Chapter Text
Incapaz de perceber a sua forma, encontro-te ao meu redor. Sua presença enche meus olhos com o seu amor. Ela torna humilde o meu coração, pois você está em toda parte.
Hakim Sana'i
Eu sonhei com você hoje.
Pelo menos eu pensei que sonhei; talvez estivesse mais para um sonho acordado. Você entrou no meu quarto de hospital e puxou a cadeira de plástico desgastada, estremecendo ligeiramente com o som do arrasto conforme você a levava em direção à cama. Então você se sentou e cruzou as suas longas pernas, e você… me observou. Apenas sentado ali: sentado e observando. Você estava usando um daqueles ternos extravagantes que ficariam terríveis em qualquer outra pessoa, mas em você eles sempre oferecem um glamour exótico e sublime. Faz tanto tempo desde que eu não te vejo em um daqueles ternos que eu quase esqueci deles. Anos desde que eu não te vejo usando algo formal ou salpicado em escarlate. Então, inicialmente, eu estava olhando mais para o terno do que para você. Acho que você não teria gostado disso. Você é tão narcisista.
Você não combinava nada com aquele ambiente enfadonho, toda a sua cor e energia completamente extraviadas. Quando eu olhei para o seu rosto você parecia atento, o esboçar de um leve sorriso contraindo os seus lábios. Você sempre foi tão impenetrável. Enigmático. Eu nunca soube de verdade no que você estava pensando.
“Olá, Will,” você disse finalmente. Os seus olhos eram como um par de abismos infindáveis.
Houve um grande silêncio arrastado, até que eu me ouvi responder: “O que você está fazendo aqui?” Provavelmente não era a melhor coisa a se perguntar para você - exigir de você - mas eu não sabia o que mais dizer.
A sua boca tremeu levemente: era impossível dizer se por irritação ou divertimento. Então, por alguns segundos, eu me perguntei se você ia expressar alguma espécie de emoção, mas no fim das contas tudo o que você respondeu foi: “Não estava ciente de que eu precisava de um motivo.”
“Mas você sempre tem um motivo, não tem?” eu respondi. “Você tem um motivo para tudo. E agora você está aqui, e você nem é real.” No momento em que olho para os seus olhos eu não consigo mais desviar, tentando não me perder neles. Você nota o meu fascínio e a minha relutância, é claro que nota, e aquele leve sorriso se alarga. Você saboreia (narcisista).
Eu fecho os meus olhos para fugir dos seus, e naquela escuridão eu ouço você se levantar da cadeira e ir em direção à cama. Você vaga, ágil como um gato - eu não consigo ver você mas eu sei disso - e eu sinto o colchão se afundar conforme você se senta. Eu sinto a sua respiração no meu rosto, incrivelmente leve, quase inexistente, os seus dedos lépidos roçando a maçã do meu rosto, e eu inspiro novamente e abro meus olhos. Pelo menos eu penso que abro, talvez eles já estivessem abertos; e claro, você não está lá. Há um feixe brilhante de luz passando por debaixo da porta, e o som do monitor cardíaco, e passos, e murmúrios, e todos aqueles sons de doenças e morte, mas não há você, e a sua ausência é extremamente alta. O quarto grita com a sua ausência.
Eu respiro fundo, e dói, e eu desembaraço a linha intravenosa para pegar o copo de água ao lado da cama. As minhas mãos tremem.
É quase insuportável que até mesmo a minha versão mental de você ainda consegue estar a vários passos à frente.
***
Kade Purnell está sentada à beira da cama, sentada na sua cadeira (agora ela sempre será a sua cadeira). Faz quase uma hora que ela está aqui, rosnando perguntas para mim como um cachorro. Blá-blá-blá. Não consigo dizer quanto de sua atitude defensiva se deve à reservas genuínas sobre a declaração que dei (o que não foram exatamente mentiras, como oposição à uma manipulação liberal da verdade… meio que conversa fiada) e quanto se deve a ela apenas sendo uma imbecil por prazer: me ameaçando com sua autoridade simplesmente porque ela pode. Talvez ela queira se sentir completa, marcando caixas e fazendo vista grossa nos mínimos detalhes. Não tenho muita certeza, ela é difícil de ler. No entanto, suponho que com um serial killer mutilado e morto, um desaparecido, e um quase morto perfilador do FBI arrastado pela água até uma praia, a meticulosidade não é de toda insensata.
Ela diz algo previsível e provavelmente predeterminado sobre uma “exaustiva investigação oficial” – ensaiada, sem dúvidas, para incutir uma boa quantidade de medo e conformidade legislativa. Se eu me esforçar o bastante eu até consigo imaginá-la praticando isso de antemão em frente a um espelho, aperfeiçoando as várias formas de como ela franze os lábios e as sobrancelhas. Ela está obviamente tentando me intimidar e eu prontamente perco o foco, porque sério, quem se importa? Eles não vão pegar você. Se você ainda estiver vivo, você não vai deixá-los encontrar você a não ser que você queira isso – tudo fará parte do jogo. Se você ainda estiver vivo. Não, você não está morto, no entanto. Você não está. Eu não tenho nenhuma evidência concreta para presumir isso, mas eu acredito mesmo assim. Eu saberia se você estivesse morto, não saberia? Eu só saberia.
“Você teve muita sorte, Sr. Graham,” ela diz; zangada, como se eu tivesse tido sorte apenas para irritá-la, como se a minha sorte fosse uma questão de imensa insatisfação pessoal. Estou bastante impressionado, não consigo evitar – uma atitude tão meticulosamente calculista. Não tão boa quanto a sua, é claro, mas não é ruim. Nada mal na verdade. Eu daria um sete de dez para ela.
“Alguém encontrou você,” ela continua. Ainda remoendo a minha sorte, como se eu me importasse. “Te tiraram da água, fizeram curativos nas feridas no seu rosto e tronco…” ela para, incerta de como continuar. Ela não diz que esse bom Samaritano era você, mas ela não precisa dizer, porque claro que foi. Quem mais teria sido? Quando eu fecho meus olhos até tenho certeza de que consigo me lembrar: a sua mão na minha nuca, segurando o meu crânio, sempre tão calmo e eficiente, mas internamente corrosivo, envolto por uma atmosfera de um desespero cuidadosamente controlado, porque eu não estou respondendo você e você está tendo dificuldades para achar o meu pulso. “Respire, Will,” você disse. “Respire para mim, eu preciso que você respire.” você segura o corte na minha bochecha com os seus longos dedos, fazendo uma vedação hermética na minha boca para que você possa iniciar a reanimação cardiopulmonar. “Eu preciso que você viva, Will,” você dizia, “Eu preciso que você viva por mim.” Pensando bem, talvez eu tenha inventado a última parte. Na verdade, isso é quase certo. Já que esse não parece ser o tipo de coisa que você diria.
A minha mente começa a se dispersar, e eu imagino o que você faria se estivesse aqui: como você a dissecaria com as suas respostas rápidas perfeitamente construídas, franzindo uma sobrancelha. Ou, mais provavelmente, desmontando-a de forma literal, com as suas mãos. Com uma única mão amarrada nas suas costas...
Ela está me encarando agora, com um desgosto mal disfarçado. “Eu disse algo engraçado, Sr. Graham?” ela questiona.
Sua voz pausada me trás de volta ao quarto, como unhas arranhando uma lousa, e eu pisco para ela, desorientado. “Perdão, o quê?” eu digo de forma tola. Por de trás dos meus olhos, você sorri para mim.
“Você está sorrindo. Eu não estava ciente de que isso era uma situação divertida. Então – eu disse algo engraçado?”
Ah, Deus, por que as pessoas fazem perguntas assim? Não é como se ela esperasse, ou mesmo quisesse, uma resposta sincera. Eu me pergunto brevemente o que ela faria se eu dissesse “Sim, na verdade, você está - profusamente“ ou "Sim, e adivinhe o quanto eu me importo com isso. Quanto? Acabou?”
“Eu não estava sorrindo,” eu respondo, “Eu estava contraindo o meu rosto. Eu estou sentindo uma grande quantidade de dor, senhora.”
Ela me encara, claramente desacreditada, e não muito surpresa com o inescrupuloso e desdenhoso ‘senhora’ ao final da frase. Entretanto, ela não será afetada por isso; ela não faz questão. Ela deixará isso de lado, então, em retorno, eu reconstituo a minha expressão para algo mais idôneo e mantenho todo o meu foco nela. Toma lá dá cá. Além disso, não é como se valesse muito a pena imaginar o que você faria. Eu nunca fui muito confiável ao prever você, não é? É provável que você fosse me desconcertar tanto quanto ela.
“Sim, bem…” ela diz. Ela pega sua bolsa de forma exasperada e agarra a alça. Ela está perdendo o controle desta conversa, e ela sabe disso. O que ela realmente quer, claramente, é apenas mandar eu me foder. O fato de que ela não pode, e está desesperada para dizer isto, é bastante cômico.
Nós nos encaramos, medindo um ao outro. “Obrigado por passar aqui,” eu digo por fim, a dispensando. Eu exijo tudo o que resta do meu autocontrole para não sorrir agora.
Seu rosto fino e indócil treme, e ela passa os olhos pelo meu corpo com um prazer muito mal disfarçado. Nós ainda não acabamos aqui, eu sei disso – eu ainda não ganhei de verdade. Mas que se foda, lidarei com ela mais tarde. E uma vitória fugaz ainda é uma vitória, apesar de tudo. Agora eu só quero fechar os meus olhos e não abri-los novamente por muito, muito tempo.
“Lhe desejo uma rápida recuperação, Sr. Graham,” é tudo o que ela diz (é, sei), então ela se levanta, endireitando-se por inteira, deslumbrante em seus saltos lustrosos, ela me lança um olhar furioso (de verdade - não há outra forma de como definir isto) antes de girar em seus calcanhares e se encaminhar para a porta. Eu supro o meu desejo de fechar os olhos e ficar apenas deitado ali, me sentindo ligeiramente atormentado. Sinto repulsa ao perceber que minhas mãos estão tremendo novamente, então eu as enfio debaixo do cobertor. Por trás da porta o som dos saltos dela ecoam até o final do corredor, passos soberbos fazendo, click click click, e eu imagino como seria enfiar um daqueles saltos agulha opulentos através do coração dela. Eu tento me surpreender comigo mesmo com isso, mas não consigo. “Um pouco vulgar, Will, você não acha?” eu te ouço dizer, mas eu sei que você não consegue deixar de sorrir.
Algum tempo passa. Eu não sei quanto. De repente há sons lá fora e quando eu abro um olho eu consigo ver uma silhueta alta através do vidro fosco. É um homem, consigo dizer pelo formato – ombros largos, bastante fortes. Não vai ser você, eu digo a mim mesmo, não é, ah, Deus… e a porta se abre completamente, e é claro que não é você. É o Jack, resplandecente em um sobretudo e aquele chapéu fedora ridículo, irradiando desconforto. Na verdade, ele está praticamente vibrando em constrangimento, se propagando dele como ondas. As mãos dele atrás das costas como se ele estivesse apertando algo, e por um momento surreal/terrível eu penso que ele havia trazido flores para mim. Ele não trouxe, é claro (graças a Deus), é mais porque ele não sabe o que fazer com as próprias mãos. Agora ele as trás para a frente do corpo e as junta em volta da barriga, e depois as solta, fazendo com que elas balançassem como pêndulos nas laterais de seu corpo.
“Bem, Will…” ele diz finalmente, e as palavras dele saem juntas, tropeçando uma por cima da outra no esforço de deixar a boca dele, então elas soem completamente deturpadas: Bemwill. Eu sinto os meus lábios tremerem novamente. Quando foi que eu fiquei tão histérico? Eu nunca costumei rir. “Tão sério, Will,” eu lembro de você me dizer uma vez. “Tão sério o tempo todo.”
Jack tenta novamente, combatendo a falta de encorajamento. Preciso dar o braço a torcer. “Oi, Will” ele diz (melhor), e então, após uma pausa, “Você está terrível” (não tanto).
“Obrigado,” eu digo. Todavia, eu não me importo. Eu realmente estou terrível. Pelo menos ele não pergunta como eu estou me sentindo quando é óbvio que, diante de qualquer padrão reconhecido, eu me sinto dez vezes pior que merda.
Ele caçoa em resposta e em seguida arrasta a cadeira cautelosamente (a sua cadeira) para o lado da cama. Quaisquer recursos que ele precisou juntar para chegar até aqui claramente haviam se esgotado, porque agora ele fica em silêncio novamente, juntando e soltando as mãos (é claro). Eu o encaro de volta, me sentindo igualmente sedado repentinamente. Não consigo pensar em uma única palavra para dizer a ele, e ele claramente não consegue também, e eu começo a me indagar se nós vamos apenas nos encarar até a ala do hospital fechar e a enfermeira ter que tirá-lo dali, magnífico em seu silêncio intransigente.
Jack parecia infeliz, porque, é claro que parecia. Ele emite um longo e pesaroso suspiro. “Como está?” ele diz finalmente, gesticulando para a própria bochecha para se referir ao curativo na minha. Eu tento encolher os ombros em resposta, mas me arrependo de instantâneo, porque isso me causa arrepios de dor por toda parte, se irradiando da cicatriz da facada no meu peito.
“Podia ter sido pior”, eu respondo por fim (provavelmente não muito pior, no entanto). “Eles não acham que a cicatriz vai ficar muito feia.” Não que eu realmente me importasse de qualquer forma. Era só mais uma listra, mais uma marca que levava a você, como as suas mãos por todo o meu corpo. Uma cicatriz de duelo: adquirida em combate.
“Você pode cobri-la de qualquer forma, com essa sua barbinha esfarrapada,” diz Jack, e eu solto uma risada, porque o que mais eu posso fazer? O desconforto dele está alcançando níveis de intensidade que são positivamente operísticos agora, e eu me pego me lamentando por ele.
“Está tudo bem, Jack,” eu digo após uma pausa. “Você sabe que nada disso é culpa sua.”
“Eu sei,” ele diz; o que me irrita de instantâneo, porque eu estava esperando por alguma espécie de pedido de desculpas, pelo menos. Me é adequado, suponho eu - eu devia saber que não haveria nenhuma chance de generosidade com ele.
Jack suspira novamente, então eu suspiro para acompanhá-lo. “Vocês rapazes deixaram uma baita cena para trás”, ele diz finalmente. “Uma completa bagunça sangrenta.”
Suponho que isso seja uma forma de definição. “Apesar disso eu peguei o Fada do Dente para você, não peguei?” eu respondo. Há mais uma pausa. “Hum… de certa forma."
Jack sorri levemente. “É, você pegou.” Ele pausa, e quando eu desvio os olhos para as mãos dele eu vejo que claro, elas se remexiam e giravam juntas. A expressão dele se tornara séria novamente, as sobrancelhas franzindo como ferro corrugado. Ah, Deus… eu penso. Lá vem. “A questão é que,” continua Jack, “a questão é, Will, que você também nos deixou perder Hannibal Lecter.”
Eu o encaro por um momento, em um silêncio surpreso e genuíno. Eu consigo sentir a minha boca se contraindo inutilmente; eu devia estar ridículo, como um peixe ofegando por ar. Aposto que você nunca teve essa aparência como eu a tenho agora, não é? Nenhuma vez na sua vida inteira. “Pelo amor de Deus!” eu respondo finalmente. “Eu não o perdi. Não foi como se eu tivesse esquecido de o colocar no banco de trás do meu carro, tivesse ido para casa e ter dito “Ah! Para onde Hannibal Lecter foi?” eu inspiro afiada e profundamente. “Eu fui esfaqueado e jogado de um penhasco.” Eu pauso novamente: dessa vez definitivamente não era de certa forma.
Ele fica irredutível diante disso (é claro), esplêndido com seu senso moral de justiça. Jack Crawford: mais uma vez à luta. “Will, você sabe que eu preciso te perguntar isso,” ele diz. “Você sabe que eu preciso. Você estava ciente de que ele ia fugir?” Ele faz uma pausa mais longa ainda, e me encara de maneira rígida. “Dificilmente seria a primeira vez, não é?”
Por um breve e terrível momento eu sinto que realmente choraria. “Eu não faço a menor ideia do que aconteceu com ele,” eu respondo. “Eu já disse isso às pessoas. Eu fiz uma declaração. Ele caiu do penhasco junto comigo. Nós matamos Dolarhyde, ele me pegou…” cuidado, eu penso. “Nós perdemos o equilíbrio; nós caímos. Ele pode estar morto. É provável que esteja.”
“Ele pode estar, e sim, ele provavelmente está,” responde Jack. “Mas você também podia estar. E não está.”
“Não,” eu digo. “Não estou.”
“E nós estamos todos muito felizes com isso,” diz Jack, com terrível cordialidade. Ele está se sentindo culpado agora; ele está recuando. Instigado e sondado a ter uma reação, e está satisfeito que o meu sofrimento é genuíno para que ele possa se afastar temporariamente. Trabalho feito. De qualquer forma, a culpa é realmente dele… mais ou menos. Entretanto, ele parece um pouco mais feliz, a tensão se dissipando um pouco dele. Talvez ele não acredite em mim completamente, mas ele certamente quer acreditar. Ele sorri para mim novamente, todo avuncular e bem-humorado: dê um pouco mais de tempo a ele e ele possivelmente chegará ao ponto de desgrenhar o meu cabelo e me chamar de pestinha (Ah, Deus, ele não vai fazer isso de verdade… não é?). Não que essa demonstração seja tudo, ou sobre mim, marjoritariamente. É principalmente para o benefício dele – ele precisa me colocar de volta no meu lugar, me reverter a um ser subjugado, frágil, que não seja uma ameaça e que possa ser tratado com indulgência e condescendência. Apesar de sua aparente astúcia, ele realmente não sabe de nada.
“A Kade já falou com você?” ele diz.
Eu reviro meus olhos exageradamente no lugar de uma resposta e ele solta mais uma daquelas risadas. Contudo, ele já deveria saber disso, ele não devia ter que checar? Eles são todos tão inúteis, ninguém aparenta saber o que o outro está fazendo. Não é de se admirar que você os circundou elegantemente por tanto tempo.
Jack, como eu, parece ter chegado ao seu limite de tolerância com esta conversa. E ele executa toda sua performance de ajeitar o sobretudo e aquele chapéu idiota. Eu me pergunto se você se safaria com um chapéu assim? Provavelmente sim. Libertino. Levemente inclinado para um olho.
“Cuide-se, Will,” diz Jack. Ele afaga o meu ombro com cautela e eu sorrio de volta para ele, porque é isso o que eu devo fazer. “Nos falaremos mais depois,” ele finaliza, como ambas uma ameaça e uma promessa.
Depois que ele se retira eu me espreguiço e fecho meus olhos, aproveitando a paz e o silêncio (finalmente). Depois de um tempo eu os abro novamente, mas você não está lá: é claro que não está.
“Eu não sei onde você está,” eu finalmente profiro em voz alta. Eu espero que ninguém possa me ouvir. Só consigo imaginar a atualização no meu arquivo médico: Will Graham está deitado em seu quarto no momento, contentemente falando sozinho. Mas isso não me incomoda o suficiente para me fazer parar. Não é minha culpa de qualquer forma; eu não devia estar falando sozinho. Eu devia estar falando com você. Mas eu não sei onde você está, eu realmente não sei. Você não está em lugar algum mas você pode estar em qualquer lugar – tudo ao mesmo tempo.
“Mesmo se eu soubesse onde você está eu não diria a eles. Eu não deixaria que eles levassem você,” eu digo para a escuridão. O ‘porque você é meu” permanece tácito, mas se você estivesse sentado na sua cadeira, você o ouviria da mesma maneira. Você saberia. Você sempre soube.
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Mais seis semanas se passam antes que eu consiga alta do hospital. Isso é completamente ridículo – não é nem medicamente necessário – mas eu entendo que Jack me queira em um lugar seguro onde ele possa ficar de olho em mim. A afirmação não dita, mas igualmente óbvia, é que o hospital é um espaço controlado onde eles podem te emboscar em um cenário onde você aparece para finalizar o trabalho. A ideia é risível; como se você realmente fosse cair em uma armadilha tão modesta. Como se eles fossem pegar você, mesmo que você aparecesse.
Você não aparece.
O fluxo de visitas é exíguo, mas firme. Alana comparece, trazendo um garotinho diligente com os olhos brilhantes dela e uma cabeleira de mechas negras. Ele arrasta a sua cadeira para o canto do quarto e cria uma espécie de forte com o casaco da mãe dele, seus olhinhos semelhantes aos de um pássaro, vívidos, espiando pelos vãos. Há algo engraçado sobre seu rostinho energético. Eu sorrio para ele, mas ele só me olha, como uma coruja, se recusando a sorrir de volta. Eu não o culpo, eu provavelmente pareço assustador: olhos arregalados e assombrado por uma cicatriz escarlate reluzente rastejando pela minha bochecha. Após isso, ele provavelmente irá implorar para Alana não fazê-lo ir às visitas com ela novamente. Zeller e Price marcam presença e são quase (não tanto quanto) tão estranhos quanto Jack, mas eles se abrandam com mais rapidez e de forma mais convincente.
“O seu cabelo está grande demais, Will,” Price diz, semicerrando os olhos para mim de maneira crítica, “você já pode amarrar eles com lacinhos a esse ponto. Aw, você deveria: ficaria adorável.” Eu o lanço um olhar rápido, mas ele não quer dizer nada com isso, é apenas provocação. Ele está certo de qualquer forma; eu estou passando do limite do ‘despenteado’ (já passei). Ele se senta na beira da cama e rouba todas as uvas da cesta de frutas que a Alana trouxe, e eu rio e faço uma falsa menção de dar um soco na mão dele. Suponho que poderia ter sido pior. Pelo menos o meu quarto é elegante e espaçoso – na verdade é tão bem composto que é quase certeza que é o departamento o responsável por pagar a conta, porque de jeito nenhum o meu precário seguro conseguiria arcar com uma coisa assim. Na verdade, eu ainda tenho seguro? Eu faço uma nota mental para checar. Não que ainda haja a mesma necessidade de antes - é seguro dizer que a minha média de lesões irá cair drasticamente agora que você não está mais por perto.
De todas as pessoas, Molly é a mais conspícua em sua ausência. É óbvio que alguém tem falado com ela (alguém esse sendo muito provavelmente Freddie Lounds), e eu sinto culpa e um pesar genuíno por essa ideia já não me angustiar mais do que deveria. Eu não posso culpá-la. Eu não culpo. Não é como se eu tivesse tentado entrar em contato com ela alguma vez.
Kade também aparece novamente e dessa vez se recusa a se sentar, optando por ficar de pé ao meu lado ou perambular pelo quarto. Ela me diz que a equipe forense fez avanços na investigação da cena do penhasco, e se eu gostaria de alterar a minha declaração? É um estratagema tão óbvio que eu quase rio na cara dela - é claro que eles ainda não encontraram nada novo, e certamente nada que me incriminaria. Eu dificilmente estaria sentado aqui se tivessem.
“Não, estou bem,” eu digo (eu sei que minha voz soa superficial, mas não consigo evitar). “Eu mantenho tudo o que eu já disse.”
Ela olha para mim de modo interrogativo, mas eu me recuso a desviar o olhar, e eventualmente ela desvia primeiro. Eu realmente consigo ser determinado quando quero. Você ficaria satisfeito. “Sabe, os seus pais escolheram o seu nome com uma grande presciência,” você me disse uma vez. “William. Significa ‘guerreiro destemido’ no alemão original.”
“É?” eu respondi.
“A palavra “will” por si só significa força e determinação. Força de caráter; força de vontade.” você sorriu levemente. “‘Poder de vontade,’ vê?”
“Parece o pior superpoder do mundo.” eu estava me sentindo estranho naquele ponto e estava fazendo piadas para tentar camuflar isso.
“Suponho que, às vezes, isso é verdade,” você respondeu. Você parecia pensativo. “Os dons que você tem; não é sempre fácil suportá-los, não é? Talvez um dia seja.”
“‘Dons’ no plural?” eu disse, confuso. “Pensei que você estivesse falando da minha empatia?”
“Eu estou,” você respondeu, no mesmo tom de calma, “mas eu também estava me referindo à sua grande capacidade caliginosa.”
Se outra pessoa tivesse dito isso teria soado vagamente ridículo, mas o seu inglês conciso imbuiu as quantias certas de reverência e ameaça. Na época eu não entendi completamente o que você queria dizer – mas é claro, eu descobri eventualmente.
*****
Outro fator inevitável concernente à minha estadia no hospital era que eu não tinha nenhum lugar para ir. A casa em Wolf Trap já foi há tempos vendida – a primeira de muitas fatalidades – e eu dificilmente poderia voltar me arrastando pela garagem de Molly (Ela não parece mais a minha garagem… agora eu me pergunto até que ponto ela realmente me pertenceu). E mesmo se eu pudesse, eu iria querer? Não, provavelmente não. A pessoa que ela conhecia, seu “doce homem” – eu imagino como isso soaria nos seus lábios – se foi. Ele caiu de um penhasco e foi levado. O oceano se apossou dele. Teu pai jaz a cinco braças sob o mar, de seus ossos fez-se coral, pérolas são seus olhos de outrora. De onde era isso? Deus, qual é o meu problema, não é como se eu tivesse o hábito de desenterrar trechos de poemas aleatórios. Você saberia, é claro. Você sempre conhecia coisas assim.
The Tempest¹, é daí de onde vem.
Dinheiro é um problema, mas não é insuperável. Eu não sou ingênuo o suficiente para achar que serei bem-vindo de volta a Quantico em breve, mas eu tenho poupança, e em adendo, uma série de cheques de direitos autorais chegando aos poucos de diversas monografias (reconfortantemente impulsionados desde que eu passei a estar nas notícias novamente – curiosidade mórbida possui o seu valor no mercado, assim como qualquer outra coisa). Mesmo assim, uma parte de mim se rebela contra a ideia de me recluir em um casarão suburbano. Eu me pego examinando anúncios de apartamentos decididamente inadequados nas regiões nitidamente mais questionáveis da cidade. Sendo atraído pelo repugnante e o isolado, dizendo a mim mesmo que é esta a privacidade pela qual eu estou procurando: onde os vizinhos não notam, nem se importam e não fazem perguntas. Eu reitero que isso não tem nenhuma relação com encontrar o tipo de propriedade onde você facilmente poderia se infiltrar, e às vezes eu quase me convenço de que isso é verdade.
Alana se oferece para ajudar na mudança, mas os meus pertences são tão escassos que nem vale o tempo dela. Fazê-la atravessar a cidade apenas por conta de algumas caixas maltrapidas seria ridículo. Não é porque eu não quero dar o meu endereço a ela. É? Não, eu terei que dá-lo ao Jack de qualquer forma. Esse não é o motivo.
O apartamento é realmente terrível. Aposto que alguém morreu aqui, provavelmente mais do que uma pessoa. É provável que seja mais fácil listar os inquilinos que não morreram aqui. Até a estrutura do prédio cai entre seus moradores, como um homem bêbado sendo levantado por dois cúmplices descontentes. Eu me divirto imaginando o que você faria se o visse, parado no centro da sala de estar no seu terno prístino horrível, revirando seus olhos em pavor. Você teria uma convulsão. Você odiaria. Deus, como você odiaria. Com as suas garrafas de conhaque de $1,500, os sapatos de couro Florentine e os seus móveis destruídos do século 19. Você era um desgraçado tão pretensioso, exibindo a sua fortuna e gosto como um instrumento firme, empunhado com a força da sua personalidade. Aposto que você nunca teve que ficar em um lugar assim em toda a sua vida. Não, na verdade, isso não é verdade, é? Você já foi pobre, muito. Quando você era pequeno demais, antes da sua tia e do seu tio ficarem com você. Eu lembro de você me contar isso, bastante pragmático, sem floreios. Você possuía uma intensidade no olhar enquanto falava, mas nada além disso entregou você. A sua voz não vacilou nenhuma vez. Eu não ofereci nada de simpatia, porque eu sabia que você odiaria, mas eu ainda lamentei por você – por aquela criança frágil que você um dia já foi. Eu me pergunto onde você está agora: se está encolhido em um cortiço sujo e miserável ou fazendo fila por um colchão em um abrigo, cansado e extenuado e massageando os hematomas nos seus braços? De certa forma, eu duvido disso. É incrivelmente difícil imaginar você em ambientes como esses. Você é engenhoso demais, ardiloso demais, ninguém pode te encurralar e se apossar de você. O único motivo pelo qual você estaria envolvido em circunstâncias tão hostis seria se você tivesse escolhido isso.
Talvez eu não esteja sendo totalmente justo com você, de qualquer forma. Não é como se você já tivesse tentado me fazer sentir inferior por ser menos polido do que você. Eu sei que você camuflou o seu perfeccionismo aristocrático perante os tecidos de flanela e o pelo de cachorro que me cercavam naquela época. O carro rangendo e a tinta branca se descascando da cerca. A loção pós-barba com um navio na garrafa. Você podia ter me menosprezado se quisesse, você teve muitas oportunidades. Mas você nunca menosprezou. Eu nunca senti que você me depreciava. Esse tipo de coisa não era importante para você, acho eu. Você não era esnobe dessa maneira.
Depois de uma semana e meia no apartamento, as caixas permanecem intactas, mas agora há cerveja e comida (não muito, mas um pouco - principalmente frituras variadas, processadas e açucaradas, que fariam você se contorcer de pavor), duas cadeiras, e conexão com internet. Jack me liga duas vezes, e Alana uma, mas eu não ligo de volta. Eu examino as páginas do TattleCrime, passando mais tempo nos comentários do que nos artigos. Eu não preciso lê-los, eu estava lá; eu sei o que aconteceu de verdade. Eu perco a noção do número de pessoas que se referem a nós como Maridos Assassinos (Freddie devia fazer uma marca com isso, ela faria uma fortuna). Inúmeras pessoas especulam se nós estávamos transando ou não, e se sim, por quanto tempo, e quem era o ativo (você, é claro, sendo a opinião consensual). Eu deixo um grunhido alto escapar e passo a mão pelo rosto. Era realmente terrível.
Os comentários pareciam bastante divididos entre as pessoas que acreditavam que eu estava envolvido na coisa toda e ajudei você a forjar a sua morte. ZumbiCanibal99 acha que fui eu quem morri e que o Will Graham atual é na verdade Hannibal Lecter usando uma peruca e óculos sem grau. Eu levanto a sobrancelha. FBI_Desmascarado argumenta que eu te dei um emprego secreto na agência como um perfilador perito, mas que ninguém sabe que é você. Aparentemente eu pretendia explorar as suas ideias como se fossem as minhas. Havia uma conta bastante dedicada em explicar como distintivos podem ser convincentemente adulterados, como se um distintivo falso fosse a parte mais singularmente implausível da teoria. A maioria das pessoas concorda que você ainda está vivo.
Eu brinco com a ideia de abrir um perfil fake e dar a minha opinião. É surpreendente a quantidade de pessoas que possuem nomes de usuário com variantes do meu (vários Will_Graham_Real e WillGraham2015), um número substancial de pessoas afirmando serem eu e brincando com a verdade do que realmente aconteceu naquela noite. Bem menos pessoas fazem o mesmo por você - mesmo como um avatar você parece impor respeito. Eu finalmente ajo e digo ao Graham666 “Isso é tudo besteira. Eu sei com CONVICÇÃO que Will Graham não pode ter subido de volta ao penhasco porque ele tinha um medo mórbido de líquen e preferiria se afogar ao tocar aquela coisa repulsiva e felpuda.” AVerdadeEstaPorAi prontamente responde e diz que *todo mundo* sabe que Will Graham odeia líquen, duh, quem não sabe disso, e que de fato, Graham666 está dizendo besteiras. Eu pisco para a tela várias vezes, então desligo o notebook. Eu percebo, tardiamente, que estou extremamente bêbado (ultimamente, tenho me embebedado com frequência).
Ocasionalmente eu analiso os tópicos para ver se há alguma possibilidade de alguém ser você, oculto por um teclado e pseudônimo inócuo, mas nada se destaca.
Deus, quando foi que eu me tornei tão patético – me submergindo em bebida e escavando o TattleCrime? Eu me tornei o tipo de pessoa que eu desprezava. Eu sei que preciso me recompor, começar a me preparar para o resto da minha vida, mas eu não sei como. Eu ainda não sei como a minha vida vai ser sem você nela... Não é como antes, quando eu sempre soube exatamente onde você estava, mesmo sem te ver. A minha imaginação está finalmente me falhando. Há um espaço vazio, uma ferida. Um grande corte sangrento onde você deveria estar.
As minhas noites quase sempre terminam da mesma maneira, comigo fechando os olhos e imaginando você. Na maior parte do tempo você se recusa firmemente a aparecer, mas não sempre. Eu te observo entrar, seus olhos vasculhando a sala. Você absorve os meus arredores gloriosamente esquálidos e levanta uma sobrancelha para mim. “Ah, caro Will,” você diz. Você parece alegre. O seu sotaque um pouco mais acentuado do que eu me lembrava, mais pesado nas vogais. W-i-ll. Você se senta cuidadosamente na cadeira oposta à minha, esticando suas pernas na sua frente e juntando os dedos sob o seu rosto.
“Vai se foder,” eu digo alegremente. Eu levanto a minha cerveja na sua direção em um brinde desdenhoso. Estou me divertindo absurdamente com o seu desdém pelo meu apartamento de merda.
Você só sorri para mim. Você parece afável. Eu reconheço essa expressão, eu já a vi antes. Você costumava olhar para mim assim com bastante frequência. Em primeira instância eu achei um pouco estranho, não tenho certeza do que mudou. Eu sorrio de volta para você e bebo a minha cerveja.
“Você está bebendo demais,” você diz. Eu sorrio novamente e te ignoro, tomando outro gole. Há silêncio agora, mas é amigável. Eu sempre gostei disso em você, você nunca sentiu a necessidade de quebrar silêncios com platitudes sociais e conversa fiada. Eu olho para você e você só está ali, me observando e me absorvendo.
“Você me mandou o seu coração partido,” eu digo de repente. Você me olha. “Na Itália. Na igreja.” Por que eu estou te dizendo isso? Não é como se você já não soubesse.
“Mandei.”
“Por quê?”
Você não responde. Você só fica ali, me olhando, aquele maldito sorriso no seu rosto. Você está esperando que eu compreenda. Você sabe que eu vou.
“Ter um coração partido implica sentimentos profundos,” eu digo. A minha voz começa a falhar ligeiramente, e eu tusso para tentar camuflar o tremor. “Mas você não sente isso, não é? Você não é como as outras pessoas.”
“Certamente que não sou.”
“Bedelia disse que você estava apaixonado por mim.”
“Ela disse?” você responde com um interesse cortês.
“Por que você me deixou para trás?” eu digo. “ Seu desgraçado. Por que você não me levou com você?”
“Mas eu nunca te deixei para trás.” você ponderava. Ou talvez você só estivesse ficando entediado de mim, disso… seja lá o que isso fosse (foda-se se eu soubesse). “Algo sempre me manterá perto de você, mesmo se não estivermos juntos,” você completa. Agora a sua voz soava um pouco mais contemplativa. É impossível dizer se você está sendo sincero ou não.
“Besteira,” é tudo o que eu digo.
“Você precisava de atenção médica apropriada.”
“Você também.”
“Mas eu não sou como as outras pessoas – acredito que nós já esclarecemos isso.”
“Você está na minha cabeça,” eu afirmo de forma petulante. “Você não pode dar a última palavra sempre.”
“Muito bem. O que você desejar.”
“Eu desejo.” Eu estou bêbado demais. Extremamente bêbado. Eu tiro os meus óculos e fecho os olhos, encolhendo meus ombros e deixando os músculos fletirem e se curvarem. Tudo dói. Eu ouço você se movendo na minha direção, sinto os seus dedos penetrarem o meu cabelo, massageando o couro cabeludo. O seu polegar passando pela pele sensível sob a minha orelha.
“O seu cabelo está bem grande.”
“Estou ciente,” eu digo com indiferença, mesmo que eu esteja feliz por você ter notado - que você teve tempo para notar uma detalhezinho tão estúpido como aquele. Então, eu percebo em um sobressalto (com algo muito parecido com vergonha) que eu estou mais feliz de conversar com você na minha cabeça do que com as pessoas reais na vida real. Reais, pessoas equilibradas. Por conseguinte eu percebo que esse pensamento não me incomoda tanto quanto deveria. Devia me incomodar. Mas não é como se eu tivesse algo melhor para fazer, não é? Esse é o meu estilo.
“Boa noite, Dr. Lecter,” eu digo em voz alta. Mas dessa vez a sala fica silenciosa e não há resposta, porque é claro que você já se foi. Sou só eu em uma sala vazia na pior parte da cidade, perdido em devaneios imaginários com a melhor/pior pessoa que eu já conheci na minha vida, que tentou me matar em várias ocasiões singulares (e salvou a minha vida mais algumas), a qual eu nem sei se está realmente viva. Os meus olhos ardem e se umedecem, mas eu digo a mim mesmo que não estou chorando. Eu não estou; definitivamente não. Não acenando, mas sim afogando.
Encontro um pedaço de papel, escrevo “Resolver a vida” nele (destacado três vezes e com dois pontos de exclamação) e o prendo na cafeteira, assim será a primeira coisa que eu verei quando eu for até a cozinha amanhã.
Conforme eu me preparo para deitar, eu permito que os meus pensamentos voltem até você (é claro). Eu já pensei muito nisso, sabe: o que estava se passando pela minha cabeça quando eu empurrei nós dois do penhasco. Eu também penso muito no que estava se passando pela sua, todavia de forma hesitante, porque essa parte é muito mais difícil de se determinar. O que eu mais lembro é a sensação das suas mãos – uma nas minhas costas, uma no meu quadril – e o seu silêncio. O seu silêncio era avassalador; você não emitiu um som sequer conforme nós caíamos, nem uma vez. Você não lutou nem nada, você só me deixou te empurrar, como se você estivesse conformado com o fato de que é claro que tudo acabaria assim. Você manteve os seus braços ao meu redor o tempo todo, a minha cabeça contra o seu peito.
Eu finalmente havia passado do limite, não é? Não é de se admirar que você estava tão satisfeito. Quando você se regozijava, e era eu quem tolerava; e depois veio o Grande Dragão Vermelho e o meu prazer em trucidá-lo. E a constatação daquilo foi completamente dilacerante. O som de satisfação da faca entrando, você e eu caçando juntos – o quão vivo eu me senti, tão profundamente vivo no meio de toda aquela morte. Curiosamente (ou não?), eu não me lembro das coisas importantes – cair na água, me afundar, ser arrastado para a costa novamente – mas eu me lembro das suas mãos e do seu silêncio, e a terrível fatalidade de tudo. Não posso viver com você, não posso viver sem você. Eu queria morrer e eu queria que você morresse comigo. Eu me lembro disso.
Quando eu acordei no hospital foi como a traição absoluta – você me enganou novamente. O seu jogo, as suas regras… e a peça não termina até você dizer que termina. Até o oceano obedeceu os seus caprichos e nos cuspiu para fora, porque é isso o que você queria. Agora que eu estou aqui, uma vida toda longe daquela noite terrível e arrebatadora – com o choque, a dor, a adrenalina, o sangue (preto sob a luz do luar) e o prazer - consigo me sentir contente com isso. Ou talvez, não contente, não exatamente – apenas não mais com tanta raiva. Suponho que agora eu tenho uma nova chance, graças a você. A grande questão, é claro, é o que eu planejo fazer com ela. Essa é a parte para a qual eu não estou preparado ainda. Eventualmente, é claro, eu sei que terei que estar – mais um acerto de contas. A alternativa nesse meio tempo é esse espaço liminar estranho, onde eu passo pelos movimentos certos, como uma marionete, fazendo todos os movimentos e gestos para convencer as pessoas de que eu ainda sou o mesmo Will Graham que o que se afundou no mar. Enquanto eu (e você) sei que esse está longe de ser o caso.
A minha parte sã (que ainda está lá também, em algum lugar) sabe que eu finalmente preciso deixar você ir, e talvez um dia eu deixe. Mas não ainda.
Notes:
1 - The Tempest, ou A Tempestade é uma peça teatral escrita pelo dramaturgo inglês William Shakespeare.
Chapter Text
Eu acordo na manhã seguinte sentindo o meu crânio latejar, acompanhado pela sensação distintamente desagradável de que algo se rastejou até a minha boca e morreu ali no meio da noite. Deus, isso é lamentável – eu sou velho demais para estar me comportando assim. Eu cambaleio até a cozinha atrás de aspirina, e imediatamente localizo a minha nota presa acusadoramente contra a cafeteira com uma aparência (se possível) ainda mais estridente e vibrante do que na noite passada. Então de repente eu sinto uma onda de irritação com o meu eu bêbado por ser um babaca tão hipócrita, mesmo que eu esteja ciente que a ideia é pertinente. Eu sou como um nadador me movendo de maneira enevoada e hesitante em direção ao céu para tentar romper a superfície (literalmente e metaforicamente, realmente, porque não é isso o que nós devíamos ter feito naquela noite?) Eu preciso fazer uma escolha consciente para começar a viver novamente. Eu sei disso. Eu sei disso. Não posso continuar fingindo que não sei.
O problema é que eu não tenho nenhum senso claro de propósito, mas eu preciso de no mínimo algo para preencher o meu dia completamente sem rumo, antes que eu enlouqueça dentro da minha própria cabeça. Suponho que eu poderia dizer que devo isso a você (eu poderia… suponho eu). Afinal, você se certificou de que eu sobreviveria à nossa queda mútua, você obviamente pretendia algo para mim. Deus, mas por onde eu começo?
O apartamento me afeta de maneira mais deprimente do que o normal nesta manhã, com feixes fracos da luz do sol atravessando as finas cortinas, iluminando todas as rachaduras e manchas úmidas, então eu decido sair um pouco. Eu mantenho meus olhos baixos, elevando-os vez ou outra para observar as ruas com curtos suspiros. Depois de cerca de 20 minutos eu começo a perceber o quão paranoico eu estou, pensando que alguém irá me reconhecer, então eu puxo a gola do meu casaco para esconder o rosto. Assim é melhor, até eu me deparar com um vislumbre do meu próprio reflexo na vitrine de uma loja e decidir que se as pessoas não estavam olhando para mim antes, então elas definitivamente olharão agora, porque eu pareço suspeito demais. Procurando por ajustes, eu puxo a gola de volta no lugar, mas vasculho o meu bolso procurando pela minha touca, a puxando sobre a minha testa. Eu atravesso o parque e olho para um homem em um banco lendo um jornal com o seu mugshot estampado na frente e um título que dizia: FBI AINDA ATÔNITO. Ele me pega encarando e me lança um olhar acusatório, então eu me viro e continuo andando.
Eu acabo em uma pequena cafeteria que estava se esforçando um pouco demais para exibir suas referências modernas, independentes e autonômicas, mas que fora isso, era bem aconchegante e silenciosa. Eu sou o único cliente presente, e eu acabo envolvido em uma conversa com a garçonete. Ela está usando um crachá com uma carinha sorridente que dizia “Oi! O meu nome é Sarah”, ela ri de tudo o que eu digo e toca o meu braço quando deseja se expressar. Eu sei que ela está tentando flertar comigo, e que ela é na verdade muito bonita, as bochechas coradas, de maneira límpida. Em outros tempos eu talvez tentasse dar em cima dela apenas por diversão, mas agora a ideia me faz sentir exausto. Ao invés, eu a ajudo com as palavras-cruzadas. Ela está com o mesmo jornal com o seu rosto na capa, mas pelo menos eu estou preparado dessa vez e desvio os meus olhos com cautela para o açucareiro no balcão.
“Sob o alvo do cupido, uma rara infecção,” ela diz. “Onze letras, começa com ‘e’ e termina com ‘e’.”
“Endocardite,” eu respondo antes de acrescentar, de maneira um pouco sem sentido, “endo significa dentro.”
“Legal,” ela responde. Não consigo dizer se ela está genuinamente impressionada ou está tentando ignorar educadamente o fato de que (até para mim mesmo) eu estava soando como um sabichão insuportável. Eu continuo e acerto ambos ‘autópsia' e ‘malária.’
“Você é muito bom com os termos médicos, não é?” ela sorri para mim novamente, sorrindo mais intensamente do que a carinha no crachá dela. “Você é médico ou algo assim?”
“De modo algum,” eu digo vagamente, “Eu só as conheço porque elas têm relação com a morte.” Ah, porra, porra, eu realmente disse isso em voz alta, não é? Em momentos assim eu me pergunto como eu consegui sobreviver às décadas passadas suportando um nível de ignorância social tão alto possivelmente terminal. Eu estendo as mãos, minhas palmas para cima. “Merda, me desculpe,” eu digo, “Isso soou muito estranho. Eu trabalho como agente. Ciência forense. Sabe, tipo…” eu me movo um pouco, tentando pensar em uma analogia forense como uma forma de tranquilizá-la, para que ela não surtasse, e falho de forma retumbante. Havia algum ponto de referência tranquilizador sobre ciência forense?
“Ah,” ela responde de forma lenta, “tipo aquela série CSI?”
“Sim!” eu digo, um pouco ansioso demais. “Sim, exatamente isso.” Bem, na verdade não – não exatamente.
Ela sorri e ri, equilíbrio restaurado, e por mais que eu esteja contente ao vê-la sorrir novamente, eu ainda suspiro internamente e desejo poder dizer a ela que era melhor ela confiar mais em seus instintos primitivos e se afastar de mim porque eu, de fato, sou ambos perturbado e perturbador. Eu não pertenço ao mundo dela, que é preenchido por aqueles que são confiáveis e sãos e gentis. Eu não sou nenhuma dessas coisas, nada além de um disfarce. Eu deixo a cafeteria pouco depois e ela faz copiosas sugestões sobre eu passar ali novamente para tomar um café por conta da casa e para outro desafio de palavras-cruzadas, e eu digo a ela que verei o que posso fazer, no entanto, enquanto eu a respondo, eu sei que não voltaria de jeito nenhum.
