Chapter 1: Boca de Sangue
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Jinhae, algum lugar na Coreia do Sul, 1998
A maioria das pessoas adorava as sextas-feiras.
Para elas, o último dia útil da semana significava os poucos passos que as aproximavam de dois dias de liberdade. Sexta-feira era sinônimo de festa, pois podiam dormir até tarde no sábado, ou podia ser sinônimo de cansaço, caso chegassem em casa, abrissem um refrigerante, colocassem a lasanha congelada para esquentar e acabassem pegando no sono assistindo a alguma reprise de Indiana Jones.
Mas, para Felix, sexta era somente o fatídico dia de plantão na delegacia.
A delegacia de Jinhae era o lugar mais entediante e com cheiro de desinfetante de limão que Felix já tinha pisado, e suas olheiras se afundavam apenas por pensar em mais uma madrugada longa e monótona sentado no birô repleto de papéis burocráticos.
Ao seu lado, estava Hayun, a linda recepcionista, que quase sempre dava um jeito de cruzar demais as pernas na esperança de que o pau de Felix subisse ao ver seu vestido se esticar. Ela era persistente, Felix devia admitir.
— Com sono, oficial Lee? — Hayun perguntou, encarando-o através dos olhos castanhos.
— Tomei cinco xícaras de café nas últimas duas horas — Felix disse. — Me consideraria algum tipo de caso raro da natureza se estivesse com sono.
Os olhos de Hayun se apertaram devido a um sorriso doce ao ouvir a resposta dele, e voltou a teclar algo no computador de tubo amarelado.
— Cuidado com a cafeína — Hayun alertou. — Soube que amarela os dentes, assim como o cigarro — sua voz saiu suave, sem olhar diretamente para Felix.
Talvez ela estivesse tentando mostrar desinteresse, mas ele tinha certeza de que era apenas um jogo para que Felix continuasse a conversa.
— Azar o meu — ele disse. — Preciso passar a madrugada acordado e sou uma chaminé ambulante.
Então, ele levantou da cadeira desgastada e encerrou o assunto, para a tristeza de Hayun.
Felix deixou o silêncio angustiante do escritório para trás, vasculhando o bolso da frente em busca do que esperava ser sua última carteira de cigarros do dia.
O clima da delegacia era quase sempre o mesmo: conversas paralelas que não eram sobre as estatísticas de crimes da cidade, risadas, piadas infames, sons de teclado e o riscar das canetas passando apressadas pelos papéis. Era absolutamente entediante.
Uma cidade como Jinhae, que possuía um índice de natalidade bem superior ao de mortalidade, com pouco mais de sessenta mil habitantes — sendo uma grande parte pessoas com mais de sessenta anos —, era o sonho de emprego de qualquer policial da cidade grande. Os índices de crimes eram incrivelmente baixos. O último assassinato ocorreu há cerca de seis anos, quando Felix tinha acabado de conseguir o emprego na polícia.
O sangue dele ferveu naquele dia. Na época, a realização de estar na polícia, a excitação quase sexual de ser o responsável por resolver crimes e ajudar pessoas boas a conseguirem justiça faziam sua vida ter um sentido sólido. Foram anos de estudo, dedicação e expectativas para, seis anos depois, ficar escorado nos fundos da delegacia, fumando de madrugada, enquanto pensava onde havia errado na merda da sua vida.
A fumaça travou na garganta, e a tosse subsequente veio sem surpresas. Após tantos anos sendo refém do cigarro, não se admirava com o pedido de socorro dos próprios pulmões. Pelo menos, os dentes ainda estavam brancos.
Felix olhou para o relógio preto em seu pulso, que marcava três da manhã; o horário em que nada se ouvia a não ser o cantarolar dos grilos nas ervas daninhas. Felix jogou a bituca de cigarro longe e estava pronto para capturar mais um de dentro do maço quando escutou um barulho atípico vindo de dentro da delegacia.
— Algema esse filho da puta!
— Ele já tá algemado, caralho!
— Então coloca uma camisa de força, uma focinheira, qualquer coisa!
Era a voz de Changbin. Aquela voz indiscutivelmente característica que parecia bastante irritada ao gritar com sabe-se lá quem.
