iria comigo. Ezarel até se propôs a ir conosco ou então que levássemos Dagma, mas a ninfa disse que era melhor ela ficar na entrada com Karenn e Chrome enquanto Ezarel e Nevra seriam nossa retaguarda. Colocamos nossas máscaras e entramos. Elas estavam funcionando bem.
- Valkyon, você está preocupado?
- Estou. Como você está verdadeiramente? Sem levar em conta os efeitos da poção.
- Vou ser sincera, eu não queria levantar da cama.
- Entendi.
Eu o senti me puxar para trás. No lugar onde eu estava havia um buraco e eu quase caí. Não consegui desgrudar os olhos daquele buraco. Senti Valkyon apertar meus braços.
- Vamos continuar.
Apenas concordei. Ele não saiu do meu lado, às vezes ele se deixava ficar atrás de mim para ver o que eu faria. Finalmente chegamos ao ninho dos myconides. Muitos estavam estirados no chão em mau estado. Era como uma cena de enfermaria de um filme de guerra. Era uma cena de partir o coração. Agradeci mentalmente à Dagma pelo elixir ou teria uma crise de choro.
Somente eu poderia falar com Ethel, ele estava deitado em uma espécie de altar em condições precárias. Fiz meu melhor para explicar nossa vinda e detalhar os acordos que queríamos estabelecer. Valkyon não saiu de onde estava nem por um segundo.
- E você Tingsi, por que está aqui?
- Eu já expliquei.
- Não foi esse o objetivo da minha pergunta.
- Eu não sei. Eu não queria nem levantar da cama, mas preciso seguir em frente de alguma forma, não? E não posso deixá-los nas condições em que estão. Eu sei o que é definhar até morrer, perder seus sonhos, esperanças, confiança no mundo externo e não desejo isso para ninguém.
- Eu sei o que você viveu, posso ler o sofrimento em seus olhos. Nós podemos apagá-lo se quiser, é isso que você quer em troca da sua ajuda? Podemos alterar a memória.
- Mesmo que façam isso, já está gravado na minha alma! É um mal silencioso que me consome independente das minhas memórias! – Baihu me dê forças e Qinglong um abraço, acho que o efeito da poção está passando ou isso é mais forte que ela. – Mesmo que eu esqueça, eu já estou condenada, só terei mais motivos para deixar de viver! Então não, eu não estou aqui para uma troca idiota, ainda mais uma tão absurda assim!
- Lamento muito pelo que aconteceu com você. – Tive que morder minha língua para não responder. – Temos um acordo. A Guarda de Eel pode intervir.
Voltei até Valkyon, que me abraçou. Ezarel e Nevra chegaram algum tempo depois para assinarem o acordo. Também deixamos mantimentos e remédios para eles. Os myconides começaram a chorar de emoção quando viram os mantimentos. Minha cabeça girava, meu coração doía ao vê-los naquele estado, mas Valkyon não me soltava. Ele me tirou da caverna e retirou minha máscara quando estávamos do lado de fora. Eu desabei no chão feito bosta e comecei a chorar. Ele voltou a me abraçar e acariciou meu cabelo. Eu me agarrei em suas roupas.
- Valkyon, o que está acontecendo?! – Ouvi a voz de Dagma.
- É uma crise.
===Dagma===
Karenn e Nevra tinham se despedido com um abraço. Parecia que seria a última vez que se veriam, espero que não seja. Eu fiquei com ela e Chrome na entrada da caverna alerta a qualquer sinal de balenviano. Se víssemos um, teríamos que sair o mais rápido possível. Aproveitei para ficar sob o sol.
Não sei quanto tempo se passou, mas Valkyon voltou trazendo Tingsi com ele. Ele passou por nós e nem os olhou direito. Claramente ela não estava bem. Assim que ele arrancou sua máscara, ela desabou no chão e começou a chorar. Ele a abraçou e tentou confortá-la. Karenn, que já estava nervosa por causa do Nevra, parecia em choque.
- Chrome, fica com ela.
- Não precisa nem dizer.
- Valkyon, o que está acontecendo?!
- É uma crise. Dagma, fale para Huang Hua ir sem mim. Ezarel e Nevra encontrarão com vocês no caminho com o tratado.
Voltei correndo para o acampamento. Os outros ficaram surpresos ao me ver, Huang Hua percebeu que havia alguma coisa errada.
- Dagma, o que houve?
- Valkyon não vai conosco até a vila.
- Por que não?
- Tingsi está tendo uma crise, ele vai ficar com ela. Ele disse para você ir, Ezarel e Nevra te encontrarão no caminho.
- Não precisa, irei até a entrada da caverna. Assim vocês poderão me explicar o que aconteceu. Ache Leiftan para mim.
Assim que encontrei Leiftan, fomos correndo à entrada da caverna. Ezarel e Nevra tinham voltado e Karenn estava abraçada ao irmão. Leiftan correu até Valkyon e tentou confortar Tingsi. Valkyon nos explicou o que aconteceu.
- É culpa minha. Eu dei o elixir do bem-aventurado a ela.