*****
É uma sensação bizarra, como se o mundo estivesse seguindo em frente sem mim (o que é verdade) e eu estou tentando fazê-lo parar para acompanhá-lo de volta. Depois de ponderar um pouco, o meu primeiro passo será um pacto silencioso comigo mesmo: na próxima vez que alguém me ligar eu irei atender. Sob a perspectiva geral das coisas, é um objetivo patético, mas eu preciso começar por algum lugar. Um dia ou dois se arrastam sem nada, e então o telefone toca, e é o Jack. O meu coração se afunda um pouco – eu estava esperando que fosse a Alana. Eu não tenho muita esperança que Jack vá dizer algo que eu queira ouvir, mas quebrar a minha resolução na primeira tentativa não é um bom prenúncio, então eu aperto o botão de aceitar.
“Oi, Jack.”
“Will!” ele diz, como se realmente estivesse feliz em ouvir a minha voz (não é possível que ele esteja. É?) “Quanto tempo. Eu estava começando a pensar que você tinha fugido de novo.”
“Não,” eu digo, “Eu estou bem aqui,” o que é na verdade muito idiota, onde mais eu estaria?
“Cena do crime,” ele responde, sem nenhuma outra introdução. “Invasão domiciliar e um proprietário morto. Gostaria que você desse uma olhada.”
Considerando o comportamento dele comigo no hospital, isso realmente não era o que eu esperava, estou genuinamente surpreso. “Sério?” eu respondo por fim.
“Sim, sério,” diz Jack. Ele soa um pouco impaciente. Eu consigo ouvir conversas no fundo, o som de um telefone tocando. “Não há mais ninguém e imagino que você precise de trabalho.. Está pronto?”
Eu sinto uma sensação repentina de afeição por ele. O bom e velho Jack. Por que ele confia tanto em mim? Não é como se eu tivesse feito algo recentemente para merecer isto.
“Estou pronto,” eu digo (eu não estou).
“É melhor estar,” Jack responde. “Vou me arriscar por você aqui, Will. Te pedir para voltar não foi… bem, vamos dizer que não foi a decisão mais unanimemente popular. Não posso te apoiar dessa vez.”
“Jack, eu estou bem, eu consigo,” eu digo, e fico satisfeito com o quão convincente eu soo. “Ninguém precisa me apoiar.”
Você apoiou uma vez, não foi? Cambaleando na neve da Fazenda Muskrat. Nós tremíamos de dor com as inúmeras feridas e a extenuante exaustão, e eu oscilava entre o estado da consciência. Em parte, por todas as drogas que me foram dadas, mas majoritariamente por consequência do choque também, eu acho. A minha mente se apagava; sabiamente, ela havia percebido que não haviam mais vantagens em estar consciente do que estava acontecendo com o meu corpo. Deus sabe o que havia acontecido com você, eles também não te trataram com gentileza não é? Mas lá estava você: marchando com uma determinação surpreendentemente irrepreensível, eu pendurado nos seus braços. Os meus olhos se abriam uma vez ou outra, e eu vi você olhando para mim. Você me pegou olhando e sorriu, revirando os olhos para mim. “Para alguém tão esguio, Will, você é bem mais pesado do que parece,” você caçoou. Mas ainda assim, você me carregou, não me soltou nenhuma vez. Isso foi um dos motivos do seu sucesso, suponho eu: você nunca desiste, de nada. É provável que você não sabia como, navegando de forma leviana pelos limites de resistência de qualquer pessoa.
“Will?”
“Sim, perdão, estou bem aqui.”
“Tem certeza de que está bem?”
“Estou bem,” eu respondo, como se ao dizer aquilo vezes o suficiente fosse conjurar à realidade. Jack continua a me perguntar se eu quero uma carona, e eu digo a ele que eu iria por conta própria, então ele me dá o endereço e desliga. Eu solto meu celular, assentando-o cuidadosamente de volta na mesa, e fico parado ali por um momento, respirando fundo. Há uma sensação estranha de energia reverberando por mim. Eu não sei o que vai acontecer.
Okay, primeiro de tudo, eu procuro por uma camisa em uma das minhas caixas de papelão (ainda não desempacotadas e vasculhadas apenas quando necessário), e faço uma tentativa avulsa de passá-la com o ferro. É uma pena que eu não possa passar o meu rosto também, que está ligeiramente mais amassado do que a camisa. Eu sei que estou horrível. Eu perdi peso demais e os meus olhos estão grandes demais para o meu rosto, minhas maçãs do rosto se sobressaindo como sacadas (não tão características como as suas, no entanto). Pelo menos eu finalmente corto o cabelo. Não consegui encarar um barbeiro, então eu fiz a barba eu mesmo na semana passada, em frente ao espelho sujo do banheiro, aparando com um par de tesouras de unha. Está bem mais arrumada, mas não consigo deixar de sentir que isso só me deixa pior ainda. Os cachos suavizavam o meu rosto antes - o corte mais curto me faz parecer mais magro do que nunca, mais acentuado, com margens afiadas.
Eu localizo oa meus óculos na cômoda ao lado da cama e lanço um último olhar para a pequena sala de estar sebenta, pegando as minhas chaves e me encaminhando para seja lá que tipo de desastre foi conjurado do outro lado. Hora de trabalhar.
****
No caminho, eu me pergunto o que diabos eu estou fazendo.
****
Eu vejo as luzes piscantes antes de virar a curva e parar diante da confusão típica de uma cena do crime, paramédicos e vizinhos ansiosos se aglomerando juntos. A presença do FBI não é óbvia de imediato, mas então eu noto Jack perambulando ao redor do perímetro, resmungando ordens para os seus vários minions. Ele levanta uma mão em cumprimento quando me vê. “Ah, Will!” ele diz, “Obrigado por vir. Fico feliz que tenha conseguido aparecer."
“Sem problemas,” eu respondo. Eu soava um pouco sério demais: era estranho. Eu quase acrescento algo sobre ‘estar feliz de estar aqui,’ mas felizmente, eu percebo a tempo o quão inanpropriado isso soaria: nenhuma pessoa normal fica feliz de estar em uma cena do crime (especialmente penoso, considerando toda a conversa do ‘Eu sei tudo sobre a morte - até em Latim’ na cafeteria). Jack afaga meu ombro brevemente. Se ele ainda estiver mantendo reservas, ele não irá expô-las aqui. Aos olhos de qualquer espectador, ele está genuinamente feliz por eu ter vindo. Eu sei que essa fachada de união é tanto para o benefício dele quanto para o meu – ele precisa sustentar as próprias decisões, afinal – mas eu ainda estava grato.
“Fora do comum,” Jack diz. Ele faz um gesto para a casa. “Na verdade é provável que isso seja um pouco sem graça para você. Mas pensei em te introduzir com algo leve.”
Eu levanto as sobrancelhas. “Você está me preparando?”
“É, algo assim,” diz Jack, desinibido. Ele dá de ombros. “A polícia local reportou. É uma área com uma taxa pequena de crimes e tem algo de esquisito com o corpo.”
“De que forma?”
“O rosto está coberto por uma espécie de máscara tribal. Eles acham que é premeditado, encenado para parecer uma invasão a domicílio.”
“Certo,” eu digo, “me mostre onde.” Jack me guia pelo caminho e eu o sigo, tentando não ficar muito atrás. Para o meu grande alívio eu não vejo ninguém que eu conheça, no entanto, um dos policiais no portão está me encarando, e eu suspeito que ele tenha me reconhecido de algum lugar. Ele era incrivelmente jovem, um pouco mais velho que um adolescente – absterso, rosto reluzente com bochechas coradas e praticamente vibrando com um platonismo fervoroso. Há algo estupidamente tocante em relação a ele; como se ele tivesse uma arma de plástico e um distintivo de brinquedo. Eu tento me lembrar de quando eu era tão inocente e entusiástico assim, e falho imensamente. (Eu já fui assim? Provavelmente não).
“Ei!” ele chama. Ah, merda, ele está nos seguindo, saltando no caminho como um cachorrinho fardado. “Ei! Will Graham! Você é o Will Graham, não é?”
Por um breve momento eu penso em negar (Não, não sou, mas estou ciente da semelhança – acontece o tempo todo. É uma merda), antes de perceber que eu não posso dizer que sou outra pessoa com Jack bem ali ao lado. A consequência de toda a situação é que tempo o suficiente passa antes de eu responder, fazendo parecer que eu estava tentando lembrar do meu próprio nome. “S-i-m,” eu digo eventualmente (de má vontade). A inflexão na minha voz se eleva um pouco no final, como se eu estivesse fazendo uma pergunta. Cristo, Jack está olhando para mim com aquela expressão de ‘o que diabos ele está fazendo agora?’.
“Cara!” diz o policial novato, “Cara, isso é tão legal, ver você em pessoa. Eu li tudo sobre você.”
“É?” eu digo. “Eu sou o cara que não matou todas aquelas pessoas.” sinto vontade de lançar um olhar sardônico de soslaio para Jack a esse ponto, mas decido não testar minha própria sorte.
“Legal!” diz o garoto, resoluto, e eu o respondo com um sorriso e um acenar de cabeça (o que era para parecer amigável – eu juro que era – mas dá um pouco errado no processo, fazendo parecer que eu provavelmente tenho um tique nervoso). Eu o imagino contando para os amigos dele sobre essa conversa depois: “Sim, eu conheci o Will Graham, era ele mesmo. Um esquisitinho perturbado, pareceu até esquecer do próprio nome…” por um momento horrível eu penso que começaria a rir.
“Você não tem alguns testemunhos para recolher, oficial?” diz Jack, mordazmente. Uma parte maldosa de mim sente vontade de provocar (‘é, oficial, você não tem alguns testemunhos para ouvir?’) mas eu não o faço, porque ele era só um garoto e nada disso era culpa dele.
Ele desvia o foco de sua surpresa para Jack, e eu aproveito a oportunidade para me virar e ir em direção à propriedade. Conforme eu ando eu consigo ouvir um arquejo “... com certeza, Sr. Crawford, agora mesmo, senhor.” A casa em si era espaçosa e opulenta olhando de fora, inteiramente contraditória com uma morte violenta e trágica.
“A vítima é Andrew Atherton,” Jack me diz quando ele me alcança. “Homem branco, 42 anos, divorciado. Emprego bem remunerado como banqueiro de investimentos. Nenhum antecedente criminal, nenhuma associação criminosa conhecida. Principais hobbies, viagens e degustação de vinhos.”
“Por que isso é chamado de ‘viagens’ e não simplesmente ‘o meu hobbie é entrar de férias’?”
Jack me ignora: “De acordo com os vizinhos dele, era um homem íntegro e decente.”
“As pessoas sempre dizem isso quando alguém morre. Não significa nada.”
“Não significa que ele também não era,” diz Jack. “O criminoso entrou por ali, aliás,” ele acrescenta, apontando para uma pequena janela de batente que ficava a cerca de um metro e meio do chão. Não era muito perceptível de instantâneo, parcialmente coberta pela sombra de um sicômoro, e eu só consigo localizá-la quando Jack aponta pela segunda vez. Geralmente eu sou mais observador do que isso, é um tanto quanto vergonhoso. Jack me olha. “Está tudo bem?” ele diz.
“Sim. Tudo bem.” (eu devia fazer passar isso por escrito; escrever em uma cartolina). “Para onde a janela dá?”
“Área de serviço.”
“Uh huh.” eu levo um momento para localizar as pegadas que davam para a despensa. As minhas pegadas não se divergem, eu ando com propósito. Eu quebro a janela para entrar. Um invasor comum não notaria, mas estou familiarizado com a propriedade e eu sei exatamente para onde estou indo. É uma excelente escolha, porque é isolada; é muito improvável que ela vá ser notada quando eu arrombá-la.
“O que tem dentro?” eu pergunto.
“Andrew Atherton,” Jack responde. “Ou pelo menos o que restou dele.” Ele me guia até a sala de estar, e eu me deparo com a vista tardia do saudoso Sr. Atherton, deitado no chão com um círculo de sangue ao redor da cabeça e o rosto coberto por uma máscara de madeira com uma juba de ráfia.
“Inesperado,” eu digo.
“Bastante.” Jack se vira para a equipe forense. “Okay, pessoal, deixem a cena por alguns minutos. Will? Me fale quando você conseguir algo.”
Eu assinto distraído para Jack, mas eu já estou fechando os meus olhos e entrando no estado mental adequado (o que não é adequado de verdade, e nunca foi, para não dizer que é um lapso terrível). Eu estou em pânico, ácido se formando na minha boca. O meu coração palpita; não é o que eu pretendia. Esse não é o meu estilo. Eu abro meus olhos novamente, pisco algumas vezes. Em seguida eu vou para fora e encontro Jack. Fico surpreso ao perceber que quase 15 minutos se passaram.
“É uma invasão que deu errado,” eu digo a ele.
“O que, sério?” diz Jack, “E os seus motivos são…?”
“Ele sabia exatamente como entrar por aquela janela escondida,” eu respondo, “o que significa que ele já estava familiarizado com a casa. Mas não por vigilância – essa área é muito bem construída, alguém perambulando sem motivos para estar aqui teria sido notado. Procure por testemunhos de alguém vadiando ou algo assim, mas caso contrário eu diria que você está procurando por alguém que tem acesso total à propriedade. Um operário, um varejista… algo assim. Passar pela janela exigiu um nível de agilidade, então é provável que ele seja objetivamente jovem e atlético. E exige um certo nível de planejamento e confiança para invadir uma casa em plena luz do dia, então nós podemos ter certeza de que ele já fez isso antes – é provável que ele já esteja no sistema com um histórico de arrombamento e invasão.”
“Okay, vou reportar isso,” Jack diz. “O que mais?”
“A intenção primária era não ser violenta: a invasão. A sala foi revirada então haverá itens de valor perdidos; é provável que você consiga rastreá-los. O assassinato do proprietário foi secundário e não intencional, no sentido de que esse não foi o real motivo da invasão. O criminoso pensou que ela estava vazia. O Sr. Atherton devia estar no trabalho, foi durante o dia.”
“Nós checamos. Os empregadores dele disseram que ele estava doente,” diz Jack.
“Okay, então é por isso. Ele estava no quarto, talvez adormecido ou a televisão estava ligada – de qualquer forma, ele não ouviu o vidro da janela se estilhaçando, mas ele ouviu os sons na sala de estar. Ele desceu e confrontou o criminoso, e é aí que a situação se torna um homicídio, porque o criminoso precisava se proteger e eliminar a testemunha. Novamente, isso sugere que o Sr. Atherton o conhecia; ele sabia que podia ser identificado, então preste atenção nas possíveis conexões com varejistas. Em adendo, se ele estava esperando por uma casa vazia ele não teria tentado se disfarçar. Verifique se as balas combinam com alguma arma pertencente à vítima. Se não, isso significa que ele a trouxe com ele, então verifique isso em quaisquer crimes anteriores quando você procurar pelos registros; qualquer pessoa presa por invasão que possui esse tipo de arma.”
“O que te faz ter tanta certeza que Atherton não foi um alvo?” diz Jack.
“O corpo,” eu digo impaciente. “Não há nenhum elemento sexual ou ritualizado, nenhuma tentativa de torturar ou humilhar a vítima. Isso não foi pessoal. O criminoso não estava procurando suprir nenhuma satisfação emocional ao matá-lo. Um tiro na cabeça sugere que o único motivo era executá-lo o mais rápido possível, mas é desajeitado demais para um golpe profissional – olhe para as feridas de resistência nas mãos dele. O assassino entra em pânico e atira nele, mas não de forma hábil. Está vendo os buracos de tiro na parede? Ele não o acertou de primeira, os primeiros tiros foram indômitos.”
“Então, se foi apenas uma invasão, por que o resto da casa está intacto?” diz Jack. “Por que apenas este cômodo?”
“Porque agora ele foi afetado e tem um cadáver nas próprias mãos. Ele precisa fazer uma fuga rápida, então ele limita sua procura ao cômodo à disposição.”
“E a máscara?”
“A máscara não tem significado; ela já pertencia à vítima. Está vendo aquele gancho vazio na parede?” eu aponto para o gancho, e Jack faz um som de concordância. “Você mesmo disse que ele gostava de viajar, é quase certo que ele pegou a máscara ele mesmo. Verifique com os amigos dele, mas tenho quase certeza que a máscara é acidental. O criminoso simplesmente a coloca no rosto do Sr. Atherton para que ele possa romper uma ligação dele mesmo ao que ele fez, e minimizar a presença do corpo enquanto ele ainda está no cômodo procurando por itens de valor.”
“Então,” diz Jack, “...foi realmente apenas uma invasão fracassada.”
Eu sorrio de forma irônica. “Você não estava brincando quando disse que isso era mais sem graça do que o normal, não é, Jack?”
*****
Lá fora começa a escurecer, e há uma sensação metálica no ar. Eu me apoio na parede e respiro fundo: as minhas têmporas começando a latejar com a sensação familiar do começo de uma dor de cabeça, e eu deixei os meus analgésicos no apartamento. Mas tudo bem, está tudo bem. Eu estou bem. Eu estou. Eu vim aqui e fiz o meu lance, e foi tudo bem. Há um zumbido agudo nos meus ouvidos, e eu começo a pensar que estou tendo enxaqueca antes de eu perceber as vibrações no meu bolso e notar que na verdade era o meu celular tocando. Olhe para mim: duas ligações em um dia. Eu me sinto a própria Miss Simpatia.
A chamada vinha com o nome ‘Alana Bloom’ na tela, eu não consigo deixar de sorrir. “Oi, Alana.”
“Will!” ela diz, “é tão bom ouvir a sua voz.”
“Estou em uma cena do crime,” eu afirmo.
Há um silêncio, então Alana responde: “É mesmo?” ela não soava exatamente feliz com isso.
“Então, hum, como você está?”
“Estou bem, Will,” ela responde, a voz dela prudentemente neutra, “para ser honesta, estou mais preocupada com como você está.”
“Nós devíamos colocar a conversa em dia alguma hora,” eu digo a ela ao invés de dar a ela uma resposta.
“Isso seria ótimo,” ela diz, aproveitando a chance de imediato. “O que você acha de hoje à noite?”
“Uh, sim, claro. Hoje à noite,” eu respondo antes de conseguir me impedir. “Por que não.”
“Okay, ótimo.” ela parece surpresa por eu ter concordado tão prontamente (não tão surpresa quanto eu, no entanto - o que diabos eu estava pensando?). “Às oito está de bom tamanho?”
“Está ótimo,” eu respondo de forma soturna. “Consigo te ver às oito.”
“Excelente. Eu espero que você não se importe, mas eu vou trazer alguém comigo – alguém que quer muito te conhecer.” eu abro a boca para protestar, mas antes que eu tenha a chance, ela me diz o nome do bar de forma apressada e diz para que eu não me atrase. Então ela desliga.
Eu apoio a minha cabeça na parede e solto um longo suspiro. Outro policial local passa por mim e me lança um olhar estranho, o qual eu ignoro. Qual é o meu problema? Por que todo mundo é tão difícil? Não devia ser tão difícil assim, devia? É só uma bebida com uma velha amiga (e um indivíduo desconhecido, que ‘quer muito me conhecer’).
Eu sacudo a minha mente internamente e me afasto da parede. Eu preciso ir. Vai ser bom; diligentemente eu começo a marchar de volta para o meu carro. Então eu noto que o policial ainda está me encarando, e eu preciso resistir à vontade de ir até lá e socar a porra da cara dele. Eu odeio isso (odeio… realmente odeio)... mas eu não consigo negar a sensação do dilacerante desapontamento quando o meu telefone toca e nunca é você.
Chapter Text
O bar que Alana sugeriu é caro (teto alto com luzes penduradas, paredes com painéis de madeira que se estendiam ao ponto de desaparecerem) e caro (carcelas brancas dobradas, exibindo relógios reluzentes como delicadas lâminas de ouro; as mulheres com aparência frágil e maquiagem impecável), e assim que eu cruzo a entrada eu suspeito que cometi um grande erro. Não vejo Alana em lugar algum. Eu sei que pareço muito desajustado nas minhas calças jeans arcaicas, meu casaco amassado e meu corte de cabelo feito em casa, e parecia inevitável que algum dos polidos funcionários fosse perceber isso e pedir para eu me retirar (ótimo).
Ah, lá estava Alana. Será que ela já me viu, ou eu ainda posso tentar fugir? Não, ela me viu - os olhos dela se fixam nos meus no meio da multidão e ela se encaminha até mim, seus braços envolvendo as minhas costas em um abraço fragrante. Ela estava encantadora: a felicidade combinava com ela. Seguindo atrás dela havia um homem alto, que me olha por cima do ombro dela com uma curiosidade desinibida. Eu o encaro de volta contemplativamente, o medindo.
“Will,” ela diz, se afastando e se virando para fazer um gesto a ele, “Esse é um amigo meu muito querido, Dr. Michael French. Nós fizemos residência juntos em Hopkins.” Então é essa a pessoa que queria me conhecer. Por quê? Ele não parece ser o tipo de pessoa que se interessaria muito pelo tipo de trabalho que eu faço. Não que seja possível se concluir isso apenas olhando para alguém, é claro, ele poderia ser qualquer um interiormente. Por um momento eu me divirto com a possibilidade de que ele possa ser o ZumbiCanibal99 do TattleCrime.
“É claro que eu sei quem você é, Sr. Graham,” ele diz (assim como previsto). Ele aperta a minha mão com veemência. “Alana me disse coisas muito impressionantes sobre você. Parece que você é um exterminador de dragões e tanto.”
Michael French é gracioso e primoroso, usando um terno impecavelmente justo, com mechas elegantes de um cabelo preto acinzentado. Eu diria que ele está nos meados de seus quarenta anos. Ele também é inglês - sotaque lapidado, sorrisos afáveis e acenares de cabeça – então eu tento ser caritativo e ignorar isso como referência cultural, e por conseguinte o motivo pelo qual ele acha que pode se referir a alguém como ‘exterminador de dragões’ sem o tipo de consciência que qualquer pessoa com dignidade devia ter ao dizer uma coisa tão absurda. “Por favor, me chame de Will,” eu digo. Aparentemente, os sorrisos e acenares dele são um pouco contagiosos, porque agora sou eu quem está fazendo isso.
Alana felizmente intercede (obrigada a impedir que eu e Michael French continuemos a sorrir e acenar a cabeça um para o outro em um frenesi) e me pergunta como o caso foi. É uma pergunta um pouco desagradável, mas eu não posso culpá-la, porque a outra alternativa seria ‘então, o que você tem feito esses dias?’ e não há nenhuma possibilidade que faça Michael French querer ouvir uma resposta honesta para isso, apesar de todos os seus sorrisos charme cortês. Além disso, ele é amigo da Alana (um amigo querido, veja só), então talvez as cenas do crime não o choquem demais. Eu ainda permaneço do lado da cautela, apesar disso, parte porque eu não quero falar sobre isso, e parte porque eu ainda não conheço o caráter dele ainda (o que ele está procurando de verdade?).
“Foi bem, obrigado,” eu digo, “Foi tudo bem. Eu acho que tudo será resolvido bem rápido." Então é isso. Eu percebo que eu não estou ajudando a nutrir a conversa, e deveria acrescentar algo a mais, mas eu não sei o que dizer. Ambos Alana e Michael estão me olhando com expressões encorajadoras, sorrindo e acenando a cabeça, fazendo o máximo que eles podem (Cristo).
Eu opto pela saída covarde e faço um gesto para o bar “Alguém afim de uma bebida?” eu pergunto.
Alana gira sua taça de vinho indicando que ela estava satisfeita, mas Michael French diz “Não, não, permita-me. O que você gostaria de beber, Will?”
“Ah, obrigado,” eu digo de maneira inibida, “uma cerveja está ótimo.”
“Muito bem,” ele responde e se encaminha até o bar com a determinação de um homem em batalha. Alana e eu escapamos para uma mesa com assento laterais e eu tiro os meus óculos, passando uma mão cansada pelo meu rosto.
Alana me analisa contemplativamente. Lá vamos nós, eu penso. Ela respira fundo: “Honestamente, Will. Uma cena do crime? Depois de tudo o que aconteceu, você realmente acha que isso é sábio? Você passou pelo inferno e na primeira oportunidade você se afunda em mais morte e horror.” Ela franze o cenho e toma um gole de seu vinho de forma irritada. “Às vezes eu acho que eu devia matar Jack Crawford.”
Eu só pisco, sem respondê-la. O principal pensamento do qual eu estou ciente, de modo culpável, é que ela terá que entrar na fila, principalmente porque você conseguiria matá-lo bem antes dela. Com sapiência, eu decido manter essa concepção para mim mesmo, e como oposição, eu faço um gesto impaciente com a mão. “Não foi desse jeito,” eu digo. Não é como se eu não me importasse com a preocupação dela, mas a afirmação implícita de que eu sou fraco ao ponto de obedecer à primeira ordem de Jack é extremamente irritante.
“Como foi, então?”
Eu coloco os meus óculos de volta e olho para ela por cima deles. “O que mais eu posso fazer?” eu digo, “Eu sou bom nisso.”
“Eu sei que é. E eu também sei que isso quase te destruiu.”
“Sim, bem… isso foi antes.”
“Will, há várias outras coisas que você pode fazer. Você se afastou disso por três anos inteiros.”
“Bem, agora eu estou de volta novamente,” eu afirmo irritado. “Tudo está diferente agora. Tudo. A Molly e eu não nos falamos há meses, eu estou ficando maluco sozinho no meu apartamento…” eu sinto vontade de acrescentar ‘e o Hannibal se foi’ mas isso seria loucura, então eu não o faço. “Eu preciso de algo construtivo para fazer,” eu acrescento de forma lânguida. “Jack ligou, e pareceu ser uma opção viável.” Eu gosto do som disso, então eu falo novamente (todavia, a esse ponto eu já não sei quem de nós dois eu estou me esforçando mais para convencer). “Trabalhar para a agência é viável. Simples assim. Pelo menos a curto prazo, até eu achar outra coisa.”
Alana parecia ter muito mais a dizer, mas em seguida Michael volta com as bebidas – uma cerveja para mim, e uma mistura âmbar reluzente em um copo longo para ele – e eu fico tão aliviado de acabar com essa conversa que eu fico realmente satisfeito em vê-lo, e ofereço um grande sorriso em resposta. Ele sorri de volta e empurra a cerveja na minha direção. “Cin cin,” ele diz.
“Santé,” diz Alana. Ela parecia frustrada.
“Saúde,” eu respondo e tomo metade da bebida em um gole.
Michael olha para nós dois. “Eu espero não ter interrompido nada?” ele diz.
“Não, está tudo bem.” Eu sorrio para Alana com pesar, para que ela não ache que eu estou a rejeitando. “Nós só estávamos colocando alguns assuntos em dia.”
Ela sorri de volta para mim, e coloca a mão brevemente por cima da minha. “É muito bom te ver, Will,” ela diz, e eu sei que ela estava falando sério. Michael sorri também, e por um momento nós ficamos todos ali, sorrindo um para o outro como a maldita Família Brandy¹. Entretanto, ninguém acena com a cabeça novamente, pelo menos isso. Internamente, eu me parabenizo pela minha tendência geral a evitar socialização a todo custo, porque era exaustivo para cacete.
Alana pergunta ao Michael como a clínica dele está indo, e eu me esforço tanto para parecer interessado que é quase doloroso. Inevitavelmente, eu exagero, porque de repente ele para de falar e me olha minuciosamente antes de dizer “Está tudo bem, Will? Você parece um pouco cansado.” É verdade, eu pareço – eu estou – mas eu ainda me sinto irritado com a maneira como ele menciona isso. Eu sempre tenho a impressão de que quando as pessoas dizem ‘você parece cansado’ elas podem muito bem estar dizendo ‘você está com uma aparência pior que merda.’ Eu me divirto pensando no que aconteceria se você estivesse aqui. Provavelmente nada demais, não de verdade: você sendo elegante e confiante, e todos nós prestando atenção em cada palavra sua. Depois eu ignoraria os sons ao redor e conversaria com você sozinho, para que eu pudesse me satisfazer com a alta vibração do seu olhar focado apenas em mim. Entretanto, honestamente, eu não consigo imaginar você se submetendo de boa vontade a uma noite como essa.
Michael está agora contando uma história sobre os colegas dele – uma confusão sobre uma enfermeira bêbada e um turno noturno na sala de emergência – e eu perco o foco de novo e de novo, me certificando de rir nos momentos adequados. Eu fico esperando que ele me interrogue sobre o meu trabalho (ou, infinitamente pior, sobre você) mas ele não o faz. Ele é nitidamente mais polido e/ou contido do que eu esperava – é isso ou a minha óbvia estranheza o assustou. De qualquer forma, eu pergunto para Alana como Margot está, e ela nos conta sobre planos para criação de cavalos de corrida e a abertura de um centro de treinamento. Era bom e cativante ouvir Alana, e eu fico um pouco mais animado, dizendo a ela o quão feliz eu estava pelas coisas estarem indo bem para elas. Ela paga pela rodada seguinte de bebidas, e eu pago a que se sucede. Eu olho de relance várias vezes para o meu relógio no bar: já faz quase duas horas que eu estou aqui, o que já é um tempo suficientemente adequado para eu dar as minhas desculpas, dar o fora daqui e deixá-los ali.
Alana e Michael estavam conversando quando eu retorno aos nossos assentos. Eu deposito os vários copos na frente deles e me sento novamente. Michael me olha e sorri. “Você gosta de ópera, Will?” ele pergunta.
“Não muito, não,” eu afirmo sem rodeios. Alana me lança um olhar. Eu o devolvo a ela. O que eu deveria dizer? Eu só estou sendo honesto: eu não me importo com ópera. Michael olha para nós dois em retorno, um sorrisinho curioso nos lábios dele. “Desculpe,” eu acrescento languidamente, como uma concessão à desaprovação óbvia de Alana.
“Não precisa se desculpar!” Ele diz de forma alegre, como se eu estivesse agindo de forma encantadoramente excêntrica e não de maneira socialmente indelicada e rude. “É que eu tenho dois ingressos para Tosca na sexta-feira, e o meu parceiro de ópera me deixou na mão no último minuto.” (Ah, meu Deus, quem diabos tem parceiros de ópera? Até você teria um limite para isso). Ele suspira pesadamente, reiterando o assunto. “Alana me acompanharia, mas parece que ela não estará disponível também.” Alana suspira também, com um pesar cuidadosamente ensaiado, e eu chego à terrível conclusão que eles armaram isso de antemão entre eles. Eu me pergunto quem fora o instigador: se foi Alana tentando fazer um apelo caridoso em nome de seu amigo tragicamente isolado, ou se foi ele quem ficou suficientemente intrigado pelo que ele leu na imprensa para buscar por uma apresentação. De qualquer forma, aquela era uma cilada em flagrante. Não havia possibilidade de alguém como ele não conseguir achar uma companhia mais apropriada para os ingressos dele.
“É muita gentileza sua,” eu respondo, selecionando as palavras certas com cautela, “mas receio que isso seria desperdiçado comigo. É uma lástima negar isso a alguém que apreciaria a oportunidade de verdade.” Não era uma lástima (nem um pouco) – eu não poderia me importar menos com a supressão dos admiradores de ópera desconhecidos – mas eu estava determinado a me comportar na frente de Alana.
“Ah, mas eu discordo, Will!” Ele diz, “Receio que não posso aceitar isso de forma alguma. Acho que você seria uma companhia extremamente valiosa.” Ele está falando sério? Por um segundo, eu admiro o nível de autoconfiança que permite alguém ser tão óbvio e tão despreocupado com isso. Eu poderia mandar ele enfiar os ingressos naquele lugar e ele só riria jovialmente e seria eu o constrangido no fim das contas, fugindo para rememorar a minha vergonha sozinho. Eu odeio a maneira como ele faz parecer que eu estou sendo modesto e abnegado (algo com que ele pode se opor) e não reconhecendo a minha justificativa original (o que acabaria por ali) de que eu apenas não gosto de ópera, cacete.
“Honestamente,” eu digo, “realmente não é a minha praia.”
“Que óperas você já viu?” ele responde com serenidade.
Ah, Deus, vai ser assim, não é? Eu preciso desistir e aceitar a derrota; ou me impor e dizer um ‘não’ a ele de maneira tão definitiva que ele abandone aquele plano idiota. Ele ainda está falando com entusiasmo sobre orquestração, e uma soprano em particular, e como eu devia simplesmente dar uma chance, porque ele tem certeza de que eu iria amar imensamente, e mesmo que esse não seja o caso são apenas algumas horas perdidas, e ele ficaria terrivelmente grato se eu eu pegasse aquele maldito ingresso. A minha cabeça começa a doer. Alana continua olhando para mim, sorrindo de forma encorajadora.
Eu não respondo de imediato, o que é a porra de uma fatalidade, porque isso o dá a oportunidade de ir em frente e transformar a minha ausência de recusa em consentimento. “Te encontrarei no salão às sete horas,” ele diz, acenando a cabeça de forma vivaz. Pelo menos ele não se oferece para me buscar. No entanto, eu talvez devesse insistir nisso – ou as rodas dele seriam roubadas enquanto ele aperta a campainha ou ele se veria diante do meu prédio caindo aos pedaços e daria o fora dali. De qualquer forma, eu poderia voltar à minha noite habitual de sexta-feira, me embebedando e ludibriando o TattleCrime.
Ironicamente, é essa a constatação que me faz começar a mudar de ideia. O meu nível de socialização é terminal; na verdade eu já vi autópsias bem mais vivas. Isso não era parte da minha resolução para o Admirável Mundo Novo de Will Graham? Eu disse que queria mais coisas para fazer, eu até disse isso a Alana: o que ela talvez faça questão de me lembrar se eu continuar dizendo não. O que de pior pode acontecer, de qualquer forma? (Estranhamente, nem a minha relação com você parece ter me impossibilitado de fazer perguntas tão capciosas). Talvez eu até goste? (Provavelmente não, no entanto). Mas não é como se eu não pudesse sobreviver à uma noite me passando como um parceiro de ópera. Eu consigo sobreviver à maioria das coisas, afinal. Eu sobrevivi até a você.
“Okay então, claro,” eu digo por fim, antes que eu mude de ideia novamente. Então, gastando os meus últimos resquícios de boas maneiras: “Obrigado.” Eu me lembro de você dizendo “sempre que possível, tente comer o rude,” e eu luto para esconder um sorriso sórdido. Se ele tiver ousadia o suficiente para parecer vitorioso, então eu realmente irei mandar ele ir à merda. Mas ele não o faz. Ele só sorri, levanta o copo para mim e diz: “Obrigado, Will, ficarei encantado em ter o prazer da sua companhia.” Então ele se vira para Alana e começa a perguntá-la sobre a verba do Hospital Estadual de Baltimore para Criminosos Insanos, como se os últimos dez minutos nem tivessem acontecido. Eu encosto a cabeça no tecido frio do assento, e me pergunto brevemente no que diabos eu havia me metido.
Eu sei que era ridículo, mas era quase como se eu estivesse sendo desleal a você. Como se você fosse se importar.
*****
O telefone toca no meio da noite, vibrando insistentemente em cima da mesa gasta de pernas de batente ao lado da cama. Eu me levanto de uma vez, desorientado, e me atrapalho para pegá-lo. Eu ouço o som inegável de vidro se estilhaçando no chão quando uma garrafa de cerveja cai. “Porra,” eu murmuro para mim mesmo. Eu olho para o meu celular (recuperado com sucesso): número oculto.
“Alô?” eu digo. Eu tusso algumas vezes para me livrar do cansaço presente na minha voz. “Olá?”
Não há resposta. Nem respiração, nada.
“Alô?” eu digo novamente, irritado. Ainda nada. O silêncio é completo. Até o quarto estava em silêncio, nenhum som lá fora, nenhum som no prédio. É provável que eu seja a única pessoa acordada no mundo todo: eu e seja lá quem for do outro lado da linha.
Você?
Eu quase pronuncio o seu nome, mas me impeço a tempo. É muito improvável que seja você. Ligações silenciosas não são exatamente o seu estilo, é mais provável você deixar um engenhosamente desmembrado na minha porta. E se eu disser o seu nome eu vou te entregar, assim como eu mesmo, para a outra pessoa do outro lado.
“Quem está aí?” eu pergunto. Eu tento soar mais exigente e assertivo, mas eu estou confuso e sonolento demais para isso, e eu percebo que estou mais ansioso do que qualquer coisa. Ainda sem resposta. Eu olho para o meu relógio, brilhando de um azul sombrio em meio à escuridão: 02:33. O que eu estou fazendo, por que eu só não desligo? 02:34. Eu espero para ver o que o indivíduo fará. Uma chama repentina de competitividade me faz sentir não devia ser eu o primeiro a desligar. Eu considero dizer algo astucioso (‘Bastante conversativo você, não é?’) mas esse tipo de humor não parece adequado. 02:35. É a estranheza do silêncio, é opressivo. Me deixa apreensivo, a presença sem voz do outro lado da linha, e de repente o feitiço se quebra e eu só desejo que aquilo acabe. De forma abrupta, eu desligo e coloco meu celular de lado. Eu puxo meu cobertor por cima da cabeça e espero pelo sono, cuja espera se demora. Um carro finalmente passa pelo prédio, e a luz dos faróis nada pela minha parede como um cardume fantasma.
Quando a manhã chega, eu sinto que eu talvez tenha sonhado aquilo, exceto pelo identificador de chamadas – uma lembrança permanente de um chamado no meio da noite.
Notes:
1 - A Família Brandy foi uma sitcom estadunidense criada por Sherwood Schwartz e exibida originalmente entre 26 de Setembro de 1969 e 8 de Março de 1974 pela ABC.
Chapter Text
Conforme a sexta-feira se aproxima eu começo a me sentir agonizado pelo passeio na ópera com Michael (o que definitivamente não é um encontro, ah Deus), e alterno entre xingamentos direcionados a ele e Alana por terem me pressionado, e a mim mesmo, por ter permitido que isso acontecesse em primeiro lugar. Eu sinto como se eu fosse um sonâmbulo no meio disso tudo, me chocando cegamente em um novo desastre por eu ser apático demais (assim como exaurido e desmoralizado) para tomar o controle da minha própria vida. Talvez haja um aspecto nele (de forma muito, muito tênue) que me lembre de você – a sofisticação europeia sendo a mais óbvia – mas não há dúvida que o meu principal motivo para ir é o meu tédio, a inquietude e a solidão.
Eu não tenho o número dele, mas eu poderia pedi-lo a Alana e cancelar. Eu poderia agir com sutileza e casualidade, como as pessoas normais (“vamos deixar para uma próxima, Michael!”), como se não fosse grande coisa. Eu poderia dizer que estou doente, mas ele é médico e perguntaria o que há de errado… é provável que ele até se ofereça para me ver. Eu poderia dizer a ele que tenho que trabalhar (não, é claro que não posso dizer isso - eu não tenho emprego, e ele provavelmente sabe disso). Eu poderia dizer que consegui um emprego recentemente, de forma completamente inesperada… Ah, Deus, não – só não. Mesmo que eu esteja andando em círculos e me frustrando, eu sei lá no fundo, que não farei nada dessas coisas. Assim, eu me supero não só comparecendo à ópera, como também comparecendo pontualmente. Michael está parado na entrada do auditório, e quando ele me vê, ele esboça um enorme sorriso.
“É ótimo que você tenha vindo, Will,” ele diz, apertando a minha mão. “Eu sei que você não estava muito entusiasmado de início. Receio que eu tenha o pressionado antes.”
“Está tudo bem,” eu respondo, “Eu me tornei bastante recluso ultimamente, eu preciso começar a sair mais.” Eu me pergunto se eu devia alimentar essa (francamente, muito deprimente) conversa com alguma espécie de piada, mas as únicas referências isoladas que me vêm à mente não são nem minimamente engraçadas; e além disso, não me faz muita diferença. Eu encolho os ombros ao invés: “Foi bom você ter se esforçado.”
Ele fica um pouco esmorecido com a resposta (de forma não surpreendente, já que eu o fiz soar como uma espécie de assistente social), mas honestamente; o que ele esperava? Ele é suave e autoconfiante demais, esse é o problema dele, é provável que ele esteja acostumado com as pessoas fazendo fila para sair com ele. Um esforço não o machucaria, para variar. Ele se recompõe com rapidez, apesar disso, e elogia o meu terno, me dizendo que eu ficava muito bem em vestimentas formais. Eu sei que eu devia dizer o mesmo, mas isso se aproximaria muito de um flerte – e mesmo que eu não seja o melhor com habilidades sociais, eu não sou completamente oblívio – então, no fim das contas eu apenas sorrio e o agradeço.
“Façamos nossa entrada,” ele diz com uma espécie de formalidade zombeteira. Ele pousa a mão de forma leve na curvatura das minhas costas quando nós passamos pela entrada principal, mas a tira dali com bastante rapidez e não tenta mais me tocar, o que eu realmente não esperava. Hesitantemente, eu me permito começar a relaxar (um pouco).
Nós tomamos uma bebida antes da performance começar, e Michael começa a me fazer perguntas sobre o meu trabalho como professor, onde eu cresci, como eu conheci Alana, e as minha opiniões sobre o departamento de segurança. Assuntos bons e sutis; um pouco mornos. Nada sobre encefalite ou assassinos imitadores, certamente nada sobre você. Ele obviamente fez algumas pesquisas sobre mim, porque ele conhecia vários artigos, incluindo até os mais obscuros, e até me faz perguntas sobre pesca. Não consigo decidir se acho isso lisonjeiro ou invasivo e excessivamente ansioso; possivelmente um pouco dos dois. Os joelhos dele roçam contra os meus por debaixo da mesa, e eu não os afasto de imediato. Michael está radiante. Normalmente, eu odiaria isso. Eu deveria odiar. Mas há algo sobre ser o foco de um olhar tão radiante que é muito intoxicante. Eu percebo que eu devo ter ficado muito mais tempo sozinho do que eu me permiti perceber.
Nossos assentos estavam localizados bem na frente do palco (é claro) e eu fico aliviado quando nós nos sentamos e as luzes finalmente diminuem, porque mesmo que ele tenha se provado um pouco mais suportável do que eu pensei que ele fosse, eu já atingi o limite - e o excedi - do meu estoque de conversa mole. No palco, os artistas saltitam e desfilam em um caleidoscópio de vestidos esvoaçantes, calças bordadas e capas ondulantes, conforme eles brandiam crucifixos esculpidos em adornos. De forma breve, eu me lembro da igreja na Itália. Deus, isso vai ser entediante. Você teria adorado. Você ficaria arrebatado.
Michael fala italiano (naturalmente) mas tomou a liberdade de me dar uma tradução em inglês do libreto para que eu pudesse acompanhar a trama se eu quisesse. Eu o leio virtuosamente sob a luz baixa, simulando um nível adequado de interesse. Vissi d'arte: eu vivi pela arte. Soa um pouco como você. Eu nunca combinei muito com música clássica. Eu lembro de você me mostrando o seu teremim uma vez; eu me inclinando e selecionado o riff de abertura de Smoke on the Water, e você parecendo perder a vontade de viver.
Você era o completo oposto porque você amava música, você sempre ia às óperas. Eu nunca reconhecia as coisas que você costumava tocar, nem nos discos ou em um instrumento de verdade (porque é claro, você sempre foi um músico muito talentoso). Na verdade, não, houve uma vez em que eu reconheci. Era uma melodia lúdica e sutil, e ela se destacava porque se destoava muito das harmonias trovejantes e vibrantes pelas quais você normalmente favorecia; você a assobiava para si mesmo enquanto coava café para nós. “Essa não é uma composição infantil?” eu perguntei. Eu não conseguia lembrar do nome, mas pensei ter visto na TV uma vez.
Se eu semicerrasse os olhos – e se algo assim fosse realmente possível – você parecia ligeiramente envergonhado. “É de fato infantil,” você disse, “mas eu me lembro dela de quando eu era uma criança. A minha irmã adorava. Pedro e o Lobo. Petya i Volk.” é claro que o seu sotaque russo era impecável. Eu ainda deixei uma risada involuntária escapar: “Você soa como um vilão de 007.”
Você me lançou um olhar longo e resignado. “Inacreditável as coisas que você me diz,” você respondeu. Mas você sorria, você não se importava de verdade. Você sempre gostou que eu não tinha medo de você.
Você empurrou a xícara de café na minha direção, os seus olhos me absorvendo. Me observando; você sempre estava observando, não é? “É claro que, o desenho pode ser compreendido como uma alegoria,” você continuou. “Ele incorpora o estado geopolítico da Rússia diante da visão de Prokofiev. O lobo representa o espectro da Alemanha nazista, ao passo que Peter é a própria Rússia. É um aspecto benigno e dilecto de um cânone clássico, mas que na realidade fora moldado por crueldade, opressão e horror. Ou, pelo menos, como é alegado por alguns.” Você me ofereceu um sorriso ligeiramente bravio. Você ainda me olhava ao acrescentar: “Garotos valentes como ele não têm medo de lobos.”
No palco, a soprano, se expressando ferozmente, crava um punhal no chefe da polícia. Questo è il bacio di Tosca: Esse é o beijo de Tosca. Logo em seguida, o terceiro ato se ilustra com seu terrível climax. Tosca foge dos soldados e se lança do parapeito para o mar, se reunindo com seu amado na morte. Eu me retraio no meu assento. Michael se inclina e pergunta em um sussurro se está tudo bem. “Obrigado,” eu respondo com indiferença, “Estou bem.”
****
Nós nos encaminhamos para o bar do teatro após isso, e é claro que o local estava cheio do tipo de pessoas que eu geralmente evitaria a todo custo. Alta sociedade – um cenário onde você estaria no seu habitat natural, dominando o lugar; e eu só sinto vontade de pegar uma bandeja e fingir que sou um garçom. Michael me guia, e eu consigo sentir os inúmeros olhares sobre nós, nos contemplando. Eu tento não me retrair deles. É claro que todos eles sabem quem ele é, e agora eles querem saber quem eu sou por intermédio. De repente eu sinto falta do silêncio, da solitude e da brisa fria da noite no meu rosto. Esta noite foi intensa demais, e eu não consigo parar de te imaginar aqui. Você já deve ter estaso aqui, há muitos anos atrás. Qualquer um daqueles homens altos e lúgubres poderia ser você.