Os passos dele indo na direção de Felix o fizeram guardar o cigarro que logo seria consumido. Segundos depois, Changbin estava na frente dele. Como previsto, o rosto de Changbin estava convertido em uma expressão de pura raiva, os lábios crispados em duas finas linhas e, para a surpresa de Felix, um olho fodidamente roxo e inchado.
— Mas que porra aconteceu com sua cara? — Felix perguntou, sobrancelhas arqueadas.
O tom em sua voz pareceu irritar ainda mais Changbin, que socou o batente da porta que dava para os fundos.
— Acho melhor você ver com seus próprios olhos — Changbin disse, dando as costas e voltando para dentro.
Felix olhou, um pouco desacreditado, para a direção que ele seguiu. Não era nada comum, nas madrugadas de sexta-feira, ouvir gritos na delegacia, tampouco encontrar um dos policiais com o rosto arrebentado. A monotonia deu lugar a uma igualmente atípica euforia, e Felix seguiu os passos pesados, podendo ouvir alguns ruídos ao longe.
— Quer que pegue um pouco de gelo, oficial Seo?
Era a voz de Hayun soando preocupada.
— Quero, quero sim. Gelo e uma xícara bem quente de café — disse Changbin, ainda parecendo enraivecido.
— E então? O que veio movimentar a delegacia de Jinhae nessa madrugada? — Felix perguntou, escorando-se no próprio birô.
Changbin estava com as mãos na cintura, enquanto Jeongin, outro policial responsável pela ronda da madrugada junto a ele, estava parado de costas, vigiando quem quer que fosse.
— Ele — Changbin apontou com o queixo para onde Jeongin estava, e Felix franziu as sobrancelhas em indagação. — Esse fedelho me acertou!
Jeongin, então, deu dois passos para o lado e se virou, dando brecha para que Felix visse a figura sentada em um dos bancos da recepção com as mãos algemadas.
Em um primeiro momento, Felix achou que estava alucinando. Piscou algumas vezes para ter certeza de que não estava sendo traído por sua mente consumida pelo tédio. Enfim, percebeu que o que estava diante dele era um garoto magro, vestindo uma minissaia de couro falso e com um dos pés descalços.
O garoto o olhou, assim como olhou para os colegas, com ódio líquido escorrendo como lágrimas pelos olhos, quase como se pudesse eliminá-los a qualquer momento, caso tivesse laser no lugar das pupilas. Sua barriga estava exposta devido à blusa curta, um top que andava na moda ultimamente, caso bem lembrasse do que Hayun lia nas revistas. Seus olhos hostis estavam borrados por uma sombra preta que escorria com o suor, e seus lábios estavam manchados com algo que poderia ser batom vermelho ou sangue. Felix não sabia distinguir, mas rezava para não ser a segunda opção.
Aquele garoto era uma bagunça estranha e parecia disposto a arrancar as algemas com os dentes, caso fosse preciso. Seus cabelos pretos, longos e ondulados, estavam desgrenhados como um ninho de beija-flor, sobrancelhas franzidas, formando um vinco de pele dura no meio delas.
— Santo Deus — Felix disse, mais para si do que para os colegas. — De onde saiu esse… garoto?
— Da esquina da Keun Dil — respondeu Jeongin, olhando de lado para o garoto, que não desviava os olhos de Felix.
— Ele se meteu em uma briga e acabou perfurando um dos caras. Ele deve ter fugido, ou sei lá.
— Não foi uma briga — disse o garoto, a voz quebrada, rouca, e Felix não sabia dizer se por alguma infecção na garganta ou por gritar com os policiais. — Eu estava me defendendo!
— Se defendendo com isso? — Jeongin tirou do bolso um canivete cor-de-rosa que estava manchado com um pouco de sangue.
Felix arregalou os olhos e viu o garoto rosnar.
— Com o que queria que eu me defendesse? Com meu outro salto?
Felix olhou para o pé descalço do garoto e só então notou o sapato de salto alto no outro pé. Assumiu que, talvez, aquela tivesse sido a arma usada para acertar o olho de Changbin.
— Olha a boca, moleque! — disse Changbin com o mesmo tom raivoso, e foi aí que Felix teve a certeza de que o oficial Seo havia sido acertado por um sapato voador.
— Claramente não com uma arma branca — disse Jeongin, colocando o canivete sobre o birô.