- Não é culpa sua. – Disse Valkyon. – Eu ouvi algumas partes da conversa dela com o Patriarca Ethel. Ela parecia bem, mas alguma coisa que ele disse acabou a deixando chateada e desencadeando essa crise. Isso somado ao que vimos na caverna.... Acho melhor voltarmos ao acampamento.
- Não deixe que a vejam nesse estado. – Disse Leiftan colocando seu casaco sobre ela. – Isso só vai piorar a situação.
Valkyon assentiu. Nós os deixamos e seguimos para o vilarejo. Huang Hua se apresentou como emissária da guarda e dos myconides e queria falar com seu líder. A decana Haglaé pediu para que ela a seguisse.
- Dagma, fique com os rapazes. Leiftan, venha comigo.
Os dois entraram no vilarejo enquanto eu fiquei com Ezarel e Nevra. Nos sentamos no chão na trilha para as grutas enquanto esperávamos. Ezarel resolveu desenhar no chão com um galho enquanto Nevra foi ver como Karenn estava.
- Não adianta ficar se culpando pelo que aconteceu. – Disse o chefe da Absinto.
- Se eu não tivesse dado aquele elixir....
- Ela não teria levantado da cama e teríamos problemas para negociar com os myconides. A culpa maior é nossa que tomamos aquela decisão ridícula. Vamos falar sobre outra coisa?
- Como se tornou chefe da guarda?
- Nada de especial. O antigo chefe era um mercenário e resolveu voltar à vida de antes. Como eu era assistente dele, ele me elegeu.
- E o Nevra e o Valkyon?
- O Nevra se tornou chefe da guarda logo depois de mim. A chefe dele resolveu se aposentar. Já o Valkyon, é complicado.
- O que aconteceu?
- O antigo chefe da Obsidiana era o irmão dele. Valkyon assumiu depois de sua morte.
- Sinto muito.
- E você, por que decidiu abandonar sua vila?
- Quando eu era pequena, eu sonhava em viajar o mundo. Eu senti o chamado da aventura, então saí.
- Só isso?
- Eu realmente tentei ficar e me tornar uma boa ninfa, mas eu não tinha muito jeito e o chamado era mais forte do que eu. Era como se eu quisesse mais que uma vida pacata.
- Entendo.
Ficamos conversando por horas. Contei a ele algumas travessuras que fazia na vila, minha mãe ficava louca. Ezarel também me contou como fazia para roubar mel da cozinha quando era criança. Huang Hua veio com Leiftan, ele exausto e ela com ótimo humor.
- Trégua assinada. – Ela anunciou feliz.
- Devemos esperar retaliação dos habitantes? – Perguntou elfo.
- Vamos voltar ao acampamento para conversarmos calmamente.
Nós voltamos, mas antes encontramos Nevra. Huang Hua chamou os chefes da guarda e o Leiftan para a tenda principal. Ela me pediu para dar o recado a Valkyon, então voltei para a minha tenda. Tingsi dormia e ele estava do lado dela.
- Como ela está?
- Um pouco melhor. Acho melhor a deixarmos dormir.
- Pode deixar que eu assumo. Huang Hua precisa de você na tenda principal.
Ele se foi e eu assumi seu lugar. Karenn e Chrome apareceram na porta da tenda perguntando se ela estava bem. Respondi o que Valkyon tinha dito e avisei que ficaria com ela, afinal, a tenda era minha também.
Algum tempo depois, Huang Hua fez o anúncio, mas antes ela reclamou que todos estavam tentando espionar a tenda. As negociações foram bem, no entanto Haglaé e o prefeito discordavam um do outro. Embora o prefeito tenha aceitado o acordo, a decana achava que ele poderia formentar uma pequena rebelião. Voltei para a tenda para descansar.
Acordei no meio da noite. Tingsi não estava em seu leito, então saí para procurá-la. Eu a encontrei perto da entrada da caverna, olhando o céu estrelado. Ela parecia melhor.
- Estive te procurando. Como está?
- Menos pior. O ar noturno tem me feito bem.
- Bom saber. Sobre mais cedo, me desculpe pelo elixir.
- Não foi o elixir que causou a crise. Eu fiquei puta com a conversa que tive, antes eu só me jogaria de um precipício, mas não estava fodida para entrar em crise.
- Quer falar sobre isso?
- Não.
- Está bem. Já te contaram?
- O que?
Contei a ela sobre o anúncio da Huang Hua, sobre as negociações e as suspeitas de Haglaé. Tingsi apenas bufou.
- Que merda.
- Espero que as coisas não fiquem difíceis.
- Eu também. Tem alguma coisa nessa história que não está batendo.
- O que quer dizer?
- As grutas, elas parecem estranhas. Essa história do veneno também, tem alguma coisa que me incomoda.
- Talvez a gente deva dar uma outra olhada de manhã. – Sugeri. – Dessa vez vou com vocês.
- Então vamos juntas.
Voltamos ao acampamento para dormir. Algo me dizia que teríamos um longo dia pela manhã.