“Eu realmente preciso ir,” eu digo, de forma um pouco indômita.
Michael parece desapontado (novamente), mas não pressiona. “É claro,” ele responde, “Eu acompanho você até a saída.”
"Não há necessidade, realmente…” eu começo, mas antes que nós possamos continuar discutindo, nós somos interrompidos por um homem alto e esguio que irradiava o mesmo ar de autoridade e privilégio que Michael, afagando uma mão pálida e embaciada no ombro deste último. Ele vai atrasar a minha partida, posso perceber, mas de maneira que eu fico grato pela interrupção dele. Isso me deu mais estabilidade e controle; antes eu estava quase à beira de um ataque de pânico. Ao focar nele eu me pego sendo ancorado de volta para o ambiente, como um balde de água fria no rosto – mais calmo e mais eu (seja lá o que aquilo significava hoje em dia). Eu imediatamente percebo que ele é mais velho que Michael, bem mais velho do que eu (até mais velho do que você – ha) e ele me lembra um pouco de um cavalo de balanço: robusto, dentes proeminentes e cabelo grisalho ondulado. “Michael French!” ele diz, “Por onde você esteve se escondendo, doutor? Você perdeu as duas últimas performances.” Após isso, ele percebe a minha presença pela primeira vez, apesar do fato de que eu estava tentando me camuflar desesperadamente, e os olhos dele se demoram em mim de forma aprovadora. Era tão constrangedor, eu me movo um pouco, envergonhado. Eu realmente esperava não estar corando. “Parece que, por outro lado, você tem estado ocupado, Michael,” ele diz de uma forma lasciva para cacete, “e devo dizer que, compreendo completamente o porquê.”
“Nós não…” eu respondo alto, ao mesmo tempo que Michael diz: “Pelo contrário, Jonathan, Will é um conhecido bastante recente.”
Então pare com esses pensamentos sórdidos, eu (não) acrescento. É ridículo que dois homens comparecendo ao mesmo (chato e pretensioso) evento são automaticamente vistos como um casal. Eu poderia ser apenas o braço direito de Michael o ajudando com aqueles jovenzinhos de ópera, até onde aquele velho babaca sabia. Eu tento me lembrar se alguém já nos confundiu com um casal de verdade quando nós passávamos quase o tempo todo juntos, e se eu teria me importado. Sim, eu teria – nos tempos mais primórdios com certeza. Eu teria odiado. Jonathan está olhando para nós com um olhar de descrença do tipo ‘tudo bem então rapazes, tanto faz’.
“O Will trabalha para o FBI,” diz Michael, ainda tentando, de forma heroica, salvar aquela conversa quando era nítido que ela já devia ter acabado e morrido ali silenciosamente.
“Ah, que divertido,” responde Jonathan (era divertido? Como era divertido?). “Eu sei qual é o lema: ‘eu te contaria, mas depois eu teria que te matar.’” Ele sorri para nós dois como se ele tivesse citado o melhor epigrama desde o Oscar Wilde.
“Na verdade - não,” eu respondo entediado, “isso é do MI5, não do FBI.”
Há um silêncio constrangedor.
“De qualquer forma,” eu acrescento, “como eu disse, eu realmente preciso ir.”
“Jonathan, falo com você em um instante,” Michael diz, “Me perdoe por isso, Will,” ele murmura baixo para mim.
“Está tudo bem,” eu respondo, mesmo que não estivesse. “Não se preocupe com isso.”
“Receio que ele seja bastante incorrigível.”
“Ele é um velho babaca estúpido,” eu respondo, e nós dois rimos.
Nós nos encaminhamos até a entrada, e de repente eu sinto que ele talvez fosse tentar me beijar, então eu dou alguns passos para trás por questões de risco. Se ele percebe ele não demonstra nenhum indicativo. “Obrigado, Will,” ele diz, “Eu tive uma noite muito agradável. Se você estiver de acordo, eu gostaria muito de fazer isso novamente alguma hora.”
A sinceridade dele é um pouco constrangedora, mas eu ainda me pego concordando, apertando a mão dele e o agradecendo por ter me doado o ingresso. É o mínimo que eu posso fazer, afinal de contas, quando ele teve que passar por tantos inconvenientes.
*****
Eu chego em casa e jogo o meu casaco em cima da cadeira, automaticamente indo verificar o TattleCrime enquanto eu esperava a cafeteira fazer o café. Freddie fez atualizações duas vezes hoje. Há a especulação de sempre sobre você juntamente com o seu mugshot (é óbvio que você conseguiria ficar impecável em um mugshot), mas é apenas uma revisão de teorias prévias e hipérboles, então eu não me dou o trabalho de ler tudo. Há também um novo artigo sobre mim, com uma foto furtivamente tirada da cena do crime de Atherton. Não é exatamente o que eu chamaria de uma foto boa. Os meus olhos tinham uma aparência mórbida, e havia um pesar de culpa sobre os meus ombros. Eu parecia um pouco desatinado, para ser sincero; possivelmente era o momento em que eu estava pensando em socar aquele policial. Foi obviamente selecionada com cautela (a não ser que eu realmente seja assim o tempo todo, e ninguém tenha me avisado ainda). Também não é surpreendente que a principal questão do artigo seja se Jack estava quase tão louco quanto eu por deixar eu me aproximar de uma das cenas do crime dele. Jack também estava presente na foto, mas quase completamente cortado – a lateral do sobretudo dele aparecendo no canto.
OsSuspeitosComuns escreveu (de modo quase que certamente sarcástico) que eu era ‘bonito’. “Obrigado,” eu digo em voz alta.
E lá estavam os trocadilhos de sempre sobre os biscoitos Graham.
Em um acesso de irritação eu faço login com a minha conta fake e digito “PQP, Will Graham foi preso de novo. Agentes ficaram em frente a casa dele por trinta minutos. O colocaram em uma viatura descaracterizada.” Eu me acomodo e espero até que todos comecem a enlouquecer progressivamente, até que a administradora finalmente aparece (bingo!) exigindo saber quem eu sou e como eu sei disso (era ligeiramente deprimente que todos, incluindo ela, pareciam ter um interesse obsessivo em vigiar a casa de Will Graham como se isso fosse algo normal e nem se dão o trabalho de questionar essa parte). Eu respondo “Verifique com a Sra. Purnell o mais breve possível.” Eu fico satisfeito com esse retoque: Jack Crawford seria óbvio demais – todo mundo sabe quem Jack é – mas mencionar Kade implica a quantia necessária de conhecimento intímo para que Freddie pense em levar aquilo a sério, e eu sorrio comigo mesmo pensando em todo o tempo perdido que aquilo (com sorte) acarretaria. Eu penso em acrescentar algo chamativo (‘Mais uma farsa da justiça!’) mas decido não brincar com a sorte.
Eu rolo de volta até o topo da página e termino de ler os comentários originais sobre o artigo. As presunções sobre mim se dividem em dois principais tipos: incrivelmente previsíveis ou estranhamente entusiásticas. Talvez eu devesse me preocupar (eu devia me preocupar?). E então, algo completamente diferente. Sob todas aquelas variantes de “ele é um gênio incompreendido!” e “ele é a porra de um psicopata!” Um usuário chamado Maniloa escreveu: “O mangusto que eu quero sob a casa quando as cobras rastejarem.” Eu empurro a minha cadeira e me afasto do notebook como se eu tivesse sido picado.
Caralho.
Caralho, caralho, caralho.
Eu me lembro dessa conversa extremamente bem. É claro que lembro, foi a primeira vez que eu conversei com você de verdade. Você apareceu no meu quarto de hotel, trazendo uma tupperware para que você pudesse me fazer comer carne humana sem eu perceber (começando com o pé direito, suponho eu). E você me fazendo rir com aquela analogia perversa sobre Jack e a xícara. E eu dividido entre: “Bem, obrigado, eu acho. É melhor do que ser uma xícara” e “Espere, o que… você acabou de me chamar de mangusto?”
Cobras e mangustos, não é uma combinação rara. É? Isso é uma coisa que as pessoas costumam dizer? Eu não sei. Era possível que alguém pudesse saber que você me disse aquilo? Não era algo em domínio público, tenho certeza que não. Como poderia ser? Eu tento me lembrar se eu já contei isso a alguém. Talvez no Hospital de Baltimore. Talvez para Chilton – mas não parece muito provável. Por que eu teria me dado o trabalho de contar uma trivialidade assim para ele? Eu estava lutando pela minha vida (graças a você). E mesmo se eu tivesse dito, ele dificilmente está em posição de fazer algo a respeito agora. E ele certamente não faria isso assim. Eu volto para o notebook e abro o Google, passando dez minutos inteiros procurando por combinações variadas do meu nome e o seu com as palavras ‘cobra’ e ‘mangusto’ para ver se já haviam informações assim, se havia probabilidade de alguém saber. Nada aparece além da página atual no TattleCrime, e eu sou tomado por uma grande sensação desorientadora de alívio e desapontamento. Ainda não significa que seja você. Poderia ser uma coincidência (todavia improvável, certamente?). Poderia ser alguém me pregando uma peça (mais provável). Poderia ser você me pregando uma peça. Deus, mas será? É você? Eu quero que seja (desesperadamente), mas a possibilidade por si só é completamente loucura.
Maniloa… o que diabos isso significa? Eu abro mais uma guia e pesquiso pelo nome. As minhas mãos tremem. Eu o digito errado e acabo pesquisando por atrações turísticas em Manila. Lá estava: Maniloa, o deus samoano do… canibalismo. O que, sério? Eu leio o site: Maniloa fazia emboscadas para os humanos e os comia; quando eles se vingaram e o assassinaram, eles mesmos passaram a ter necessidades canibalísticas. Não consigo deixar de sorrir: era tão ridículo, não consigo levar aquilo a sério. Tinha que ser uma pegadinha, tinha que ser, era banal demais para ser você.
Mas… e se fosse? Eu esfrego os meus olhos, massageio as têmporas com os polegares – tento pensar. E se essa fosse a sua versão de piada interna? Você sabia que eu verificaria. Quantos pessoas no TattleCrime saberiam o que ‘Maniloa' significa de qualquer forma? Parece inventado, não parece nem ser uma palavra de verdade. Ninguém a não ser eu se importaria com esse comentário – o site inteiro está cheio de besteiras aleatórias, essa é dificilmente a coisa mais estranha ali, nem de longe. Não chamaria a atenção de mais ninguém.
Eu fico sentado ali, roendo a pele desgastada ao redor do meu polegar e tento decidir o que fazer. Eu devia responder à altura, não devia? Algo sobre xícaras (como diabos a minha vida chegou ao ponto onde eu estou deliberadamente usando um perfil para zombar do TattleCrime e me descrever como uma xícara? Cristo). Mas não ficaria óbvio que nós estamos conversando em códigos? Ficaria, não é? – atrairia atenção. Tem que ser algo não tão esotérico, mas algo que seja específico o suficiente para que você saiba que sou eu; que a sua mensagem foi entregue.
Todavia, em primeiro lugar, eu preciso fazer outro perfil, porque o username do meu primeiro era 'Will_Graham_Fodao_Com_Razao’, e se Maniloa for realmente você, então você nunca vai me deixar esquecer isso quando descobrir.
Eu fico ali por um século enquanto a mariposa rodeava a lâmpada loucamente, e eu finalmente escrevo: “Desnecessariamente obscuro, não acha? E o que acontece quando a cobra e o mangusto trocam de lugar?” Eu aperto enviar antes que eu mude de ideia. O meu novo nome de usuário era ‘Primavera.’ Isso certamente seria o suficiente? O meu coração palpita nos meus ouvidos.
Garotos valentes, eu murmuro de forma irracional para mim mesmo, não têm medo de lobos.
Chapter Text
Esperando, observando, receando, e aguardando.
Eu fico acordado até às 4 da manhã, me fortalecendo com pizza fria e café fumegante, e atualizando o TattleCrime a todo momento para verificar a seção de comentários. Nada. É você? É você, não é? Tem que ser você, martelando a minha mente em uma repetição frenética.
Para passar o tempo enquanto eu espero, eu volto aos tópicos antigos procurando por outros possíveis comentários do ‘Maniloa’. Leva um tempo, já que o site não tem perfis de usuários e não havia como verificar históricos de postagens. Eu tenho que verificar cada página manualmente, mas eu não consigo achar mais nada – a única evidência que Maniloa existe fora da minha própria mente são as únicas 12 palavras nas quais eu estava fixado. Não havia avatar ao lado do nome de usuário, apenas um quadrado branco vazio. Eventualmente eu me esgoto em ansiedade, e adormeço em cima da mesa, acordando apenas no meio do dia, com uma pontada de dor terrível no pescoço. A minha resposta ainda está lá, não reivindicada. Nenhum retorno.
Eu passo a mão pelo rosto, tentando afastar a onda de decepção. Eu estou me adiantando, não estou? Só faz 24 horas, mais ou menos. Não significa que você não vai me responder, talvez você só não esteja disponível no momento. Talvez você só tenha acesso limitado à internet (todavia, a ideia de você se submetendo às mesmas restrições que as pessoas normais não me parece convincente, de certa forma). Talvez algo tenha acontecido e você quer responder, mas não pode. Na verdade, isso parece muito menos plausível – que algo possa ter te acontecido fora do seu controle. No entanto, isso não é inteiramente verdade, não é? Afinal; eu aconteci a você.
Eu percebo que eu não havia me preparado para isso. Eu pensei em raiva, ou perdão, ou escárnio, ou desdém, ou algo enigmático e impenetrável – e eu ensaiei as minhas reações para cada um desses cenários com níveis variados de êxito – mas eu nunca considerei seriamente a possibilidade de você não responder. Ou talvez essa seja a sua resposta: silêncio. Talvez a sua resposta seja me ignorar. Não, você certamente não faria isso. Qual seria o sentido? Mesmo que eu esteja dizendo isso a mim mesmo, eu sei que isso é provavelmente o exato tipo de coisa que você faria.
Remoer tudo isso me faz sentir cansado novamente e eu acabo cochilando por um tempo, acomodado de forma enviesada na minha cadeira. Eu espero sonhar com você, mas não sonho.
À noite, o meu celular toca. Eu corro para pegá-lo, e engulo o meu grande desapontamento quando vejo o nome de Alana na tela. “Eu estava pensando em você agora pouco,” ela diz, depois acrescenta maliciosamente, “como foi o seu encontro com o Michael?”
“Não foi um encontro,” eu praticamente grito.
Fazendo jus à ela, ela volta atrás de imediato, “Me desculpe, Will, foi uma coisa estúpida de se dizer. Eu não quis te provocar, eu só estava esperando que você tivesse uma noite agradável…” ela para e eu imediatamente me sinto mal por ter sido grosseiro com ela. “Ele é uma boa pessoa e ele te acha interessante de verdade. Pensei que você poderia fazer um novo amigo.”
“Eu sei,” eu digo “Obrigado.” Nada disso era culpa dela.
“Alguma notícia da Molly?”
“Papelada do divórcio.”
“Ah, Will, eu sinto muito.”
“É, eu também.”
“Quer se encontrar alguma hora e conversar sobre isso? Eu estou aqui se você precisar de um ouvido amigo. Ou uma parceira de copo - nós podemos afogar as mágoas juntos.”
“Eu espero que você não tenha nenhuma mágoa para ser afogada, Alana?”
“Eu encontro.”
“Não, não faça isso. As minhas não se afogam sem força, vou precisar de ajuda.”
“Nós podemos sair e beber aquela moonshine que eles servem no bar da agência. Ela afunda até o Bismarck, desse jeito as suas mágoas não vão ter a menor chance.”
Nós conversamos um pouco mais, eu digo a ela que me manteria em contato e desligo. Eu verifico o TattleCrime novamente: ainda nada, e eu sinto uma nova onda de desesperança. Como eu poderia sair, me sentar com a Alana, e fabricar toda uma narrativa sobre a minha vida emocional que seja adequada para ela ouvir? A sua presença latente entre nós o tempo inteiro, ignoto e inominável – a verdade suspensa nos silêncios e nos espaços entre as palavras. Há tantas coisas que eu quero contar a ela e nunca poderia dizer.
*****
Quatro dias depois da mensagem do TattleCrime eu recebo uma ligação do Michael. Eu não dei o meu número a ele, e fico ligeiramente irritado que ele tenha o descoberto assim mesmo (Alana outra vez, muito provavelmente).
“Olá, Will,” ele diz educadamente, “como você está?”
“Bem, obrigado,” eu respondo. Eu não pergunto a ele como ele está, e um breve silêncio se sucede, como se ele estivesse esperando que eu fosse perguntar o mesmo. Quando ele percebe que isso não ia acontecer (muito bem, Michael), ele continua, incansável: “Espero que você tenha tido uma noite agradável na semana passada?”
Ah, Deus, nós realmente iríamos fazer aquilo ‐ eu disse a ele que foi bom, por que ele precisa ouvir isso de novo? De forma petulante, eu me recuso a corresponder. “O que eu posso fazer por você?” eu pergunto.
“Ah, não se preocupe, Will,” ele responde. Ele estava rindo, ele não se importa que eu seja um merdinha insolente. Cristo, existe algo que possa desconcertar esse homem? Se ele estivesse aqui é provável que ele me desse tapinhas nas costas. “Eu não espero que você faça algo de verdade,” ele continua, “Eu simplesmente achei que seria bom me manter em contato, como vocês americanos dizem de forma tão encantadora, e ver se você está disponível para outro drink alguma hora? Digamos, hoje à noite, depois do trabalho?”
Eu sei que eu estava sendo emboscado novamente, mas não é preciso dizer que agora eu estava me sentindo vagamente envergonhado pela minha aspereza prévia, e com isso permitindo que ele me pressionasse a encontrá-lo no mesmo bar que nós fomos com a Alana – algo que ele estava esperando desde o início, provavelmente – e eu percebo que o meu constrangimento social não só se tornou pateticamente previsível, como também me induziu a socializar de verdade, por culpa. Eu me sento do lado oposto a ele, me sentindo aborrecido e desigual, o que após uma bebida, se transforma em uma sensação sentimental de autopiedade, e após várias outras, se torna uma depressão completa.
“Você parece bastante preocupado,” diz Michael (o que era algo válido de se dizer, eu acho). “Às vezes eu pressinto uma sensação de ausência em você, Will, como se uma parte de você estivesse vagando longe do resto de nós.” Ele diz com serenidade: “Distante das adversidades mundanas.”
“Às vezes eu sinto como se fosse uma pessoa pela metade,” eu penso alto. Eu estava ficando tão bêbado que as luzes do bar estavam começando a flutuar e a se duplicar. Eu amputei a minha outra metade, eu penso. Eu a arranquei e a afundei no mar.
Michael olha para mim, de forma pensativa e solene. “Se você não se incomoda pela pergunta, Will,” ele diz por fim, “me parece que alguém partiu o seu coração.”
“Não exatamente,” eu respondo. Ele espera, com expectativa. “É complicado,” eu completo.
Se ele me questionasse sobre isso, eu poderia dizer que estava falando sobre a Molly.
*****
Uma semana após a mensagem. Eu estou finalmente começando a aceitar que não vale a pena e que você não vai me responder. Que talvez você nunca tenha tido essa pretensão. Que você poderia simplesmente estar se divertindo consigo mesmo e tudo era parte de um jogo maior que eu não saberia como jogar. Mas por que você faria isso? Por que se dar o trabalho? Você me salvou, afinal de contas… você podia só ter me deixado morrer, mas não deixou. Tem que haver um motivo para isso, para tudo isso (não há… decerto tem que haver?), mas eu não consigo compreender.
“Nada do Lecter,” suspira Jack, jogando as fichas de relatório em cima da mesa dele. “É como se ele tivesse desaparecido da maldita face da terra.”
“É,” eu respondo de forma desatenta, “ele pode fazer isso.” Eu olho pela janela, para a maneira como os pássaros passam por ali, sendo lançados pelo vento, mergulhando e despencando como pilotos kamikaze. O meu reflexo estava pálido demais, e eu sabia que não podia continuar assim.
Duas semanas após a mensagem. Eu recebo outra ligação de Jack para consultar um padrão emergente de assassinatos em série. Eu considero dizer não a ele, mas apareço no fim das contas, porque é um alívio ter algo em que se focar além do frenesi que tem se elevado dentro da minha cabeça. O criminoso estava envenenando as vítimas e mutilando os corpos após a morte. A combinação dos métodos de ataque são bastante incomuns (embora interessantes) e eu passo horas examinando os arquivos.
Na saída eu esbarro em Sanderson, o novo sub-líder das investigações de cenas do crime. Ele não gosta de mim, para ser franco. A justificativa ostensiva era porque eu tinha permissão irrestrita para acessar o laboratório, enquanto ele tinha que solicitar e pré-arranjar uma permissão em antecedência (eu o ouvi dizer uma vez, reclamando disso com Jack “Mas por que ele tem permissão?” ele continuou perguntando. Eu meio que estava esperando que Jack fosse o rebater com algo como ‘Porque ele é o Will Graham e ele é um maldito gênio,’ mas é claro que ele não diz isso). Na verdade, eu sei que o motivo real e implícito para Sanderson não gostar de mim é porque ele não confia em mim e acha que eu sou esquisito e estranho (para ser honesto, ele não está completamente errado). Ele me nota e desvia o olhar para a pilha de papéis que eu estava carregando. “Você tem permissão para pegar esses arquivos?” ele pergunta.
Eu olho para os arquivos e depois de volta para ele. “Não.” eu respondo. Eu espero pacientemente que ele perceba que, na realidade, não havia nada que ele pudesse fazer a respeito daquilo.
Ah, sim, lá vamos nós. “É… bem… você devia ter cuidado,” ele diz irritado, “isso é evidência, amigo.”
“Na verdade, tecnicamente não é, são dados de soma secundária,” eu respondo. “Amigo.” eu esboço um (estranho, esquisito) sorriso para ele e desapareço no escritório de Price, batendo a porta com um baque pretensiosamente vitorioso. Inicialmente, parece que as únicas características que as vítimas compartilhavam eram o fato de serem jovens, homens, e fisicamente atraentes. Um pouco de averiguação, lógica dedutiva e uma série de ligações com palavras bem pensadas revelou também que todos eles trabalhavam meio-período como acompanhantes de luxo.
“Fixação em prostituição e/ou complexo de moralidade, possivelmente fanático religioso,” diz Zeller, “Nós devíamos fazer alguém se passar por um acompanhante. Atraí-lo e emboscarmos esse miserável.”
“Nós não sabemos que o criminoso não é uma mulher,” afirma Jack. “Dizem que ‘o veneno é a arma de uma mulher’ não é? Mas, sim, eu concordo: é estatisticamente mais provável que seja um homem.”
“Eu ainda acho que a gente devia fazer alguém se passar como acompanhante,” diz Zeller, resoluto em não abandonar a ideia.
“Você poderia fingir, Will,” acrescenta Price. “Sabe, se sacrificar pelo time? Colocar o bumbum para jogo.” Eu engasgo no meu café. Price me dá tapinhas gentis nas costas.
“O Will conseguiria,” diz Zeller, esperançoso.
“Para fins científicos,” acrescenta Price.
“Sim, ele poderia, mas ele definitivamente não vai,” diz Jack.
Não consigo deixar de rir: apesar de tudo, era muito bom sentir que eu era parte do time novamente. Eu preciso voltar ao trabalho. Eu deveria. Não deveria? Eu devia começar a trabalhar em casos regulares. Eu estava tão entediado que tomei a atitude inédita de escrever todas as minhas impressões sobre os assassinatos em série para Jack (em nada mais, nada menos que papel timbrado) e deixá-las com a secretária dele dentro de um pequeno envelope esbelto. Eu irei visitá-lo alguma hora e direi a ele que quero consultá-lo de forma regular. “O amor e o trabalho são as pedras angulares da nossa humanidade” de acordo com Freud. Não é como se eu tivesse qualquer outra coisa na minha vida, afinal de contas.
*****
Três semanas depois. Eu finalmente reúno motivação o suficiente para me encontrar com Alana, e assim que eu a vejo eu me pergunto por que diabos eu não havia marcado aquilo antes. Nós encontramos um bar aconchegante no centro, confortavelmente decaído e acolhedor – o tipo de lugar com posters se desgastando da parede e Bob Marley ecoando da jukebox. Não é nada parecido com o bar pretensioso e artificial que nós fomos com o Michael, e eu consigo me descontrair um pouco, a tensão se dissipando do meu peito e dos meus ombros. O barman tenta dar encima de Alana, e nós falamos sobre as cantadas horríveis dele com copos de uísque para acompanhar, rindo como dois adolescentes. Eu me voluntario para pagar pela próxima rodada, então Alana decide que ela queria extrair mais comédia dos esforços de sedução terríveis do barman e paga pela que se sucede.
“Boa sorte, camarada,” eu digo, e nós trocamos um high-five atrapalhado; Alana estava rindo tanto que as bochechas dela estavam completamente ruborizadas. Enquanto ela se ausenta eu verifico o meu celular e fico surpreso ao ver quatro chamadas perdidas de Jack. Algo deve ter acontecido. Não era do feitio dele ser tão tenaz – geralmente ele só me mandaria uma mensagem imperiosa e me esperaria ligar de volta para ele. Eu faço um gesto para a tela quando Alana retorna. “É melhor eu atender,” eu digo.
Jack responde de imediato. “Will!” ele exclama. “Por que diabos você não atende o celular?” a voz dele muito séria, de repente eu sinto uma onda de pavor.
“O que foi?” eu respondo de forma brusca. “Jack? O que houve?” Os olhos de Alana vagam por todo o meu rosto, alarmada e vigilante.
“Houve um incidente, Will,” Jack diz sem mais introduções. “Matthew Brown fugiu da custódia da polícia duas horas atrás.”
Em primeira instância eu me sinto tão preocupado com a minha sensação de alívio/decepção por ele não ter me ligado para dizer que eles prenderam você (de novo) que eu não compreendo totalmente a implicação daquilo. “Matthew Brown?” eu repito, estupidamente. Eu ouço um pequeno arfar assustado vindo de Alana.
“Ele foi transferido para uma nova prisão e usou a força contra os guardas dele durante o trânsito,” Jack continua. Ele não acrescenta ‘assim como você’, mas eu me pergunto se ele chega a pensar nisso.
“Merda,” eu digo.
“Pois é.”
“Os guardas ainda estão vivos?”
“Sim, mas por pouco. Ele obviamente queria sair de lá o mais rápido possível. A prioridade dele era mais subjugar do que matar, mas isso apenas por enquanto – só Deus sabe o que ele vai fazer agora que fugiu. Nós emitimos um alerta, estradas bloqueadas, o de sempre.”
“Há algo que eu possa fazer?”
“Não, ainda não. Eu aviso você.” há uma pausa, “Se cuide, Will,” diz Jack, “Você sabe que ele pode vir atrás de você. Estou pensando em colocar uma equipe de segurança no seu prédio.”
“Sim,” eu digo. “Sim, essa é provavelmente uma boa ideia. Obrigado.”
“Sem problemas,” ele responde. Eu não digo mais nada, e depois de um breve silêncio ele desliga.
Eu guardo o meu celular com cuidado no bolso da jaqueta e me viro para Alana. “Era o Jack” eu digo de forma desnecessária (é claro que ela sabia que era o Jack). “Matthew Brown escapou.”
“Ah, céus,” ela parecia aterrorizada.
“É.” eu não sabia o que mais acrescentar. O nome de Matthew Brown é um condutor de todos os tipos de temor e angústia, se reverberando com uma pequena cela subterrânea, um ossário em um tribunal e uma garantia de morte de mim para você. Eu sinto como se os meus arredores estivessem girando, e eu me seguro na lateral da mesa, tentando não cair, tentando manter o meu fraco contato com a gravidade (e a realidade) intacto.
“Will…?” Alana diz. A voz dela parecia distante.
“Como você se sentiu,” eu deixo escapar, “quando você descobriu quem o Hannibal realmente era?”
Ela se retrai um pouco. “Wow,” ela diz, “não estava esperando por isso.”
“Sim, mas como você se sentiu?” não consigo deixar de perguntar. Deus, qual era o meu problema, por que eu estou perguntando isso a ela?
“Um pouco como você se sentiu, provavelmente,” ela responde após uma pausa, “mas a diferença é que você descobriu sozinho.”
“E ninguém acreditou em mim,” não consigo deixar de responder.
“E ninguém acreditou em você.” ela toma um gole ansioso do vinho dela. A mão dela tremia ‐ um pouco - e ela a apoia na mesa para se estabilizar. “Eu não sei… é difícil saber o que dizer. Eu me senti apavorada. Chocada. Furiosa. Humilhada por não ter percebido antes.”
“Eu senti mais raiva,” eu digo. Raiva, fascínio, euforia, medo, ansiedade… e isso mudou tudo. Mas não da maneira como foi para ela. Eu esvazio o meu copo. “Você acha que ele vai voltar?”
Ela olha para mim de imediato. Ela diz: “Não se ele tiver noção.”
“Acho que ele pode voltar em algum momento…acho. Acho que ele talvez volte.” eu murmuro, falando mais para mim mesmo, e ela se inclina para conseguir me ouvir.
“É quase como se você quisesse isso,” ela afirma. Ela franze o cenho.
“O jogo ainda não acabou,” eu respondo. Eu também franzo o cenho (mais para mim mesmo, por não calar a porra da boca). Eu sei que eu me arrependeria amargamente dessa conversa amanhã de manhã quando eu estivesse sóbrio. Eu já consigo me ver – encolhido no meu apartamento, me contorcendo de vergonha e ansiedade, analisando a carcaça das minhas confissões de bêbado – mas é como se uma barragem tivesse sido aberta e agora eu não consigo impedir que as emoções das últimas semanas se irrompam.
“É melhor você tomar um pouco d'água,” é tudo o que Alana diz. “Vou pegar um pouco. Caso contrário a gente vai te deixar à mercê de uma ressaca infernal amanhã.”
“Não,” eu respondo aflito. Eu agarro a manga dela. “Não vá, não me deixe aqui.”
“Okay.” Ela parecia ansiosa; ela não tem total certeza do que estava acontecendo comigo. Ela pega a minha mão e passa o polegar pelos nós dos meus dedos. “Okay, Will. Do que você precisa? Me diga como eu posso te ajudar.”
“Matthew Brown voltou,” eu respondo de forma irracional. E de repente tudo se torna demais, eu estou tremendo, e por que você não está aqui?
“Shh, shh,” Alana me puxa para perto dela, acariciando os meus ombros gentilmente, da mesma maneira que ela faria com o filho dela. “Está tudo bem, Will. Você só está cansado e angustiado. Você precisa descansar.”
Então, de repente, ela se afasta e olha para mim. Ela fala de forma gentil, sem muito propósito: “Você o amava, não é?”
Ela não diz um nome, mas ela não precisa dizer. Estava lá, tácito (indizível). Ambos sabíamos que ela se referia a você.
Um soluço ameaça escapar do meu peito, e naquele momento, eu sinto grande desprezo por mim mesmo. Eu deixo a minha cabeça se afundar nas minhas próprias mãos lentamente, os meus ombros tremendo.
“Está tudo bem, Will, shh, está tudo bem,” ela diz (mesmo que claramente não estivesse, ah, céus). Mas se ela estava quase tão horrorizada quanto eu achava que ela estava, ela tem pelo menos o autocontrole para não demonstrar. Era pouco consolador.
Depois ela me ajuda a enfiar os braços dentro da minha jaqueta, me puxa para um abraço de despedida, e me coloca em um táxi. Ela fica ali na calçada e observa o carro dar partida, seu casaco escarlate reluzente sob a luz do poste. Eu me acomodo no meu assento e observo as estradas e os carros passando pela janela. Era noite de lua cheia, e a cidade parecia submersa e pálida. Eu sei que os batalhões de arrependimento e vergonha logo viriam marchando, mas agora, nesse momento, eu me sentia confortavelmente entorpecido.
“Ainda não acabou,” eu penso. Eu passo o dedo pelo vidro. “Você ainda está por aí. Você está esperando. Eu sei que está.”
Você e eu. Nós éramos contrapartes exorbitantemente opostas: norte e sul, esquerda e direita (e contrários). Você a força imparável, eu o objeto irredutível. Nós éramos como polaridades, não é? Atraídos pela natureza e o instinto. Como matéria e antimatéria… opostos se atraindo. ‘Matéria’ significa que algo conta, significa que possui significado. Significa que há um propósito. “A matéria não existe de verdade,” você me disse uma vez, “o conceito é completamente contraditório, um universo abstrato.” Bem, vai à merda, vai se foder, porque você finalmente estava equivocado sobre algo. Porque isso significa algo. Isso importa. O que nós tínhamos importava. Contava, significava. Significa. Existe e significa, e não foi tudo em vão.
Chapter Text
Naquela noite, eu sonhei com você.
Eu observo você desenhar, o seu lápis dançando contra o papel em rabiscos céleres, cada traço feito magnífico propósito. Eu me pego fascinado com as suas mãos: elas são lindas, mãos de um cirurgião, músico, ou escultor. De certa forma, não parece correto dizer que um homem pode ter mãos bonitas, mas você realmente tem.
“O que você está desenhando?” eu pergunto.
“Você.”
“Posso ver?”
Sem responder, você me mostra. A figura nos esboços era feroz e bárbara. Eu estava coberto e salpicado de sangue, encarando de forma intensa o mundo externl fora do papel; e logo eu compreendo que essa versão de mim foi criada para encarar o mundo fora do papel e ver você, a sua realidade, o que você realmente é sob a sua camada humana. Você ficou ali por horas, desenhando com meticulosidade, sabendo que aqueles olhos desenhados te observariam com fatalidade e adoração. Se você influenciou a minha crisálida, então aquela imagem era sem dúvidas a borboleta lúgubre que se consolidou no fim – monstruosa e extravagante, e moldada na sua imagem. Era ferozmente e grotescamente lindo.
“É incrível,” eu digo.
“É?” você soava intrigado. “Pensei que você fosse ficar incomodado.”
Eu sei que o incômodo seria a resposta normal – e a resposta correta – mas eu também sei que eu não me importo mais com ser normal ou correto. Eu encaro você de volta, guardando o pensamento e não dizendo nada. De forma abrupta – e silenciosa – você se levanta da sua cadeira e se encaminha até mim. É assustador, o quão rápido você consegue se mover quando quer. Eu me levanto também. Vacilo. Então eu dou alguns passos para trás até as minhas costas colidirem com a parede, mas você continua vindo. Você é apenas um pouco mais alto do que eu, mas a sua presença é tão vasta que elq preenche o cômodo todo. Nós estamos perto o suficiente para conseguirmos nos tocar. Eu sei que poderia fugir se eu quisesse de verdade – chutar a sua virilha, socar o seu estômago – mas mesmo que esses pensamentos me ocorram, eu sei que não faria nada disso; que eu nem tentaria.
“Vire-se,” você diz. A sua voz era suave e afável, e quando eu obedeço você suspira levemente, tão baixo que quase parece um sibilo. “Ótimo. Agora apoie as mãos na parede e encoste-se nela.”
“Você vai me machucar?” eu pergunto. Mas apesar disso, eu estava calmo; como se eu não me importasse nem um pouco. Por que eu estou tão calmo? Eu não entendo, mas suspeito que você saberia o porquê.
Você encosta os lábios no meu pescoço, e eu consigo sentir você sorrindo contra a minha pele. “Isso depende,” você diz. “Você gostaria que eu machucasse?” você leva as mãos até onde as minhas estavam apoiadas na parede e envolve os seus dedos ao redor dos meus pulsos. A sua mão é tão grande que você consegue envolvê-los juntos ao mesmo tempo – a sua linda mão de cirurgião/artista/assassino. A sua outra mão se direciona para o meu abdômen, e a minha respiração vacila com um arfar trêmulo.
“Tão sensível,” você diz. Você escorrega um dos seus longos dedos lentamente por debaixo da barra da minha calça jeans e massageia em círculos o osso do meu quadril esquerdo. Eu arfo novamente, e deixo a minha cabeça tombar no seu ombro.
“Você é tão responsivo, é tão lindo.” você murmura no meu ouvido, de forma sutil e apavorante. “E não obstante, nós mal começamos ainda.”
“Ah, Deus,” eu digo.
“Não,” você responde de forma zombeteira. “Sou só eu.”
O meu corpo inteiro grita com tensão e necessidade, delirando com instintos conflitantes: combater/fugir/ficar/ceder. Você iria me manter no lugar e me foder contra uma parede, e eu sei que isso é uma péssima ideia e algo que eu realmente não devia estar fazendo (de forma alguma) – e que eu devia me importar com isso (muito), mas mesmo assim eu não me importo.
“Por favor,” eu peço fracamente. “Por favor…”
“Por favor o que, Will? Você está implorando pelo quê?”
Eu balanço a cabeça. Eu não consigo me fazer responder, não consigo colocar em palavras o que eu quero (preciso) de você, que eu estou dividido entre ódio, amor e desejo. Irracionalmente, eu acredito que dar nome a isso seria o momento definitivo em que tudo mudaria: que uma vez que eu dissesse aquilo em voz alta, todo o meu poder e controle seriam restituídos a você.
“Diga-me,” você persiste, “eu quero ouvir você dizendo.”
Eu acordo de repente, e é tão chocante, quase fisicamente doloroso, garras me arrancando do sono. O que diabos está acontecendo comigo? Eu estou duro ao ponto de quase doer, e prestes a ir para o chuveiro para cuidar disso antes que os eventos da noite passada me esmaguem, e eu me lamente com uma onda terrível de ressaca, medo e vergonha. Eu me estico para pegar o meu celular na cômoda da cama. Nada de ligações ou mensagens. Era um bom ou mal sinal? E/ou. Ah, caralho.
Por alguns segundos eu me sinto um pouco exaurido pelo quanto aquilo tudo era apavorante. Era demais para se processar sem café, então eu envolvo os meus ombros em um cobertor para espantar o frio e cambaleio até a cozinha. Eu olho pela janela do meu quarto no caminho e imediatamente localizo um carro preto estacionado. Haviam dois homens nos assentos da frente, bebendo algo em copos térmicos e observando a estrada de maneira lacônica – muito provavelmente a equipe de seguranças de Jack. Ele não perdeu tempo, preciso dar o braço a torcer.
Assim que eu tenho café em mãos eu me sinto um pouco mais preparado para começar a tarefa indesejada de analisar os meus vários problemas. Problema um: ressaca. Eu procuro por uma cartela de comprimidos Berocca e tomo alguns com o café.
Problema dois: sonhos eróticos incrivelmente realistas com você. Todavia, em retrospecto, talvez isso não seja um grande problema e sim uma progressão natural (inevitável), então eu decido não deixar isso me incomodar tanto (ou, nem um pouco). Apesar de não ser uma ocorrência frequente, não é nem a primeira vez que acontece – e isso no mínimo demonstra que o meu inconsciente é muito mais honesto sobre as coisas do que o meu consciente. Não é como se eu não estivesse ciente da tensão que vibrava entre nós. É claro que eu estava: pelo menos perto do fim. Em contrapartida, eu tenho certeza que você estava ciente disso há muito mais tempo do que eu (como você sempre esteve sobre qualquer outra coisa, maldito presunçoso), mas você nunca chegou a mencionar. Por que você não mencionou? Você tinha medo da rejeição? Parece improvável – não consigo imaginar você se importando com coisas assim de verdade. É mais provável que você só estivesse jogando um longo jogo. Ou talvez, você só não se importasse tanto assim. Essa também é uma possibilidade, suponho eu. Você sempre pareceu estar acima do tipo de coisa que distraía as pessoas normais. Eu me lembro de alguém fazendo confissões de problemas amorosos para você em um dos seus jantares, e de como você apenas observava, conforme a história se desenrolava, alternadamente entediado, entretido e fascinado: da maneira como um cientista fica ao examinar um rato de laboratório.
De qualquer forma, merda – resolução de problemas. Onde eu estava?
Problema três: infinitamente mais preocupante a esse ponto é a minha confissão de bêbado à Alana. Haveriam sérios efeitos adversos em consequência daquilo, sei disso – eu já me sinto exausto imaginando as conversas diligentes e ansiosas que ela me forçaria a ter. E se ela contasse ao Jack? Eu franzo o cenho, roendo a unha do polegar de forma nervosa. Não, ela não faria isso. Faria? Não, acho que não. Você não está aqui. Ela não precisa fazer isso. Isso me humilharia, faria Jack surtar (a imagem de um Jack incrivelmente furioso rapidamente aparece na minha mente e eu a afasto com a mesma rapidez) e isso não resultaria em nada profícuo. Resultaria, não é? Ela certamente não fará isso. Cacete.
Problema quatro: por fins atuais, o pior de todos. Um assassino perturbado com uma obsessão/rancor por mim (a esse ponto eu meio que perdi a noção), que escapou da custódia e agora pode estar em qualquer lugar. A escala desse problema é tão grande, que eu nem consigo colocá-la nas palavras corretas. Isso é tão idiota: quem diabos tem problemas assim? (bem… eu, obviamente). Agora eu sinto que estou à mercê dos acontecimentos; o que é uma merda, porque eu, de todas as pessoas, sei que esses acontecimentos – assim como você – não têm nenhum caráter misericordioso.
Isso é uma constatação horrível (para não deixar de mencionar a sensação antagônica de tentar pensar de forma positiva), então eu tomo a decisão resoluta ao dizer ‘foda-se’ para aquela sessão improvisada de resolução de problemas, e a abandono completamente, cambaleando até o chuveiro e me masturbando de forma frenética, quase que com culpa, as minhas costas contra a gelidez dos azulejos. Não leva muito tempo, e eu tenho um orgasmo tão intenso que quase desmaio.
Enquanto eu seco o cabelo com uma toalha, eu volto a pensar no meu sonho. Sendo mais honesto, o meu inconsciente tem uma visão mais consciente do que eu mesmo tenho, porque lá no fundo eu sei, além das dúvidas racionais, que – se aquela cena fosse real – eu teria implorado por você em um piscar de olhos.
*****
Dois dias depois e ainda não há nenhuma notícia, e a imagem de Matthew Brown continua presente em tudo, sem soluções à vista. Eu me sinto insuportavelmente aflito, um estado constante de cansaço onde eu não consigo parar de olhar por cima do ombro. Isso me lembra de um jogo que eu jogava quando criança chamado ‘Que horas são, Sr. Lobo?’ onde um jogador ficava de pé com as costas viradas, e as outras crianças tinham que ir até ele em bando. Se a criança da frente se virasse e pegasse alguém se movendo, então aquela criança ‘perdia.’ Mas eventualmente, e de forma inevitável, com um guinchar de satisfação, a mão de alguém batia no ombro do jogador vigilante, enquanto as costas dele ainda estavam viradas: e ele nunca sabia quando isso aconteceria, ele nunca via a tempo. Eu sempre odiei aquele maldito jogo.
Desde a ligação de Jack, eu tenho brincando de Sr. Lobo com Matthew Brown.
Eu me lembro das suas palavras, de novo e de novo: Garotos valentes como ele não têm medo de lobos. Mas lá no fundo é inútil, porque eu tenho. Eu tenho medo.
*****
Michael me liga novamente na noite seguinte, e eu percebo que os meus suspiros de irritação estavam diminuindo (um pouco) mais a cada vez que isso acontecia. Talvez Alana estivesse certa – é realmente bom ter um amigo.
“Deus não permita de sermos amigos,” você me disse uma vez. “Eu não acho você tão interessante,” eu respondi. Você me olhou pensativo, tomando o seu tempo, um pequeno brilho intenso nos seus olhos: “Você vai.”
“Como você está?” ele pergunta quando eu atendo o celular. “Estou preocupado. Alana me contou sobre esse tal de Brown – um caso horrível.”
Não consigo deixar de rir com esse nível espetacular de eufemismo. “É, é uma merda,” eu digo. Eu me pergunto se Alana contou mais alguma coisa a ele, mas rapidamente afasto essa paranoia.
“Você gostaria de um pouco de companhia?”
“Obrigado, mas não. Eu prefiro ficar em casa no momento..” eu encolho os ombros, mesmo que ele não esteja lá para ver. “Sabe como é – fechando as escotilhas.” (eu me censuro um pouco quando me ouço dizer isso: eu soava como um daqueles velhos imbecis com coletes de malha empunhando uma espingarda). Apesar disso, eu estava familiarizado o suficiente com as táticas dele a esse ponto para antecipar as minhas objeções educadas, e com isso, ele se oferece para vir aqui. Ele nunca aceitava não como resposta. Em algum ponto (talvez não tão distante) aquela persistência polida se transformaria em uma dominância enervante sobre o desejo dele de me ver, mas naquele momento havia algo de reconfortante sobre o desejo dele de se encontrar comigo. Isso me faz sentir como nada além de uma causa perdida.
Ele chega uma hora depois com uma garrafa de vinho e comidas embaladas em uma série de caixinhas para viagem, com um cheiro ótimo. Ele obviamente fica surpreso pelo estado do apartamento, e eu me pego apreciando o fato de que ele é honesto o suficiente para não fazer um discurso clichê sobre o quão terrível o lugar era. Ele fica vagando por ali enquanto eu tento achar pratos e talheres limpos o suficiente para nós comermos, e eu absorvo tudo através dos sentidos dele: as sirenes uivando lá fora, os gritos na rua; as lâmpadas sem revestimento e os canos vazando; a atmosfera geral de sordidez e miséria que sobrepõe tudo como uma camada de poeira. Ele volta e trás uma cadeira até a mesinha sebenta revestida de fórmica. “Não é o que eu esperava,” ele afirma com serenidade.
“É, acho que não,” eu respondo, mesmo que eu estivesse intrigado pelo que ele exatamente estava esperando.
“Então, o que trouxe você a este lugar em específico?” ele pergunta. “Não consigo deixar de sentir que você está aqui por escolha e não por necessidade.”
Isso me surpreende, porque demonstra um nível de acuidade que eu não esperava muito dele. “Eu queria me esconder,” eu afirmo – o que é quase, mas não tão ruim, quanto eu dizendo ‘fechando as escotilhas’ antes. Talvez eu devesse ceder ao inevitável e fundar uma seita apocalíptica. Eu poderia chamá-la de Os Irrevogáveis Grahams… não, não poderia, é uma merda.