— Que se foda! Vocês não vão atrás daquele cara?! Ele quem devia estar aqui, não eu! — O garoto gritou, exasperado, nitidamente indignado.
— Aqui está o gelo, oficial — Hayun voltou com uma pequena trouxinha feita de cubos de gelo.
Changbin pegou com cuidado, sibilando um agradecimento para a recepcionista, e logo colocou o gelo sobre o inchaço do olho.
— Não o vimos com nenhuma arma e ele parecia apavorado. Acho que temos nosso culpado bem aqui — Jeongin disse tranquilamente, e Felix arqueou as sobrancelhas perante a frieza do policial.
Yang Jeongin tinha a fama de ser bastante paciente e simpático com os cidadãos de Jinhae, mas, talvez, ele não visse aquele garoto de maquiagem borrada como um cidadão ou mesmo como uma pessoa.
— Vai se foder! — O garoto cuspiu as palavras na direção de Jeongin. — Vão se foder todos vocês! — gritou, agora, para todos. — Vocês são todos porcos de farda que não dão a mínima pra verdade!
— Eu já disse pra colocar uma focinheira nesse garoto — disse Changbin, ainda com a trouxa de gelo em cima do olho atingido.
— Vou colocar uma focinheira na boca do seu…
— Ei, ei! — Felix se viu no dever de intervir, uma vez que soube que aquela discussão não levaria a lugar algum. — Acho que todo mundo está um pouco estressado aqui.
— Experimenta receber um salto alto na sua cara — disse Changbin, e Felix apenas revirou os olhos. — Puxa logo a ficha dele e coloca ele na cela pra ver se aprende a segurar a língua.
O garoto pareceu enraivecido outra vez e olhou para o lado, negando com a cabeça e murmurando palavras que Felix não soube identificar. Changbin saiu da recepção com uma cara de poucos amigos, dizendo que Hayun havia esquecido sua xícara de café.
— Ele é todo seu agora — Jeongin disse e deu dois tapinhas amigáveis no ombro de Felix após deixar a chave das algemas em seu bolso, seguindo o caminho de Changbin para a copa.
Então, Felix ficou de frente para o garoto de saia, que parecia pronto para desferir toda a lista de palavrões existentes contra ele. Desencostou-se do birô e foi até ele, os braços sobre o peito como um colete à prova de balas.
— Qual o seu nome? — Felix perguntou, na esperança de estabelecer um clima menos hostil, mesmo que soubesse que aquilo era quase impossível. O garoto ficou em silêncio, olhando para um ponto fixo no chão. — Preciso colher o seu depoimento, então é melhor colaborar comigo.
— A merda do meu depoimento não vale de porra nenhuma pra vocês — respondeu ele, lábios franzidos, uma veia latejando na testa devido à irritação.
— Pode até ser, mas é o protocolo, então vou gentilmente te pedir para responder a algumas perguntas. A primeira é: qual o seu nome? — Felix tornou a perguntar, e o garoto olhou para ele com desdém, mas logo respondeu:
— Hyunjin. Hwang Hyunjin.
Felix levantou as sobrancelhas ao ouvir a resposta sair daqueles lábios pintados de vermelho, que ele ainda não sabia distinguir se por sangue ou batom.
— Hwang Hyunjin — Felix repetiu alto, para que Hayun escutasse. — Verifique se está fichado.
Hayun assentiu prontamente e logo se levantou de sua cadeira, ajustando o vestido colado no corpo e indo até os gabinetes de arquivos.
— Um minuto, oficial Lee — ela disse após alguns instantes vasculhando as gavetas. — Está uma bagunça desde que começamos a transferir os arquivos para o computador.
Felix não se deu ao trabalho de responder e continuou de olho em Hyunjin, que agora estava com o pé descalço em cima do estofado da cadeira. A perna dobrada contra o peito deixava uma abertura inferior significativa na saia, revelando completamente a coxa e uma parte da calcinha vermelha rendada que ele usava por baixo da saia de couro.
Olhar foi inevitável, mesmo que Felix tivesse tentado desviar os olhos para a parede chapiscada ou para a luz do teto que parecia prestes a queimar. Havia algum tipo de ímã que atraía seu olhar para a perversidade daquela posição, e ele só voltou a si quando viu os papéis sendo oferecidos bem na sua frente por unhas bem feitas.