“Will?” ele diz. “Você não está me ouvindo.” Ah, céus, ele parece irritado (eu sabia que a minha falta de clareza o irritaria em algum momento).
“Desculpe,” eu digo. “Eu só estava…” pensando no nome da minha seita apocalíptica. “Hum, eu só estava… pensando.”
“Eu perguntei se você sentia que precisava de algum lugar recluso para se isolar por um tempo?”
“Sim, mais ou menos isso,” eu respondo. Aquilo era para desviar a atenção dele, mas ao dizer isso eu percebo que era mesmo uma verdade.
“Isso é bom,” ele diz (é? Claramente não é). “Porque se foi uma questão de dinheiro…”
Ah, não. Ele não acha que pode vir até aqui como um admirável cavalheiro branco exibindo o talão de cheques dele. Acha? Ele acha que pode me comprar?
“Não é uma questão de dinheiro,” eu respondo com firmeza. O fato de ele que sequer fazer uma insinuação assim, mesmo de forma decorosa, me faz sentir desconfortável.
“Me perdoe, Will,” ele diz, “isso deve ter soado terrivelmente condescendente. Eu quis dizer que… bem, eu sou financeiramente confortável, digamos assim, e sempre fiquei muito feliz em ajudar amigos quando eles precisam.”
A reação dele faz eu me questionar novamente, e eu me pergunto se eu só estava desnecessariamente na defensiva ou se estava sendo indelicado com uma pessoa amigável que só queria tentar fazer a minha vida de merda ser menos miserável (e possui o conforto financeiro para fazê-lo). Ainda assim eu não consigo me desculpar, mas eu sorrio para ele e digo que estava tudo bem (e estava… mais ou menos).
Após a refeição – que foi tão suculenta e apetitosa que chamá-la de comida para viagem parecia uma espécie de insulto – nós bebemos o resto do vinho e eu sugiro que nós ouçamos um pouco de música, antes de lembrar que eu não tinha mais um leitor de CD. Nós ficamos sentados nas cadeiras ao invés (Deus, eu realmente precisava comprar um sofá em algum momento. Por que eu não tinha sofá?), mas se ele estava agoniado pela minha humilde residência então ele havia deixado de demonstrar. Eu conto a ele sobre os casos em que eu trabalhei ao longo dos anos, os selecionando com cuidado (na verdade, tudo se dividia – antes e depois de você, onde o depois não é mencionado de nenhuma forma). Ele parecia interessado, e faz perguntas inteligentes, e eu penso que era bom ter um ouvinte senciente depois de todas aquelas noites falando sozinho com o vazio. Várias vezes ele permite que o olhar dele se demore nos meus lábios, eu sei que ele quer me beijar.
Eu desvio os meus olhos rapidamente, fingindo que não notei. A esse respeito eu estava começando a sentir leves pontadas de culpa por ele. Eu tento afastá-las, e consigo uma vez ou outra, mas elas sempre voltam, incômodas, como se algo estivesse preso no meu dente. Eu sei que a coisa certa – a atitude correta e definitiva – seria ser honesto com ele e dizer a ele que eu não podia dar a ele o que ele queria. Mas toda vez que eu considero fazer isso, eu recuo. Porque se você disser a ele que você não vai transar com ele, a minha consciência me repreende, ele vai ficar entediado e você vai ficar completamente sozinho de novo. Em dias ruins eu não consigo decidir o que é pior – o fato de que eu estou disposto a usar um homem perfeitamente gentil que merece algo melhor; ou o fato de que eu fiquei tão pateticamente e desesperadamente solitário que eu estou disposto a me rebaixar à dependência e a carência com alguém que, na minha vida de antes, eu evitaria a todo custo. Momentaneamente, eu até considero dar uma chance. Eu me lembro de ler o conselho da rainha Vitória para a filha dela: “deite-se e pense na Inglaterra.” Eu poderia me deitar e pensar em Baltimore (ou o FBI, ou o obelisco de Washington, ou, mais provavelmente, me deitar e pensar em você). Talvez não fosse ser tão ruim; faz séculos desde que eu não transo, talvez eu goste. Mas mesmo que eu estivesse elaborando essa ideia, eu sei que eu não faria isso de jeito nenhum. Porque o único homem que eu consigo imaginar me levando para a cama é você – e a esse ponto, eu nem tento mais negar isso para mim mesmo.
*****
Uma semana após a fuga dele, e a ausência de notícias sobre Matthew Brown tem me afligido tanto que eu finalmente cedo e vou ver Jack. Eu sei que, realisticamente, ele não terá notícias – ele teria me contado se tivesse – mas ficar apenas sentado esperando estava ficando insuportável e eu precisava de algo construtivo para fazer. Jack não parece surpreso ao me ver, mesmo que eu não tenha sido convocado. Ele manda um dos minions dele buscar café para nós, e depois faz um gesto para mim pegar uma cadeira.
“Como você está?” ele pergunta.
Eu dou de ombros. “Muito bem, levando tudo em conta.” Não que isso fosse particularmente verdade, mas eu não acho que ele realmente queira ouvir como eu estou. Eu me pergunto o que ele diria se eu eu contasse a ele sobre você, por exemplo; como eu passo o dia todo falando com você na minha cabeça (não que isso fosse uma pergunta sensata, porque eu sei exatamente o que ele diria). Mentalmente, eu imagino você adentrando a sala, com os seus longos membros, lânguido, posicionando um dedo contra os seus lábios como se para me encorajar a guardar você apenas para mim. Discrição é a melhor parte da valentia, você me diria. Ou talvez não diria. Só Deus sabe o que você realmente diria… talvez você não dissesse nada? Mas ainda é tão fácil imaginar isso, mesmo que eu nunca tenha visto você fazer um gesto assim na vida real.
“Will?”
“Sim?”
“Está ouvindo?”
Visto que dificilmente eu o diria que não estou ouvindo, eu limpo a garganta algumas vezes, pensando em algo prático para dizer. “Obrigado por ter colocado os seguranças para vigiar o apartamento,” eu respondo. “É bom saber que eles estão lá.”
“Por nada. Esperemos que essa seja uma precaução desnecessária.”
“Sim.” eu espero um pouco, depois acrescento com cautela, “Você chegou a ter notícia da Alana?” eu tento parecer preocupado e casual, mas erro por um triz. Até para mim mesmo eu parecia nervoso e paranoico, mordiscando o meu lábio inferior e me recusando a olhá-lo nos olhos.
Jack parece surpreso de primeira, e em seguida um pouco desconfiado. É claro – eu entreguei isso praticamente de bandeja para ele. “Por que eu teria notícia da Alana?” ele diz. “Algo aconteceu?”
“Longa história,” eu respondo (Cristo, isso soa ainda pior). “Está tudo bem, não é por nada” (o que agora estava se transformando em algo tão enigmático que eu não culparia Jack se ele a telefonasse agora mesmo: ‘Alana,’ ele diria, ‘o Will está aqui comigo agindo feito um imbecil de merda, cheio de mistérios. Me diga o que diabos está acontecendo’). Eu sou tão idiota às vezes. É claro que a Alana não teria me dedurado ao Jack. Os Santos dos Desatinados intervém para me abençoar de última hora, e eu penso em acrescentar: “Ela estava comigo quando você me ligou naquela noite. Ela ficou preocupada. Me perguntei se ela chegou a entrar em contato – eu fiquei muito aflito e não fui muito acolhedor.’ Eu estendo as minhas mãos em um gesto que dizia ‘sabe como é’ para que ele pensasse que a minha hesitação foi por consequência da vergonha de ter surtado e deixado a pobre Alana abandonada e indefesa. Eu percebo que esse relato possuía o bônus inesperado de ser (em sua maioria) verdade.
Jack assente, mais satisfeito agora que ele obteve uma explicação que ele conseguia compreender. “Para ser honesto não tem muita coisa que eu poderia dizer que ela iria querer ouvir,” ele diz. “Não há nenhuma notícia e nenhuma pista nova. O filha da puta pode estar em qualquer lugar.”
Algo no tom dele me causa a sensação terrível de saber exatamente onde aquela conversa estava prestes a ir, e claro, Jack começa a falar de você – de forma não surpreendente, eu acho, já que você é o ‘filha da puta’ principal (que pode estar em qualquer lugar.) “É tão inacreditável, os dois fugindo por aí,” diz Jack, e eu me pergunto se ele estava preocupado em como aquilo poderia afetar o emprego dele – dois maníacos à solta sob a vigia dele.
“Sim,” eu concordo fracamente. Bem, era mesmo, não é? – inacreditável. Não consigo confortá-lo sobre aquilo. Com cautela eu acrescento: “Você não achava que ele estava morto?”
“Não posso presumir nada,” diz Jack, de forma um pouco arrogante.“Nós não sabemos se ele está morto; nós não sabemos se ele não está morto.”
“Acho que sim.” Então em outras palavras Jack, você não sabe de porra nenhuma.
“Eu fui muito duro com você no hospital, não fui?” Jack acrescenta após uma pausa. Era uma pergunta retórica. Ele sabe que foi, ele não precisa que eu confirme. Eu me pego assentindo mesmo assim.
“Mas você compreende o porquê?”
“Sim, eu entendo,” eu respondo. E eu entendia. Eu esperava que se eu cedesse assim tão fácil ele só deixaria aquilo de lado, mas é claro que ele não deixa.
“Antes de tudo isso começar, eu fui ver você naquela vez, e você disse na minha cara que você estava pensando em fugir com ele. Você podia ter mentido, podia não ter dito nada, mas não o fez.”
Deus, aquilo era excruciante. Eu estico a mão para tirar os meus óculos e percebo que eu já havia os tirado. “Eu sei,” é tudo o que eu digo.
“E agora?”
“E agora o quê?”
“Você ainda iria?”
Eu o encaro, piscando de forma estúpida. Eu considero dizer “iria aonde?” para me esquivar daquilo um pouco mais, mas não havia sentido em irritá-lo mais do que o necessário. “É claro que não,” eu respondo com diligência. O que mais eu poderia dizer?
Notes:
Chapter Text
Alguns dias depois a imprensa floresce em hipocrisia e balbúrdias (terrível), e os políticos começam a fazer perguntas (terrível também), e Kade Purnell estava tendo um infarto (maravilhoso); então Jack convoca uma reunião de crise sobre Matthew Brown. Após várias horas de discussões políticas, um ‘exercício de trabalho em equipe’ bastante sem sentido, uma série de discussões desconexas, muitos rabiscos confusos em uma tela, e uma ‘representação esquematizada’ (ilustrada em cinco slides de PowerPoint em fonte sans serif destacada), o consenso emergente parecia ser que ninguém tinha noção de absolutamente nada 1) do que estava acontecendo, ou 2) do que fazer em relação àquilo.
“Bem,” eu digo. “Foi bem produtivo.” Eu virei o meu copo descartável e agora estava tentando acertar bolinhas de lencinhos dentro dele, como se fosse um pequeno gol em miniatura. Estou tentando me lembrar de reuniões parecidas sobre você. Eles tiveram uma após a nossa queda do penhasco? Eles devem ter tido, deve ter sido quando eu ainda estava no hospital. Eu estive presente em uma ou duas desde então, mas nada acontece de verdade. O consenso ao final dessas reuniões tendem a ser ‘desaparecido, presumido como morto,’ mas eu sei que Jack não acreditava nisso de verdade.
“Com sorte, em breve o Brown será problema de outra pessoa,” diz Andrews, um dos novos agentes trainees (pequeno, confiante, irradiando ambição de cada poro dele como um se fosse um odor corporal). “Talvez ele tenha fugido pro exterior.”
“Eu ficaria surpreso, para ser honesto,” eu respondo. Eu tento ser delicado, porque ele era jovem e cheio de vigor e eu não queria esnobá-lo na frente de todos no primeiro mês de trabalho dele. Mas apesar disso, eu precisava falar. “É uma boa sugestão,” eu acrescento, mesmo que não fosse, “mas eu acho que ele é muito desorganizado. Esse tipo de fuga exige uma boa quantia de planejamento e recursos.” Em outras palavras: exigia alguém como você.
“Bem, mesmo assim,” ele persiste, “é muito provável que Brown esteja a vários estados de distância a esse ponto. As pessoas não voltam para cheirar a própria merda, não é?” Ele olha em volta, como se estivesse desafiando alguém a contra-argumentá-lo. “Por que você acha que aquele psicopata do Lecter fugiu para a Europa na primeira oportunidade?”
Hmm. Agora eu queria ter dito a ele que a ideia dele era uma merda. “Então, qual é a sua solução?” eu questiono, “Esperar que ele comece a matar pessoas por aí até que alguém seja forçado a assumir a responsabilidade por ele?” ele me lança um olhar funesto e eu lanço uma bolinha no copo descartável com uma força um pouco desproporcional.
“Will está certo,” diz Jack, “a nossa posição nisso pode ser resumida em duas palavras.”
“Porra nenhuma?” eu pergunto.
Jack me fuzila com o olhar e bate com a mão na mesa, apesar de que, sem dúvidas, o olhar dele teria sido ainda pior se eu tivesse usado as palavras originais que eu pretendia: ‘jack’ e ‘merda’. “Prioridade urgente,” ele exclama.
“Bem, pelo menos nós sabemos quem é o dominador comum,” diz Sanderson com um tom de voz enfático. “Nós devíamos oferecer o Graham para eles como isca.”
“Sanderson!” troveja Jack. “Isso é completamente inapropriado.”
“É,” acrescenta Zeller de maneira virtuosa, “você só está com inveja porque o Will é mais habilidoso do que você.”
“Melhores habilidades psicológicas,” diz Price com satisfação.
Automaticamente, todos se viram para olhar para mim. Eu não faço nada para ajudar a situação quando começo a rir.
“Não sei qual é a maldita graça,” diz Sanderson.
“Não, você está certo,” eu respondo, “não é engraçado, e para ser justo, o seu plano é incrível: absolutamente esplêndido. Eu sugiro uma grande caixa de acrílico no meio da Times Square. Tipo…”
“...Tipo o David Blaine,” acrescenta Price, prestativo. “Ativando o modo profissional.” Ele estica a mão e joga uma bolinha direto dentro do copo.
“Exatamente,” eu digo. “Ótima mira, aliás.” Price e eu trocamos um soquinho não muito discreto.
“Certo, já chega,” vocifera Jack, irritado. “Will, Sanderson, se resolvam entre si.”
Eu queria rebater com ‘bem, foi ele quem começou,’ mas eu sei que não havia como eu dizer isso sem soar como um pirralho de cinco anos de idade, então preciso me contentar escrevendo ‘papo furado’ com uma letra bem pequena por todo o meu folheto do PowerPoint.
“Eu tenho habilidades,” Sanderson diz baixo para Andrews, nitidamente levando o comentário de Zeller para o pessoal. “Eu entrei em um aplicativo online de namoro e as mulheres estão amando.”
“É?” pergunta Andrews. “Já teve sorte?”
“Tenho trocado mensagens com uma garota de DC. Professora de escola primária, incrivelmente linda,” diz Sanderson. Ele me lança um olhar triunfante. “Nós ainda não nos encontramos, mas eu vou levar ela para jantar na semana que vem. Enquanto isso, a gente tem se dado muito bem pelo telefone, se é que me entende.”
“Extraordinário,” eu digo alto, “Eu já sabia que o amor era cego mas não sabia que era surdo também.”
Infelizmente, eu pareço esquecer que Jack (ao contrário do amor) não era surdo. “Will!” ele exclama, “Eu disse chega! Se eu tiver que dizer isso mais uma vez…”
Mas eu não estava mais ouvindo, então não ouço o que ele faria se ele tivesse que me dizer (mais uma vez). Estou pensando em você e em Matthew Brown. Ambos envoltos de uma névoa espessa e enigmática, onde o contorno das coisas é apenas ligeiramente visível. Eu reviro as várias peças na minha mente como se fosse um quebra-cabeça 3D feito de ossos, aguçando a minha percepção em ambos os lados. Primordialmente, eu desconfio muito que Andrews esteja errado (e que eu esteja certo)...mas não pelos motivos que aleguei.
Ambos você e Matthew Brown ainda estão muito próximos. E não por narcisismo, ou ganância, ou obstinação vangloriosa: ou por todas as outras teorias que os artigos (escritos por pessoas como eu) sugerem. Você está por perto porque eu estou. Eu sou a órbita te atraindo. De igual para igual. Tenho certeza disso. Quanto mais eu penso nisso, mais certo eu estou de que isso é verdade. Saber o que vocês dois pretendem fazer com isso é a constatação que tem se provado assustadoramente furtiva.
“Você só veio aqui para me ver. Veio para sentir o cheiro antigo novamente,” você me disse uma vez. “Por que você só não se cheira?”
*****
Eu tinha uma consulta ambulatorial de tarde, então eu me arrasto até o hospital para me encontrar com a Dra. O'Connor. “Sr. Graham!” ela diz quando me chama na sala de espera, “Você parece bem melhor do que na última vez que eu te vi.” Ela parecia genuinamente feliz com isso (ela era uma boa mulher), mas não é tão reconfortante quanto ela faz soar, porque na última vez que ela me viu eu estava fazendo uma imitação muito convincente de um cadáver, então a margem para a melhora não foi tão impressionante assim. Eu me sento na maca de exames dela vestido em uma camisola de hospital aberta enquanto ela examinava o meu abdômen e peito. “Estou satisfeita,” ela diz, tocando a cicatriz na minha bochecha, “está se curando muito bem. Você terá mais um acompanhamento com a unidade maxilofacial, mas eu diria que você teve muita sorte.”
“Que bom,” eu respondo. Para ser honesto eu não me importava. A cicatriz coça e pulsa ocasionalmente, mas na maior parte do tempo eu esqueço que ela está ali. Em momentos mais excêntricos eu até me convencia de que gostava dela: uma cicatriz de duelo romântica, adquirida em combate.
A Dra. O'Connor examina o monitor do termômetro de ouvido e se inclina um pouco mais próxima do meu rosto, franzindo o cenho. “Você está um pouco febril,” ela diz. Ela apalpa o meu pescoço e examina os meus olhos com uma luz. “Tem tido coceiras? Vômitos? Dores de cabeça?”
“Dores de cabeça de vez em quando.”
“Ah, sim, isso é bem comum para você, não é? Acho que eu vi encefalite mencionada no seu arquivo?”
“Sim, alguns anos atrás.”
“Céus. Isso deve ter sido horrível.”
“Você não faz ideia,” eu digo, porque – era verdade.
“Mais algum sintoma?”
“Não.”
“Chiado, dor no peito?”
“Não, nada.”
“Ótimo.” Ela assenta o termômetro na mesa e guarda a lanterna-caneta dela de volta no bolso. “Nada com que se preocupar, acho eu, apenas um vírus atípico de inverno.”
Eu levanto as sobrancelhas. “Vírus atípico?” eu digo incrédulo. Ah, meu Deus: isso é tão típico. A maioria das pessoas obviamente são afetadas por vírus normais enquanto eu sou afetado por um atípico.
Ela obviamente consegue perceber o que eu estou pensando pela expressão no meu rosto e tenta (e falha) sufocar uma risada. “Não se preocupe,” ela diz, dando tapinhas gentis no meu braço, “você vai ficar bem, eu prometo. Você só precisa se cuidar melhor.” A voz dela assume um tom materno, ligeiramente autoritário: em algum momento é provável que ela me chame de ‘jovenzinho.’ “Para começar, você poderia ganhar mais peso,” ela diz, “você está magro demais, jovenzinho” (ah, pelo amor de Deus). “Você precisa de bastante proteína. Você não é vegetariano, é?”
Eu sinto uma sensação horrível de que estava prestes a rir. “Não,” eu digo. “Na verdade eu comi alguns tipos de, hum, carnes exóticas ao longo dos anos.” Ah, meu Deus, eu penso, cale a porra da boca seu doente maldito.
“O meu marido comeu crocodilo na Austrália,” ela diz. “Aparentemente é um pouco parecido com salmão.”
Eu penso em dizer algo como ‘crocodilo é para os fracos’ mas é claro que não digo. Enquanto eu junto as minhas roupas ela me diz para ir para casa assim que terminarmos e comer algo nutritivo. “Você precisa cuidar melhor de si mesmo, jovenzinho,” ela diz (se repetindo).
“É o que eu planejo fazer,” eu respondo. Era? Deus, não, provavelmente não.
“E se agasalhe,” ela acrescenta, “tem uma tempestade chegando por aí.”
Eu olho pela janela. Ela estava certa: o céu estava coberto e carregado e havia um vento pernicioso começando a se formar. Estava muito frio e eu deixei o meu cachecol na sala de reuniões (onde Andrews e Sanderson estavam provavelmente brigando para ver quem atearia fogo nele primeiro). O vírus e eu nos encaminhamos para casa, onde eu esbarro no Sr. Haversham que morava no andar abaixo do meu. Nas terríveis e delirantes semanas que sucederam a minha estadia no hospital eu costumava acordá-lo bastante, perambulando constantemente no meio da noite. Eu percebi que ele se sentiu mal em mencionar o fato, como se ele estivesse sendo inconveniente ao me pedir educadamente para parar de pisotear o assoalho às 3 da manhã. Eu acabei inventando uma baboseira sobre aquilo ser parte de um ritual Vipassana onde eu meditava andando… talvez eu tenha até dito que estava pensando em estudar para me tornar um monge budista (eu estava muito bêbado na hora). Eu me recordo disso agora e sinto as minhas bochechas ruborizarem ligeiramente.
“William!” ele diz; ele nunca me chamava de Will, e eu já desisti de pedir isso a ele. “Exatamente quem eu queria ver. Como você está? Você parece um pouco abatido.”
“Bem, obrigado,” eu digo. E acrescento: “Eu estou com um vírus atípico.” (Ah, meu Deus, por que eu disse isso? Por quê?). Ele dá um passo cauteloso para trás.
“Ah, não, está tudo bem, não é nada,” eu acrescento de forma apressada. Por que eu estava defendendo o vírus? Era como se eu estivesse o protegendo. Cristo.
“Bem,” ele diz. “Bem…”
Eu tento ajudá-lo. “Você queria a minha ajuda para alguma coisa?” eu pergunto.
“Ah, sim!” ele diz, se animando novamente. “O meu aquecedor quebrou, um inconveniente terrível nesse clima. Você pode dar uma olhada? Eu agradeceria muito. Você parece ser bom nesse tipo de coisa,” ele acrescenta com expectativa.
Isso significa que agora eu oficialmente me tornei o tipo de pessoa que alude à impressão: ‘Uau, olha só para aquele cara: ele definitivamente entende de aquecedores’. Eu suspiro e digo a ele que eu passaria no apartamento dele pela manhã.
“Você é um bom rapaz,” ele diz. “Eu teria feito isso sozinho, mas sabe como é.” Ele estica suas mãos artríticas, retorcidas e tortas como galhos. Eu assinto distraído (eu ainda queria perguntar a ele: o que na minha aparência faz parecer que eu ‘entendo de aquecedores'?).
“Ser velho é uma coisa terrível,” ele diz. Eu assinto novamente. Acho que era. Mas morrer jovem não era pior?
Ele começa a subir as escadas, então ele para e se vira. “Você vai entrar, filho?” ele acrescenta. “É melhor você não ficar aí fora. Tem uma tempestade chegando.”
É a segunda vez que alguém me diz isso hoje, como se eu me importasse. Eles não entendem que a tempestade já chegou. Já chegou há anos atrás e me deixou alvejado e preso: você bem no centro feito o olho de um furacão. De repente eu sinto, com total certeza, que eu não conseguiria entrar e ficar ali no meu apartamento horrível com o vento assobiando lá fora e as paredes me sufocando. “Estou bem,” eu digo, “Eu só preciso…” eu faço um gesto insignificante com a mão, como se isso fosse comunicar todas as coisas que eu precisava fazer. “Eu vou entrar em um minuto.”
Ele assente e volta com seu trajeto escada acima; eu quase consigo ouvir as articulações dele rangendo conforme ele subia. Houve uma vez em que ele me mostrou uma foto da esposa dele, jovem e bonita com um penteado estilo anos 40 e uma blusa com uma gola coração. Ela morreu de tifo ainda em meados de seus 20 anos e ele cuidou dela. Ele nunca se casou de novo: a fotografia dela ainda repousava em cima da lareira dele, olhando para nós com serenidade; seu rosto jovem congelado no tempo. Ele era um veterano da Batalha do Pacífico, um herói. Ele salvou vidas. E agora ele estava preso naquele prédio caindo aos pedaços assim, sozinho, com suas mãos artríticas e dependendo de um idiota para consertar o aquecedor dele.
Eu me inclino para trás e deixo a minha cabeça descansar contra a parede. A chuva caía pesadamente agora, atingindo a calçada ferozmente, e o inegável som de um trovão ressoa pelo horizonte. Os sons do cotidiano da vida de outras pessoas ressonam de maneira plácida pelas janelas acima: panelas tilintando, um bebê chorando, um homem dizendo a alguém ‘tire a merda do pé do sofá, quantas vezes eu tenho que dizer?’ Ele soava um pouco como Jack. Havia o som distinto de um rádio vindo da sala do zelador, uma voz jovem e feminina cantando: “Spend my days locked in a haze, trying to forget you babe, I fall back down, gotta stay high all my life to forget I’m missing you.” Cristo, quanta baboseira.
Eu sei que estava chorando, mas com toda aquela chuva escorrendo pelo meu rosto era fácil fingir que eu não estava.
Tanta chuva: eu estava ensopado da cabeça aos pés. As minhas roupas pesadas e o meu cabelo; que perde os cachos e fica mais longo quando molhado, com os fios espalhados pela minha testa, se mesclando com os meus cílios. Vá para dentro, eu penso, vá para dentro e se recomponha, cacete. Eu deixo a minha cabeça tombar mais para trás, fecho os meus olhos, deixo que a chuva faça seu trajeto pelo meu rosto. Eu deixo os meus lábios ligeiramente entreabertos para conseguir prová-la. Havia algo de tão puro e primordial em relação à chuva. Apenas mais um minuto, eu penso, só mais um minuto e eu entro.
Eu abro os olhos e abaixo a cabeça, e é aí que eu vejo uma figura no fim da rua. Ele (ela?) estava parado sob o toldo da loja de conveniência, não fazendo nenhuma tentativa de se esconder. Ele só fica ali, pairando, as mãos enfiadas no bolso de seu longo casaco.
Eu sinto um pico de adrenalina de imediato, mesmo que sem necessidade. Não é como se ele estivesse fazendo algo particularmente suspeito. Talvez ele só estivesse fugindo da chuva: alguém que foi pego de surpresa a caminho de casa, sem um guarda-chuva, verificando o relógio e suspirando irritado. Ele provavelmente estava me analisando de volta, perguntando o que diabos eu estava fazendo parado do lado de fora do prédio olhando para cima.
Verificar não faria mal, não é? Eu me afasto da parede e começo a andar em direção à figura. Ele não se move de primeira: sua silhueta paralisada, alto, magro e imóvel. Mas quando eu dou mais alguns passos ele se vira de forma abrupta em seus calcanhares, seu casaco balançando com o movimento repentino.
“Ei!” eu grito.
Ele não tem reação, não se vira, só continua andando; era como se eu nem tivesse dito nada.
“Ei, espere!” eu acelero o meu ritmo e começo a correr, ao passo em que a figura desaparece pela esquina. O peso das minhas roupas encharcadas estava me deixando mais lento, mas eu me apresso até o fim do quarteirão mesmo assim. Há um tremeluzir de um raio e era como se o céu estivesse prestes a se romper e se dividir em dois. O meu coração palpita nos meus ouvidos, uma sensação insana de esperança/medo/intriga.
Merda, para onde ele foi? A rua estava deserta. Como aquilo era possível? Ele estava bem ali. Eu dou alguns passos trôpegos para frente, e paro; eu queria correr mas não havia nenhum lugar óbvio para onde ir. A pressa se evaporou. Algo dentro de mim grita e eu exclamo “Quem é você?” para o vazio. Deus, eu parecia um completo maluco. E se fosse apenas alguém de passagem? Mas… e se não fosse? A chuva caia de forma tão copiosa agora que os pingos saltavam do chão como balas.
Eu examino a rua e tento pensar em onde a figura misteriosa poderia estar, tão aflito que eu não vejo o táxi vindo na minha direção e os faróis me cegando e a buzina berrando nos meus ouvidos, paralisado. Alguém me agarra e me arranca dali, e nós dois caímos na calçada, o corpo dele metade por cima de mim.
“Ei!” ele diz. Ele tinha um rosto redondo e amigável, a cabeça dele careca e reluzente como um ovo. Eu o encaro de volta, piscando estupidamente. “Ei, amigo!” ele repete, um pouco mais alto dessa vez. Ele dá tapinhas na lateral da minha bochecha. “Você está bem?”
O táxi para com um guinchar dos pneus e o taxista irrompe para fora do carro. “Seu imbecil do cacete!” ele grita, “Eu quase te atropelei! Qual é a merda do seu problema?”
“Qual é o meu problema?” eu questiono, tonto. “Quanto tempo você tem?” o taxista e o homem careca trocam olhares preocupados. O meu nariz estava sangrando: coçava. Eu estico a mão para limpar.
“Olhe, garoto,” diz o taxista com um tom mais gentil, “você quer que eu ligue para alguém?”
“Sim,” eu respondo, “mas eu não sei o número dele.”
“Jesus,” diz o taxista.
“Onde você mora?” pergunta o homem careca com gentileza. “Você é daqui?”
“Eu moro logo na esquina.” eu respiro fundo, tentando me recompor. “Eu consigo chegar em casa em menos de um minuto; eu vou para casa. Eu estou bem. Foi só um choque. Eu sinto muito por atrapalhar vocês dois.”
“Tenha cuidado da próxima vez,” diz o taxista. Ele junta forças com o homem careca para me ajudar a levantar e hesita quando me vê de perto. “Você me parece familiar.” Ele estava tão próximo, me analisando bem na minha cara. “Eu não te reconheço de algum lugar?”
“Não, acho que não,” eu digo, mesmo que eu saiba que ele provavelmente me reconhece por conta das notícias. “Tenho certeza de que nunca nos vimos antes.”
“Você parece com aquele cara do FBI, qual o nome dele…?”
“Não, com certeza não sou eu,” eu digo rapidamente. Me pergunto se eu devia invocar o vírus para me livrar dele (arma biológica), mas ele já estava se virando, indo em direção ao carro dele.
“Bem, cuide-se, garoto,” ele diz, “Espero que se nós nos encontramos novamente, que não seja com esse seu traseiro magricela debaixo dos meus pneus.” Ele enfia a cabeça para fora da janela e olha para o homem careca. “Você precisa de carona, amigo? Por conta da casa.”
Ele hesita e olha para mim. “Vá em frente,” eu respondo, de forma um pouco rápida demais para ser considerada educada. “Estou bem, consigo ir para casa bem rápido.”
“Bem, okay… se tem certeza de que está bem sozinho?”
“Tenho certeza,” eu digo. “Obrigado de novo”. Eu os observo partir. A rua ainda estava deserta, nenhum sinal de ninguém. Eu estava completamente sozinho. Lentamente, eu começo a me arrastar para o apartamento.
Nada aconteceu, não de verdade. Nada conclusivo – pode apenas ter sido um pedestre aleatório. Eu não posso contar isso ao Jack e esperar que ele leve isso a sério. Não havia nenhuma evidência: nenhuma digital ou DNA, nenhuma cena do crime, nenhuma palavra trocada. Mas nada disso podia mudar a sensação inegável que eu estava sentindo que tudo estava mudando. Que já mudou.
“Há uma tempestade chegando,” eu murmuro para mim mesmo. Eu sinto um presságio estranho. Chegando, chegando, pronto ou não.
Chapter Text
Me ocorre com frequência o pensamento de que a sua voz começou a se tornar mais conspícua e persuasiva na minha cabeça do que a minha própria. Às vezes isso me aflige: significa que não havia como eu fugir de você, que até o meu próprio cérebro era um lugar perigoso e pérfido (porque deve mesmo ser – eu sempre perco as minhas próprias brigas para você, afinal). E em outros momentos eu gosto, porque significa que eu posso te carregar comigo e assim, não me sentir tão sozinho. Nessas horas, a sua força e o seu magnetismo parecem infecciosos, e eu consigo vestir a ideia de você como uma armadura. Ter você na minha mente é um segredo fantástico e grotesco que me fortifica e me sustenta; e o fato de que os meus pensamentos possuem um sotaque grave, um caráter filosófico, e um desprezo pela moralidade se torna o enigma mais arrebatador, que ninguém podia entender ou roubar.
Efetivamente, eu estava ciente de que tudo isso, de forma agrupada, não podia acabar bem, mas eu estava tentando me limitar e parar de me preocupar tanto com o futuro. Qual era o sentido? Eu me lembro de um velho adágio que a minha professora de matemática do ensino médio costumava citar quando nós reclamávamos das notas e do processo de admissão das faculdades: “A vida é tão curta, se preocupar é uma perda de tempo – vocês podem ir para casa hoje e serem atropelados por um ônibus.” Embora, admitindo, o fim que eu imagino para mim mesmo é bem mais entusiástico e aterrorizante do que morrer sob as rodas de um ônibus desgovernado. E também é mais provável de acontecer. Na verdade, em retrospecto, aquele foi um conselho bem idiota. Eu tento me lembrar do que aconteceu com aquela professora, mas falho. Eu meio que gosto de pensar que ela foi atropelada por um ônibus (cheio de estudantes que fracassaram em matemática), mas acho que essa ironia seria demais.
“Tenha cuidado com o que você deseja.” Essa é outra. Quem disse isso? O meu pai, provavelmente. Tem a dose perfeita de melancolia e pessimismo para ele. “Tenha cuidado com o que você deseja, filho, pode virar realidade.” Eu não estava tendo cuidado com o que eu desejava (mesmo que não houvesse garantia de que eu conseguiria alguma coisa), e eu não me importo com isso também. Havia uma ausência incrível de cuidado nos meus desejos, e eu estava pouco me fodendo.
O que você disse? “Eu imagino que o que você vê e aprende toca todo o resto em sua mente. Os seus valores e juízo estão presentes, embora se choquem com as suas associações, horrorizados em seus sonhos.”
Se você voltar – se voltar – então eu vou lidar com toda a loucura, fascínio e violência desmedida que você trará consigo à sua deriva. Eu vou lidar com isso, sei que vou. Eu só preciso que você volte primeiro.
*****
O caso dos acompanhantes assassinados é encerrado, e ao contrário das suposições de Zeller, aquilo não fora obra nem de um fanático religioso nem de um moralista, mas sim de um homem de meia-idade que matava acompanhantes masculinos simplesmente porque eles eram mais vulneráveis e fáceis de acessar (o que foi exatamente o que eu disse ao Jack, e eu teria que me esforçar para não jogar isso na cara de todos quando eles balançarem a cabeça e disserem “bem, eu não esperava por isso”). Ele se senta na sala de interrogação, manchando a mesa com seus dedos suados e assoando baixo em um embolorado de lencinhos desintegrados. “Nunca foi a minha intenção,” ele continua dizendo. Ele pisca para mim com seus olhos suplicantes e chorosos por de trás de seu óculos espesso e opaco. “Eu só queria que eles ficassem comigo, mas eles não ficavam. Eles não ficaram, e eu fiquei irritado, mas essa nunca foi a minha intenção.”
“Parece que ele vai apelar para a defesa do ‘não é minha culpa vossa excelência, eles foram maus comigo’” diz Sanderson para Price. Ele se vira para mim e me oferece um breve acenar de cabeça, de má vontade: “Bom trabalho lá, Graham. Você destrinchou ele completamente.”
“Desgraçado desprezível,” diz Zeller, enojado.
Zeller estava certo – estava mesmo – mas sob toda aquela melancolia e crimes em flagrante – na vida, em relacionamentos, assassinatos, tudo – eu ainda conseguia ver a tragédia simplória e sórdida de um homem terrivelmente só, cuja dor e raiva se mesclaram com a crueldade e a estupidez, a violência sem sentido; onde as vidas de suas vítimas eram sagradas e procuradas, até não serem mais, e todas se tornarem igualmente insignificantes e dispensáveis. Fisicamente, emocionalmente e intelectualmente seria impossível encontrar alguém mais diferente de você do que esse homem. E ainda assim, ainda assim… eu sei que você era solitário também. Você também queria alguém que ficasse com você, alguém que pudesse compreender e admirar você. Alguém como você. Haviam lágrimas nos seus olhos quando você me esfaqueou. Não foram derramadas, mas elas definitivamente estavam lá. Você pensou que eu ficaria com você, mas no último minuto eu te decepcionei. Você se sentiu traído por mim, eu sei que sentiu, mas algo além disso também: ferido. Machucado. Você queria que eu ficasse com você, e eu não fiquei.
Não consigo decidir se refletir sobre a sua suposta vulnerabilidade me fazia sentir melhor ou pior, então no fim das contas eu deixo o prédio para encontrar o bar mais próximo e bebo até eu ficar contentemente oblívio para que eu não tivesse que pensar mais nisso. Ambos Alana e Michael me ligam nesse ínterim, e eu fico perversamente satisfeito em não atendê-los, um após o outro.
*****
Alguns dias depois eu recebo uma mensagem de Jack, tipicamente lacônico: “Preciso falar com você imediatamente. Não posso ligar no momento – venha ao meu escritório assim que ler isso. Responda para confirmar.” Obedientemente eu digito uma resposta e me pergunto o que ele queria. As mensagens de Jack sempre oscilavam entre as margens erradas da autoridade e da pretensão, então ao longo dos anos eu perdi a capacidade de identificar se as mensagens eram sobre um desastre real ou se era só ele despejando autoridade sem motivo. O fato de que ele ainda não me ligou me faz pensar que era apenas autoridade desnecessária, no entanto, considerando todas as coisas que tem acontecido recentemente é melhor partir para o lado da prudência e ir para lá mesmo assim (e para ser honesto, não era como se eu tivesse algo de melhor para fazer.) O meu carro estava na oficina, então eu pego o trem e o metrô. O vagão estava quente e empoeirado, e o ranger dos metais e as luzes piscantes abalam me irritam de um jeito que nunca havia acontecido antes.
Um homem embarca na estação seguinte e se senta do lado oposto a mim, e eu percebo com pesar que ele era um pouco parecido com você. Não de forma extravagante – não o suficiente para ser confuso – mas a semelhança definitivamente estava ali, na proeminência das maçãs do rosto e a curva do lábio inferior dele, e eu me pego o encarando mesmo assim. Ele percebe em cerca de duas paradas e me lança um olhar ansioso e irritado, mas eu não conseguia parar de olhar. Eu fico esperando que ele me repreenda por isso (que ele me soque – não era como se eu não merecesse), mas ele não o faz; eventualmente ele só abre o jornal dele de forma agitada e o levanta para cobrir o próprio rosto. Ocasionalmente ele espia pelas margens do jornal de forma furtiva para ver se eu ainda estava olhando (eu estava). Um rubor de irritação havia se espalhado pela sobressalência daquelas maçãs do rosto, e eu sei que estava sendo um completo idiota mas eu não conseguia parar de olhar. Na estação seguinte ele se levanta de forma abrupta e desembarca do trem, e eu me pergunto se aquela era realmente a estação dele ou se eu o deixei tão inquieto que ele desceu antes. Ele deixou o guarda-chuva dele no assento, e eu me pergunto se devia correr atrás dele para devolver, mas decido que eu já havia deixado o pobre indivíduo aflito o suficiente para uma tarde só, e a visão de mim correndo atrás dele pela plataforma segurando um grande objeto com ponta provavelmente o faria surtar completamente. Estranho pensar que agora eu havia me tornado uma parte do dia dele; que ele provavelmente iria para casa hoje e contaria isso à esposa dele, enfeitando o relato com pequenos detalhes do jeito que as pessoas fazem: “Querida, uma coisa muito esquisita aconteceu hoje de manhã. Eu estava no metrô e um cara assustador não parava de olhar para mim, foi incrivelmente bizarro. Pensei que ele queria me esfaquear – ele parecia louco o suficiente para fazer isso – então eu desembarquei do trem antes e me atrasei para a minha reunião…” Isso me faz pensar sobre todas as várias adaptações de você que já existiram nas histórias das outras pessoas ao longo dos anos: a minha narrativa sobre você, a de Jack, a de Alana, a de Chilton. Uma grande composição de identidades, nenhuma verídica em sua totalidade. Eu me pergunto o que elas diriam se sentassem todas juntas – todas aquelas versões de você – se elas teriam se reconhecido passando pela rua.
O escritório de Jack estava vazio quando eu finalmente chego. Eu fico ali fora por um tempo, trocando o peso do corpo de um pé para outro e sufocando a vontade de chutar a porta dele (Era bem arriscado: a única coisa que me impedia era a ideia de Sanderson/Andrew vendo isso pelas câmeras e gargalhando de rir depois). Eventualmente, eu perco o interesse completamente e me encaminho até o laboratório. Price estava lá, organizando suas correspondências de forma meticulosa em uma pequena pilha. “Oi, Will,” ele diz quando me vê. “O que te trás aqui?”
“Jack me pediu para vir, mas ele não está no escritório.” (O maldito. Ele provavelmente estava fazendo aquilo de propósito – eu não ficaria surpreso se ele estivesse lá o tempo todo, ouvindo eu me mover e suspirar do lado de fora). Price só assente, distraído.
“Você tem alguma ideia do que ele quer?” eu pergunto.
Price dá de ombros. “Não faço ideia, eu estive no tribunal a manhã toda. Cheguei agora há pouco,” ele faz um gesto para o sobretudo dele, o qual ele ainda não havia tido a chance de tirar, e eu assinto em resposta – eu devia ter adivinhado. “Espere aqui se quiser,” ele acrescenta. “Café?”
“Obrigado, seria ótimo.”
“Bem, você sabe onde a cozinha fica,” ele franze as sobrancelhas para mim, obviamente contente com o sucesso de sua pegadinha. “Eu quero um também quando você for.”
Eu sorrio e reviro os olhos, mas não contesto. Eu realmente gostava que ele me tratava como parte do pessoal. Ainda não havia nenhum sinal de Jack quando eu retorno, então eu repouso o café de Price na mesa dele e recebo um grunhido de agradecimento. Eu me sento em uma das cadeiras ali por perto com meu celular e começo a rolar pelos comentários do TattleCrime (onde não havia nada de interessante – é claro) e tento não soltar um longo suspiro de tédio. Price eleva os olhos. “O jornal de hoje está na mesa se quiser dar uma olhada,” ele diz.
Eu me levanto para pegá-lo, porque até a ladainha de sempre com aqueles comentários caóticos, malucos e hipócritas era preferível a procurar por comentários não existentes no TattleCrime e sentir que a ausência deles era o equivalente a um grande ‘vai se foder, Will!’. Conforme eu procuro pela cópia do jornal (já submergido por toda a bagunça na mesa de Price), uma pilha de papéis se sobressai ligeiramente e o brilho lustroso de fotografias chama a minha atenção. A do topo era uma de Alana, segurando uma taça de vinho e sorrindo para a câmera com a cabeça inclinada, e eu conseguia distinguir eu e Zeller no fundo vagamente. Quando elas haviam sido tiradas? Eu não acho que me recordava. A segunda era de Jack, com um sorriso amarelo no rosto, completamente esquisito, usando um chapéu torto do papai noel na cabeça (todavia era ligeiramente melhor do que aquele chapéu fedora horrível). Era natal, então. Quando eu fui para uma festa de natal com aqueles caras? Talvez no tempo da encefalite, quando eu não tinha nenhuma noção do que estava fazendo 90% do tempo. Isso, e o fato de que apenas um cérebro inflamado me faria passar pelo sofrimento de marcar presença em uma festa de escritório.
“Ei! Se importa se eu der uma olhada?” eu pergunto ao Price.
Ele eleva o olhar, distraído, para ver do que eu estava falando. “Ah, isso,” ele diz. “Sim, claro. Elas são bem antigas. O Zeller levou o conselho do Sanderson a sério demais e agora quer uma foto de perfil para o aplicativo de namoro online dele – ele achou que não faria mal parecer um pouco mais jovem.”
Eu solto uma risada (no entanto, era uma ótima jogada por parte de Zeller – namoros online era provavelmente o tipo de coisa socialmente benéfica que eu devia estar fazendo… mesmo que, de jeito nenhum isso fosse acontecer), e me sento novamente na cadeira para folhear as fotos. A foto seguinte era de Beverly, e eu sinto o meu coração se apertar dolorosamente. Ela parecia feliz, seu rosto brilhando por consequência das luzes, lindos cabelos negros caindo sobre seus ombros. Eu não reconheço as pessoas nas fotos seguintes: uma mulher loira usando batom rosa-choque; um homem jovem com dentes proeminentes e uma expressão esquisita (usando um suéter de natal medonho; uma rena com um pompom no nariz), o braço dele ao redor dos ombros de uma garota muito bonita com miçangas envolvendo as dreads dela. Técnicos de laboratório, provavelmente, ou estudantes de pós-graduação que já partiram para coisas melhores (...a não ser que você tenha os matado primeiro por serem rudes ou incompetentes. Espere – você os matou? Não, com certeza não). E lá estava o Jack novamente, sem o chapéu do papai noel agora, mas usando um ouropel azul enrolado de maneira desajeitada ao redor do pescoço dele como uma echarpe de penas. Todos pareciam estranhamente deslocados e distantes em comparação aos dias de hoje; como refugiados do passado.
Então, a foto seguinte faz o meu corpo se sobressaltar, porque era uma foto de você e eu. Acho que eu nunca tinha visto uma foto de nós dois juntos antes, além das que apareciam nas notícias, que eram uma variedade de combinações de mugshots. Nenhum de nós estava olhando para a câmera. Eu estava olhando para alguma coisa fora do enquadramento com um leve sorriso no rosto, e você estava olhando para mim. Nós estávamos sentados em uma mesa com vários artifícios de festa espalhados por ali: pratos de papel, garrafas vazias, uma câmera descartável, os restos de um lança confetes usado. (Cristo, aposto que você adorou). O meu cabelo caía por cima dos meus olhos, e pelos meus padrões (bem baixos) eu parecia bastante tranquilo – os dois primeiros botões da minha camisa abertos, e não havia aquela tensão ansiosa típica nos meus ombros. Você parecia completamente desapegado e distraído do que acontecia ao redor, seus longos dedos entrelaçados no seu joelho. Me abala o quão jovem eu parecia, mesmo que a foto não fosse tão antiga assim. Os últimos anos me enfraqueceram e me envelheceram, obviamente. Por que eu não conseguia me lembrar daquilo?
“Will!” diz Price. Ele estava bem ao meu lado, e eu percebo que não fazia ideia de quanto tempo ele já estava ali, tentando e falhando em chamar a minha atenção. Ele estica o pescoço para ver o que eu estava olhando, e faz uma careta quando percebe. “Merda, me desculpe,” ele diz, “ Eu esqueci completamente que isso estava aí.”
“Não, tudo bem,” eu digo, fazendo uma falsa menção de embaralhar as fotos, e quando ele se vira eu pego a nossa foto e a enfio no bolso.
“Jack acabou de me mandar mensagem,” diz Price, “ele está a caminho. Disse que é para você esperar aqui.”
Eu verifico o meu celular, e claro, lá estavam duas chamadas perdidas de Jack. “Will!” ele exclama quando finalmente chega. “Onde diabos você esteve?” Aquilo era tão típico – como se eu não estivesse sentado aqui há meia hora esperando por ele.
“Eu estive bem aqui,” eu digo irritado. “Eu fui ao seu escritório primeiro – o seu escritório vazio – e não fazia ideia de onde você tinha ido.”
“Você devia ter esperado.”
“Você devia ter me dito por quanto tempo eu esperaria.”
Price nos observava de forma alternada, como se aquilo fosse uma partida de tênis.
“Corta essa,” diz Jack, dando um passo na minha direção. Ele faz um gesto com o dedo, o levantando como se fosse uma arma carregada. “Isso é sério, e eu não estou com tempo para você e esse seu comportamento.”
Eu levanto uma sobrancelha (um gesto sardônico, eu vim a notar, que herdei totalmente de você) e estico as pernas de forma insolente na frente dele, me recusando a quebrar o contato visual. Jack respira, tentando nitidamente manter a calma. O rosto dele cheio de preocupação, e de repente eu sinto a primeira faísca de apreensão.
“Okay,” diz Jack, “Me desculpe. Vamos recomeçar. Olhe, Will… algo aconteceu, e eu preciso que você mantenha a calma.”
A faísca se transforma em uma chama, uma chama de emoção reluzindo e percorrendo o meu corpo, e eu imediatamente penso em você. Ah, Deus, ele vai me dizer que eles pegaram você. Ou pior, que eles te encontraram, eles encontraram o seu corpo, lindo, imprudente e sem vida. Versões distintas de mim aparecem na minha mente simultaneamente: eu me aproximando da sua cela (andando na sua direção com uma confiança fingida que eu não tinha de verdade); eu no seu funeral (formalmente vestido em um terno emprestado, com uma angústia indiferente, mas gritando internamente). É tão real que por um momento eu consigo sentir o cheiro de desinfetante da prisão; consigo ver os lírios definhando no topo do seu caixão.
“Nós recebemos um pacote esta manhã,” Jack diz. Eu o encaro, observando os lábios dele se abrirem e se fecharem. Pacote?
“Foi enviado há dois dias atrás, da região de Baltimore,” Jack continua, “E nele continha essa carta.” Ele estica um saco de evidências com fecho hermético contendo algo dentro. “Também havia um envelope aberto. Havia um distintivo no envelope.” Cristo, ele estava enrolando demais. ‘O que, porra?’ eu queria gritar.
“Nós identificamos o distintivo 20 minutos atrás, e não há dúvidas de que ele pertence a um dos policiais que foi atacado quando Matthew Brown escapou da custódia. Will, é dele. É do Brown.”
O meu estômago se revira, mas o meu rosto não se altera, e eu pego o saco de evidências sem dizer nada. Jack me entrega, ele hesita e afaga o meu ombro. A carta fora escrita em papel A4, cada letra cuidadosamente carimbada em letra maiúscula em tinta vermelha, e eu leio e releio a mensagem, e a terrível implicação envolvida em cada letra destacada: “DIGA A WILL GRAHAM QUE EU O VEREI MUITO EM BREVE."
Chapter 10
Notes:
(See the end of the chapter for notes.)
Chapter Text
Um longo silêncio se instala, e de repente eu me torno absurdamente consciente de todos os pequenos e insignificantes sons em volta: o apitar dos celulares na sala ao lado, o zunido da impressora; as vozes alegres dos técnicos do laboratório no corredor. Era uma trilha sonora tão estranha: devia haver sirenes e gritos, e você me dizendo que o jogo estava em andamento, com aquele sorrisinho de expectativa no seu rosto. Eu rangia os dentes tão forte que parecia que a minha mandíbula estava prestes a travar.
“Eu sei,” diz Jack, empático. O que exatamente ele ‘sabia’ ele prefere não elaborar.
“Na verdade, não,” eu rebato, “Você não sabe.” eu me levanto da cadeira de forma abrupta e começo a caminhar pelo escritório. Mesmo em meio àquela descarga delirante de adrenalina, medo, choque, e raiva eu ainda estava ciente da sensação de alívio no fundo do meu cérebro: do fato de que aquilo não tinha absolutamente nada a ver com você.
Jack faz mais uma tentativa. “Bem, o que nós não sabemos a esse ponto é se a intenção era ser agressivo. Ele nunca tentou te machucar antes – muito pelo contrário, na verdade.”
“Ah, então tudo bem. Pelo jeito como você fala, por que eu ainda estou me preocupando, afinal?”
“Ele é um babaca arrogante,” diz Jack. Ele olha para a carta com repulsa. “Ele acha que é ele quem está no controle.”
“Para ser justo,” eu digo, “considerando a minha perspectiva, eu preciso concordar com ele.”
Jack, de forma não surpreendente, opta por me ignorar. “Ele estar agindo dessa forma é vantajoso para nós,” ele diz, “isso demonstra que ele está ficando convencido. E se ele está ficando convencido isso quer dizer que ele vai cometer um erro, e quando isso acontecer nós o pegamos.”
“Pelo amor de Deus, Jack,” eu exclamo, “por favor, me diga que você tem algum outro plano que vai além de ‘esperarmos ele cometer um erro.’” Eu pego o saco de evidências com a carta, e bato com ele contra a mesa: eu sabia que estava agindo de forma histérica, mas eu não consigo me impedir. “Esse carimbo postal é local. Ele ainda está na região!”
“Está tudo bem, Will,” Jack diz com suavidade, “eu compreendo que isso seja preocupante para você…”
“Compreende?”
“É claro que sim. Mas nós estamos com você. Eu estou com você. Eu não vou deixar nada acontecer com você.”
Eu solto uma risada insossa. “Me perdoe se eu não acho isso muito acolhedor.” Eu não esperava que Jack me deixasse impune dessa, mas ele só suspira pesadamente e me dá tapinhas no ombro novamente – eu exijo um grande nível de autocontrole para não ignorá-lo.
“Irei me certificar de que você consiga uma arma,” é tudo o que ele responde.
Eu respiro fundo, me esforçando para manter a minha paciência sob controle. “Okay,” eu respondo por fim. E acrescento: “Obrigado.” Eu sabia que não estava sendo completamente justo, descontando mais em Jack do que ele realmente tinha culpa (mas, bem, de quem foi a porra da culpa por eu ter conhecido Matthew Brown em primeiro lugar – exceto por você, e você obviamente não está aqui para receber o tratamento apropriado também).
Alguém bate na porta e Sanderson entra com Andrews logo atrás. Maravilha. “Trouxe os resultados de datiloscopia…” ele diz (é claro que ele não podia só dizer ‘impressões digitais”, imbecil de merda). Ele olha para mim, Price e Jack, cujas expressões eram uma variação de ‘a merda realmente foi jogada no ventilador’ e a frase dele se dispersa. “O que está acontecendo aqui, gente?” ele pergunta.
Price o atualiza das informações enquanto Jack e eu encaramos pontos aleatórios da sala (ele a janela, e eu o teto) e quando ele acaba, eu conseguia notar que Sanderson estava sufocando um sorriso. “Ah, cara,” ele diz “Cara, você está tão ferrado.”
“Já chega,” rebate Jack. “Sanderson, se eu ouvir você falando assim mais uma vez com um colega e agente, você vai ter que procurar por um novo emprego.” Sanderson abre a boca para protestar, mas a fecha logo em seguida novamente. “Will…” ele hesita, já que ele não sabia o que me dizer de verdade. “Sente-se e relaxe.”
“Senhor,” interrompe Andrews, “Perdão por interromper, mas eu vim para dizer que a Sra. Purnell chamou. Ela está esperando no seu escritório.” Jack revira os olhos de forma quase imperceptível. “Okay, certo,” ele diz. “Will!” ele afaga o meu ombro novamente e se encaminha até a porta. Pelo tom dele é impossível dizer se ele queria dizer ‘Will! Acabamos por aqui – dê o fora!” ou “Will! Sente-se e fique aí se corroendo até eu voltar!” No fim eu prefiro seguir a segunda opção, e me sento na cadeira, amotinado. Sanderson e Andrews se isolam em um canto conforme Jack saía, e começam a discutir baixo, com cautela. Uma vez ou outra eles lançam olhares para mim, e em algum ponto eu ouço um ‘esquisito’ vindo de Sanderson.
Os meus ombros se tensionam de imediato. “Que tal vir aqui e falar isso na minha cara,” eu digo abruptamente.
“Que tal você se acalmar e se comportar de forma mais profissional?” responde Sanderson com uma voz terrível cheia de presunção.
“Que tal eu enfiar os resultados das suas impressões digitais – ah, perdão, de datiloscopia – no seu rabo?” Dois técnicos de laboratório passando lentamente à espreita olham para mim com curiosidade pela porta.
“Não há nada de errado em usar a terminologia correta,” diz Sanderson de forma pomposa. Ele praticamente infla o peito. “É importante ser preciso com essas coisas, agente Graham: sem precisão, as pessoas se atrapalham. Precisão e exatidão devem ser o coração de tudo o que fazemos.”
Se ele vier com aquele papo sobre ‘Fidelidade, Bravura e Integridade’¹ comigo, eu penso, que Deus me ajude a não fazer algo com a porra da datiloscopia dele que envergonharia a memória de William Herschel².
“Como diz o lema…” prossegue Sanderson.
“Certo, tudo bem, me poupe, J Edgar³,” eu respondo (porque, pensando bem… ugh, não).
“Você não sabe o que ele ia dizer,” diz Andrews do canto. Todos se viram para olhar para ele e ele fica em silêncio novamente.
“Eu tenho um forte palpite,” eu respondo, sarcasticamente.
“Tem uma certa palavra de cinco letras que você devia manter em mente,” diz Sanderson, elaborando a questão com entusiasmo, “Suspeitar não é a mesma coisa que…”
“”Merda?’” eu digo.
“‘Mijar?’” sugere Price.
Sanderson fazia menção de falar, furioso.
“Não, é brincadeira,” eu digo. “...Eu quis dizer ‘foder’.”
“A palavra é saber,” diz Sanderson, que agora estava profundamente ruborizado. “Suspeitar não é a mesma coisa que saber.”
“Bem, quem diria?” diz Price.
“Quem diria,” eu concordo, “Eu devo ter ficado doente nessa aula da academia.”
“E você é professor,” acrescenta Price com remorso fingido, “Não é verdade?”
“Vai se ferrar, Graham,” rebate Sanderson, “você se acha tão esperto.”
“Eu não acho,” eu respondo, “Eu sei. Então faça-nos um favor e suma da porra da minha frente.”
Em seguida, Jack volta, e todos ficam em silêncio de imediato, olhando para o chão do jeito que adolescentes ficam ao serem repreendidos pelo diretor. Ele semicerra os olhos e olha para cada um de nós. “O que está havendo aqui?” ele diz.
“Nada,” responde Sanderson, “Senhor.”
Como tolerância ao Sanderson por não ter dito: ‘Graham ameaçou enfiar as minhas impressões digitais no meu rabo, senhor,’ eu concordo que nada, de fato, aconteceu.
“Bem, certifiquem-se de que continue assim,” diz Jack, que claramente não se convenceu, mas estava disposto a levar aquilo na esportiva (pelo menos até que ele provasse o contrário). “Will, como você está?”
Eu respiro fundo, me forçando a relaxar. “Bem,” eu digo, “Estou bem.”
“Ótimo,” Jack responde. “Eu sei que isso parece terrível, mas nós temos tudo sob controle.”
“Meu rabo,” eu murmuro baixo.
“O que disse?”
“Nada.”
“Eu não estou com o meu carro,” eu digo. “Está na oficina, a luz de freio quebrou.” De certa forma, aquela pequena e patética inconveniência possuía uma grande significância, e de repente eu sinto uma vontade absurda de chorar: como se uma luz de freio quebrada correspondesse à toda a minha vulnerabilidade. Me acalmar foi um erro – eu era melhor com raiva.
“Não tem problema, Will, irei mandar alguém te dar carona.”
A intenção era boa, mas a ideia de ser levado para casa por um agente junior apreensivo – como uma espécie de aposentado indefeso – parecia intolerável. Na minha mente, eu me vejo sentado no banco traseiro de uma viatura descaracterizada, falhando em responder perguntas de conversa mole, conforme eu era levado de volta ao meu terrível bairro, e eu balanço a cabeça antes mesmo de ele terminar de falar. “Não, tudo bem,” eu digo, “Obrigado Jack, mas eu vou pegar um táxi.” (Eu claramente não ia pegar um táxi – isso me custaria uma fortuna – mas Jack, com seu enorme salário gerencial, obviamente é convencido).
“Tem certeza?”
“Claro, tem vários que passam por aqui.” eu podia pegar um trem para voltar, assim como eu vim. Eu faria o meu próprio trajeto. Se eu conseguisse voltar para casa sozinho isso significaria que eu ainda estava no controle – e isso era importante, porque eu sei que para sobreviver a qualquer coisa que me acontecesse, eu precisaria de todo resquício de controle possível.
“Tudo bem,” diz Jack. Ele assente aprovando – eu podia notar que ele gostava que eu estivesse conservando a minha independência (quando ele não gostava, a independência se tornava apenas ‘teimosia obstinada’; ou, se fosse o caso e eu o irritasse seria: “Will, seu merdinha irresponsável, oriente-se”).
Dessa vez ele apenas diz: “Se você esperar um pouco eu vou pegar a papelada para você assinar e pegar a sua arma. Você pode vir buscá-la em 48 horas.” Eu assinto e o agradeço, mas a versão dele de ‘esperar um pouco’ se prolonga em 20, 30 minutos, até que eventualmente eu me canso da atmosfera tensa do escritório. Os olhares constantes de Price preenchidos por uma simpatia estranha, e a presença enervante de Sanderson (que provavelmente estava pensando na maneira mais efetiva de conseguir ajudar Matthew Brown). No fim eu decido que precisava pegar um ar e me encaminho para o lado de fora para respirar. Algumas pessoas de passagem me lançam olhares curiosos, e eu sinto vontade de gritar e mandar elas se foderem. Os rostos delas eram um grande borrão trêmulo – qualquer um deles podia ser Matthew Brown. Ah, merda, ah, merda. Não tenha um ataque de pânico, eu penso, não ouse fazer isso. Cristo, não aqui.
“Will!” alguém chama, “Will Graham!” e eu me viro em meus calcanhares como se eu tivesse sido baleado. Se eu tivesse uma arma eu já teria a pegado. Eu não conseguia ver ninguém, eu estava alucinando? Ah, por favor, isso não.
Deus, não, era o Michael – o que diabos ele estava fazendo ali? “Espero que você não esteja me seguindo,” eu digo. Não era a minha intenção, mas eu estava tão aflito que a frase sai de maneira mais hostil do que o pretendido. De forma não surpreendente, ele parece um pouco afetado. Eu também percebo o quão arrogante aquilo me fazia soar – como se eu considerasse eu e a minha vida de merda muito mais fascinantes do que um médico de alto nível não tendo nada melhor para fazer do que ficar rondando a cidade atrás de mim para saber das últimas novidades.
Há um silêncio desconfortável. “Olhe, me desculpe,” eu falo de maneira lânguida. “Acredite ou não, era para ser uma piada.”
“Bem, okay,” ele responde lentamente. Ele não parecia convencido.
“Sério,” eu digo, “tente não considerar. Hoje foi…” eu gesticulo com a mão tentando pensar em um adjetivo adequado que poderia transmitir o declínio monumental daquele dia, mas aquilo estava além da minha compreensão
Michael franze uma sobrancelha. “Tão ruim assim?”
“Pior.”
“Está tudo bem? Will? O que aconteceu?”
“Bem…” eu digo. Eu penso nas variações: 1) ‘um assassino foragido escreveu para o FBI anunciando a intenção dele de me localizar’ e 2) ‘eu tenho um fã obcecado que matou pessoas para me impressionar e agora ele quer me ver’ e 3) ‘para ser honesto com você Michael, eu suspeito que a partir de hoje eu estou oficialmente fodido’ e no fim só opto por dizer “é uma longa história.”
“Tem algo que eu possa fazer?”
“Provavelmente não.” Não há muito que alguém possa fazer, há? Nem o Jack e nem a porra do FBI. É claro que provavelmente há algo que você poderia fazer, mas você não está aqui, não é (seu desgraçado).
“Talvez uma bebida?” Michael diz. “Eu conheço um bom lugar não muito longe daqui. Você não precisa me contar sobre o que tem acontecido se não quiser, mas parece que você realmente precisa de algo para relaxar.”
“Eu não estou com o meu carro,” eu respondo de forma tola.
“Se esse é o seu único motivo, então eu posso te garantir que não há problema algum. Eu levo a gente no meu carro, e depois levo você para qualquer lugar que quiser depois.”
Eu hesito novamente. Suponho que aquela não era uma má ideia. Não era como se a outra alternativa – ficar no meu apartamento a noite toda pensando nas várias formas de como Matthew Brown poderia invadi-lo – fosse particularmente benévola.
“Okay,” eu digo. Eu percorro a mão pelo cabelo. A minha franja cai por cima da minha testa, os fios se embaraçam nos meus cílios e eu a sopro para longe. Eu sinto que estava ficando um pouco maluco. “Merda, perdão.” Eu digo a ele, quando eu sinto que ele estava me encarando, “tem sido um dia bastante difícil.” E aquele era só o primeiro dia, eu penso com desespero. Sendo realista, eu provavelmente só iria de mal à pior dali em diante.
Eu mando uma mensagem para Jack dizendo que eu passaria lá amanhã para resolver a questão dos formulários, e sigo Michael de forma plácida até o conversível ridiculamente caro dele: acabamento de cromo polido e tintura vermelha reluzente. Eu quase sinto como se devesse pedir um saco de lixo para sentar antes de tocar o banco com as minhas roupas horríveis. “Venha logo, Will,” ele diz de forma alegre e eu mordo a língua para não respondê-lo de forma rude. Acalme-se, eu digo para mim mesmo, relaxe, ele só está tentando ajudar.
Eu obedientemente estico a mão em direção à maçaneta, mas logo fico completamente paralisado – foi apenas um vislumbre de soslaio, mas por um momento eu podia jurar que havia visto aquela figura alta daquela noite. Eu viro a cabeça, quase tão rápido quanto o estalar de um chicote: e claro, não havia nada ali.
Você está sendo paranoico, eu penso. E outro pensamento que logo se sucede (não ajudando): Mas só porque você está sendo paranoico não significa que eles não estão atrás de você.
“Will?” chama Michael. Parecia que ele estava se esforçando de maneira heroica para manter a paciência.
“Eu pensei… ter visto alguém,” eu digo. “Ali.” eu aponto para a escada a alguns metros de distância do carro; Deus, eu parecia um maluco.
Ele (de forma meio exagerada) se vira para os lados para dar uma olhada. “Não,” ele diz, “parece tudo limpo para mim.”
“Olhe, por favor, não me trate como um idiota,” eu digo (com bastante educação, levando tudo em conta), “Estou ciente do meu tom mas eu tenho certeza de que vi alguém.” Isso não era inteiramente verdade – eu não tinha tanta certeza – mas o comportamento dele estava me irritando. Todavia acho que não era totalmente culpa dele, ele não estava muito ciente de toda a bomba de merda recente sobre o Matthew Brown (e ele não sabe de você também).
“Mas, Will,” ele diz, “como pode ser possível? se alguém se moveu tão rápido assim nós teríamos ouvido.”
“Não necessariamente…” eu respondo, mas fico em silêncio logo em seguida. Talvez ele estivesse certo. Ou não? Caralho.
“Bem, se realmente foi o caso,” diz Michael, “Então esse é mais um motivo para nós partirmos.” Eu não consigo argumentar contra isso, então ele ee encaminha para a porta do banco do passageiro e praticamente me enfia ali. Eu não digo nada conforme ele dá partida, só descanso a cabeça no assento e observo a paisagem pela janela de maneira indiferente. Por favor, volte, eu penso. Eu repito isso de novo e de novo como se fosse um mantra, uma regra de fé; como se ao dizer isso vezes o suficiente fosse tornar isso realidade. Pensamento supersticioso. Por favor, volte, por favor, volte, eu penso. Por favor, por favor. Eu preciso de você.
Notes:
1 - Fidelidade, Bravura e Integridade – ou, Fidelity, Bravery, Integrity – é o lema oficial do FBI.
2 - William James Herschel é reconhecido como um pioneiro britânico no uso e aplicação prática das impressões digitais em prol da identificação e segurança.
3 - Jonh Edgar Hoover foi um policial estadunidense que durante 38 anos ocupou o cargo de 1° diretor do FBI.
Chapter 11
Notes:
(See the end of the chapter for notes.)
Chapter Text
Michael nos leva (em um silêncio muito desconfortável) para um daqueles bares elegantes e suntuosos que ele gostava. Estava bem tarde agora, mas eu fico aliviado ao ver que o lugar estava quase vazio: a ideia de me saturar por consequência daqueles festeiros de elite era bastante insuportável. Assim que nós nos sentamos, o meu celular toca. “Perdão,” eu digo – as primeiras palavras que eu pronuncio desde que entrei no carro – “Eu realmente preciso atender.” Eu esperava ver o nome de Jack, mas sinto o meu estômago se revirar quando eu vejo o identificador de chamadas: ‘Número oculto.’ Eu imediatamente me lembro daquela ligação no meio da noite; eu tinha certeza de que era você. Eu ainda tenho – mais ou menos. Sem dizer mais nada ao Michael eu me levanto e praticamente corro até a porta antes de apertar ‘aceitar’.
“A-lô,” eu digo com cautela. Silêncio.
“Olha,” eu acrescento com ansiedade, “Eu sei que é você. Por que você não fala comigo?” eu não espero que quem quer que estivesse do outro lado da linha (você?) caia em algo tão óbvio, e é claro que eu não obtenho resposta.
“Por que você não respondeu a minha mensagem?” eu pergunto. “Por que sequer se dar o trabalho de me contatar?” Melhor – mas ainda nada.
“Por favor, diga alguma coisa.” eu tento suplicar. A tensão do dia era palpável na minha voz, e por apenas um segundo eu penso ter ouvido alguém inspirando pelo receptor. Eu queria tanto dizer o seu nome, mas eu sabia que não podia – lá no fundo, apesar do desejo ardente de acreditar, eu ainda não tinha certeza o suficiente para fazer isso – e se não fosse você, então as consequências seriam terríveis. Deus, podia até ser o Matthew Brown. Eu sinto uma sensação nauseante ao pensar nisso – mas não, não podia ser, a primeira ligação foi de quando ele ainda estava na prisão. Eu olho para o meu relógio. Mais um minuto e eu desligo.
O que você ainda estava fazendo ali? Você devia estar escondido, se mantendo fora de vista; certamente nem mesmo você acharia fácil se misturar de forma tão contínua no mundo real pela segunda vez? (E mesmo ao pensar nisso, eu sabia que se houvesse alguém capaz de cumprir essa tarefa aparentemente impossível, esse alguém com certeza seria você). O seu rosto é tão distinto – talvez você tenha mudado a sua aparência, talvez tenha feito cirurgia plástica? Talvez você tenha cúmplices que estejam te ajudando. Chiyoh talvez, ou outros, que eu nem mesmo conheço. Só Deus sabe como você consegue inspirar esse tipo de lealdade. Eu, de todas as pessoas, deveria ser capaz de responder a essa pergunta, mas eu sei que não posso, não de verdade. Eu só sinto, sem entender o porquê. Talvez as pessoas que se aproximam de você aprendem a parar de fazer perguntas assim.
Agora já faz três minutos desde o prazo inicial que eu estabeleci. Através dos painéis de vidro eu consigo ver Michael vindo na minha direção. Ele estava preocupado, ele queria ver como eu estava (ele também estava sendo controlador e inquisitivo, mas acho que a intenção era boa). “Olha, eu preciso ir,” eu digo para o silêncio, e em seguida eu acrescento, como um pensamento alto (afinal, foda-se, por que não?), “Eu sinto a sua falta.” E desligo.
*****
“Então,” diz Michael quando nós nos sentamos novamente, “gostaria de me contar sobre o que tem acontecido?”
As palavras em si são dóceis o suficiente, mas algo no tom dele me incomoda: me lembrava do meu diretor do ensino fundamental apontando acusadoramente para uma janela quebrada, exigindo explicações. “Creio que aquela seja a sua bola de futebol, não é, William? Gostaria de me contar o que aconteceu?”
“Não muito,” eu respondo.
“Talvez eu possa ajudar.”
Eu deixo uma risada escapar, e até para os meus próprios ouvidos eu soava um pouco histérico. Cristo, eu penso, se recomponha, porra. “Não, Michael, não há absolutamente nada que você possa fazer.” eu paro. Ah, que se dane, eu vou contar a ele – não havia motivo real para não contar, por mais que fizesse diferença. “Acontece que Matthew Brown anunciou sua intenção de me procurar,” eu digo, “e além de Jack Crawford esperando que ele faça isso enquanto eu estou na agência – sob perspectiva investigativa de que ele é um ‘babaca arrogante’ – então não parece haver nada que alguém possa fazer para pará-lo.”
“Ah,” diz Michael, e ele soa tão aflito que eu sinto vontade de rir novamente. “Ah, Will, isso é terrível. Eu sinto muito.”
“Obrigado,” eu digo. Eu esboço um pequeno sorriso mórbido para ele e tomo um gole da minha cerveja.
“Eles não estão fazendo nada para proteger você?”
Eu me sinto um pouco culpado ao ouvir isso. “Na verdade, estão. Eu vou conseguir uma arma nova, e Jack colocou uma equipe de seguranças no meu prédio.”
“Mas alguém tem encalçado você?”
Eu sorrio levemente quando ele usa a palavra ‘encalçado.’ Soava tão exótico e antiquado, como algo que aqueles agentes sofisticados diriam naqueles filmes dos anos 50 – sendo encalçados em filmes noir, com seus sobretudos e ternos elegantes, em todo seu vigor. “Não,” eu respondo, “isso custaria muito.” Não que eu fosse aceitar isso se tivessem me oferecido. Por mais que fosse terrível de se admitir, eu sei que a minha relutância provém da esperança ridícula de que você vai aparecer; e eu não queria estar cercado por agentes do FBI se você o fizesse.
“Eu não acho que custos seja desculpa o suficiente,” diz Michael formalmente, “não em uma situação assim. Deveria haver pessoas seguindo você. O seu chefe não se importa com o bem-estar do pessoal dele?”
“Ele se importa,” eu respondo, um pouco na defensiva (porque por mais que eu gostasse de reclamar de Jack até a minha morte, eu fico ligeiramente ressentido que Michael faça o mesmo). “Ele sempre está dizendo que nós precisamos trabalhar juntos e cuidarmos uns dos outros. Sabe; ‘cabeças unidas acham a saída’ – os técnicos do laboratório o chamam de “Union Jack.”¹ Michael levanta a sobrancelha, com uma expressão desconcertada. Ah, é, ele é inglês, não é? Ah, Deus, talvez ele ache que eu estou sendo racista.
Um silêncio ligeiramente estranho se instala, então Michael me dá tapinhas gentis no braço como se eu fosse um parente idoso, decrépito e confuso (o que provavelmente era apropriado, porque eu estava começando a me sentir exatamente assim). “Bem,” ele diz, “Entendo o que você quer dizer quando diz que não há nada que eu possa fazer – e infelizmente, estou propenso a concordar com você – mas se qualquer coisa acontecer; bem, você sabe onde eu estou. Se quiser algum lugar para ficar, por exemplo…” ele não termina a frase, mas deixa a sugestão ali, me lançando um olhar penetrante.
“Obrigado, mas isso não será necessário,” eu respondo rapidamente (porque sério – de jeito nenhum). “É muito gentil da sua parte, mas eu estou a salvo no meu apartamento com os agentes lá.” Enquanto eu profiro esta resposta, eu me pergunto o quão verdade aquilo era. Não era como se o prédio fosse um lugar contido: cerca de 30 outros inquilinos moravam lá, e haviam pessoas indo e vindo o tempo todo. Qualquer um deles podia ser Matthew Brown, disfarçado em um uniforme da FedEx ou como encanador, e ninguém saberia até Price e Zeller aparecerem para tipificar o meu cadáver mutilado (sem dúvidas com o próprio Matthew Brown ainda encima dele, tirando uma selfie para se masturbar depois).
“Bem, pense nisso,” Michael diz, autoritário, e eu digo a ele que iria (eu não iria). Apesar disso, realmente era gentil da parte dele – embora um pouco ingênuo – porque a realidade era que me ter na casa dele significava Matthew Brown chegando de chofre para completar o trio. Ou até você, para fazer o quarteto mais esquisito do mundo. Na verdade, isso não é muito verdade – você e Michael provavelmente se dariam tão bem quanto uma casa pegando fogo. Vocês poderiam ter longas e pomposas conversas sobre ópera e degustação de vinhos enquanto Matthew Brown e eu nos embebedamos com cerveja barata e lutamos como filhotes de urso no sofá para ver quem torce para o melhor time de baseball. Ah, Deus, eu penso, cale a boca. Eu vou perder a minha cabeça, eu devo estar perdendo, eu sinto como se o meu cérebro estivesse pegando fogo (de novo).
Eu peço mais uma bebida, mas troco para coca depois disso porque eu já estava a beira de um colapso e não podia mais me deixar o luxo de reduzir os meus reflexos. “Você não devia beber isso, Will,” diz Michael: ele coloca a palma da mão por cima do meu copo. “Cafeína só vai te deixar mais ansioso.”
“É?” eu pergunto, “E espinafre te deixa mais forte, e, e…” Hmm, quais outras regras de inferência eu conheço? Merda, eu queria não ter começado isso. “...E Kriss Kross vai fazer você ‘pular,’²” Eu acrescento, “E eu não me importo mais a esse ponto.” Eu honestamente não fazia ideia do que estava falando: parte de mim observava aquela conversa apavorado, balançando as mãos e gritando ‘não, não, cale a boca seu idiota de merda! E em adendo – atualize as suas referências de cultura pop, você parece um velho melancólico.’ Refletindo, eu decido levar este conselho em conta. “Por favor, não me diga o que fazer,” eu respondo. O meu tom soava incrivelmente suntuoso, e eu secretamente me sinto um pouco satisfeito comigo mesmo por conseguir me fazer soar assim.
Michael suspira. “Eu só estou tentando ajudar, Will,” ele diz. Ah, Deus, agora eu me sentia um idiota (um idiota suntuoso… Cristo). Ele sempre tem a habilidade infalível de fazer eu duvidar das minhas próprias reações. Eu abaixo os meus olhos e olho para o volume do meu celular no bolso da jaqueta, torcendo desesperadamente para que ele tocasse.
“Se não se importa de eu perguntar,” Michael continua, como se os últimos minutos nem tivessem acontecido (o que, levando tudo em conta, era melhor), “como você conheceu esse tal de Matthew Brown afinal?”
Eu elevo os olhos e olho para ele, pensativo. Ah, qual é, eu penso, sem chance. Sem chance de você não saber disso. Como ele podia ter um índice mental inteiro de todos os artigos que eu já publiquei (incluindo aquele sobre larvas esqueletizadas, o qual eu tentei esquecer) e não saber disso? Aquilo era para ser uma espécie de teste para ver o quão honesto eu estava disposto a ser com ele sob pressão? Ou ele simplesmente queria me dar a oportunidade de contar a minha versão da história? Ou ele genuinamente não sabia? (Mas como ele não podia saber?). Parecia ser uma pergunta insidiosa de certa forma… ou eu só estava sendo sensível e desconfiado demais? Ele tosse educadamente, e eu percebo que estava em silêncio há algum tempo.
“Bem…” eu digo. “Bem.” Eu sinto uma sensação repentina de exaustão, e no fim decido desviar do assunto, simplesmente optando por dizer: “É uma longa história.”
“Não tenho pressa alguma,” ele diz.
“Eu sinto muito,” eu respondo de forma brusca (eu não sentia), “Mas…”
“...Mas você não quer falar sobre isso.” Ele suspira. “Sabe, você diz isso o tempo todo, Will. Você diz isso bastante. Eu realmente gostaria que você confiasse mais em mim.”
“Eu tenho problemas de confiança,” eu digo. Eu queria me passar por leve e casual, mas não acerto a mira: eu só parecia dramático e resignado (e incrivelmente paranoico também: memórias do culto apocalíptico me aparecem de repente… talvez eu devesse recrutá-lo como o primeiro membro).
“Sim, você realmente parece ter,” ele responde, e de repente eu me sinto irritado novamente. Ele acha que eu devia uma explicação a ele?
“Não sem bons motivos,” eu respondo, na defensiva.
“Tenho certeza de que os seus motivos são ótimos, Will. Eu só queria que você pudesse confiar eles a mim.”
Cristo, então nós voltamos àquilo novamente: se aquela conversa andasse ainda mais em círculos ela chegaria ao ponto de parecer a porra da logo das olimpíadas. “Olhe…” eu digo – mas paro, porque percebo tardiamente que eu não fazia ideia do que eu queria dizer a ele.
Michael me olha com expectativa, e eu me pergunto brevemente o que ele faria se eu só fosse direto e dissesse ‘Olha… por que você só não me esquece?’ Eu não digo, é claro. Ao invés, eu só me movo de maneira desconfortável no meu assento: eu provavelmente parecia estar com gases. Ah, Deus, por que eu só não fui direto para casa quando tive a oportunidade? Até passar a noite toda me preparando para o iminente apocalipse de Matthew Brown não podia ter sido pior do que essa interrogação polidamente controlada. Na verdade, se Matthew Brown aparecesse agora eu ficaria feliz em vê-lo. “Vamos lá, seu merdinha,’ eu penso, ‘você tentou me tirar do Hospital de Baltimore, o mínimo que você pode fazer é me tirar dessa.”
“Você parece perdido em pensamentos novamente,” diz Michael, e eu percebo que eu não fazia ideia de quanto tempo eu estava ali, encarando a mesa, me queixando na minha imaginação com Matthew Brown. Ele não estava errado, de qualquer forma – eu fico tão perdido nos meus pensamentos que às vezes é uma batalha me fazer sair de transe novamente. Eu precisava de um novelo de lã, assim como o mito de Teseu e o Minotauro: mas a diferença é que, de forma inevitável, ele sempre me guiaria até você.
“Estou bem,” eu respondo, o que era uma mentira tão grande, tão colossal, que Michael só levanta as sobrancelhas. Que se foda – vou me esconder por trás da Quinta Emenda. “Eu vou ao bar,” eu digo, ligeiramente desesperado, “você quer alguma coisa?”
Ele franze o cenho, sem dúvidas irritado com aquela nítida estratégia evasiva. “Obrigado,” ele responde, “vou querer outro copo de Mourvedre.”
“Sem problemas,” eu respondo e me levanto tão rápido que eu quase tropeço na mesa vizinha e quebro a porra do pescoço. O bartender era tão elegante e requintado quanto um manequim de vitrine, e eu não consigo afastar a sensação de que ele estava julgando as minhas roupas amassadas e a minha expressão de maníaco, se perguntando como diabos um miserável como eu conseguiu passar pelo segurança e entrar naquele local impecável. Eu já me esqueci do nome do vinho que Michael me pediu, mas eu não voltaria de jeito nenhum para perguntar, então eu acabo suportando bons minutos exaustivos gesticulando para o bartender, dizendo ‘começa com ‘M’!” de forma cada vez mais ansiosa, enquanto ele limpava o mesmo copo com um paninho branco dizendo: “Merlot? Malbec? Montepulciano?”. A minha energia se esgota bem antes da dele, e no fim das contas eu só peço um Zinfandel, afinal – quem se importa?
“Ah, o senhor se referia ao Mourvedre?” diz o barman triunfantemente conforme ele me entregava o troco, então eu despejo um único centavo no pote de gorjetas com toda a minha glória.
Michael pega sua bebida agradecido quando eu volto – para ser honesto eu esperava que ele exagerasse, como se eu tivesse o dado o santo graal ao invés de uma taça do vinho errado – mas se o gosto é completamente o oposto do que ele esperava, ele é educado demais para não mencionar. Ao invés, ele segue toda a conduta de um especialista de vinhos: rodeando a taça, cheirando-o, e finalmente o bebericando graciosamente, estalando os lábios (como um chimpanzé, eu penso perversamente – e logo me sinto culpado). Na verdade, de forma bastante peculiar, ele estava tomando uma bebida atrás da outra. Apesar de não estar bêbado, ele definitivamente estava muito próximo de estar, e eu penso que o meu escândalo com Matthew Brown deve ter o afligido mais que o pretendido.
“Você está bem?” eu pergunto eventualmente. Ele assente, mas não elabora. O silêncio começa a se prolongar, se tornando estranho, e eu pego uma das minhas garrafas vazias e me ocupo descascando o rótulo, tentando removê-lo sem rasgá-lo.
“Você fica muito atraente fazendo isso,” diz Michael de repente, e eu percebo com constrangimento que ele estava me observando o tempo todo. “Franzindo o cenho, com as bochechas coradas de concentração. Como aquela pintura de Cassatt da jovem mulher costurando no jardim.”
Eu sorrio vagarosamente – porque sério, o que diabos eu deveria responder àquilo? – e puxo mais um pedaço do rótulo, que logo se rasga. Porra. Eu afasto a garrafa e me pergunto como eu poderia me desvencilhar disso com educação.
“Sabe, Will,” ele me encara, sorrindo com uma intensidade de certa forma desconfortável, “você é um homem muito bonito.”
Ah, merda, cacete, lá vamos nós. “Olha, Michael…” eu digo.
“Não, pare,” ele me interrompe, tocando o meu lábio inferior com leveza. “Não me diga ‘não’. Você sempre diz ‘não’, não é? Eu poderia ser tão bom para você, Will. Há tantas coisas que eu posso te oferecer. Mostrar a você. Fazer por você. Eu cuidaria de você… faria você se sentir bem – apenas se dê a oportunidade de descobrir.” ele desvia a mão da minha boca para tocar os cachos na minha nuca, e eu instintivamente afasto a cabeça. O rosto dele se fecha de imediato.
“Me desculpe,” eu digo, “olha, não é você,” (ah, Deus, isso é terrível – e para ser honesto, era ele sim). Eu tento novamente. “Michael, eu acho você ótimo e eu realmente gostei de conhecer você, mas isso, isso só… me desculpe, mas eu não posso. Não vai funcionar.”
“Está tudo perfeitamente bem,” ele responde, mas a voz dele era tensa e rígida. Merda.
“Eu sinto muito,” eu digo novamente, como se repetir fosse fazer alguma diferença.
Ele suspira. “Você parece cansado,” é tudo o que ele responde. “Talvez essa seja a hora adequada para encerrar a noite. Vamos, eu te levo para casa.”
Nós caminhamos pelo estacionamento vazio em silêncio. Ele vai ficar bem, eu penso comigo mesmo, ele vai conseguir outra pessoa logo logo, enquanto eu vou voltar a uma vida solitária, bebendo, zombando do TattleCrime, e me masturbando por um serial killer. Eu não tinha ideia se aquilo era verdade ou não – e ele certamente não parecia ‘bem’ – mas eu sempre ruminei mais o meu próprio sofrimento do que o dos outros. Quando nós chegamos ao carro dele e eu fico parado ali, de maneira estranha; a ideia de prolongar aquilo até eu chegar em casa era insuportável. “Olha, é gentileza sua oferecer,” eu digo, “mas não precisa me levar. É completamente fora da sua rota – todos os lugares são longe da rota da minha casa, a não ser que você seja um traficante de crack ou se tiver interesse em comprar calotas roubadas.” Ah, Deus, cale a boca, eu penso comigo mesmo, você só está deixando tudo pior.
“Como você sabe que é fora da minha rota?” ele esboça um leve sorriso para mim. “Você não sabe onde eu moro.”
“Honestamente,” eu respondo, um pouco desesperado, “eu não me importo de pegar um táxi.” Se Jack caiu nessa, então com sorte ele também cairia.
Um silêncio se instala e ele me encara, e eu me preparo para dizer o inevitável ‘não, não, eu insisto’, mas no fim das contas ele só franze o cenho e assente. “Sabe de uma coisa, Will,” ele diz, “sei que você quer ir embora, então não irei te segurar por muito tempo. No entanto, tem um presentinho para você no carro” (tenho quase certeza de que o meu queixo deve ter caído de desânimo a esse ponto), “e eu gostaria de dá-lo a você antes de você ir. Não se preocupe, é só uma lembrança.”
Ele educadamente se curva ao meu redor para abrir a porta e abre o porta-luvas dele, e eu sabia que aquele sentimento de culpa que eu estava sentindo por não rejeitá-lo antes estava se tornando dez vezes pior pelo constrangimento terrível presente em tudo aquilo.
Ele pega o que ele estava procurando e se endireita, posicionando os braços atrás das costas, quase que timidamente, e eu imagino um cenário absurdo onde ele me pede para escolher que mão eu queria, como uma criança.
“Eu realmente espero que nós possamos continuar sendo amigos,” ele diz. A voz dele medida e cortês, mas ele estava próximo demais, invadindo o meu espaço. Eu dou um passo para trás, mas ele se move para frente e me encurrala contra a lateral do carro dele. Ele olha para mim, pensativo. “Eu sinto muito, Will, sinto de verdade,” ele diz. “Eu realmente não queria fazer isso com você. Mas sabe, você não me dá muita escolha, não é?”
Eu abro a boca para gritar, mas ele parte para cima de mim – ele é rápido demais, como isso estava acontecendo? Ele envolve a minha garganta com a mão e empurra um pano contra o meu rosto, e de repente ele não está mais ali, e tudo se congela; não há nada além de confusão, e medo, e um eco pulsante na lateral da minha cabeça. E de repente não há nada além de escuridão.
Notes:
1 ‐ Union Jack é o nome coloquial da bandeira do Reino Unido. Nos dias de hoje o termo também pode ser usado de forma irônica, para zombar de alguém muito patriota ou até mesmo antiquado. No contexto de Jack, o termo também pode se referir de forma irônica a alguém muito ferrenho com causas coletivas.
2 - Kriss Kross é um duo de rap estadunidense formado na década de 1990, mais conhecidos pelo mesmo hit musical e trecho do qual Will se refere, "Jump" de 1992.
Chapter 12
Notes:
AVISO: Este capítulo contém referências à tentativa de abuso sexual e temas psicológicos perturbadores envolvendo controle e poder. A autora manteve este capítulo propositalmente mais curto para que os leitores sintam-se livres para pular para o próximo (cuja tradução logo será postada), e ainda conseguirem acompanhar a trama sem problemas. Muito obrigada pelos kudos e comentários gentis! ♡
Chapter Text
Eu não quero abrir os olhos, porque sei que seja lá o que eu ver será terrível – e que quando eu acordar, não haverá demora, e seja lá que pesadelo estava por vir iria começar de verdade. Mas o meu corpo estava lutando para se mover, me puxando de volta à consciência: e não haviam dúvidas de que me mover cegamente no escuro logo se tornaria insuportável. Estou ciente de que estou apoiado contra a cabeceira de uma cama, as minhas mãos estão no meu colo e as minhas pernas estão esticadas na minha frente. Estou completamente vestido, mas as minhas roupas possuem um caráter pruriginoso e sufocante, como se elas fossem pequenas demais. A parte de trás da minha camisa estava úmida, pegajosa de suor. Quando eu finalmente abro um olho, eu logo vejo Michael parado na minha frente, balançando um copo do que parecia ser conhaque.
“Bela adormecida,” ele diz. Ele levanta o copo na minha direção, numa tentativa perturbada de fazer um brinde. “Seja bem-vindo de volta.”
Eu tento falar, mas só consigo emitir um grunhido. O meu estômago se revirava de medo. O que diabos ele fez?
“Clorofórmio,” ele diz, pesaroso. (Eu fiz essa pergunta em voz alta?). “Peço perdão – é um pouco indelicado, tenho certeza de que concordará, mas às vezes os meios antigos são os mais eficazes; e também possuem um certo charme vintage.” Do que caralhos ele estava falando? Era como se a minha cabeça estivesse sendo esmagada e houvesse uma fina camada de náusea se acumulando sob as minhas costelas. Uma faixa de suor percorre o meu rosto, e eu tento limpá-la antes de perceber que as minhas mãos estavam algemadas. Nada disso fazia sentido, e eu encaro as minhas mãos confuso, como se elas fossem seres extraterrestres que não pertenciam a mim. Michael observa a minha confusão obviamente entretido. “Se precisar vomitar,” ele me diz, “há um balde do lado da cama.”
A ideia de vomitar na frente dele era insuportavelmente humilhante. Mas que diferença fazia em uma situação terrível como essa? Não importa, por que eu me importo tanto? Ah, Deus. Eu respiro fundo algumas vezes, tento lutar contra o pânico e manter o controle, da maneira como você me ensinou. O meu nome é Will Graham, estou em Baltimore, é por volta da meia-noite. Eu vou sair dessa (eu vou) e para fazer isso, eu preciso ser capaz de pensar.