— Aqui, há uma ficha — Hayun disse, entregando os papéis.
Após balançar a cabeça, tentando dissipar a distração, Felix pigarreou, um tanto constrangido ao perceber que Hyunjin havia notado o olhar de Felix direcionado às suas partes baixas.
— Vamos ver — Felix disse, abrindo a primeira página da ficha e vendo algumas impressões digitais, uma foto em preto e branco e alguns dizeres rasos. Leu o que estava escrito e, ao perceber que não havia nada de muito surpreendente, fechou a ficha novamente.
— Hwang Hyunjin, março de 75. Você deve ter… 23 anos agora.
— Ótimo em matemática, Einstein.
— Sem endereço, sem profissão. Ficou preso por uma noite em 15 de junho de 1991 por pichação. Você ainda era menor de idade — Felix disse, um pouco surpreso por aquele fato ter acontecido apenas um ano antes de assumir o emprego na delegacia.
Tudo que constava na ficha de Hyunjin eram aquelas poucas informações. Não havia detalhes sobre a pichação, mas ele tinha dezesseis anos naquela época e saíra da cadeia direto para os responsáveis por menores infratores. A única conclusão que Felix conseguiu tirar foi a de que Hyunjin tinha predisposição para confusões.
— Vamos conversar, Hyunjin — Felix disse, olhando para ele com o rosto solene.
Hyunjin esticou a perna outrora erguida e não se importou com o tecido rugoso da saia, que parecia mais curto do que deveria.
— Você disse que não era o único que deveria estar aqui. O que exatamente acarretou a briga?
Hyunjin bufou, e Felix teve certeza de que ele pensava que não adiantava nada contar sua versão da história. Tentou encorajá-lo com o olhar, mostrando que poderia levar seu depoimento em conta, caso ele parecesse conciso.
— Eu estava quieto no meu canto — Hyunjin começou, chacoalhando um pouco as mãos algemadas, enquanto o som do salto do sapato restante rangia sobre o piso. — E então chegou aquele cara. Ele tinha uma barba rala e usava uma jaqueta jeans.
— Vocês se conheciam?
— Nunca o vi em toda minha vida — Hyunjin disse e, em seguida, suspirou e negou com a cabeça. — Ele chegou perto, e eu disse o de sempre.
— "O de sempre"? — Felix franziu o cenho e, sob as sobrancelhas juntas, viu Hyunjin soltar uma risadinha.
— Você não faz ideia de quem eu sou, não é?
A presunção dele instigou Felix.
— Eu deveria?
— Não tem que ser muito esperto pra perceber — Hyunjin olhou para o próprio corpo com um sorriso de canto e virou o pescoço para o lado, expondo quase que orgulhosamente uma marca arroxeada na pele pálida.
De fato, não era necessário ser muito esperto para saber de onde Hyunjin vinha e o tipo de pessoa que ele era. As roupas esquisitas, o palavreado chulo, o canivete e o fato de estar em uma esquina em uma madrugada de sexta… Não precisava ser inteligente — talvez apenas um pouco menos distraído do que Felix estava.
— Acho que entendi — Felix disse, tentando voltar ao assunto. — Suponho que não tenha conseguido o cliente.
— Ele tentou me agarrar — Hyunjin revirou os olhos ao recordar o acontecido.
— E não era o que você esperava? — Felix sugeriu por impulso, e se arrependeu na mesma hora ao ver o rosto assombrado de Hyunjin ao ouvir aquelas palavras.
Se ele estivesse com as mãos livres, Felix teria visto o outro sapato voar em sua direção.
— Só porque eu sou puta você acha que qualquer um pode chegar colocando a mão em mim?! — ele gritou, e Felix massageou as têmporas.
— Não foi isso que eu quis dizer.
— Ah, não?
— Hyunjin, continue relatando o que aconteceu — Felix insistiu para que ele concluísse seu depoimento. O garoto bufou, claramente descontente com o comentário infeliz.
— Como eu disse, aquele filho da puta tentou me agarrar e colocou a mão debaixo da minha saia sem pagar um centavo. Fala sério! Eu não podia dar de graça a única coisa que eu tinha pra vender, podia?
— Creio que não.