Eu tento me ancorar, absorvendo os arredores. Estabeleça um ponto de fuga, eu penso, avalie a cena. Há uma composição de música clássica tocando suavemente no fundo, e uma lareira acesa ao pé da cama. O quarto era composto de cores ricas e escuras, parecia bem caro e suntuoso: molduras douradas, cortinas em tecido damask e uma reprodução elaborada da escultura de O Beijo de Auguste Rodin em um pilar ao lado da lareira. Velas também – Cristo. Era uma paródia grotesca de sedução. Ele teve tempo para organizar isso, ele está confiante de que não será incomodado. Eu deduzo que nós devíamos estar na casa dele. Essa constatação, apesar de inegavelmente básica, ainda me trás uma ligeira sensação de confiança. Eu consigo pensar, eu consigo raciocinar. Se eu consigo fazer isso, então eu consigo sair daqui.
Ele se senta com cuidado ao meu lado na cama e percorre a mão pelo meu cabelo; eu afasto o meu rosto e ele estala a língua irritado. “Não seja assim, Will,” ele diz.
“O que você esperava?” eu tento rebater, mas a minha boca ainda estava densa, vazando clorofórmio e as palavras tropeçam umas nas outras, distorcidas e obstruídas.
“Você realmente tem testado a minha paciência,” Michael prossegue, como se eu não tivesse falado nada. “Esse seu comportamento tímido e pudico foi encantador no começo, preciso admitir, mas algumas coisas se tornam cansativas bastante rápido.” ele parecia genuinamente ofendido. Ele começa a acariciar o meu cabelo novamente, mas dessa vez eu cerro a mandíbula e permito. Deixo que ele pense que eu estou cedendo – se eu não confrontá-lo, então ele irá fazer o mesmo e relaxar inconscientemente, e se ele relaxar ele abaixará a guarda. Até as 6 da manhã, eu faço um juramento silencioso, eu vou te enfiar na porra de um saco para cadáveres.
“De fato, Will,” ele continua, procurando conversar, feito a merda do psicopata que ele realmente era, “você tem sido um desafio terrível. Por quanto tempo você achava que eu toleraria isso? Você se entrega para Hannibal Lecter, e acredita que pode me rejeitar de forma constante?”
Eu me sobressalto, e ele deve ter percebido a minha expressão de choque, porque ele começa a rir. “Ah, sim, claro. Você achou que eu não sabia sobre ele?”
“Eu não… nós nunca…”
Ele apenas sorri e toca a lateral da minha bochecha com o dedo indicador, cada palavra pontuada com uma cutucada: “Eu. Não. Acredito. Em. Você.”
Eu não digo nada. Eu não iria falar de você com ele. “Eu sei muitas coisas sobre você, Will,” ele prossegue. Ele semicerra os olhos. “Muito, muito mais do que você pensa. Já faz bastante tempo desde que eu tenho esperado por isso. Eu sou um homem paciente, mas receio que não estou muito acostumado a ter as coisas negadas exatamente do jeito que eu quero. Você sabe o quão frustrante é quando alguém não se comporta do jeito que você espera, quando não se comportam do jeito que deveriam? É claro que sabe,” ele continua, sem esperar por uma resposta, “você é teimoso demais, não é verdade, Will?”, ele sorri, como se fosse a coisa mais engraçada que alguém já disse. Esqueça as 6 da manhã, eu penso, revisando a minha promessa prévia – 5 da manhã no máximo.
“Eu aprecio o controle e poder em todas as coisas,” Michael acrescenta calmamente. A voz dele era estável, como se nós estivéssemos os dois sentados num bar bebendo uma cerveja, dois caras saindo juntos. “E eu confesso que acho a ideia de praticar essas coisas com você bastante atrativa. No entanto, visto que você recusa a oferta… então eu terei que ir atrás do que eu quero. Você não pode dizer que eu não te dei inúmeras oportunidades de aceitar por conta própria.”
Consigo sentir um grito reprimido na minha garganta, feroz e letal, e eu exijo cada resquício de autocontrole que consigo reunir para sufocá-lo. Se eu começar a gritar agora, eu temia que não fosse mais capaz de parar. Como eu não pude ter visto isso nele? Cristo, como eu pude não ter percebido.
“Meu querido Will,” ele diz. “Você parece bastante ansioso. Agora seja um bom garoto e ouça-me, e eu lhe direi o que irá acontecer. Você vai ficar aqui esta noite como meu convidado. Durante esse tempo eu irei fazer uso desse seu lindo corpo – repetidamente – e apesar de você não merecer, eu serei bom com você e irei garantir que você se satisfaça. Amanhã de manhã haverão várias evidências de DNA do seu prazer, por toda a minha cama. Tenho certeza de que você conhece a fisiologia masculina tanto quanto eu, portanto, você está ciente de que eu posso fazer você ter um orgasmo querendo ou não. Depois disso, você irá se vestir e vai para casa, e você não dirá a ninguém que isso aconteceu. Se disser, então eu irei expressar a minha grande angústia à polícia por você ter contado tantas mentiras terríveis sobre mim, e afirmarei que nós estávamos saindo há um tempo e que você veio aqui por espontânea vontade. Eu direi a eles que nós fizemos sexo consensual, e que você me pediu para te algemar. Irei entregá-las à equipe forense como evidência do seu enorme prazer, afirmando que você não reclamou nenhuma vez na hora. Talvez eu até insinue que você já havia me chantageado e me ameaçado de fazer uma acusação falsa de estupro, e o quão triste eu fiquei por você ter ficado transtornado o suficiente para chegar ao ponto de realmente fazer isso. Eu irei descrever o meu desconforto e a minha angústia por você ter me distraído e me enganado com as suas formas de atração, me impedindo de enxergar o seu eu verdadeiro – e eu serei bastante convincente. Você pode tentar ir além, é claro, mas todos irão avisar você de que isso será uma péssima ideia. Porque em um tribunal, quando pesadas as palavras de um médico respeitado sem antecedentes criminais contra a de – bem – a sua…”
Eu o encaro de volta, em silêncio, perplexo. Consigo sentir os meus olhos se arregalando.
“Agora me diga, Will, eu fui claro o suficiente?”
“Sim,” eu respondo com cautela. “Sim, está perfeitamente claro.”
“Esplêndido,” ele diz. “Então nós temos um acordo.”
Se eu fosse agir então teria que ser logo. Apesar da minha cabeça estar se clareando, os efeitos do clorofórmio ainda não se foram completamente. Porra, eu preciso ficar mais alerta se eu for partir para cima dele. Eu preciso de mais tempo.
Ele se move na minha direção e abre o primeiro botão da minha camisa, e eu me afasto. “Ainda não, por favor,” eu digo, eu respiro fundo algumas vezes, fazendo a minha respiração soar deliberadamente trêmula. “Eu ainda preciso vomitar.”
Ele olha para mim pensando, mas apenas assente em seguida. Ele está se convencendo: o idiota de merda. “Água?” ele diz.
“Por favor.”
Ele abre a porta do banheiro da suíte dele: há o som de uma torneira se abrindo e eu aproveito a oportunidade da ausência dele para puxar as algemas com força. A dor percorre o meu braço e por alguns segundos eu temo que fosse desmaiar. Eu respiro fundo mais algumas vezes, imagino você, imagino o que você faria com ele se você estivesse aqui. Fique aqui comigo, eu penso com desespero, por favor, não vá, eu preciso de você. Logo ele volta, e ergue o copo até a minha boca. Algumas gotas de água escorrem pelo meu queixo e ele as limpa com o polegar, quase que com ternura.
“Sabe, você está bastante pálido,” ele diz, “Talvez eu tenha te dado uma dose muito alta.” ele suspira descontente – a minha fragilidade estava o incomodando. Ele coloca a palma da mão sobre a minha testa e franze o cenho sentindo o quão pegajosa ela estava. Ele achava que era o clorofórmio – ele não sabia que na verdade era a dor no meu polegar.
Ele se afasta, mas mantém uma mão no meu ombro, me examinando com os olhos semicerrados. “Talvez mais alguns minutos,” ele diz.
“Você já fez isso com quantas pessoas?” eu pergunto, mesmo achando que eu não poderia suportar a resposta.
“Ah, nem tantas, na verdade,” ele diz distraído, como se nós estivéssemos falando de pequenas infrações: o número de multas por excesso de velocidade que ele já obteve.
“Porque você gosta, não, você precisa do controle,” eu digo. “Então você exerce poder sobre as pessoas, mostra a elas que ninguém tem o direito de dizer não para você. E a maioria das pessoas não dizem não. Então as outras aprendem a lição, porque você não consegue tolerar nenhum tipo de ameaça à sua autoestima, não é? Você acha que isso justifica o que você faz, é assim que você se dá ‘permissão’.”
“Você está querendo me perfilar, Will? Acho que não é um momento muito adequado.” ele franze o cenho e dá um passo na minha direção; ele achava que eu estava sendo insubordinado. “Sabe, você é incrivelmente bom em tagarelar. Eu adoraria usar a sua boca para propósitos melhores.”
Eu o ignoro. “Você perpetua violência usando sexo como arma.”
“Pode se dizer que sim, suponho eu,” ele responde, “se você realmente quisesse.” ele parecia genuinamente contente.
“Tudo bem,” eu digo. Então eu jogo a minha cabeça para trás e a lanço contra o rosto dele. Ele uiva e cambaleia para longe de mim, com a mão apertando o próprio nariz, e eu me levanto com desequilíbrio, o golpeando com um soco no estômago o mais forte que eu consigo com a minha mão ferida. Ele se rasteja pelo chão, e fica de costas, arfando e gemendo. Sangue escorre do nariz dele, o qual eu conseguia notar que havia quebrado, mesmo de onde eu estava.
Ele me encara debilmente, piscando e murmurando: “Você escapou das algemas.”
“É claro que eu escapei da porra das algemas.”
Ele solta uma meia risada, que estava mais para um soluço. “Você não é tão delicado quanto parece, não é?”
“Não muito,” eu respondo, “Mas você não é o primeiro que comete esse erro.” eu olho para ele com repulsa, imaginando os outros desconhecidos que já haviam sido vítimas dele. “Seu desgraçado.” Então eu pego a escultura de Rodin e não hesito ao arremessá-la contra a cabeça dele.
Chapter Text
Eu não me lembro de chegar em casa, embora eu obviamente tenha conseguido chegar de alguma forma, porque agora eu estava curvado sobre a mesa da minha cozinha, segurando firme as chaves da minha porta. O meu polegar esquerdo ainda deslocado de onde eu havia ne soltado das algemas. Ah, é… eu devia fazer algo a respeito disso, não é? Mecanicamente, eu localizo o osso metacarpo e empurro a falange de volta no lugar, depois eu passo fita adesiva ao redor do meu polegar e indicador para juntá-los. Eu sinto pouca dor conforme faço isso, e eu sei que estava dissociando. As algemas ainda estão suspensas no meu pulso, então eu procuro por um clipes e abro a fechadura com esforço.
Mal havia sangue em mim, o que era uma surpresa, porque eu esperava bem mais. De qualquer forma, eu tiro todas as roupas que estava usando e as enfio na lata de lixo. Eu nunca mais quero sentir aquelas roupas na minha pele novamente.
Agora eu estava com frio. Eu entro no chuveiro, mudo a temperatura e me posiciono sob a água escaldante. A minha testa estava ferida e inchada, e eu sei que amanhã eu estaria gritando de dor. Agora eu não sentia nada.
Após isso eu visto uma calça jeans e um suéter, ambas reconfortantemente velhas e folgadas, e pego um copo de uísque para tomar, virando-o de uma vez só. O uísque possuía notas defumadas e um sabor límpido, descendo pela minha garganta queimando um pouco conforme eu engolia. Eu estava exausto demais para ficar acordado, mas sobrecarregado demais para dormir, e eu me sentia tenso, triste, desesperado, e morto… e naquele momento parecia que nada nunca ficaria bem, nunca mais. E eu nem mesmo me importo.
Eventualmente eu busco um cobertor da minha cama e me encolho na minha cadeira. Depois de um tempo, eu puxo o cobertor por cima da cabeça, o envolvendo ao meu redor como um casulo improvisado. Eu fecho os meus olhos. Para onde eu deveria ir? Eu me concentro em você, imagino você entrando na sala. Você não está usando os seus trajes extravagantes, as suas roupas são mais simples e ligeiramente fúnebres dessa vez: um terno preto escuro e uma camisa azul escura. Você emite um som de pesar conforme absorvia a minha aparência – os hematomas, o inchaço na minha mão, a maneira como os meus olhos cintilam em contraste com o meu rosto pálido.
“Você está ferido,” você diz.
“Não muito,” eu respondo. “Você devia ver o outro cara.”
“Alguém fez isso com você?”
“Tecnicamente são feridas de defesa.”
“Entendo.” É. Você provavelmente entende. “E de quem você estava se defendendo?”
“Um maníaco,” eu digo. “Mais um. Parece que eu atraio eles.” eu começo a rir, mesmo que não fosse nem um pouco engraçado. Eu percebo que ainda estava em choque. Talvez eu tenha estado em choque desde que te conheci e agora tenha se tornado algo tão normal que eu não consigo distinguir a diferença.
Você se senta na outra cadeira, esticando as suas longas pernas na sua frente. “Como você se sentiu quando o atacou?” você pergunta.
“Me senti bem.” Isso era verdade, eu me senti bem. “Ele mereceu. Foi justiça.”
“Pareceu correto?”
“Sim.” Cristo, isso era terrível, eu sinto como se estivesse ficando maluco. “Por que eu ainda estou falando com você?” eu questiono, desesperado. “Você não está aqui. Você não é real.”
“Eu sou real para você agora, neste momento, o que faz de mim subjetivamente real. Assim como Abigail era real para você na Itália. O possível, o existente e o necessário formam uma composição na percepção e na sensibilidade humana. Você está me construindo porque precisa disso.”
Eu tomo mais um gole do meu uísque. As minhas mãos tremiam e eu não sabia como fazer parar. “Eu te culpo por isso,” eu digo por fim.
“Por que você me culpa, Will?” você não soava irritado e nem na defensiva, apenas curioso. Você genuinamente queria saber.
“Eu não teria deixado ele chegar perto de mim em primeiro lugar. Não se você ainda estivesse aqui.”
“Você o usou como meu substituto?”
“Sim. Não… eu não sei. Talvez.”
“Como? O que ele tinha que atraiu você?”
“Ele estava interessado em mim.” Deus, eu soava tão patético.
“Todos nós temos o desejo de sentirmos que somos necessários, que somos queridos… que alguém anseia por nós. É uma coisa muito poderosa ser o foco do interesse e da estima de alguém. Humanos possuem uma necessidade psicológica profunda de pertencer.”
“Ele parecia tão normal. Pelo menos de forma relativa – acho que você recalibrou a minha visão do que é normal.”
“Você confiava nele?”
“Sim, eu confiava nele. Mais ou menos. Pelo menos eu tinha a confiança de que ele não fosse fazer algo assim.”
“E apesar disso, ele traiu a sua confiança da pior maneira possível.”
“Talvez não da pior maneira,” eu digo, “Acho que você ainda é o dono dessa façanha.”
“Você realmente acha isso?”
Eu tomo mais um gole do uísque. “Não,” eu digo, “não de verdade.”
“Você sempre foi o meu igual, no entanto. Eu não queria te destruir ou diminuir você; mas sim elevar você. Impulsionar você. Ver você se tornar tudo o que é capaz de se tornar. Eu dei liberdade a você. Quando se ama algo, deve-se deixar ir.”
“E agora você não está aqui.”
“Ainda não. Mas algo sempre vai me manter perto de você, mesmo se não estivermos juntos.”
De repente eu sinto uma vontade impotente de chorar. Deus, eu não vou chorar, vou? Eu pisco furiosamente para combater o ardor. “Eu não sei onde você está,” eu respondo. “Eu nem sei se você ainda está vivo. Eu penso em você, eu sonho com você, eu te carrego comigo 24 horas por dia e isso está me sufocando.” eu me lembro de repente de Florença: 'Estamos unidos,' eu disse a você, 'estou curioso se um de nós consegue sobreviver à separação.’ eu arremesso o meu copo vazio pela sala, mirando onde eu imaginava você sentado. Ele paira pelo ar e se estilhaça contra a parede, e tem algo quase que perfeito na forma como ele explode em milhares de pedaços, cada um captando a luz.
Você também o observa quebrar. “Ele não irá mais voltar ao normal ,” você diz.
“Vai se foder,” eu respondo. “Isso é culpa sua, isso é culpa sua. Não consigo mais fazer isso, não posso mais viver assim.” a minha voz se eleva cada vez mais alto, com traços de uma aflição desesperada. “Eu não quero isso! Eu não quero você.” Devia ser um alívio dizer isso em voz alta, devia ser libertador. Por que eu não sinto nenhuma dessas coisas? Eu respiro fundo. Eu preciso sobreviver à separação; aqui, no mundo real. Eu sei que tenho que fazer isso.
“Estou farto, Hannibal,” eu afirmo baixo. “Estou deixando você ir. Eu não te quero aqui. Eu não quero falar com você, eu não quero me lembrar de você. Eu nunca mais quero pensar em você.”
“Will,” eu te ouço dizer. É só isso, só o meu nome. Então eu ouço a sua cadeira sendo arrastada para trás. Você dá alguns passos na minha direção e para, como se você quisesse dizer mais alguma coisa. Mas não diz.
Eu apoio o rosto nas mãos. Eu sei que você está indo embora, que está partindo, e apesar de tudo, eu ainda não quero ver você indo. “Volte, volte,” eu sussurro para o vazio. “Volte para mim.” Eu te amo. Mas é inútil, e é claro que você não está lá.
*****
Acordar na manhã seguinte é uma agonia. Pior do que ser esfaqueado, pior do que deslocar o meu dedo, pior do que cair de um penhasco. Pior do que tudo. “Pare de ser tão melodramático,” eu digo em voz alta, “pare de se atormentar.” Mas como, quando aquilo era um tormento?
Eu não estava atormentado por ter matado uma pessoa, eu não me importava nem um pouco com isso; e eu não estava particularmente atormentado por muito provavelmente ter que responder por isso, enquanto alguém (provavelmente Jack) fica ao meu lado me explicando as leis que diziam respeito ao ‘uso desmedido de força.’ Mas eu estava atormentado pelo fato de que eu estou horrivelmente e irremediavelmente apaixonado por alguém que tem se rastejado pela minha mente como a completa antítese de tudo o que eu deveria valorizar; o qual eu estou tão desesperado para ver, cuja presença seria quase que certamente a minha ruína, e apesar disso, cuja terrível ausência tem me feito perder a cabeça gradualmente. Eu estava tão atormentado por isso que era difícil respirar, e eu queria abrir a boca e gritar, mas eu temia que se eu o fizesse eu nunca mais seria capaz de parar, por todos os dias do resto da minha vida.
Eu me lembro de repente da frase de Tarryn Fisher que eu ouvi Alana citar uma vez. Qual é a diferença entre o amor da sua vida e a sua alma gêmea? Um é uma escolha e o outro não é.
Eu percebo que estava apertando o meu cabelo tão forte que doía, e me forço a respirar fundo algumas vezes para me acalmar. “Você está bem, você está bem,” eu murmuro para mim mesmo. Mas eu não estava, eu não estava. Eu acho que nunca mais ficaria. Eu não sei como. Eu nem sei se quero ficar, e esse pensamento é uma das coisas mais aterrorizantes que eu já senti. Foi isso o que você quis dizer, não é? Quando você disse se eu segui os impulsos que ocultei por tanto tempo, “deixando-os crescer, como as inspirações que são,” então eu me tornaria alguém além de mim. Você é ambos o abismo e a luz do outro lado, e você me fez sentir elucidado, dissoluto: como apenas você consegue me fragmentar e juntar os meus pedaços novamente, tudo ao mesmo tempo.
O peso de carregar tantos sentimentos era insuportável, e eu lentamente me afundo no chão, ao pé da cama. Eu me encolho para encurtar o meu tamanho tanto quanto possível, envolvo os braços ao redor da minha cabeça. Eu queria chorar para me livrar um pouco da tensão, mas nem isso eu conseguia fazer.
A questão é que, eu nunca me conheci tão bem quanto eu me conhecia quando estava com você.
Então eu fui para um lugar escuro com você, e trouxe algo de volta.
Chapter Text
A manhã se arrasta, e eu eventualmente me recomponho o suficiente para conseguir tomar banho e me vestir. Lá fora eu ainda consigo ver os agentes dentro da viatura descaracterizada. Dessa vez eles estavam estacionados do lado oposto da rua, mas com a mesma postura dos outros dias: as mesmas expressões rígidas e os mesmos copos térmicos de café. Os eventos das últimas 24 horas reforçam o meu ponto de vista inicial: que a presença deles não possuía nenhum valor, e eu sinto um desejo infantil de ir lá para dizer isso a eles.
Deus, já dava para perceber que aquele seria um longo dia.
Eu realmente preciso voltar aos eixos, esse é o problema. Eu não estava acostumado com a vida na cidade, eu estava perdendo as forças em meio à todas aquelas luzes, a artificialidade e a poluição. Eu precisava de rios, campos, e um céu aberto; uma cerca, árvores farfalhantes e o som do silêncio. E cachorros. Eu realmente devia ter escolhido um apartamento que permitia pets. Eu devia ter feito isso. Porque eu não fiz?
Talvez esse seja o meu próximo projeto – encontrar um lugar melhor para morar. O meu orçamento já não é mais o que uma vez já foi, mas eu irei conseguir, de alguma forma. Considerando as minhas iniciativas, essa parece ser um pouco mais promissora do que as outras (voltar ao trabalho; conhecer gente nova; parar com a minha obsessão por você… nenhuma delas funcionou exatamente como o planejado, não é?). Imóveis era uma questão mais real, estável e segura. Talvez seja melhor esperar até que a situação com Matthew Brown se torne mais clara, mas depois disso…? Eu me sinto satisfeito com a ideia, algo sólido em que me concentrar. Eu poderia entrar na internet nesta tarde (e não abrir o site do TattleCrime enquanto eu estiver explorando) e dar uma olhada rápida. Talvez dirigir pelos próximos dias. Eu aceno com a cabeça de forma afirmativa para enfatizar o caráter sólido desse plano. Era tudo muito convincente, e eu meio que acredito nisso, mesmo que eu saiba – lá no fundo – que nada disso vai acontecer. Que eu estou me enganando, cega e despreocupadamente, como alguém que rega flores murchas que já estão mortas há tempos. Porque apesar do tom daquele plano, ele ainda não conseguia acomodar os dois elefantes enormes na sala: você, por um lado; e o corpo de Michael French (e uma escultura de mau gosto de Rodin coberta das minhas digitais) por outro lado.
Eu me forço novamente a sentar e a pensar. Objetivamente, o problema com Michael pesaria muito mais na balança da pergunta: ‘o que caralhos eu faço agora?’, mas eu realmente acho isso mais fácil de se pensar do que o problema com você. Na verdade era uma questão simples em comparação; ao contrário de você, ele não era areia movediça sob os meus pés. Eu consigo resolver isso; eu consigo resolver a questão dele. Você, por outro lado, eu não consigo simplesmente definir apenas pelas suas margens cruas e insanas. Eu não consigo definir você de forma alguma.
Eu só quero que você volte.
Para ser honesto, eu deveria ir ver Jack – contar tudo a ele. Foi legítima defesa afinal de contas (pelo menos moralmente – legalmente não foi, porque ele não chegou a ameaçar a minha vida, mas Jack nunca saberá disso). Sim. Eu realmente devia contar ao Jack. Dane-se toda aquela porcaria que Michael inventou – Jack vai acreditar em mim. Ele não acreditou da última vez. Não – dessa vez era completamente diferente. Quando pesadas as palavras de um médico respeitado com as de – bem – a sua. “Ele vai acreditar em mim,” eu digo em voz alta, com um tom com um pouco de dúvida,“Eu sei que ele vai.” Não, eu não sei. As minhas mãos pairam sobre o telefone. “Vá em frente,” eu digo a mim mesmo. E então o celular toca, e puta merda, era realmente o Jack.
“Homicídio,” diz Jack antes de eu conseguir falar, “Eu preciso que você dê uma olhada. Homem branco, assassinado na própria casa; é ruim, o corpo está uma completa bagunça. Alana vai ficar bem chateada, Zeller disse que ela conhecia o cara.” eu expiro profundamente conforme ele me dava o endereço e me pedia para ir o mais rápido possível. Eu nem estremeço.
“Sim, Jack,” eu digo. “Tudo bem. Me dê uma hora.” eu desligo com cautela. Eu estava bem orgulhoso de mim mesmo: a minha voz não havia tremido nenhuma vez.
Mecanicamente, eu pego as minhas chaves e visto o meu casaco. Eu era um ator indiferente em uma peça ruim, me vendo tropeçar ao longo da performance. Isso era, é claro, inevitável. Na verdade era tão inevitável que eu estava aliviado que aquilo finalmente veio à tona tão rápido, me libertou do fardo de tomar uma decisão.
Conforme eu tranco o apartamento não consigo deixar de pensar no quão feliz Freddie Lounds irá ficar quando ela descobrir (porque é óbvio que ela vai) que as predições dela se tornaram verdade, e que eu estou finalmente investigando a minha própria cena do crime.
*****
Michael French estava deitado de costas em sua cozinha de luxo em cima de uma poça do próprio sangue, e apesar do terrível estado da cena, eu ainda sou tomado pela vontade de chutá-lo nas bolas. Surpreendentemente, no entanto, ele estava muito diferente da última vez que eu o vi. Extremamente diferente. Diferente ao ponto de alguém ter removido as mãos dele e tê-las enfiado em duas incisões grosseiramente cortadas dentro da cavidade abdominal dele.
“Puta merda,” eu deixo escapar. Porque realmente, eu não estava esperando por isso.
“É, pois é,” diz Jack, “embora eu estivesse esperando por uma constatação melhor.”
Eu não estava ouvindo, conforme os meus olhos examinavam as poças de sangue que haviam jorrado e cercado o corpo dele.
“Ele sangrou até a morte por consequência das amputações?” eu questiono.
“Não brinca, Sherlock,” diz Price, e Zeller logo acrescenta: “É ótimo ver que os custosos estudos forenses de alguém não foram desperdiçados.”
Eu ignoro os dois, porque era óbvio que eu estava me referindo ao coração dele ainda estar batendo quando ele foi mutilado. Significa que ele voltou à consciência para ir até a cozinha. Significa que não fui eu quem o matou de fato – ou ele tinha um crânio de adamantina, ou eu estava drogado demais para bater o mais forte que eu podia. Eu estava simultaneamente aliviado e muito, muito decepcionado.
“Padrão de mutilação fora do comum, não é?” Jack diz. “Isso te lembra alguma coisa?” eu trago o meu foco de volta à cena. Do que ele estava falando? Ele não estava pensando em você, estava? Definitivamente não era você. Era simplista e banal demais, nada artístico. Sem contar que se você soubesse o que ele tentou fazer comigo, você não o deixaria escapar fácil assim de jeito nenhum.
“Eu sei o que você está pensando,” eu respondo. “E a resposta é não. Absolutamente não. Não é o Hannibal.”
“Na verdade eu concordo, eu não estava pensando nisso,” diz Jack acidamente.
“Ah,” eu respondo, “okay. Perdão.”
“O que eu estava pensando, no entanto, é que essa natureza ostensiva de exibir o corpo soa familiar,” diz Jack. O quê? O que diabos havia com ele hoje? Geralmente ele não era tão sério e empolado assim.
Zeller olha para Jack: a ficha estava começando a cair. “Ah,” ele diz, “o que significa um imitador oculto?”
“O que significa Matthew Brown,” eu respondo sombriamente (porque – bem, era óbvio). Jack abre a boca para falar mas muda de ideia no meio do caminho e apenas assente – ele sabia que eu estava certo. Ele pensou o mesmo, ele só queria que eu confirmasse.
“Merda, uau, então ele realmente não foi a nenhum lugar?” diz Zeller. “Ele ainda está bem aqui em Baltimore. Eu realmente me perguntei se aquela carta era um blefe.”
“Isso é loucura,” diz Price, “ele pode ter dado no pé. Ele pode ter ido a qualquer lugar a esse ponto. Ele pode estar em…” ele estala os dedos, obviamente tentando pensar em algum lugar estrangeiro. Nós esperamos pacientemente. “Ele pode estar em Bognor” diz Price, assertivo.
“Bognor? Price, do que diabos você está falando?” diz Jack.
“Fica no Reino Unido,” diz Price na defensiva, “a minha mãe tem parentes lá.”
“Tanto faz,” diz Jack. Ele parecia impaciente. “Olhe, Matthew Brown não precisa de um motivo para fazer nada. Ele está completamente fora de si.”
Matthew Brown. Nesse momento, eu realmente me sinto um pouco grato pelo desgraçado. Eu ainda consigo vê-lo, à espreita nos confins do Hospital Estadual de Baltimore para Criminosos Insanos. A maneira como ele me olhava tão ansioso com sua cara feito a de um rato, ansiando pela minha atenção e a minha aprovação. As barras fizeram dessa alusão mais convincente – um roedor em uma cela, desesperado para receber um olhar gentil de seu dono. Tanta confusão por consequência de uma coisinha débil e bajuladora… e por um segundo eu me pergunto por que eu o dei tanto poder, através da potência meu medo. Então eu olho para a bagunça sangrenta no chão e me lembro – é, é por isso.
Ratos são perversos e ardilosos. Eles são difíceis de matar. Eles carregaram a peste bubônica e liquidaram metade da europa. Ele quase liquidou você. Era estupidez subestimá-lo.
“Então, o que eu quero saber é: por que esse cara?” Jack pergunta.
Relutantemente, eu olho novamente para Michael (descanse em pedaços). Bem, é claro que não podia ser coincidência. Podia? Eu quero acreditar que podia, mas eu sei que não havia nenhuma possibilidade – nenhuma mesmo.
“E considerando o bilhete…” afirma Jack, que achava que eu ainda estava ouvindo.
Eu viro a cabeça ao escutar isso. “Que bilhete?”
Zeller parecia surpreso. “Você está de brincadeira?”
“Que bilhete?” eu quase grito.
“Jesus, Graham,” diz Zeller, “está bem ali.”
Como eu não podia ter visto? Estava em um saco de evidências agora, manchado de vermelho, mas as letras maiúsculas eram um chamado estridente para tocar o alarme. O bilhete não era exatamente como o outro – letras recortadas de um jornal ao invés de escritas à mão, e pretas ao invés de vermelhas – mas era suficiente. Era mais do que o suficiente. Eu me inclino para conseguir ler, meu coração palpitando nos meus ouvidos: “POR TOCAR O QUE ELE NÃO DEVIA TER TOCADO.”
Ah. Ah, caralho.
“Okay, Jack,” eu digo, “Acho que eu talvez saiba o que aconteceu aqui…”
*****
“Cara, isso é uma merda,” diz Zeller. Ele coloca a mão no meu ombro. “Eu sinto muito que isso tenha te acontecido.”
“Obrigado,” eu digo, “mas eu estou bem. Ele não me feriu.”
“Mas ele queria.”
“Eu o feri mais,” eu digo. Eu contei ao Jack sobre o golpe na cabeça e o soco (apesar de não ter mencionado o fato de ter esmagado a cabeça dele – Matthew Brown leva o crédito por essa, por conta da casa). Apesar disso, eu ainda estava do lado certo da ‘força comedida.’ Mentalmente, eu me dou um high-five.
“Por que você não me contou?” pergunta Jack.
Eu encolho os ombros. “Eu fiquei em choque. Acho que parte de mim aceitou o que ele disse – que ninguém acreditaria em mim.” Isso era verdade (o desgraçado), no entanto, havia o problema inegável de que eu pensei que havia assassinado ele e não queria alegar o fato. Legalmente, eu devia ter parado assim que ele ficou incapacitado. Eu devia ter chamado a polícia, devia ter ficado fora do apartamento até eles aparecerem. Eu podia ter feito isso, mas não fiz. Não que eu realmente me importasse de qualquer forma: que se dane a lei. Eu lanço um olhar contemplativo ao restos mutilados de Michael French, e digo silenciosamente: vai se foder.
“Você devia ter me contado,” Jack insiste.
“Cala a boca, Jack,” diz Price, “deixe ele em paz.”
Jack surpreendentemente cede. “Você deveria ir,” ele diz para mim. “Você é uma vítima nisso também. Você não precisa estar aqui.”
“Está tudo bem, eu estou bem,” eu respondo. “Eu estou envolvido nisso querendo ou não.”
“Sim, acho que está,” diz Jack. “Você é o motivo, não é?”
Price franze o cenho. “Calma, espere aí. Então, basicamente, você está me dizendo que agora tem dois psicopatas tentando flertar com o Graham?”
“Não, é claro que não,” Jack responde. Um silêncio se instala – ninguém estava convencido. “Bem, talvez. Sim,” ele completa.
Todos se viram e olham para mim.
“Na verdade são três,” eu digo, fazendo um gesto para o corpo de Michael, “se contar o morto no chão.”
A boca de Jack treme um pouco, e ele esboça um sorriso de canto. “Tem certeza de que está bem, Will?” ele pergunta. “Isso…” ele faz um gesto com as mãos se referindo à bagunça no chão, “é um inferno para qualquer um ter que lidar.”
“Já lidei com coisas piores,” eu respondo, o que era tão inegavelmente verdade que Jack nem se incomoda em argumentar. E quando eu digo isso, eu não consigo decidir se o fato de que eu já havia lidado com coisas piores era reconfortante ou terrivelmente deprimente. Na verdade, esta afirmação estava se tornando uma parte tão importante do meu repertório de mecanismo de enfrentamento que a esse ponto eu já posso incluí-la ao me apresentar: “Prazer em te conhecer! O meu nome é Will Graham, e você precisa saber que eu estou constantemente lidando com algo pior.”
Por outro lado, o que estava me incomodando bem mais no momento era como diabos Matthew Brown sabia sobre Michael em primeiro lugar (o que, na verdade, era uma preocupação retórica, porque é claro que eu sei como – ele tem me seguido). Ele devia estar à espreita naquele estacionamento o tempo todo, à plena vista, observando e esperando, pronto para agir. Ele provavelmente me ouviu no telefone, e o meu estômago se revira de forma desagradável ao pensar nisso. Graças a Deus eu tive a noção de não dizer o seu nome. Ele devia ter um carro para conseguir seguir Michael, mas eu não me lembro de ver um. Porra, ele poderia estar do lado de fora do prédio neste exato momento.
Ou – pior ainda – ele não estava ciente do que aconteceu na noite passada, e só sabia que eu estava saindo com Michael e queria fazer algo a respeito. O que significaria que isso não se tratava de um ato imaculado de vingança, mas sim de um ciúmes degenerado e possessivo. As letras de jornal confirmariam isso – ele teve tempo o suficiente para planejar isso e se preparar com antecedência. Se esse for o caso então todos podem ser o próximo alvo: Jack, Alana, Zeller ou Price. Você? (de novo). A ideia me faz sentir um pouco nauseado, e eu me inclino contra a parede e olho para o teto.
“Will?” Jack me olhava com preocupação.
“Sim?”
“Você parece exausto. Vá para casa e descanse.”
Essa é a segunda vez em 24 horas que ele me diz para ‘ir para casa descansar,’ e dessa vez aquilo soa bem menos atraente do que na primeira vez. Eu estava cansado de descansar e esperar: parece que isso é tudo o que eu tenho feito até agora e isso não resultou em porra nenhuma. Eu queria gritar, quebrar, destruir alguma coisa. “Isso é tão idiota,” eu digo.
“Você está certo, é mesmo.”
Eu bato na parede com o pomo da mão, frustrado. “Estou farto disso,” eu digo. Era verdade: eu estava. Estava mais do que farto. Foda-se tudo isso.
“Sabe, Jack,” eu deixo escapar, “isso pode parecer loucura mas eu realmente queria que ele só viesse até mim. Que ele saísse das sombras.”
Jack me encara calmamente. “Sim, isso parece loucura.”
Eu encolho os ombros. É assim que as coisas são. “Eu quero que isso acabe.”
“É claro que quer, todos nós queremos. Mas, Will, eu sei que você já provou que é à prova de balas…”
“E à prova de faca. E à prova de penhasco. E…”
“É, okay, entendi: você consegue se virar. Mas isso – isso é diferente. Isso é extremamente perigoso. E eu te proíbo terminantemente de fazer algo estúpido.”
“Esse é o seu discurso?”
“Esse é o meu discurso.”
“É ótimo. Bom discurso, Jack.”
Jack me lança um olhar aborrecido. “Mas…?” ele diz.
“Mas – defina estúpido,” eu respondo. “Em uma situação como essa, me dê uma definição prática do que seria a opção inteligente.”
“A opção inteligente,” diz Jack, atento, “É não ficar por aí desfilando feito uma isca viva na esperança de atrair Matthew Brown.”
Desfilando por aí? Eu quase rio. O que ele achava que eu iria fazer? Eu imagino um cenário absurdo de mim marchando pela Avenida Pensilvânia segurando um cartaz-sanduíche escrito “E aí, Matthew Brown!’
“Eu não posso atraí-lo nem se eu quisesse,” eu respondo, me esforçando ao máximo para soar racional. “Eu não posso fazer nada além do que eu já fiz até agora – ele vai aparecer quando achar que é a hora certa. O que eu estou dizendo é que eu quero que isso aconteça de uma vez. Esperar é pior.”
Jack assente com simpatia, mas eu não estava mais prestando atenção. Eu podia sentir uma sensação esquisita de energia reverberando pelo meu corpo: uma centelha que se acende e se transforma em uma chama. O que eu não acrescento em voz alta é ‘talvez Matthew Brown irá perceber que não é muito inteligente irritar uma pessoa que pensa em como assassinar as pessoas para ganhar a vida.’
Deus, eu estava pronto para isso. Eu estava. Eu não vou mais cometer o erro de subestimá-lo, mas eu também não vou continuar me acovardando, permanecendo em um estado contínuo de temor e dúvidas. E se foi a constatação de que ele pode ser uma ameaça à você que ajudou a desencadear essa mudança radical de comportamento, então que se foda: que venha.
A sensação repentina de perseverança e determinação que reverbera pelo meu corpo é tão poderosa que me deixa mais leve, e por um momento eu fecho os olhos. Era como um golpe, como ficar chapado: eu me sinto tão distante da sensação de desamparo e angústia dessa manhã. As imagens de Michael French e Michael Brown aparecem na minha mente, suas tentativas individuais de me controlar e me manipular; como o primeiro falhou e o outro não terá mais sucesso. Então eu penso em você, nos giros e movimentos da nossa danse macabre interrompida: em onde você está agora, no que você está fazendo, e se você está pensando em mim. Na maneira como você me observava, como me tocava, como insinuava e persuadia: me irritava e me via partir; a sua firme crença de que eu poderia me tornar alguém além do que eu já era. E pela primeira vez em meses eu estou repentinamente ciente – com um sobressalto de energia, de fogo e inspiração – que eu não estava mais possuído por uma sensação incapacitante de tormento e incerteza. Porque, finalmente, finalmente, eu possuía a mim mesmo.
*****
Eu meio que esperava acordar na manhã seguinte e descobrir que o meu sentimento de determinação se esvaiu durante a noite, mas após incitá-lo e alimentá-lo, eu fico aliviado ao descobrir que ele ainda estava firmemente intacto. Aquela sensação renovada de propósito era incrivelmente libertadora. Era como se eu estivesse lentamente voltando para mim mesmo, me libertando do meu casulo sufocante: pronto para caçar, localizar e perseguir seja lá o que estivesse lá fora.
Eu me levanto da cama com muito mais energia do que o normal. A primeira coisa que eu iria fazer com a minha determinação ressuscitada era falar com a Alana, porque eu estava cansado de me sentir acanhado e receoso à respeito da reação dela. Ela pode contar a versão da história dela sobre aquela noite no bar, e eu posso aceitar ou não. A segunda coisa que eu iria fazer era me acomodar e esperar por Matthew Brown, e eu estaria pronto quando ele chegasse. E então… então, eu vou encontrar você.
Pronto ou não, lá vou eu. Eu tamborilo o ritmo da frase no balcão da cozinha com os nós dos dedos. Eu te mandei para longe, eu posso te ter de volta – à base dos meus próprios termos. Jack diria que eu estou sendo imprudente e ele provavelmente estaria certo. Eu sou como uma pessoa marchando lentamente pela beira de um penhasco (mais um), os olhos fechados, assobiando sozinho com as mãos nos bolsos, crendo que sou intocável – invencível – que eu nunca vou cair. As outras pessoas perderiam o equilíbrio e cairiam, mas eu não, porque eu não era como as outras pessoas e não podia ser contido pelas mesmas regras.
Eu percebo que estava caindo nessa crença com uma fé cega, uma espécie de constância irracional e inquestionável, que também era imprudente e estúpida. E apesar disso, apesar disso… era tão ruim assim ter fé? Uma vez você me disse que eu era único, e eu sei que você sempre acreditou nisso – mesmo quando tudo ia para o inferno, você nunca deixava de acreditar – então por que eu não deveria concordar com você? No sentido mais literal era verdade, de qualquer forma – só havia um de mim. Eu sou Will Graham. Eu venho do germânico antigo Willelm, que significa ‘guerreiro determinado.’ Eu sou jovem, esperto e fugaz, com empatia, autonomia e imaginação. Eu sou soberano e possuo autocontrole; implacável e determinado; eu tenho impulsos sombrios e inspiração, e esse é o meu estilo. E eu estou completamente cansado de mexerem comigo.
Conforme eu abotoo a minha camisa eu percebo que estava sorrindo pelo puro prazer de não ter medo. Eu penso, se você estivesse aqui, você ficaria orgulhoso de mim.
Chapter 15
Notes:
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Chapter Text
Eu ligo para Alana naquela tarde para nos encontramos, e assim que eu ouço o tom da voz dela – tremendo, choroso – eu percebo que Jack deve ter contado tudo a ela. Eu me sinto um completo merda: eu estive tão preocupado com as minhas confissões desconexas na noite em que Matthew Brown escapou que eu esqueci completamente da ligação dela com Michael. Esse acontecimento recente a devastaria.
Eu vejo Alana assim que eu entro na cafeteria; e a angústia dela fica imediatamente aparente, presente em todos os seus traços. Ela estava apoiada na mesa, as mãos envolvendo uma caneca tão apertado que os nós dos dedos dela estavam brancos, e eu faço um caminho diferente até a mesa dela para que eu pudesse me aproximar dali sem assustá-la. Quando ela me vê eu consigo notar que os olhos dela estavam vermelhos e inchados; as olheiras dela eram tão nítidas que podiam ser consideradas hematomas. “Ah, Deus, Will,” ela diz. Ela estica uma das mãos, procurando pela minha . “Eu sinto muito, Will. Eu sinto muito, muito.”
“Está tudo bem… Honestamente, está mesmo. Não é culpa sua.” eu puxo a outra cadeira e me sento, a minha mão ainda envolvendo a dela.
Ela me encara, pálida e angustiada. “Que pesadelo isso tem sido,” ela diz. “Eu mal consegui digerir o que Jack me contou. Eu ainda não consigo: essa versão terrível e distorcida de Michael que nenhum de nós sabia que existia. Quero dizer, ele realmente estava interessado em você. Ele me perguntou sobre você. Bastante. Mas ele sempre pareceu muito respeitoso em relação a isso. Eu só pensei que ele te entenderia, que ele poderia ter sido um amigo para você … para que você não ficasse tão sozinho.” a voz dela falha. “Como eu pude não perceber… quero dizer, eu não percebi. Eu não sabia.”
“Nem eu,” eu respondo. Eu mantenho o meu tom o mais gentil e não acusatório possível. “Ele foi extremamente convincente.”
“Assim como o Hannibal,” ela responde de forma lânguida.
Ah. Eu sabia que haveria uma menção do que aconteceu com você – camadas de arrependimento e remorso – mas eu não sabia que ela traria isso à tona tão cedo. Talvez eu devesse ter trazido; ela era bem destemida nesse sentido. Não seria a primeira vez que eu a subestimo.
“Assim como o Hannibal,” eu precisava concordar com ela, porque era verdade. Eu acrescento, de forma ligeiramente letárgica, “Parece que tem alguma coisa na água de Hopkins.”
“Não tem graça, Will.’”
“Não,” eu concordo, “não tem mesmo, não é?”
“Não consigo acreditar que isso aconteceu com você,” ela diz. “Por minha causa. Você nunca teria conhecido ele se não fosse por mim.”
“Alana, não. Por favor.” eu aperto a mão dela. “Não faça isso consigo mesma. Você estava sendo minha amiga. Você estava sendo gentil e atenciosa, como sempre é… como você sempre foi.” pensando alto, eu acrescento: “E não confunda isso com o que aconteceu com o Hannibal.” eu percebo que a minha voz não vacila ao dizer o seu nome, e eu considero isso uma pequena vitória. “São duas questões completamente individuais.”
“Isso só significa que eu fui enganada duas vezes,” ela diz baixo.
“Sim, assim como todos foram. É assim que as pessoas têm sucesso: elas vestem uma fachada impecável de normalidade.” eu percebo que estava começando a falar como um livro didático – e que eu também odiava colocar você e ele no mesmo patamar – mas aquilo era necessário agora; eu preciso fazer isso pelo bem da Alana. “Eu sou treinado para identificar predadores,” eu prossigo (como se essa merda tivesse servido de alguma coisa), “e ele me enganou completamente também. Eu até senti pena dele.” Deus, eu realmente senti, não foi? – todas aquelas noites me repreendendo por iludi-lo.
“Mas você está bem agora?” ela soava tão frágil, jovem e incerta, era terrível. Eu odeio que fizeram ela se sentir assim, como se ela não pudesse mais confiar no próprio julgamento.
“É claro,” eu respondo (com uma leveza que eu não costumava sentir), “Eu acabei com ele direitinho.”
Ela sorri levemente e pega a minha mão novamente, e eu sinto uma nova onda de admiração por ela. Ela não estava envergonhada por sua vulnerabilidade: ela conseguia senti-la, e se adaptar à ela; e por ela conseguir se moldar, ela não partiria em pedaços. Não consigo deixar de comparar isso com o meu próprio revestimento frágil – a fachada irreverente de que tudo estava bem, quando na verdade eu estava me quebrando e me rompendo por dentro. Eu não sei como explicar a complexidade da minha reação verdadeira, eu não possuía as palavras certas. Eu me senti aterrorizado, e envergonhado, e enojado, e eu não conseguia acreditar que aquilo realmente estava acontecendo. Mas quando eu pensei que tinha matado ele isso me fez sentir combalido, estático, atônito, vivo; e eu sei que isso devia me atormentar, mas não é o caso.
“Olhe,” eu digo, “eu não queria conversar com você apenas sobre o Michael” (para ser totalmente honesto, eu nunca quis falar sobre ele). “Alana, eu tenho pensado na nossa última conversa.” ela me olha de forma neutra. “Sabe, no bar? Na noite em que a gente soube sobre o Matthew Brown?”
“Ah,” ela diz. Ela estava visivelmente tirando a própria mente dos horrores do presente para a aflição e a confusão do passado. Eu espero pacientemente, girando um sachê de açúcar entre os dedos como se fosse um bastão em miniatura. “Olha, Will,” ela responde finalmente, “eu te pressionei demais lá, eu sinto muito. Eu não tinha nenhum direito de dizer o que eu disse. Você não precisa esclarecer nada… você não me deve nenhum tipo de explicação.”
“Eu sei. Eu sei que não devo. Mas eu quero ser honesto com você sobre isso. Eu quero ser honesto comigo mesmo sobre isso.”
“Okay, eu acho. Se você tiver certeza. Contanto que você…” ela interrompe a frase. “Obrigada, Will. Obrigada por confiar em mim. Eu não sinto que mereço isso.”
“É claro que eu confio em você,” eu digo. “Você sempre foi uma ótima amiga para mim, e eu sempre confiei em você.” Eu fico em silêncio após isso, porque de repente eu percebo que não tinha certeza de como continuar, mas ela não me pressiona: apenas espera, paciente e em silêncio.
Eu respiro fundo lentamente. “Ele me fez sentir vivo,” eu digo. “Ele ainda faz. Ele me compreendia de um jeito que ninguém nunca compreendeu, e eu nunca me conhecia tão bem quanto eu me conhecia quando estava com ele. Ele não me fez sentir como o melhor, ou o mais feliz, ou o mais seguro… mas ele me fez sentir tudo a mais.” eu suspiro e me inclino na minha cadeira. “Eu sei que ele não fez de mim uma pessoa melhor, Alana, mas eu sentia que ele fazia de mim a melhor versão de mim mesmo. Ninguém mais queria a escuridão dentro de mim, ninguém queria conhecê-la, e ele… a admirava. Era como a melhor forma de aceitação e liberdade.”
Deus, e realmente era. Você era tantas coisas: um fantasma, um demônio, um ídolo caído, um amigo desleal, uma energia maligna temperada por sorrisos amigáveis, toques afáveis que feriam sem aviso prévio, promessas quebradas e esforços zelosos – ambos o problema e a solução – completamente, totalmente e impenitentemente deficiente de qualquer moral, ignorando todos os princípios… mas com uma virtuosidade intensa e desenfreada que ardia de maneira tão reluzente que às vezes doía olhar para você. De um jeito muito fodido, tudo era melhor com você. Eu era melhor com você: eu vivia mais, pensava melhor, corria mais rápido, amava melhor e era mais amado. Era, ao mesmo tempo, simples e complexo assim.
Ela assente lentamente, pensando nas minhas palavras. “Parece muito forte,” ela responde. “Intoxicante. Acho que eu nunca experienciei algo assim, acho que dificilmente alguém já experienciou. Eu não vou dizer que você tem sorte, porque tenho certeza de que tem, e eu sei que você pagou um preço muito alto por isso…”
“Ainda estou pagando,” eu digo.
“Ainda está pagando,” ela toma um pequeno gole do café, fazendo uma careta com o quão quente estava. “Mas você encontrou alguém que te compreendia, que te fascinava, e que ficou fascinado por você…” ela me vê a encarando. “Bem, é claro que ele ficou,” ela diz, “era óbvio.”
“Acho que sim,” eu hesito e me inclino na minha cadeira, tentando manter o contato visual. “Você acha que ele ainda está vivo?”
“Eu não sei. Eles nunca encontraram um corpo, não é? A não ser que existam evidências concretas do contrário, eu diria que é mais seguro presumir que ele está.”
“Você tem medo de que um dia ele volte atrás de você?” eu sei que era uma pergunta horrível, mas eu não consigo me impedir.
“Sim,” ela diz simplesmente. “Ele deu a palavra dele, não é? Mas, Will, o que eu devo fazer?”
“Eu não sei… fugir?” fuja, fuja, fuja o mais rápido que consegue.
“Fugir para onde? Ele sempre me encontraria se quisesse, assim como eu o encontrei.” ela suspira e afasta algumas mechas de cabelo do rosto. “Ah, eu já tomei as medidas de precaução, é claro. A nossa casa tem a melhor segurança que o dinheiro pode comprar – e você sabe que é a melhor mesmo. E eu sempre carrego uma arma comigo.” ela a mostra de forma breve para mim; uma pequena pistola enfiada na bolsa dela. “A questão é que, se eu passasse a minha vida toda me escondendo – mesmo que isso fosse possível – ele já venceu. Até nos meses passados, houveram tantas experiências boas que eu teria perdido.” ela me lança um olhar significativo. “Eu teria perdido tudo isso, ele teria tirado tudo de mim.”
“Mesmo assim…”
“Will, você sabe como o Hannibal é tanto quanto eu. Você melhor do que ninguém. Você realmente acha que ele não pode me encontrar seja lá para onde eu for?”
“Isso o atrasaria.”
“Essa não é a questão com ele. Ele poderia saber exatamente onde eu estou e ainda assim não atacar por anos; é tudo parte da grande mise-en-scène dele. E nesse meio tempo eu me recuso a desfrutar de uma vida pela metade, onde eu estou constantemente espiando por cima do ombro. Além disso,” ela acrescenta com simplicidade, “nós dois sabemos que ele vai tentar encontrar você muito antes de tentar me encontrar.”
“Possivelmente.”
“Definitivamente. E eu imagino que você estará esperando por ele?”
Ao invés de responder eu apenas suspiro.
“Olhe, Will,” ela diz. “Eu entendo. Entendo mesmo. Eu não consigo aceitar isso, e eu não gosto disso particularmente, mas eu consigo entender. Tudo o que você descreveu: é claro que você sente falta disso e quer tudo de volta. Você pode amar ele e amar o que ele fez você sentir sem amar o que ele fez e o que ele foi.”
“Eu não sei se é tão simples assim.” não era uma coisa fácil de se admitir, mas eu prometi me dizer a verdade.
“Suponho que não seja,” ela responde. “Mas, Will, você disse que confiava em mim, e eu confio em você também. Eu confio que você fará a coisa certa. Eu acho que você vai saber o que isso significa quando a hora chegar.”
“Você está depositando confiança demais, Alana.”
“É claro. O que mais há de restante?”
“Há ele,” eu respondo.
“Sim. E há você.”
Eu olho para ela diligentemente. Aquela mulher. “Sabe o que ele costumava dizer?” eu pergunto.
“O quê?”
“Ele dizia que ‘a melhor qualidade em uma amizade verdadeira é compreender, e ser compreendido, com total clareza.”
Ela sorri para mim, e pega a minha mão novamente, e nós ficamos assim por um tempo; tomando café, aproveitando a clareza.
*****
No caminho de volta para casa eu penso em como eu iria te encontrar; onde você pode estar. Não é uma tarefa fácil. Na verdade, sendo completamente honesto, é provavelmente impossível – mas eu não vou permitir que as minhas esperanças desapareçam. Eu te encontrei antes, posso te encontrar de novo. O que eu irei precisar, mais do que qualquer coisa, é paciência e perseverança. E tempo. Este último era particularmente mais fácil, porque eu o tinha em abundância: uma exuberância extravagante de tempo. Eu tinha o resto da minha vida pela frente (ou a sua, seja lá qual durar mais).
Quando eu chego em casa eu retiro o meu casaco e abro a geladeira a procura da última fatia de pizza de ontem à noite que havia sobrado, a qual eu como conforme explorava o TattleCrime. Não havia nada, é claro, mas eu estava tão acostumado com isso a esse ponto que aquilo já havia perdido o poder de me afetar. É claro que você não facilitaria para mim: por que você faria isso? Estava frio e ventava pela sala de estar, então eu faço um café para mim e fico ao lado da janela o tomando, meus olhos indo automaticamente de encontro com os seguranças. Ah, sim, lá estavam eles. Eu estava prestes a me virar, a minha mente já se distraindo (olhos desfocados, oblívio) com você, mas algo ali chama a minha atenção, e de repente eu fico paralisado conforme as peças pareciam se encaixar. Eu olho novamente, espiando mais perto. Estava tão escuro e sombrio lá fora, eu não conseguia ver direito. Não, não pode ser. Eu percebo que estava falando em voz alta.
Eu pego o meu celular da mesa e irrompo pelo corredor. O elevador não subia, não importava o quão forte eu apertava os botões, e no fim eu acabo perdendo a paciência e desço correndo pelas escadas tão rápido que eu quase quebro a porra do pescoço. Eu estava usando apenas uma calça de veludo e uma camisa leve, o ar gelado corta os meus braços como lâminas assim que eu saio do prédio. O Sr. Haversham estava subindo as escadas, se abraçando para combater o frio, “William!” ele diz, “O exato rapaz. Você se importaria de…”
“Perdão, não posso parar!” eu grito. Eu nem sei se ele me ouviu, as minhas palavras sendo camufladas pelas rajadas de vento, e eu corro e corro e corro, esperando desesperadamente que eu estivesse errado, e sabendo que apesar dessa minha esperança, no fim das contas era inevitável que eu estivesse certo.
De perto os agentes pareciam estranhamente pacíficos, com os olhos fechados, acomodados em seus assentos como crianças dormindo. Cada um havia sido baleado na cabeça: executados e descartados com uma eficiência impiedosa. O assassino deve ter batido na janela. Eles a abaixaram. Ele foi verossímil, convincente; talvez tivesse pedido por direções, fingindo que era um turista: ‘Oi, gente! Perdão por incomodar. Vocês poderiam me ajudar?’ e eles não previram isso.
No parabrisa, havia mais um bilhete enfiado por debaixo do limpador. O mesmo papel branco rígido, com as mesmas letras maiúsculas: NINGUÉM PODE TE OBSERVAR ALÉM DE MIM.
Eu me levanto lentamente, me afastando do carro, eu pego o meu celular. As minhas pernas tremiam por consequência da corrida intensa, mas as minhas mãos estavam estáveis. Agora – depois que o pior dia já aconteceu – eu estava estranhamente calmo. Jack responde quase que de imediato. “Você precisa vir para cá, agora,” eu digo, “os seguranças foram baleados. Sim, é claro que foi o Matthew Brown. Sim, vou esperar lá dentro.”
Mas eu não o faço. Eu fico ao lado do carro o tempo todo, até que a cavalaria chegasse, parado ali em meio ao frio e o choque, e a onda de ira cegante pelo fato de que Matthew Brown ainda existia “Eu vou te pegar, seu desgraçado,” eu sibilo em voz alto, para o vazio do ar gelado. “Eu juro por Deus, a última coisa que você vai ver é o meu sorriso enquanto eu te enforco até morrer com as minhas mãos.”
Talvez fosse isso o que Jack quis dizer com ‘desfilar por aí.’ Logicamente eu sei que estou vulnerável aqui fora, mas eu ainda me sinto estranhamente protegido, envolto e sustentado pelos firmes cordões da minha raiva. Matthew Brown, eu penso, não era mais um predador, e sim a presa.
Eu ouço as sirenes primeiro, e depois eu vejo as viaturas virando a curva, e quando Jack aparece, bastante agasalhado contra o frio, eu permaneço ali na minha vigília silenciosa e implacável, as luzes vermelhas iluminando cada movimento e torção do meu rosto assassino.
Notes:
Chapter Text
Jack estava com uma expressão de raiva/preocupação no rosto – era tão familiar que eu estava começando a suspeitar que ele a usava sempre que ia me ver, da mesma maneira que alguém usa um cachecol específico ou um suéter. “O que diabos você está fazendo aqui fora, Will?” ele diz, “Pensei ter dito para você esperar lá dentro. Você deve estar congelando, seu idiota. Vá pegar um casaco, pelo amor de Deus.”
“Estou bem.”
Ele toca o meu braço, que estava dormente e gelado: eu estava praticamente congelando na frente dele. “Não está, você está à beira de uma hipotermia,” ele diz irritado. Ele estala os dedos para um dos paramédicos pedindo por uma manta térmica. Eu sinto um pouco de inveja: se eu estalasse os dedos assim eles só ririam de mim (e daí me mandariam ir à merda). Jack envolve a manta desajeitadamente ao redor dos meus ombros, a enfiando por debaixo do meu queixo como se eu fosse uma criança. Era macia e quente, e apesar de eu me sentir (e sem dúvidas parecer) um pouco bobo eu não a tiro.
“Manta térmica,” eu digo. “Então, como isso funciona?”
“E eu sei?”
“Como uma manta é capaz de recalibrar as minhas capacidades cognitivas?”
“É preciso mais que uma manta com você,” diz Jack. Ele afaga o meu ombro. “Sinto muito por você ter visto isso, Will. É a última coisa que de que você precisava.”
Ele me oferece o copo de café dele, e eu tomo um grande gole, engasgando no momento em que identifico Freddie Lounds, que se materializou ao nosso lado segurando um gravador. Puta merda. A curiosidade pruriente se irradia dela em ondas e eu sinto a (muito familiar) sensação de que o universo de fato me odiava, e que ele aproveitava toda oportunidade para me irritar.
“Sr. Crawford.
“Srta. Lounds… ativa como sempre.”
“Sr. Graham.”
“Freddie… se você publicar uma foto minha nessa manta eu vou te matar, literalmente.”
Ela sorri, alegre. “Isso é uma ameaça, Will?”
“Bem, sim, claramente,” eu respondo. “Não me lembro de dizer que eu tinha a intenção de te matar metaforicamente.”
“Está ouvindo isso?” ela pergunta, se virando para Jack.
“Não,” diz Jack, não ajudando.
“Algum comentário a fazer?”
“Nós não temos nenhuma declaração a fazer no momento presente,” Jack e eu dizemos em perfeito uníssono.
“Papo furado. Vamos lá… foi ele? Os meus leitores ainda querem saber. O público tem o direito de saber.”
“‘ele,’ pode se referir a cerca de quatro bilhões de pessoas,” eu rebato. “Então, falando de modo bastante geral: sim”... e eu logo sinto uma vontade de socar a minha própria cara, porque é claro que a alternativa inteligente seria dizer apenas ‘não, definitivamente não’ ao invés de levá-la a dizer (de forma inevitável):
“Hannibal o Canibal? O Estripador de Chesapeake de volta dos mortos, mais uma vez na ativa?”
“Não,” diz Jack. “É o que parece para você?”
“Não é o meu papel dizer o que parece, Sr. Crawford,” ela diz, lançando um olhar puramente lascivo. “Mas considerando a grande presença do FBI – bastante incomum para um assassinato aleatório – sem contar que isso tudo está acontecendo do lado de fora da casa esposa dele…”
“Você acabou de me chamar de esposa de Hannibal Lecter?” eu berro. Infelizmente, eu estava tão irritado que não percebo até ser tarde demais que a minha voz atingiu um tom alto demais, e consequentemente, todos no local (e possivelmente mais pessoas além dali, incluindo os moradores do prédio e talvez até os agentes mortos) ouviram a última parte. Sanderson e sua equipe forense se viram para olhar: dois deles com a boca aberta. Eu meio que queria acrescentar: ‘por que todo mundo presume que sou eu a esposa,’ mas não é preciso dizer que tendo em vista o cenário, isso não melhoraria a situação (nem um pouco).
“Certo, já chega,” diz Jack. “Srta. Lounds, a minha declaração oficial, a qual a senhorita pode citar à vontade, é que dois homens adultos foram encontrados mortos por tiros infligidos por um suspeito, ou suspeitos, desconhecidos; e que nós estamos envolvidos em várias etapas de uma intensa investigação. Entendeu? Ótimo. Agora saia daqui, acabamos. E se você mencionar Will no seu artigo, eu farei questão de emitir uma ordem judicial eu mesmo para o seu site dentro de 24 horas.”
Nem Freddie Lounds poderia contra-argumentar Jack quando ele ativava o modo ‘eis que não contestarei nenhum argumento!” e ela obedientemente (apesar de relutantemente) se dissipa em meio à multidão, empunhando a merda do gravador dela diante de si mesma como se fosse um fuzil de assalto. Jack suspira e me dá tapinhas no ombro. “Ignore ela,” ele diz, “ela só está te provocando para conseguir uma reação.”
“É, bem… ela teve uma.”
“Teve mesmo.” ele me olha de soslaio e esboça um sorrisinho. “‘Esposa'?”
Não consigo me impedir de rir (mesmo que, ah, céus, aquilo não fosse tão engraçado), então eu imediatamente paro quando noto Kade Purnell abrindo caminho em direção a nós em meio à multidão. O que diabos ela estava fazendo ali? Eu meio que desejo que Freddie voltasse (Matthew Brown também, se fosse preciso). Jack e eu deixamos um grunhido escapar ao mesmo tempo e trocamos olhares iguais que diziam ‘ah, puta merda’.
“Ora, ora, ora, Sr. Graham,” ela diz quando nos alcança (por algum motivo desconhecido eu aceno com a cabeça a cada vez que ela diz ‘ora'). “Ainda se provando ser o famoso imã de confusões, não é? Parece que você realmente não dá um tempo.”
“Parece que sim,” eu respondo. Eu queria apelar para o lado da soberba e da indiferença, o que era extremamente difícil de se fazer quando eu estava embrulhado em uma manta azul felpuda, mas eu dou o meu melhor.
Ela faz um gesto para o carro. “Isso é um desfecho terrivelmente ruim, Jack,” ela diz. Bem, sim – obviamente. Eu movo os meus pés, irritado. Jack tinha mais autocontrole do que eu, e apenas suspira pesadamente. “Certamente,” ele diz.
“Suponho que não preciso dizer a você que a apreensão de Matthew Brown se tornou uma questão da mais suma prioridade. Isso é ruim para nós, Jack. Muito ruim, de fato.”
“Me inclua no caso,” eu digo, fazendo Jack quase chutar a minha canela para calar a minha boca. “Eu posso garantir que irei enfiá-lo em… (eu quase digo ‘um saco para cadáveres’, mas me impeço no último segundo) “... em uma cela, visando essa questão da mais suma prioridade.”
“Não,” ela diz brutamente. Os olhos dela reluziam com as luzes dos faróis. “Não, acho que não. Você não vai chegar nem perto do caso de Matthew Brown.”
Eu abro a minha boca para protestar. “E ponto final,” ela acrescenta.
“Por que não, quando eu tenho ótimas oportunidades para pegar esse merdinha?”
Ela levanta suas sobrancelhas finas e desenhadas. “Terminologia jubilosa a que você usa, Sr. Graham,” ela diz, “É assim que você normalmente se refere a alguém que escapou da custódia psiquiátrica? Ele é um rapaz bastante traumatizado e tempestuoso.” Ah, pelo amor de Deus. Ela estava se divertindo um pouco demais com aquilo.
“Na verdade ele não escapou de uma unidade psiquiátrica,” responde Jack, solícito, “ele estava sendo transferido para uma prisão federal.” eu faço uma nota mental para trocar um high-five com ele por isso depois.
“E eu estou pouco me lixando,” eu acrescento. “Primeiro e acima de tudo, ele é um babaca arrogante e narcisista que está eliminando pessoas por nenhum motivo além de satisfazer o próprio ego perturbado. Você realmente acredita no que está dizendo, ou isso é só porque eu sou o alvo dele e você está tentando me irritar?”
“Will…” diz Jack, com um tom acautelado.
“As pessoas não são levadas a se comportar como ele sem motivo,” ela diz, de maneira formal.
“Concordo, mas há muito mais pessoas que estão bem mais traumatizadas e feridas do que ele e não se comportam desse jeito.”
“Censura e julgamento perpetuam um ciclo de violência. Ele precisa ser compreendido.”
“Você leu isso em algum memorial por aí?” eu respondo com a voz preenchida de sarcasmo, “suponho que você diria que ele também precise de um abraço?”
“Will…” diz Jack novamente.
“Quem sabe?” ela me oferece um sorrisinho lascivo. “Talvez ele precise.”
“Ele precisa de um abraço na cara. Com um tijolo.”
“Apenas ignore-o,” diz Jack um pouco desesperado, “ele está em choque.” ele me lança um olhar que claramente dizia ‘cale a porra da boca seu idiota’. Por mais que eu estivesse irritado, eu sabia que ele estava certo (relutantemente, eu também sei que eu estava demonstrando uma grande falta de estratégia ao deixá-la me afetar tanto quanto já afetou). Eu me movo um centímetro, fazendo menção de me acomodar, amotinado (e de forma notável) na minha manta.
“Ele certamente está metido em algo,” diz Kade (vá em frente, eu peço mentalmente, diga ‘na merda’, você sabe que quer). “Continue falando assim e a primeira coisa em que ele vai se meter é… em uma grande confusão.”
Eu sinto uma impressão terrível de que Jack ia me forçar a pedir desculpas, mas ele só me pega pelo cotovelo e me afasta dali. “Venha, Will,” ele diz com uma gentileza forçada, “vamos te levar a um dos paramédicos.”
“Sim, vamos,” eu respondo, “Preciso de uma nova manta, essa se desgastou.” ele me aperta tão forte que eu tropeço, sibilando “Pelo amor de Deus, chega. Não dê mais motivos para ela vir atrás de você.” eu obedientemente me calo (antes tarde do que nunca) e nós nos escondemos atrás da ambulância enquanto Kade gritava ordens.
Eu suspiro pesadamente. “Ele não vai parar, Jack. Nós precisamos fazer alguma coisa.”
“Olhe – Will… nós temos a situação sob controle.”
“O cacete.”
“Perdão?”
“Eu disse…”
“Eu ouvi muito bem o que você disse,” rebate Jack.
“Então por que você me pediu para repetir?!” eu estava começando a gritar, e Sanderson e sua equipe forense se viram e me encaram (novamente). Eu os encaro de volta até eles desviarem o olhar. A intensidade do vento ameaçava levar o bilhete das mãos de Andrew – como se Matthew Brown estivesse zombando de todos nós de forma indireta – e Jack e eu nos encaramos, com a cabeça tão quente que eu fico surpreso que não pegamos fogo.
“Permita-me lembrá-lo,” ele diz em um tom baixo e irritado, “que eu perdi dois homens hoje. Bons homens. Homens com família, homens cujas esposas eu terei que visitar depois disso e informar a elas que seus maridos foram executados durante o expediente. Permita-me lembrá-lo também, Agente Graham, que esses homens estavam a trabalho para proteger você – sob as minhas ordens – e que uma pequena cortesia profissional agora não faria mal algum.”
Eu devia me sentir culpado com isso – eu sei que devia. Uma pessoa melhor se desculparia e cederia; mas eu não era a melhor pessoa, e não consigo. Então eu não o faço.
“E permita-me lembrá-lo,” eu digo, “que o motivo pelo qual eu estou nessa situação é porque você me arrastou para ela. O único motivo pelo qual eu ainda não estou casado e feliz, e há vários anos luz de distância dessa confusão é porque você me arrastou até aqui. Você nunca hesita em me arrastar para qualquer situação contanto que isso seja útil para você, não é Jack? Que se danem as consequências, contanto que eu seja a sua carta na manga e o seu identificador doméstico de psicopatas sempre que for conveniente e benéfico para você.” (Isso definitivamente era um golpe baixo: por mais que Jack sempre priorizava resolver casos e salvar vidas, ele não podia ser justamente acusado de sempre estar buscando por atenção pública ou glorificação; ou, de ser um Dr. Chilton. E… ‘identificador de psicopatas'? Do que diabos eu estava falando?). Eu abaixo o meu tom um pouco. “Olha, Jack, só pare de me dizer que está tudo bem, e pare de me dizer que as coisas estão sob controle, quando claramente não estão.”
“Então, o que você prefere, Will? Você quer que eu aja de maneira tão histérica quanto você?”
“Sim!” na verdade, isso era evidentemente mentira. A ideia de Jack agir de maneira tão histérica (quanto eu) era pouco atraente… mesmo que fosse uma oportunidade de ouro para eu dar um tapa na cara dele.
“Sim, eu quero,” eu digo (eu não queria), “porque isso pelo menos seria mais realista. Eu prefiro que você se nivele comigo. Eu odeio essa arrogância, essa condescendência, essa calma…”
“Altivez,” diz Jack. Ele esboça um sorrisinho. “Pensei em sugerir essa para caso o seu dicionário mental de sinônimos esteja sem inspiração.”
“Altivez,” eu digo. Eu suspiro e me inclino no meu assento da ambulância. “Pare de me tratar como uma criança.”
“Irei parar quando você deixar de agir como uma.”
Eu levanto uma sobrancelha. “Sério? Você deixa muitas crianças saírem por aí perfilando assassinos em série?”
“O que eu posso dizer? Você é uma criação incomum com dons raros.”
“Agora você está falando como o Hannibal.”
“Cristo,” diz Jack, “Deus me livre.”
Eu solto uma risada. Acho que Jack e eu nos esquecemos com frequência de que quando nós não estávamos discutindo, nós gostávamos muito um do outro.
*****
Após algumas horas a primeira patrulha de carros começa a se retirar, e Jack vai embora cerca de meia hora depois. Ele me diz para eu ir para o meu apartamento e ficar lá, e que se ele ficar sabendo que eu estou correndo por aí feito um caçador de recompensas atrás de Matthew Brown, ele mesmo vai vir aqui e vai me algemar na mesa dele. Então, ele me dá um abraço, e me diz que eu era um pé no saco dele.
“Obrigado,” eu respondo, “Eu faço o meu melhor.”
“E o seu melhor é admirável,” responde Jack. Ele olha para mim com simpatia. “Cuide-se, garoto,” ele acrescenta.
“Sempre, coroa.”
Ele finge me golpear com um soco, e logo em seguida entra no carro dele. Os nossos olhos se cruzam conforme ele dava partida e gesticulava com a boca ‘vá para dentro!”
Conforme eu volto para dentro do prédio eu noto grupos dos vizinhos amontoados, observando os acontecimentos em pequenos bandos: O Sr. Haversham, a família Ramirez, a senhora que morava no apartamento em frente ao meu, cujo nome eu ainda não sabia, mas que sempre me dizia que eu a lembrava do filho dela quando eu a via. Bom, pessoas normais – reais, capazes e bem-intencionadas, e o mais distantes possível de mim e da minha vida de merda – que se depararam com toda essa loucura diante deles por minha causa. Seus rostos cansados sob as luzes piscantes das viaturas, um chiaroscuro de medo e dúvida. ‘Me desculpem’ eu queria dizer a eles, ‘eu não sabia que nada disso ia acontecer. Como eu podia saber?’
Eu queria tanto falar com você nesse momento que quase doía, e eu respiro fundo para me estabilizar e me acalmar. Conforme eu empurro a porta eu vejo o meu reflexo no painel de vidro. Eu parecia vazio. Tenso. Confiante, mas desesperado.
Assim que eu adentro o apartamento, eu sei que o conselho de Jack não funcionaria. Eu estava cansado demais para só ficar sentado ali esperando; era como se as paredes estivessem me sufocando. Eu percebo que ainda estava usando aquela droga de manta térmica, e eu sinto uma vontade infantil de jogá-la pelo outro lado da sala. Eu caio na minha cadeira e ligo a televisão; saltando de um canal para o outro: todos os canais locais falavam de Matthew Brown. Haviam algumas sitcoms passando, cada uma contando com atores que pareciam manequins, com cabelos brilhosos e grandes dentes brancos, e um documentário bobo sobre suricatos (com um título bastante dúbio que levava o nome de ‘Os Pequenos Trapaceiros da Natureza'). Os suricatos saltavam na tela como se estivessem sob efeito de crack, e eu sei que deveria achar isso fofo e adorável, mas era só irritante, então eu troco o canal. O próximo era um programa de culinária – nenhuma das comidas eram tão impressionantes quanto as suas. Ah, que se foda, eu digo em voz alta. Eu me levanto, e sento novamente, e depois eu finalmente pego o meu casaco e me encaminho até a porta. Eu vou ignorar as instruções de Jack – que se danem as algemas – e depois de vagar pelas ruas eu acabo dentro de um bar jogando sinuca contra mim mesmo por duas horas até o meu pulso começar a doer e eu começar a ficar vesgo de tanto mirar com o taco. Eu estava começando a pensar em ir embora (e ir para onde? Merda, eu não sei), quando eu dou um passo para longe da mesa e o meu ombro se esbarra com o de um homem alto de aparência vil, usando um par de calças jeans rasgadas e uma camisa do Slipknot. Foi só um leve empurrão, mas ele se vira tão rápido quanto o estalar de um chicote: “Preste atenção, bonitinho,” ele diz com desdém.
“Preste atenção você, porra,” eu digo. O que eu tinha que admitir que era uma resposta bem ruim – mas apesar disso, ele fica carente das desculpas que eu devia dar a ele, as quais ele definitivamente estava esperando. A esse ponto eu decido que não iria embora, apenas para irritá-lo mais, e fico ali. Acontece que isso se torna um erro, porque eu logo sou abordado por um homem miseravelmente bêbado tagarelando, praticamente me prendendo no meu banco e insistindo em recontar – em longos e tortuosos detalhes – sobre uma briga que ele teve com o chefe dele. A história se distinguia entre uma grande complexidade e um tédio irremediável.
“Daí ele me disse – veja só – ele me disse que eu podia ir para a convenção sozinho…”
“Uau,” eu digo. “Imagine só.”
“E aí ele saiu! Só foi embora! Mas antes de ir, ele me disse…”
“É, que complicado.” eu estava bocejando tanto que era provável que eu fosse deslocar a minha própria mandíbula.
“...E que eu devia só jogar o portfólio fora de uma vez…”
“Ah, meu Deus,” eu digo, “que desgraçado.”
“Não, não cara, foi a minha namorada quem disse isso.”
“Ah… certo. Perdão, eu ouvi errado.”
“Tudo bem, está bem barulhento aqui,” ele toma um gole da cerveja dele. “Obrigado, amigo,” ele diz, “Você é um ótimo ouvinte. Você é terapeuta ou algo assim? Você é bastante empático, sabe?”
Ele apoia a cabeça nas mãos, e eu fico bastante tentado a fazer o mesmo. “Sim,” eu respondo sombriamente, “você não é a primeira pessoa que pensa isso.”
Ele me olha, sorrindo bêbado “Você é um cara decente,” ele diz, “eu devia pagar uma bebida para você. É o mínimo que posso fazer. Do que você gostaria?”
“Obrigado,” eu respondo, “mas estou bem. Eu realmente preciso ir.” eu salto do banco como a porra de uma gazela e me encaminho até a porta antes que ele possa contestar. A brisa da noite gelada bate contra o meu rosto, e eu fico ali por um momento para me ajustar antes de começar o trajeto de volta ao meu apartamento. Eu só chego até alguns quarteirões, até que alguém me chama.
“Ei, ei, senhor!” Cristo, era o cara do bar com a camisa do Slipknot, com dois – não, três – amigos. Eles podiam ser irmãos – todos tinham os mesmos olhos constritos (um pouco fechados demais) e mandíbulas rígidas. Eu reviro os olhos. Acho que ‘senhor’ era pelo menos um pouco superior à ‘bonitinho.’
“Tem dinheiro sobrando?”
“Não.”
“Ah, sério? Tem certeza disso?”
Eu finjo que penso na pergunta dele. “Sim, obrigado, tenho certeza,” eu respondo.
Ele dá um passo ameaçador na minha direção. “Última chance de mudar de ideia, parceiro.”
“Ah, sério, vai se foder,” eu respondo. “Eu não tenho dinheiro, e estando desempregado eu não possuo os meios para obtê-lo.” pensando alto, eu acrescento: “Então, na verdade, sou eu quem devia pedir um pouco para você, parceiro.”
Um dos comparsas solta uma risada de desdém, e pergunta: “Esse cara está falando sério?”
Eu sei que eu devia estar assustado (e que provocá-los era uma atitude muito, muito estúpida), mas bem, era tudo uma questão de perspectiva. Considerando as coisas que eu já vi (sem contar as que eu já fiz… Cristo) com o passar dos últimos anos, um punhado de arruaceiros em um beco meio que perdiam o impacto. Para ser honesto, isso me incomoda mais do que qualquer coisa. Depois de tudo o que eu passei, eu queria dizer, dá um tempo, porra.
Apesar disso, eles eram quatro e eu era apenas um, o que não era bom diante dos padrões de qualquer pessoa (além de você, é claro, que provavelmente consideraria um contra quatro uma excelente oportunidade e um desafio bastante divertido), e isso é agravado pelo fato de que eu não tinha uma arma e nem oportunidades imediatas de improvisar uma. Então, no fim das contas, eu adoto melhor opção restante, que era correr. Eu estava mais em forma do que eles, sem contar que eu havia passado os últimos dias exposto à grandes quantidades de adrenalina, e eu consigo sair do beco antes de eles conseguirem processar o que estava acontecendo, e após isso eles fazem uma tentativa de me alcançar. As ruas se estendiam, longas e retas como uma flecha em ambos os lados – eles com certeza me veriam se eu ficasse ali, então eu volto por um beco contíguo e localizo uma caçamba de lixo onde eu podia me esconder. Fico feliz ao perceber que eu mal estava ofegante, considerando que o único exercício que eu fazia era ficar andando pelo meu apartamento tagarelando.
Eu consigo ouvi-los no fim do quarteirão, me xingando com variações de “Para onde o merdinha foi?” e eu espero até que a voz deles se dissipem e eu consiga sair de trás da caçamba.. Honestamente, que dia do cacete.
E então, logo em seguida. É aí que acontece.
Eu ouço os passos primeiro, o inegável tap tap tap no chão de pés contra o cascalho; não se incomodando em fazer silêncio, mas andando calmamente com leveza o suficiente para não se fazer imediatamente conspícuo. Era como um metrônomo zumbindo, se aproximando mais e mais com uma inevitabilidade terrível… e o pior de tudo (o pior de tudo, de longe) isso é pontuado por uma voz terrivelmente familiar que cantarola: “Olá. Sr. Graham. Metido em confusão novamente, vejo eu?”
A minha mente escurece, de verdade. De todos os mais terríveis e estranhos momentos… era como se fosse uma grande piada cósmica. De repente eu vejo uma imagem de mim mesmo durante o dia: falando com Alana e Jack, Freddie e Kade; olhando para os rostos apreensivos dos vizinhos; fingindo ouvir a história ridícula daquele homem no bar… tudo isso enquanto eu me sentia tão seguro e irrestrito dentro da minha própria conjectura e imaginação, a minha própria ignorância; completamente e totalmente despreparado para isso. Que essa noite – de todas as malditas noites – seria o momento em que tudo isso aconteceria.
Mas é claro que eu não expresso nada disso. Eu só viro o rosto para a voz, e conforme eu o faço, lenta e deliberadamente, eu me levanto.
“Olá, Matthew,” eu respondo com calma. “Há quanto tempo.”
Chapter 17
Notes:
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Chapter Text
Matthew Brown oferece sua longa mão pálida para me ajudar a levantar, o que eu faço questão de ignorar. “Então, nos encontramos novamente!” ele diz. Ele parecia estar delirantemente contente com isso.
Eu me inclino e limpo a poeira dos meus joelhos. “Sim, parece que sim,” eu respondo quando me endireito.
“Você não parece muito contente em me ver, Sr. Graham.”
“Por que eu estaria?”
“Não sei… um pouco de gratidão seria bom. Tecnicamente, eu fui para a prisão por você.”
Eu tenho vontade de responder ‘é, bem, eu não pedi para você fazer isso!” mas não havia como eu dizer isso sem soar infantil, então no fim das contas eu não digo nada (especialmente porque – tecnicamente – ele foi).
“Eu não estou bravo com você por isso, aliás. Ou, não muito, pelo menos.” Ele expõe os dentes me oferecendo um sorriso mordaz.
“Não há motivos para você ficar,” eu respondo. “A culpa não foi minha por você ter sido pego.”
“Não, suponho que foi por culpa do Sr. Crawford, não é? Eu darei uma palavrinha com ele depois.” O cacete que vai, eu penso. “Mas não há pressa, certo?” ele me olha como se estivesse esperando que eu confirmasse. “Uma coisa de cada vez!”
“A primeira sendo…?” eu me inclino contra a parede – tentando parecer casual e despreocupado, como se estar sendo emboscado por ele fosse nada além de uma pequena inconveniência – mas eu percebo que isso só me faz parecer bem mais baixo do que ele (o que não era bom) então eu endireito a postura novamente.
“Eu quero falar com você,” ele diz com seriedade, “e eu quero que você ouça. Eu quero te contar sobre os meus planos.”
“Sim, eu tenho visto muitas coisas relacionadas aos seus planos.”
“Você ficou impressionado, Sr. Graham? Você devia estar. Eu fiz tudo por você, tudo. Você sabe disso, não é?”
“Eu sei. Você não foi muito sutil.”
“Foi a minha homenagem.” ele prolonga a palavra na voz com afeição, a enrolando pela língua antes de falar. “A minha homenagem a você. Todas aquelas pessoas – aquelas pessoinhas invasivas, interferindo – todas tentando se apoderar do seu espaço, como se tivessem o direito de estar lá; como se eles pudessem entender você do jeito que eu entendo. Foi agir com prepotência. Foi desrespeitoso.”
“O que você sabe sobre isso?” eu respondo. Deus, a maneira como ele falava comigo era tão esquisita: como se eu fosse um bem de grande valor que ele preferia destruir à permitir que alguém possuísse.
“Aqueles caras do lado de fora da sua casa. Te espionando. E aquele homem. A maneira como ele te seguia – te seguindo o tempo todo, desesperado pela sua atenção. Você não sabia sobre ele, não é? Como ele te seguia quando ele pensava que você não conseguia vê-lo? Mas eu sabia.” Sem tirar os olhos do meu rosto, ele enfia a mão no bolso do casaco e tira dali uma grande faca, a lâmina serrilhada, reluzindo perversamente sob a luz do luar como dentes de crocodilo. Ele não faz mais nada, não me ameaça com ela, mas ele claramente queria que eu soubesse que ela estava ali. O meu coração se afunda um pouco mais, mas eu forço a minha voz a se manter estável.
“Aquele homem,” eu pergunto com cautela, “O que estava me seguindo. O que mais você sabia sobre ele?”
Ele parece um pouco confuso, e enfia a faca distraidamente no bolso novamente. “O que você quer dizer?” ele pergunta.
“Você está me dizendo que o matou só porque ele estava me seguindo?” a variação no meu tom era pouca e mal se fazia presente, mas eu queria confirmar se o que aconteceu com Michael realmente foi um ato de retribuição (o que complicaria um pouco as coisas) ou se era apenas uma marca registrada da psicopatia de Matthew Brown (o que não complicara nada ).
“Bem, é claro,” ele diz, seu rosto se iluminando – como se ele estivesse aliviado por eu finalmente estar começando a entender; estar começando a entendê-lo. “Ele presumiu. Ele pensou que ele era bom o suficiente para estar no seu mundo.”
Cristo, eu sabia. Apesar disso, eu ainda estava feliz – estar na posição de gratidão forçada com Matthew Brown seria um pouco demais, levando tudo em conta. “Você parece estar se entendendo bem,” é tudo o que eu respondo.
“Ah, eu sei o que você vai dizer,” ele diz e eu apenas observo, fascinado, apesar de mim mesmo, as sobrancelhas dele se franzindo de forma petulante. “Você acha que eu fracassei, não é? Eu sei que não funcionou antes, mas eu vou recompensar você: eu irei provar a mim mesmo. Eu quero que você saiba que eu faria tudo de novo. Por você eu faria. Matar o Dr. Lecter, quero dizer.”
“Dificilmente você vai poder matá-lo ‘novamente’ já que você falhou completamente da minha primeira vez,” eu respondo com leveza.
“Eu cheguei muito perto, não foi?” ele pausa e me olha – ele queria me ouvir dizendo isso.
“Acho que sim.” eu digo a mim mesmo que estou só indo na onda, mas eu sabia que não estava; não de verdade. Se não fosse por Jack, é claro que ele teria te matado.
Ele assente, agora satisfeito que eu estava o dando o devido tributo por uma tarefa (mais ou menos) bem feita. “Eu faria, se você me pedisse,” ele diz. Ele parecia tão esperançoso com a possibilidade de me satisfazer que por um segundo eu fico genuinamente surpreso pelo tamanho daquela consideração: devoto, calculista e impiedoso. Por que você está fazendo isso, eu queria perguntá-lo, o que eu tenho? Mas é claro que não pergunto; porque eu realmente achava que não conseguiria suportar a resposta.
Ele me encara novamente agora, aquele sorrisinho perturbado contraindo as bordas dos lábios dele, e eu exijo todo o meu esforço para não me afastar. Porra, estava tão frio. Havia vapor saindo da grade de ventilação na parede, e a maneira como o vapor capta a luz e dança pelo ar o fazia parecer vagamente horripilante e sobrenatural. Havia um som terrível de moagem vindo do prédio vizinho, o que só era um adendo à qualidade surreal semelhante a de pesadelo da cena toda, e ao final do beco havia o som de vozes, e os meus olhos automaticamente se viram para lá: festeiros da madrugada, voltando para casa conforme os bares fechavam. Um deles cantava embriagado enquanto uma mulher gargalhava intensamente, e a voz de um homem dizia ‘Frankie! Você é inacreditável!” de novo e de novo. A existência deles parecia tão distante da minha que era como se eu estivesse os observando através de um painel de vidro: A Exibição ‘Como as Pessoas Normais Vivem.’
Matthew Brown segue o meu olhar, e me oferece um sorriso grotesco. “Não eleve as suas esperanças,” ele diz. “Você está sozinho agora. Ninguém sabe que você está aqui. Sou só eu e você.” ele sorri alegremente: “Como nos velhos tempos!” ele dá um passo na minha direção e eu me recuso a me mexer, observando e esperando, mantendo a posição. Ele para e me olha, impassível, um brilho esquisito em seus pequenos olhos trêmulos. “Falando dos velhos tempos, Sr. Graham,” ele diz, “Eu sei que você ainda é obcecado por ele. Pelo Dr. Lecter. Eu sei que você é.”
Puta merda. “O que te faz pensar isso?” eu pergunto. Eu estava impressionado pelo quão neutro e indiferente eu consigo soar, como se não importasse; como se eu não pudesse me importar menos.
“O que você sabe sobre experimentos?” ele diz.
“O suficiente.”
“Porque eu estava curioso, então eu fiz um experimento,” ele responde. “Em um experimento tradicional, você tem variáveis independentes, e você as manipula, e aí você observa o efeito da manipulação das suas variáveis dependentes.”
“Você vai chegar logo ao ponto?” eu pergunto, “Porque a vida é uma coisa muito curta e preciosa.” o meu coração palpitava em um ritmo desagradável, porque de repente eu sabia exatamente onde isso daria.
“Você era a minha variável dependente,” ele responde.
“Ah, é?”
“Ah, é. E a minha hipótese foi confirmada pela sua rápida resposta à minha mensagenzinha misteriosa no TattleCrime. Você realmente caiu nessa, não é? Eu sabia que cairia.”
Ah, Deus, eu estava certo – o meu coração quase se despedaça, porque eu tinha certeza de que era você. A minha repulsa prévia por ele, já ardente, alcança um novo nível de intensidade pela maneira como ele invadiu a nossa danse macabre particular. É claro, eu não permito que nada disso se reflita na minha expressão. Ao invés, eu respondo em uma voz tediosa: “Ah, então era você. Foi o que eu pensei. O nome de usuário foi meio óbvio, não acha?”
Ele fica um pouco surpreso com isso. Ótimo, merdinha pretensioso.
“Eu te contei sobre essa conversa, não é? Na minha estadia no Hospital de Baltimore? Ou você estava ouvindo à uma das minhas sessões com o Dr. Chilton,” eu estava falando mais comigo mesmo do que com ele, desenvolvendo aquilo conforme eu ia na onda. Eu sei exatamente o porquê: eu esqueci disso porque eu queria tanto acreditar em você. Eu penso em perguntar a ele sobre as ligações também, mas deixo isso de lado por precaução. Eu não iria providenciar uma emboscada assim para a grande satisfação dele; e se não foi ele…?
“Por curiosidade,” eu digo, curioso apesar de mim mesmo, “como você conseguiu acesso à internet na prisão?”
“Vejo que você não andou acompanhando o meu progresso,” ele diz, estalando a língua com lamento, e antes que eu consiga dizer ‘é claro que não, por que diabos eu me daria o trabalho de acompanhar o seu progresso, seu babaca de merda?’ ele acrescenta; “Eu fui transferido, não é: unidade psiquiátrica. Os médicos são tão fáceis de enganar, eles acreditam em qualquer coisa que você diga a eles, qualquer coisa mesmo. E é claro que eu aprendi com o melhor.” ele saltita de maneira ridiculamente teatral antes de voltar à posição e esboçar um sorrisinho: “As comodidades de um hospital são bem mais generosas do que as de uma prisão.”
“Não são, não,” eu respondo abruptamente. “Não são tão generosas assim. Não de modo que se possa acessar sites restritos da internet.”
“É claro que não,” ele diz, “mas elas são bem mais flexíveis. Eu tinha um celular roubado.” Merda – um celular. Então deve ter sido ele. Mas se foi, como ele sabia o meu número?
“Então você tem seus próprios fãs agora?” eu respondo.
“Um ou dois.”