— Então tentei empurrar ele, mas o desgraçado veio para cima de mim de novo,l e eu meti um soco no nariz dele! — Hyunjin contou tudo expressivamente, quase como se estivesse vivenciando a cena novamente. — Então, quando ele tentou pela terceira vez, eu peguei meu canivete e furei o braço dele.
— Você se arrepende disso?
— Não sabia que estava em um confessionário com um padre — Hyunjin desdenhou, e Felix soprou o ar pelo nariz.
— É apenas para saber se estou na frente de um agressor frio e calculista.
— O único agressor foi ele. O cara tentou me pegar à força e eu só me defendi! Por isso que eu digo que ele quem deveria estar aqui, não eu! Mas ele fugiu quando viu a polícia chegando. Devia estar com medo de comerem o cu dele na prisão. É o que fazem com estupradores nojentos, não é?
— Pode apostar que sim.
— E então? Vai me liberar? — Hyunjin perguntou com expectativa, e Felix suspirou com pesar, pois sabia que Hyunjin não era o único culpado naquela história.
— Sinto muito, Hyunjin. Além de ter ferido alguém, você machucou um policial. Isso é uma falta grave.
— Ah, qual é? Acertei ele com meu sapato porque ele tentou me revistar!
— Hyunjin, a revista é um procedimento de rotina. Não é motivo para agressões.
— Acha que eu ia deixar aquele cara ficar me apalpando?!
— Hyunjin...
— Tá, foda-se — ele bufou, como se percebesse que não valia mais a pena argumentar. — Pelo menos, ele só achou o canivete da saia.
— O quê? — Felix perguntou, sem entender o real sentido das palavras.
Hyunjin mexeu algo dentro da boca e, segundos depois, estirou a língua para fora. Um gilete pequeno reluziu, e Felix arregalou os olhos para aquele lampejo prateado. Hyunjin cuspiu a lâmina e o olhou como se não fosse nada de mais. Como se não tivesse acabado de tirar um gilete da própria boca.
— Onde escondeu isso?! — Felix indagou, lábios partidos e olhos arregalados.
— Na gengiva.
— Como...
— Surpreso? Espera só ver os outros esconderijos.
— Prefiro ficar na ignorância — Felix admitiu sem pesar. — É o único ou tem mais escondidos?
— Esse é o único.
— Ótimo, então agora você pode vir comigo.
Felix foi até ele e puxou seu braço para cima para poder ficar de pé. Hyunjin relutou um pouco, mas obedeceu. Erguido, ele era alguns bons centímetros maior do que Felix, mas a estrutura fina, de quem tinha problemas de apetite, fazia-o parecer tão frágil que Felix poderia quebrá-lo caso apertasse seus pulsos com muita força.
— Você vai passar a noite aqui — Felix disse, já o arrastando para a ala vazia das celas.
— Aquele seboso me paga! — Hyunjin resmungou, enquanto andava ao lado de Felix, um dos pés tocando o chão enquanto o outro ainda estava calçado no sapato alto.
Era engraçado como ele andava; os pés em alturas diferentes o faziam mancar. Seu rosto continuava irritado, e ele resmungou o percurso inteiro até a cela.
Pararam de frente para o gradeamento metálico. Felix tirou a pequena chave do bolso, abrindo suas algemas. Hyunjin massageou os pulsos com um rosto desgostoso quando Felix abriu a cela.
— Pode entrar — ele disse.
Hyunjin bufou e franziu o nariz pelo cheiro desgostoso.
— Essa cela fede.
— É desinfetante de limão — Felix deu um sorriso sem graça.
— Tá. Posso fazer uma coisa antes? — Hyunjin perguntou, desfazendo a careta no rosto.
— Precisa ir ao banheiro?
— Na verdade...
Mood: You Give Love a Bad Name - Bon Jovi
Felix ficou atento às palavras dele, consciente de que o garoto não era nenhum bárbaro por tentar se defender de um estuprador em potencial. Compadecido da história, mas ainda cumprindo seu papel como policial, tentou dar a maior assistência possível e tratá-lo condescendentemente. Mas o que veio em seguida foi um tiro na própria compaixão e um lembrete de que, de fato, estava lidando com só mais uma puta petulante.