“Que bom para você,” eu digo secamente.
“É claro que os funcionários perceberam eventualmente,” ele diz. “Perceberam que eu estava fingindo: que eu não era louco, mas perverso. Eu diria que foi uma pena, mas é claro que a viagem de volta à prisão teve ótimos resultados. Veja só,” ele sorri perturbadoramente para mim, “não foi uma pena, de forma alguma.”
“Acho que pode se dizer que sim.”
“Acho que você pode, Sr. Graham.”
“Você pode me chamar de Will,” eu digo. “Toda vez que você me chama de ‘Sr. Graham’ eu fico esperando me virar e ver o meu pai.”
“Eu provavelmente devia te chamar de Agente Graham,” ele responde, de forma bajuladora, e eu começo a me arrepender por ter dito aquilo – porque sério, como se eu me importasse com a maneira como ele me chamava.
“Por que se dar o trabalho?” eu pergunto, mesmo tendo decidido, momentos atrás, que eu não perguntaria. “Por que você se importa? Por que se dar o trabalho de fazer tudo isso?”
Ele fica genuinamente surpreso com isso. “Porque é você,” ele diz, simplesmente. “Porque você me compreende. Você é um gavião, assim como eu. Porque nós…”
Eu sei que ele iria dizer algum derivado de ‘nós somos iguais,’ ou até ‘nós pertencemos um ao outro’ se ele fosse apelar para frases poéticas – e eu não conseguia suportar nenhuma das hipóteses, então eu o interrompo antes que ele possa continuar. Mas mesmo quando eu o faço, é impossível ignorar o quão semelhante ele soava com a maneira como eu falei de você com a Alana.
“Você matou três pessoas na semana passada para provar para mim que eu compreendo você?” eu respondo. “Você tem ideia do quão perturbador isso soa?”
Ele anda ao meu redor em círculos, e eu me viro para continuar olhando para ele. “É claro,” ele responde, “mas eu sei que você entende, mesmo que finja que não. Você é tão perturbado quanto eu, e eu sei que você entende.”
“Não,” eu digo. “Eu não sou. Eu não sou nada igual a você.”
“Mas você é, sim,” ele responde. “Você realmente é. Eu desconfiei disso quando li sobre você, e quando eles te prenderam, eu soube. Eu percebi bem na primeira vez em que vi o seu rosto.”
Eu me pergunto por quanto tempo ambos conseguiríamos ficar ali repetindo: “Você é!”, “Não sou!”, “É sim!”, “Não, não sou – vai se foder,” até que o sol nascesse e nós dois caíssemos de exaustão (concordando em um empate); ou se eu conseguiria achar um jeito de tirar aquele maldito sorriso da cara dele de uma vez. Era complicado: não havia nada que eu pudesse usar como arma, e não ser que eu conseguisse o pegar de surpresa a chance de derrubá-lo estando desarmado não era muito atraente. Eu era forte (mas ele também era); e ele possuía uma determinação imprudente e implacável (mas… eu também possuía). Então eu examino a figura esguia dele, tentando estabelecer um ponto de ataque, quando de repente a minha atenção se desvia com um movimento no final do beco. Ah, Deus, era um dos arruaceiros do bar. Mas que porra? Eu não conseguia decidir se eu devia estar aliviado ou aterrorizado. E o que diabos Matthew Brown faria? Ele estava de costas para a rua e não percebeu nada ainda, mas o cara estava olhando o beco agora e inevitavelmente me identifica. “Ei, ele está aqui!” ele grita, vitorioso. Ele começa a correr na nossa direção. “Ei, gente! Eu encontrei ele!”
Matthew Brown se vira, seus olhos brilhando, e ele esboça um sorriso astucioso, seus dentes afiados reluzindo com a luz do luar. O cara do bar também estava sorrindo, mas algum instinto primitivo claramente o alerta de que havia algo ali em que ele não devia se meter, e seu sorriso triunfante começa a se dissipar conforme ele dá um passo para trás, ao tempo em que Matthew Brown dá um passo para frente.
“Acho que encontrou,” ele diz em uma voz melodiosa estranha, “mas sabe… quem encontra nem sempre possui, apesar do que você já deve ter ouvido.” ele dá mais um passo para frente, era quase que gracioso a forma como ele o faz, algo de airoso, então, em seguida ele move os braços de maneira fugaz para envolver a cabeça do cara com as mãos, a torcendo violentamente. Em seguida, há um som repulsivo de osso se partindo, e os olhos do cara se arregalam brevemente em choque antes de ele cair no chão, seu pescoço quebrado. Tudo acontece em um instante: um minuto e ele estava ali à espreita, com um ar de ameaça, e no outro ele estava no chão como um fantoche cujas cordas foram cortadas. Isso me lembra de um documentário ambiental que eu vi uma vez, um louva-deus fazendo uma investida para pegar sua presa. Matthew Brown possuía o mesmo impulso robótico, os mesmos reflexos estranhos; os movimentos dele eram insólitos e inumanos. Eu tapo a boca com a mão para abafar o grunhido de surpresa que eu queria emitir por instinto.
“Bem, é isso,” ele diz abruptamente. Ele se vira para mim e eu logo tiro a mão da boca, tentando parecer despreocupado. “Todos parecem querer um pedaço de você,” ele continua, “mas eles não podem te ter. Você é meu. Eu te encontrei primeiro.”
Eu o encaro de volta, direto nos olhos dele. É isso; o momento da verdade. Estou pronto, eu acho, estou pronto de uma vez por todas. Eu quase tremo de ansiedade. Eu me lembro daquela conversa com você: “Como você faria?” você perguntou. Com as minhas mãos.
Matthew Brown fala novamente: ainda falando. “Eu quero que você venha comigo,” ele diz. Ele dá um passo na minha direção. “Para algum lugar onde nós possamos discutir as coisas apropriadamente. Não aqui.”
“Bem, então você tem um problema,” eu respondo, “porque eu não vou a lugar algum com você.”
“Eu posso te forçar, Sr. Graham.”
“Você pode tentar, Sr. Brown.”
Ele sorri para mim, quase que com pena. “Não foi um pedido. Você sabe que não tem escolha aqui, não é? Você me deve, Sr. Graham. Você me deve. Eu já fui muito paciente com você até aqui, mas você realmente deveria parar com isso enquanto pode.” Parte de mim queria simular incompreensão (Parar com isso? Moi? Como você ousa?), mas eu só continuo o encarando, tenso e vigilante, cada músculos tenso, apto e pronto. Ele me encara de volta, e levanta a mão brevemente como se quisesse me tocar, mas ele muda de ideia no último minuto e a abaixa novamente. “No entanto, para ser honesto,” ele diz, com mais um sorriso de canto. “Eu não achei que você viria sem resistir. Eu ficaria bem desapontado se fosse o caso.”
Eu sorrio de volta. “Nesse caso,” eu respondo, “Estou feliz por não ter desapontado você.” Dessa vez o meu sorriso é mais genuíno, porque na minha mente eu já imaginei exatamente como tudo vai acontecer. Ele está de costas para a rua novamente, e a questão era que eu sabia de algo que ele não sabia. No fim do beco, os outros comparsas do bar se juntam. A qualquer momento – a qualquer momento – eles veriam o amigo caído deles, e viriam correndo. E no momento em que isso acontecer, eu irei pegar a cara nojenta de rato de Matthew Brown e irei arremessá-la contra a porra da parede. E depois disso eu o atacaria de verdade. Eu sinto uma onda de ansiedade, e eu sei que devia estar enojado e em choque por isso, mas eu não estava. Subitamente, eu movo os meus ombros, calculando a quantia de peso que eu precisaria, o melhor ângulo para atacá-lo. Eu sei que consigo: eu quero.
Ah, hora do show. O cara do Slipknot vê a figura caída no chão quase que ao mesmo tempo em que ele me vê, gritando “Joe! Joe! Que merda aconteceu?!” – e havia um traço de angústia tão genuíno na voz dele que eu realmente sinto uma breve pontada de simpatia por ele. Matthew Brown faz um som de irritação, como se três arruaceiros malucos não fossem nada além de um pequeno inconveniente, e eu não estivesse prestes a me virar nos meus calcanhares para socar a cara dele, quando uma bala passa retinindo pela minha orelha e se aloja na parede fazendo a poeira se levantar dos tijolos. Ela só me erra por uma questão de centímetros. Ah, caralho, caralho. Eu não levado uma arma em conta. Uma arma era a variável desconhecida em um dos experimentos perturbados de Matthew Brown. Como diabos eu devia saber que eles tinham uma arma? Eles não a usaram antes. Os meus instintos de treinamento entram em ação e eu abaixo a cabeça e me lanço para o lado oposto, e outra bala é disparada, dessa vez ricocheteando em um cano. O meu pé se enrosca na jaqueta do cara morto – Joe – e eu tropeço ligeiramente, pegando a lateral da caçamba para me impedir de cair. O cara do Slipknot se aproximava, furioso como um touro fora de si, seus dois amigos (irmãos?) em seu encalço. “Eu vou te matar!” ele grita, como se fosse um mantra. “Eu vou te matar, seu desgraçado. Eu vou te matar, eu vou te matar.”
“Não ouse tocar nele, porra!” grita Matthew Brown.
Então, de repente tudo vai pro inferno, conforme alguém com braços incrivelmente fortes (muito fortes, cacete) me agarra e me lança contra o chão com tanta força que o ar some do meu corpo. Ah, meu Deus, eu penso, lá vamos nós – e de repente eu sou golpeado por uma sensação agonizante de ironia, porque de todos os fins prováveis que eu imaginei para mim mesmo eu nunca imaginei um que aconteceria assim: incapacitado em um beco depois de um assalto que deu errado. Eu fecho os olhos, espero pela inevitável lâmina ou bota atingir o meu rosto, mas nada acontece. Algo (... alguém? Merda, o que estava acontecendo) me empurra para trás da caçamba e eu ouço gritos, berros, e o som nauseante de cartilagem raspando contra ossos, a arma sendo descarregada novamente, e no meu próprio desespero eu tento puxar o ar de volta para os meus pulmões. Era terrível, como um daqueles sonhos onde você quer correr mas não pode. Não pode fugir, não pode correr, não pode gritar, não pode fazer nada. Tudo o que eu consigo fazer é ficar aqui com aquela carnificina acontecendo ao meu redor e esperar até que seja a minha vez. Alguém grita “fique aqui e não se mova.” Quem? A pessoa se referia a mim? Era o Matthew Brown? Deus, o que diabos estava acontecendo? Alguém grita também, mas eu não consigo compreender o que eles estavam falando – de onde eu estava eu não conseguia ver nada, porque a droga da caçamba estava no caminho.
Eu ouço um estrépito de pessoas correndo, e de repente eu sinto uma chama de esperança, esperando que fosse os policiais. Alguém claramente deve ter ouvido a confusão àquele ponto? Estava tão alto, Jack deve ter ouvido lá do Quantico. Por favor, que seja você Jack, eu penso, eu ficaria tão grato, eu nunca mais daria uma de esperto com você. A maioria das pessoas apelaria para Deus em momentos assim, murmurando intervenções em troca de promessas que elas nunca mantinham. Por que diabos eu estava invocando Jack Crawford? Não, os passos estavam se dissipando – a pessoa estava fugindo. Eu penso que consigo ouvir mais sons de socos antes de perceber que o meu coração estava batendo loucamente nos meus ouvidos, as artérias pulsando e zunindo. Ah, merda, merda, isso é ruim, é muito ruim. Se alguém me cortasse (se Matthew Brown me cortasse com aquela faquinha com a lâmina igual a de pequenos dentes afiados) e pelo meu coração estar batendo de forma tão rápida eu sangraria até a morte em minutos em um beco: toda a minha imaginação, toda a minha empatia – a minha vida toda se esvaindo nas entranhas de um beco esquecido por Deus. Eu imagino Jack e Zeller e Price: suas expressões de choque, paralisados conforme eles me levavam para o mortuário. Alana choraria. Talvez você lesse sobre isso em um jornal: bebendo vespetrò em alguma varanda estrangeira usando um chapéu Panamá. Você choraria também? de repente eu sinto uma onda de impotência. Ah, Deus, eu não quero morrer aqui: não aqui, não assim. Não sozinho. Não sem você. Isso é culpa sua, isso é tudo culpa sua. Por que você não nos deixou cair, um nos braços do outro, para que o oceano se aposasse de nós? Por que você não permitiu que nós partíssemos juntos? Nós podíamos ter partido juntos. Era a porra do meu estilo.
Se eu apertasse os olhos mais um pouco eu conseguiria focar o suficiente para ver alguns pares de pés na minha frente, e a primeira coisa que eu noto é a camisa do Slipknot do cara do bar. Ele estava encolhido no chão, mas apesar do rosto dele estar coberto pelas sombras eu ainda conseguia ver o ângulo irregular e torcido do pescoço dele. Os olhos dele estavam abertos, era como se ele estivesse me encarando diretamente, com seus olhos cegos e vítreos. Ele estava morto? Foi o Matthew Brown? Ah, porra, aposto que foi, aposto que foi o Matthew Brown… ele fez isso, e agora ele estava voltando para me pegar. Eu viro de costas, ainda com dificuldade de puxar o ar para os meus pulmões. A lua afiada no céu, como um pedaço reluzente de osso, e eu consigo ver a minha respiração se elevando em nuvens frias de vapor. As estrelas também eram víviidas, pedacinhos de gelo brilhantes na escuridão, mas eu não sabia o nome das constelações. Você saberia. “Acredito que algumas das nossas estrelas sempre serão as mesmas” – foi eu quem disse isso ou foi você? Acho que foi você. Ah, Deus, eu devo ter batido a cabeça quando me abaixei, eu não conseguia pensar direito. Eu estava tão ciente daqueles detalhezinhos irrelevantes e estúpidos: a rigidez dos paralelepípedos sob a minha cabeça, o meu pé esquerdo sob a minha perna direita, e a maneira como os meus dedos tremiam e pulsavam com o frio. Levante-se, Levante-se, Will, eu murmuro para mim mesmo, levante AGORA, porra. De soslaio, as sombras se solidificavam, e eu percebo que alguém estava se inclinando na minha frente, estendendo a mão; e eu cegamente estendo a minha e agarro o pulso do indivíduo, me segurando, o puxando na minha direção para ver quem era.
E eu olho para cima.
E é você.
Notes:
Chapter 18
Notes:
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Chapter Text
Ah, meu Deus.
Ah, Deus. Ah, Deus.
Eu imaginei esse momento tantas vezes, roteirizando, ensaiando e repassando exatamente o que eu diria a você. Algo idôneo e digno, um pouco enigmático – xícaras de chá, o tempo e as leis da desordem – um cenário onde eu sou bem mais articulado do que na vida real, e que geralmente acabava com uma versão completamente irrealista de você, convenientemente tímido, me ouvindo com cautela antes de se desculpar e implorar pelo meu perdão (o que eu concedo, eventualmente, e depois disso nós nos beijamos. Espera… o quê?). E agora você realmente estava ali, bem na minha frente – Deus, você realmente estava – tudo o que eu consigo dizer é um nada digno: “Hannibal, que porra é essa?”
A sua feição treme daquela maneira tenaz de sempre, e eu não consigo dizer se você estava tentando não rir, ou se estava tentando não me repreender por usar um palavrão com você – e se fosse este último, então você se arrependeria de ter voltado à vida, porque se você me repreendesse eu te mataria de novo eu mesmo. Eu ainda estava segurando o seu pulso, o meu aperto tão forte que eu conseguia sentir os delicados ossos do seu pulso em atrito. Isso devia estar doendo, mas você não se afasta.
“Kaip gera vėl matyti tavo veidą¹,” você diz baixo, “Olá, Will.”
“Eu não acredito nisso,” eu sussurro. A minha voz vacila um pouco na última parte, seca e rouca. Eu parecia muito hesitante, muito fraco e distante dali.
“Você precisa acreditar,” você responde. “Está acontecendo.”
“Eu não… eu não estava… Deus. Merda. Merda. Como você pode estar aqui?”
“Porque a hora finalmente chegou,” você responde. Você me examina por alguns segundos, e depois fixa os seus olhos nos meus. Eu te encaro de volta, entorpecido. Eu queria te tocar de verdade – tocar o seu rosto – mas eu não o faço.
“Deus, você realmente voltou,” eu digo. “Você realmente está aqui, na minha frente.” a minha voz vacila novamente. “Eu imaginei isso… tantas vezes.”
Você sorri com isso, e era um daqueles seus sorrisos raros e genuínos. “Assim como eu,” você responde, “e aqui estamos.” E em seguida, nós apenas nos olhamos, e eu não digo nada. O meu coração palpita nos meus ouvidos, e não havia mais nada além do seu rosto anguloso, dos seus olhos escuros, e a sensação do seu pulso sob os meus dedos.
Eu queria gritar com você, jogar os meus braços ao seu redor, beijar você, socar você, e perguntar onde diabos você esteve quando eu precisei de você (porra, eu precisava tanto de você), mas eu não faço nada disso, porque eu não sabia como. Então, a alguns quarteirões de distância vem o som familiar de sirenes, e nós dois viramos o rosto ao mesmo tempo. “Will, ouça-me,” você diz, no seu tom pacífico de sempre (como diabos você podia estar tão calmo?), “Imagino que você tenha muito a dizer para mim, e eu ficarei feliz em responder quaisquer perguntas que você possa ter, mas aqui não é nem o lugar e nem a hora. Você consegue andar?”
Me pergunto o que você faria se eu dissesse não. Eu estava um pouco tentado a tentar, apenas para obliterar aquela sua fachada de calma sobrenatural, mas é claro que eu não digo isso (e além disso, isso não te incomodaria de qualquer forma, não é? Você só suspiraria e me apoiaria no seu ombro, e depois sairia dali). “Sim, eu consigo andar,” eu respondo baixo, em uma voz rouca ligeiramente diferente da minha voz normal. “Me ajude a levantar.”
“Então vamos,” você responde. Você me puxa com facilidade como se eu não pesasse nada, e depois vira a minha cabeça de um lado para o outro com o dedo e vira o ângulo do meu casaco para examinar a minha camisa. Eu percebo tardiamente que você estava procurando por lesões; você acena com a cabeça satisfeito quando não acha nenhuma.
“A sua casa é bem mais próxima do que a minha,” você diz, “há alguma possibilidade de haver policiais presentes lá?” eu abro a boca para perguntar como diabos você sabia onde eu morava (quanto mais sobre a presença de policiais lá), mas eu não me dou o trabalho porque – é claro que você sabia disso. Eu verifico o meu relógio. “Eu não tenho certeza,” eu respondo. “Eu não sei… é possível. Talvez eles ainda não tenham ido embora completamente.”
“Isso é um tanto quanto inconveniente,” você diz franzindo o cenho ligeiramente, “mas não é um fator intransponível. Você terá que ir na frente e me dizer quando for seguro prosseguir.”
“Jesus, você está de brincadeira?” eu rebato. “Você é uma das pessoas mais procuradas do FBI e quer ir passear em uma cena do crime ainda em andamento? Você perdeu a cabeça? Por que nós só não vamos para a sua casa?”
“Você se preocupa demais, Will,” é tudo o que você diz.
“Um de nós claramente tem que se preocupar,” eu respondo. Mas como sempre, eu me pego alinhando as minhas vontades às suas (‘poder de vontade’...é, sei. Meu rabo), cedendo às suas prioridades e preferências como se não houvesse mais nenhuma outra alternativa (e para ser honesto, quando o assunto era você, realmente não havia). O apartamento estava próximo, e nós não trocamos uma única palavra no caminho. Eu fico prendendo a respiração e preciso me lembrar de expirar, tudo isso enquanto eu lançava breves olhares furtivos pelo canto do olho na sua direção. Você só acompanha, impenetrável, como se não tivesse mais nenhuma outra preocupação na droga do mundo. As minhas mãos tremiam e eu as enfio nos bolsos do casaco para disfarçar.
Quando nós chegamos ao meu quarteirão eu puxo a sua manga para que você parasse de andar e faço um gesto para nós nos agacharmos atrás de um carro. Eu me abaixo, levantando a cabeça uma vez ou outra. Eu também percebo, tardiamente, que eu havia me esquecido de soltar a sua manga e ainda estava a segurando – não muito diferente de uma criança de cinco anos (Cristo) – e me forço a soltá-la. As faixas de isolamento da cena do crime flutuando com o vento, mas o carro já não estava mais lá e não havia sinal de ninguém. Apesar disso, na minha imaginação eu ainda conseguia ver todos os policiais e a maldita Kade Purnell, e consequentemente eu não consigo me acalmar. A minha aparência no momento não era das melhores: na verdade eu estava parecendo um daqueles suricatos da porra daquele documentário. Era provável que você estivesse pensando o mesmo porque você estava olhando para mim com as sobrancelhas tão elevadas que elas quase alcançam o seu couro cabeludo.
“Fico muito feliz que você ache isso engraçado,” eu digo.
“Peço perdão, Will,” você diz (não parecia nem um pouco um pedido de desculpas), “mas a sua vigília não é necessária – não há ninguém lá.”
“Okay,” eu respondo devagar; porque realmente não havia ninguém ali. “Isso é bom. Eu vou primeiro. Você tem celular?”
“Tenho.”
“Me dê o seu número. Vou te mandar uma mensagem quando for seguro.”
Você estende a mão, sua palma para cima, e eu me pergunto o que diabos você estava fazendo antes de perceber que você queria que eu te desse o meu celular para que você pudesse digitar o número. Eu te observo fazer isso, a maneira como a sua mão se move agilmente pelo teclado e o quão longos os seus dedos eram. Você não estava muito diferente da última vez em que eu te vi. O seu cabelo estava mais longo do que eu me lembrava, e o seu rosto estava um pouco mais magro (e consequentemente mais esculpido) do que era antes, e ali também havia uma barba por fazer em oposição ao seu rosto barbeado impecável de antes. Mas a sua aparência não havia mudado radicalmente, de forma alguma. E sem dúvidas, a ausência de disfarces era uma declaração: um ‘pegue-me se puder’ despreocupado. Mas como diabos ninguém havia te reconhecido; como você conseguiu se misturar de maneira tão perfeita? Eu havia praticamente me esquecido de que você tinha uma vida inteira de prática.
Você me devolve o celular e sorri para mim, afetuosamente. “Vejo você em breve, Will,” você diz. Eu apenas assinto, e saio de trás do carro em direção ao prédio. Não havia ninguém ali; nós podíamos só ter ido juntos. Mas eu percebo que estava tentando comprar um pouco de tempo sozinho para apaziguar a desordem dentro de mim. Eu estava me desfazendo feito um carretel de linha solta.
Como de praxe, o elevador estava instável, então eu subo pelas escadas – e por pura sorte, o Sr. Haversham abre a porta quando eu passo e me espia por cima da corrente da fechadura.
“William!” ele diz. Apesar de estar praguejando internamente, eu sinto uma pontada presunçosa de convicção por ter ido primeiro, no fim das contas. Eu faço uma nota mental para garantir que você soubesse disso (e acrescentar detalhes dramáticos se necessário).
“Oi,” eu digo, “está tudo bem?” a minha voz treme e eu tusso para disfarçar.
“Bem, bem, vendo você. Mas estive preocupado depois de toda aquela confusão hoje. Eu não ligo de te contar, William, eu estive muito preocupado.”
“Olhe,” eu digo. Eu tusso novamente. Merda, por que eu não conseguia ficar calmo: era só o Sr. Haversham. “Tenho certeza de que tudo está bem,” eu acrescento, tentando soar sério e sincero, “os policias foram bastante cuidadosos. Mas se você ouvir mais alguma coisa, não abra a porta. Eu vou te dar o meu número – me ligue se estiver se sentindo ansioso e eu virei verificar.” Eu enfio a mão no bolso procurando por algum pedaço de papel e acabo pegando a conta do bar de hoje. Merda, parece que já faz tanto tempo.
“Eu com certeza irei,” ele diz, “você é um bom rapaz.” Ah, Deus, eu penso, eu com certeza não era. Ele fica ali, piscando e sorrindo para mim daquele jeito afável de sempre. “Você está acostumado com coisas assim, não está?” ele diz, “Terroristas e coisas do tipo. Você não trabalha para o governo?”
“Meio que sim,” eu estava começando a lentamente subir os degraus, desesperado.
“Bando de corruptos filhos da mãe,” ele diz.
“Sim, eles são.” mais um pouco e eu estava quase subindo pelo corrimão.
“Obrigado por isso,” ele diz, pegando o pedaço de papel. Ele o vira para ver o que havia do outro lado, rindo quando ele vê a grande lista de bebidas presente ali. “É bom ser jovem,” ele diz.
“Acho que sim.” naquele momento eu me sentia mais velho do que ele.
“Eu com certeza irei chamar você. Obrigado, William.”
“Não há de quê,” eu respondo e em seguida viro a curva das escadas. De repente eu sinto uma chama repentina de apreensão e viro a cabeça (igualzinho a um suricato. Cristo) e grito: “E lembre-se de não abrir a porta!”
Quando eu entro eu pego o meu celular e mando o número do apartamento para você. As minhas mãos tremiam e eu precisei digitar mais algumas vezes até acertar. Eu acrescento: “Espere mais 10 min, vizinho ainda acordado” e depois “FAÇA BASTANTE SILÊNCIO” em grandes letras maiúsculas e exageradas. Se eu tivesse a energia eu até inventaria que tenho um vizinho fisiculturista que tinha uma arma apenas para reforçar a ideia, mas no fim das contas eu não me dou o trabalho. Não que realmente importasse se o Sr. Haversham visse você: não do seu ponto de vista, pelo menos. Eu ficaria muito mais preocupado com o bem-estar dele do que com o seu.
Você responde em segundos: “Entendido.”
Eu deixo o celular de lado e em seguida me sento no chão com as costas contra a parede. Eu respiro tremulamente algumas vezes e estendo a mão para tirar os meus óculos, apenas para ver que eu já havia os tirado. O apartamento possuía uma aparência sombria e fantasmagórica com a luz do luar entrando pelas janelas, mas apesar disso eu não faço nada além de ligar um pequeno abajur de mesa. Eu fecho os olhos e quando eu os abro você está bem ali na minha frente, e eu salto tão forte que levo alguns segundos para me estabilizar novamente. Como diabos alguém tão alto e grande como você conseguia se mover tão rapidamente? Era bizarro. Um predador perfeito, eu penso comigo mesmo. De repente eu sinto um ligeiro desespero. Mesmo que eu saiba que não era possível, parecia que de alguma forma você havia ficado mais alto comparado à última vez em que eu vi você; como se você fosse uma energia pura e solidificada, ocupando cada átomo de espaço do cômodo. Talvez fosse porque eu estivesse me sentindo bem menor naquele momento.
Parte de mim esperava que você fosse zombar de mim por estar tão abatido, mas você não o faz. Na verdade, você nem estava olhando para mim: você estava olhando ao redor da sala mal iluminada, catalogando os arredores com pequenos movimentos de cabeça. Você estremece visivelmente diante da visão da cozinha. “Will,” você quebra o silêncio, “o seu apartamento é… realmente terrível.”
“Eu sei,” eu respondo. Eu não sabia mais o que fazer, o que mais dizer. Se isso fosse um filme nós envolveríamos um ao outro em um abraço enquanto uma trilha sonora orquestral tocava ao fundo. Isso não é um filme. Nós não nos abraçamos. Eu só te encaro. Eu mordo a minha bochecha tão forte que sinto gosto de sangue. Eu nem sei quanto tempo se passa. Por quanto tempo nós ficamos assim? Era tão irreal. O diretor devia dizer ‘corta, acabamos; bom trabalho pessoal’ e daí nós voltaríamos às nossas vidas e nada disso estaria acontecendo.
Você, por outro lado, ainda aparentava estar completamente despreocupado (como se você tivesse me visto pela última vez em um encontro bebendo vinho e comendo canapés, com um piano tocando de fundo, e não caindo da porra de um penhasco). Você se afasta de mim até parar no centro da sala, e em seguida tira o seu casaco e o assenta cuidadosamente sobre uma das cadeiras. As suas roupas muito mais simples e austeras do que costumavam ser (terno cinza-ardósia, camisa preta) mas a sua presença e autocontrole eram incorruptíveis como sempre. Eu sei que devia dizer algo, que devia fazer algo, mas eu me sentia extasiado e incongruente demais. E você estava tão calmo e controlado que isso produz um contraste ainda pior: destacando a minha incerteza e desconforto de um jeito horrível. Então, de repente eu me lembro das suas palavras iniciais no beco, o quão encaliçadas e familiares elas eram: talvez você não fosse tão inteiramente calmo como aparentava ser, porque a sua reação quando você me viu aparentemente fez você esquecer de como falar inglês. Saber que você se revelou (um pouco) de forma não intencional me trás coragem.
Você ainda me observa, classificando meticulosamente as minhas batalhas internas que deviam estar se refletindo pelo meu rosto feito código morse. “Bem,” você diz. “Nós devíamos começar de algum lugar, suponho eu. Imagino que você tenha perguntas?”
Eu abro a minha boca e a fecho novamente. Eu sinto uma vontade de dizer ‘você realmente voltou’ – apenas para me afirmar que aquilo era verdade – mas eu resisto, porque eu sabia o quanto te irritava quando eu dizia o óbvio. Ao invés, eu apenas respiro fundo. Merda, merda, por onde eu deveria começar?
“Por que você está aqui?” eu digo eventualmente. “Por que agora?” Era bom; eu me sinto satisfeito comigo mesmo: direito ao ponto.
“Excelente, vejo que você pretende começar de maneira simples,” você responde. Você se senta na cadeira com graciosidade e entrelaça os dedos na frente do seu rosto, me olhando por cima deles. “Eu estou aqui porque estive pensando em você, e pretendia contatar você por algum tempo quando alguns preparos fossem finalizados.” (Que ‘preparos'? Eu penso. Ah, caralho).
“Nessas condições,” você diz, “estou aqui agora porque as circunstâncias se escalaram mais rápido do que o previsto. Pensei que você provavelmente fosse precisar da minha ajuda.”
“Como? Como você sabia dessas coisas?” eu me levanto do chão e me encaminho até a cadeira oposta à sua. Eu me sento com cautela, encolhido feito uma mola.
“Naturalmente, eu estava ciente de que Matthew Brown havia escapado.”
“Como?”
“Não é segredo algum, Will,” você diz. Ah, sim, claro: o caso tem tido uma grande cobertura da mídia. Eu até cheguei a ver a reportagem mais recente ainda hoje – a porra da cara de rato de Matthew Brown espalhada por todos os canais de notícias locais.
“Você e o tio Jack apareceram em algumas,” você continua (dando, não pela primeira vez, a impressão de que você realmente conseguia ler a minha mente). “Eu consegui ver vocês nitidamente por trás do ombro do repórter. Vocês estavam tendo uma discussão entusiástica ao lado de uma ambulância.” você sorri levemente, enigmático e indecifrável como sempre, mas pelo menos você não menciona aquela maldita manta ridícula.
“Isso foi só há algumas horas atrás,” eu digo rispidamente. “Como você chegou aqui tão rápido?”
“Porque eu já estava aqui. Obviamente ‘passando despercebido,’ como dizem. Mas ainda aqui, não obstante.”
Eu pisco para você, os meus lábios entreabertos; provavelmente parecendo um imbecil. “Você estava?”
“Sim, de fato, porque a minha preocupação não é algo recente. Ela começou de verdade quando eu descobri que alguém estava te contatando, se passando por mim,” (o meu queixo cai novamente) “porque, inevitavelmente, havia uma grande probabilidade disso não ter sido feito com boas intenções. Talvez eu estivesse sendo excessivamente cauteloso – mas percebi recentemente que isso se tornou um hábito meu dizendo respeito a você, visto que você é intrinsecamente incapaz de se manter longe de confusão.”
Isso é um pouco demais, então eu respondo: “Confusões em que você sempre me meteu, Dr. Lecter,” antes de pausar e me lembrar do que você tinha acabado de dizer. “Você viu a mensagem no TattleCrime?”
“Não,” você diz, “não no TattleCrime.”
“Então como…?” Ah, é claro: a ligação no bar naquele dia com o Michael. Eu, suplicando desesperadamente: ‘Por que você não respondeu a minha mensagem; por que se dar o trabalho de me contatar?’
“Então era você” eu respondo.
“Era,” você responde com serenidade, “e também na ligação naquela madrugada.” você não parecia nada incomodado com essa confissão como deveria.
“Por quê?” eu pergunto, mas acho que eu já sabia a resposta.
“Eu queria me certificar de que você estava bem – e ouvir a sua voz,” você diz. Você sorri e encolhe os ombros de forma elegante.
“Que sentimental da sua parte,” eu digo, mas sorrio apesar de mim mesmo. “Por que você não respondeu… não retornou o favor?”
“Haviam várias possibilidades, Will – seja racional. Eu não possuía a garantia que o seu celular não estava sendo monitorado; eu corri um grande risco ao te contatar.”
“Você pensou que o Jack…?”
“Havia uma possibilidade. Além disso, apesar de otimista, eu obviamente não podia esperar com garantia uma recepção positiva da sua parte. Eu pretendia esperar um pouco mais antes de fazer contato; e teria o feito, se os dramas amadores do Sr. Brown não tivessem me forçado.”
“Então você estava me seguindo? Por quanto tempo?”
“Apenas bem recentemente,” você diz. “Quase nunca.” então aquela figura na chuva… não era você. Era ou o Matthew Brown, ou – mais provavelmente – Michael. Merda. Isso basicamente significava que eu fui seguido obsessivamente três vezes em três meses (o que até pelos meus parâmetros perturbados era bem impressionante).
“Parece que eu fui perfeitamente pontual,” você continua (eu quase consigo ouvir você pensar ‘como sempre’), “porque estou muito contente por conseguir estar aqui esta noite.”
“Eu tinha tudo sob controle.”
“Perdoe-me, Will… mas você evidentemente não tinha.”
“Eu queria que fosse eu quem o derrotaria,” eu respondo. Não consigo deixar de sentir vergonha com o tom de lamento pronunciado na minha voz.
“Ah, sim, de fato. Ele é a sua presa, não é?” a sua escolha de palavras me faz estremecer, mas eu não te contradigo. “Você não precisa se incomodar,” você acrescenta, “o seu tempo logo chegará.”
Eu elevo os olhos abruptamente. “O que você quer dizer? Ele ainda está vivo?”
“De fato está.” você pausa e me lança um olhar curioso. “Eu ia dizer ‘infelizmente’, mas talvez, do seu ponto de vista isso seja um acontecimento fortuito.”
Eu não tinha certeza de como me sentia em relação a isso (ou pelo menos não queria analisar isso agora), então ao invés, eu pergunto por que você não o matou. “Eu teria o feito prontamente,” você diz (você parecia bastante contente com essa hipótese), “mas no caos do momento foi uma questão de prioridades, e a minha prioridade era que você não fosse atingido. Ele escapou enquanto eu lidava com os outros.” Apesar de tudo, eu ainda fico surpreso com a maneira como você diz ‘lidava com os outros,’ como se se livrar de três arruaceiros malucos com as próprias mãos, tudo dentro de 10 minutos (enquanto eu estava deitado de costas, planejando o meu funeral atrás de uma caçamba) não fosse grande coisa.
“Ele sabia que era você?” eu pergunto. “Ele te viu?”
Você franze o cenho ligeiramente – era um óbvio infortúnio você admitir que não sabia. “Não tenho certeza,” você responde. “Se viu, então ele não deu nenhum indício.”
Agora fui eu quem franzi o cenho. “Se ao menos eu soubesse que eles tinham uma arma,” eu digo.
Você estica as pernas e me oferece uma expressão ligeiramente sardônica. “Para ser franco, Will, é provável que tenha sido melhor assim – visto que você atira magnificamente mal.”
“Ah, cala boca,” eu respondo, mesmo rindo. “Eu teria conseguido em algum momento. Talvez dez balas em cada.”
“Então com certeza foi bom eu ter estado lá, já que não consigo imaginar bons resultados de um cenário onde você para toda a cena apenas para pedir mais munição emprestada.”
“Suponho que você tenha as suas utilidades,” eu digo. “Canibal ex machina.”
Você revira os olhos e me olha com uma das suas expressões resignadas. “Você é mesmo terrível quando quer ser,” você responde. “E além disso, eu prefiro deus ex machina.” e apesar de tudo, você sorri.
Eu sorrio de volta (levemente) e depois um silêncio se instala, e eu desvio os olhos roendo as unhas, lançando olhares uma vez ou outra na sua direção. Eu percebo que aquela era provavelmente uma das conversas mais diretas que eu já tive com você: não haviam subtextos ou metáforas, nem traços abstratos ou duplos sentidos tortuosamente complexos. Isso significava que nós havíamos passado por tudo aquilo e agora conseguíamos nos comunicar de forma mútua? Ou isso tudo foi parte do seu jogo? Você continua me observando: minha vez, então.
“Naquela noite,” eu digo eventualmente. Na noite em que tentei matar nós dois. “Por que você não me levou com você?” eu sei que soava um pouco petulante da minha parte mas eu não conseguia me impedir.
“Você gostaria que eu tivesse feito isso?”
“Eu… eu não sei.”
“As suas feridas eram muitas e bastante severas; você precisava de cuidados médicos imediatos. Ao contrário do que você quer acreditar, você não é, de fato, indestrutível. Além disso, não havia muito sentido em forçar você a me acompanhar.” você me olha pensativo. “Você tinha que fazer isso por vontade própria.”
“E você tinha tanta certeza assim de que eu iria? De que eu não te entregaria?”
“É claro,” você responde, contente. Por que a sua arrogância era tão atraente quando seria repulsiva em qualquer outra pessoa? Eu não te contradigo, no entanto. Ambos sabíamos que você estava certo.
“Eu pensava em você com frequência, Will,” você diz. “Não pense que eu não pensava. Como você afirmou uma vez, parece que nós estamos ‘unidos’... gostemos ou não. Ficar longe de você nunca é confortável ou fácil.” você levanta uma sobrancelha. “Parece que esse não é mais o meu estado completamente natural.”
Eu não tinha muita certeza de como responder isso, então eu só te encaro em silêncio: o seu olhar vistoso e hipnotizante como sempre foi, ainda era tão possível se perder nele. Eu me lembro das palavras que imaginei você dizer na noite em que eu pensei que havia matado Michael: ‘algo sempre vai me manter perto de você, mesmo se não estivermos juntos.’ Deus, eu queria te dizer o quanto eu havia sentido a sua falta, o quão vazio e árido tudo havia sido sem você aqui, mas eu não sei como: eu não possuía as palavras certas. Eu queria viajar por aquele nosso país das maravilhas distorcido e desordenado que se perdia pelo horizonte, muito além do que era o ‘mundo real’... e eu não consigo. Eu fecho os olhos e fico em silêncio novamente, e quando eu os abro, você ainda estava me encarando. Você estava tão imóvel que podia ser confundido como uma estátua de cera de si mesmo.
“Pobre Will,” você diz com serenidade, quando vê que eu estava olhando para você. “Você parece mais frágil do que o normal. Imagino que tenha passado por tempos bastante difíceis ultimamente?”
“Sim… pode se dizer que sim.”
“Mais do que você achou ser capaz de suportar?”
“Sim.”
“Você pensou em desistir?”
“Sim.”
“Mas não desistiu, não foi? Por que não?”
“Eu pensei… eu… eu não sei. Eu tinha esperanças de que tudo fosse melhorar.”
“O que mais?”
“O Jack… Alana…”
“O que mais?”
A sua voz na minha cabeça.
“Não tenho certeza,” eu suspiro, e você só me encara com calma. Mas você sabia, não é? É claro que sabia. Nós ficamos em silêncio novamente, os únicos sons presentes sendo a gotas de chuva contra a janela, o tique-taque do relógio, e o som leve da sua respiração. Deus, você estava bem ali respirando, não estava? O seu coração ainda batia. Por favor, nunca pare. Ainda havia vida em você. E em mim.
“Ainda há muito mais a ser discutido,” você quebra o silêncio eventualmente. “Acho que você gostaria de saber por onde eu estive todo esse tempo. E há várias coisas que eu gostaria de conversar com você.” você me lança um olhar significativo e o meu coração se afunda um pouco. “Mas não agora,” você acrescenta após uma pausa. “Você parece exausto, Will, você devia descansar. Você teve uma noite muito cansativa.”
Uma noite muito cansativa… acho que pode se dizer que sim. Mas você estava certo. Os meus membros estavam pesados e o meu pescoço parecia prestes a ceder com todo o peso de tudo o que estava acontecendo na minha mente. Acho que eu poderia deitar na minha cama e dormir por um ano.
Cama? Ah, cacete. “Olha, eu não tenho outro quarto sobrando,” eu digo. “Você pode ficar com a minha cama. Eu vou dormir…” eu percebo, tardiamente, que eu também não tinha sofá “...na sala.”
“Peço perdão, mas você não irá se submeter à tal coisa,” você responde. “Eu estaria sendo um hóspede muito indelicado se eu ficasse com a sua cama para você dormir em uma cadeira.” você lança um breve olhar em direção à cadeira, um gesto que claramente dizia ‘especialmente em uma cadeira de merda como essa.’ “Nós podemos ocupar o seu quarto juntos,” você diz. A minha expressão deve ter sido de surpresa, porque você sorri e acrescenta: “Dificilmente será a acomodação mais fora do comum em que já fiquei enquanto estive longe.” os seus olhos brilhavam na minha direção..
“Okay,” eu respondo. Eu percorro a mão pelo cabelo: qual era a importância daquilo considerando a dimensão da situação? “Vou achar alguma roupa para você dormir.” Como um pequeno ato de vingança, eu procuro pelo pior pijama que eu tinha, que incluía uma camisa desgastada e velha (com uma logo igualmente desgastada do Queens of the Stone Age na frente como toque final).
“Encantadora,” você diz quando eu entrego as roupas a você, “obrigado, Will. Estão praticamente apodrecendo.” você esboça um sorriso e depois junta as roupas em um bola, as jogando em cima mim, e fazendo-as pousar bem em cima da minha cabeça. Mas você as veste mesmo assim (tendo a irritante capacidade de ficar elegante e atraente nelas, quando qualquer outra pessoa ficaria parecendo um mendigo) e se estica na cama ao meu lado, feito uma pantera, ainda tão gloriosamente despreocupado com tudo. Eu me sento ao seu lado e trago os joelhos até o queixo, envolvendo os braços ao redor das minhas pernas. Eu queria abraçar um travesseiro ou me enrolar em um cobertor, mas eu não conseguia suportar a ideia de fazer isso e ficar parecendo uma criança na sua frente. Nenhum de nós diz nada por algum tempo.
“Você está pensando tão alto que eu quase consigo ouvir você,” você fala.
“Não estou,” eu respondo. “Estou tentando não pensar.” no momento, pensar parecia uma coisa quase perigosa – e eu meio que estava com medo de sentir também. De modo quase geral eu estava ciente da sensação esmagadora de querer. Eu quero você, tudo de você: eu quero você elegante e imperioso, mas também feroz e indomável: provocando, brincando, mas ainda sério e enigmático. Eu quero você frio e letal, eu quero cada emoção, cada memória, cada pensamento lascivo e sugestão: todos os dias e todas as horas pelo resto da minha vida. Eu quero que você me console e me complete, e me transforme… eu quero permitir isso. Mas como eu posso admitir isso a você? Cristo, eu mal conseguia admitir isso para mim mesmo. As minhas têmporas estavam começando a pulsar com o peso de tudo aquilo, e eventualmente eu estico os meus membros tensos e cansados e me enfio debaixo dos cobertores, me deitando com as minhas costas viradas para você, encolhido em uma bola. Parte de mim esperava acordar e descobrir que aquilo tudo havia sido mais um sonho: que era possível você estar presente e ausente ao mesmo tempo. Suponho que, para ser honesto, isso seria realmente possível para você – você nunca foi impedido por sentido, ordem e sequências como as pessoas normais. Você sempre foi um trabalho de reconstrução, desde o primeiro dia em que eu te conheci.
Você fica em silêncio por um tempo e eu me pergunto se você já havia dormido, antes de te ouvir dizer: “Espero que tudo isso signifique que você não possui mais o desejo de me matar dentro de si mesmo?”
Eu começo a rir ao ouvir isso, mas no meio do caminho algo dá errado e eu começo a ofegar por ar. Ah, Deus, eu penso desesperadamente, por favor não chore, por favor, por favor… não chore, cacete. Você não responde nada de início, e eu estava começando a pensar que era realmente possível morrer de vergonha, quando eu de repente sinto o seu braço ao meu redor; o seu queixo no meu ombro, a sua mão suave na minha barriga, e a sua bochecha pressionada levemente contra a minha. A sua pele estava surpreendentemente quente. De certa forma eu sempre esperei que o seu toque fosse ser frio, mas não era. Eu hesito, e então, tremendo ligeiramente, eu descanso a minha mão sobre a sua. “Está tudo bem agora, Will,” você diz, em um tom gentil que eu não me lembrava de você já ter usado. Você entrelaça os dedos nos meus.
Eu queria rir e chorar com você, porque era errado, não era certo – é claro que não era – aquilo estava há anos luz de distância de ser correto. E apesar disso, ao mesmo tempo… era. Era lindo, era perfeito, era a melhor coisa que já havia acontecido – a xícara havia juntado seus pedaços novamente.
Notes:
1 - Traduzido do lituânio: "como é bom ver o seu rosto de novo"
Amelia~Joseph (Guest) on Chapter 1 Sat 13 Sep 2025 12:22AM UTC
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slowshow (Guest) on Chapter 5 Wed 10 Sep 2025 06:08PM UTC
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Rillory on Chapter 6 Thu 11 Sep 2025 11:45AM UTC
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Rillory on Chapter 7 Fri 12 Sep 2025 11:21AM UTC
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Rillory on Chapter 9 Sun 14 Sep 2025 06:47PM UTC
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Annemona on Chapter 10 Thu 25 Sep 2025 10:08PM UTC
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Rillory on Chapter 11 Wed 17 Sep 2025 03:20AM UTC
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Rillory on Chapter 13 Thu 18 Sep 2025 05:26PM UTC
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