Hyunjin segurou os ombros de Felix e o atingiu com o joelho bem na boca do estômago. Felix perdeu o ar na mesma hora, levou um soco no queixo e quase conseguiu ouvir sua mandíbula se partindo. Apertou o estômago e ficou fora do ar por alguns poucos segundos.
— Vão pro inferno — Hyunjin disse antes de sair correndo.
O som do único salto de Hyunjin foi audível. Felix se ergueu para tentar correr atrás dele, mesmo com a dor intensa no estômago e na mandíbula. Hyunjin correu com todas as forças que tinha, e ele conseguiu ouvir o grito de Hayun vindo da recepção.
Forçou-se a esquecer da dor e disparou atrás dele, disposto, mais do que tudo, a fazê-lo amanhecer naquela cela.
Pela primeira vez em seis anos, Felix teve uma madrugada de sexta agitada. Isso, graças àquele prostituto de minissaia que corria mancando estrada afora.
Felix ficou ofegante.
Sua boca começou a secar pouco a pouco enquanto corria pela calçada, seguindo Hyunjin, que, assim como ele, corria como se sua vida dependesse daquilo. Embora veloz, o ritmo de Hyunjin estava sendo comprometido devido a um salto a menos em um de seus pés, impossibilitando-o de ganhar uma vantagem significativa sobre Felix.
Felix poderia gritar por ele, mas sabia que ele não pararia. Poderia atirar em sua perna manca, mas sua arma estava esquecida em sua mesa, em meio aos papéis burocráticos. Poderia chamar reforços, mas Jeongin e Changbin o matariam na primeira oportunidade — principalmente Changbin, já que ele, definitivamente, estava esperando vingança pelo olho roxo. Em meio a tantas possibilidades e nenhuma realmente eficaz, Felix se viu na posição de continuar correndo até que, por um milagre, conseguisse alcançá-lo.
Hyunjin olhou para trás, seu rosto contorcido em um misto de raiva e medo. Ao ver que Felix estava chegando perto, apressou ainda mais o passo, mas o maldito salto faltando o comprometeu. Felix conseguiu sentir um lapso de esperança, mas Hyunjin foi mais perspicaz.
Perto da esquina deserta, Hyunjin parou por milésimos de segundo. Felix aproveitou para correr ainda mais, mesmo que seus pulmões estivessem prestes a falhar. Hyunjin arrancou as tiras do salto alto de uma só vez e o tirou do pé, arremessando-o na direção de Felix.
— Essa é pra você, seu babaca de merda! — gritou ao jogar o sapato, e Felix apenas teve tempo de desviar da arma voadora.
Hyunjin voltou a correr desesperadamente, bem mais rápido do que outrora, já que não havia mais nada o impedindo.
— Ah, qual é?!
Felix o ouviu gritar, desacreditado por ele ainda estar correndo com tanta disposição, mesmo que fingida.
Felix nunca foi um grande fã de academias. Para falar a verdade, o máximo de exercícios físicos que fez na vida foram os treinamentos para entrar na polícia, mas, agora, continuava cultivando uma péssima resistência, que piorava devido à cerveja barata, café e lasanha de micro-ondas. Enquanto isso, Hyunjin tinha pernas fortes e um abdômen seco. Seus braços possuíam uma circunferência bonita e ele era bom de arremessos — Changbin sabia bem.
Hyunjin, provavelmente, percebeu seu físico franzino ao desferir aquela joelhada em seu estômago e o soco na mandíbula que ainda doía como o inferno, mas Felix não colocaria o orgulho de parte. Afinal, há anos esperava algo que o tirasse da monotonia dos plantões e, mesmo que isso fosse uma perseguição a pé, com grandes riscos de fracasso, ainda era melhor do que ouvir Hayun teclar no computador de tubo a madrugada inteira.
Hyunjin cruzou a rua com os pés descalços sobre o asfalto que devia estar gelado. Sua roupa curta parecia esquentá-lo muito pouco, e, por um momento, Felix sentiu um resquício de compaixão. A vida dele devia ser difícil, mas Felix não podia permitir que sua índole altruísta o atrapalhasse naquele momento crucial, então o seguiu e atravessou a rua, tentando não ter compaixão ao pensar no frio que castigava a pele de Hyunjin.
Hyunjin se enfiou em um beco úmido, e Felix entrou no mesmo local logo em seguida. Hyunjin ainda olhou várias vezes para trás na tentativa de medir os passos de Felix. Foi em uma dessas olhadas que ele tropeçou nos próprios pés e caiu no chão sujo do beco fétido. O barulho de gatos assustados nas latas de lixo devido ao impacto do corpo dele no chão arranhou os ouvidos de Felix. Ele parou, contemplando Hwang Hyunjin rolar pelo chão depois de minutos de perseguição.
Era a chance de Felix.
Hyunjin se levantou, determinado a continuar a fuga, mas Felix, pela primeira vez, conseguiu ser mais rápido e o agarrou pela cintura, não permitindo que ele fugisse mais uma vez. Hyunjin não conseguiu se livrar da captura de Felix nem mesmo tentando com todas as suas forças, a parede tijolada no final do beco mostrando que ele estava encurralado e não havia mais nenhuma escapatória.
Felix conseguiu: depois de anos, finalmente prendeu um criminoso. Um criminoso de saia e saltos altos assassinos, mas, ainda assim, um criminoso.
— Me solta! — Hyunjin gritou, tentando sair do aperto de Felix. — Eu vou te pegar, tá ouvindo?
— Claro que vai — Felix disse, tentando fingir um tom mais sarcástico do que o normal. Sempre admirou os policiais maus dos filmes e suas tiradas perfeitas em momentos de tensão, e estava na sua hora de tentar. — Mas acho difícil me pegar estando em uma cela.
— Eu sou inocente! Eu não fiz nada! — Hyunjin tentou, desesperadamente, justificar-se. — Eu não me meto em confusão há meses e eu… Não roubo e não bato em criancinhas e nem trepo com menores de idade, mesmo que eles peçam muito, então… Arg! Por que vai me prender?! — ele bateu o pé descalço no chão, a voz esganiçada e as sobrancelhas vincadas.
Qualquer pessoa se compadeceria do discurso injustiçado de Hyunjin, mas Felix não podia dar o braço a torcer.
— Você agrediu um homem e dois policiais. Minha mandíbula continua doendo — Felix disse, já pegando, com uma das mãos, as algemas agarradas ao seu cinto. Com a outra, segurava os pulsos finos de Hyunjin para que ele não escapasse.
— Isso é tudo culpa daquele desgraçado! Se ele não tivesse tentado… Se ele não tivesse encostado em mim, eu não estaria aqui!
— Não, Hyunjin. Você está aqui porque cometeu crimes. Não tente culpabilizar outras pessoas.
— Você não é a porra do meu terapeuta — ele disse com desdém, tendo as mãos já algemadas. Seus olhos pintados com a maquiagem escura estavam ainda mais borrados, assim como os lábios vermelhos que, olhando de perto, Felix constatou que era batom. — Parabéns, policial, você vai prender um inocente por tentar se defender de um nojento enquanto deixa um possível estuprador andando livre por aí. Oh, como você segue as leis, não é? Um exemplo para a comunidade. Aposto que está se sentindo realizado. Me perseguir deve ser muito mais interessante do que ficar a madrugada naquela delegacia coçando o saco e enchendo o cu de rosquinhas ou a outra porcaria que vocês comem.
Hyunjin não mediu suas palavras, e Felix já havia notado isso desde a delegacia. Ele não tinha filtros e parecia não se importar em parecer chulo ou desrespeitoso. Era algo natural, parecia fazer parte de sua personalidade, e Felix não sabia se isso era engraçado ou preocupante.
— Continue desacatando autoridades e arremessando saltos altos por aí. Adoraria fazer um relatório imenso descrevendo todos os xingamentos que está direcionando a mim.
— Adoraria? Pois eu também adoraria que você incluísse isso aqui no seu relatório imbecil — Hyunjin ergueu o dedo do meio de uma das mãos presas às algemas. Felix revirou os olhos pela audácia e pela provocação desmedida. — Coloque em letras bem grandes: ele disse "chupa a porra do meu pau".
— Uma verdadeira poesia. Tem mais? — disse Felix, já o arrastando pelo beco. Hyunjin relutou, mas não viu outra alternativa a não ser acompanhá-lo.
Felix aproveitou os breves segundos de silêncio que Hyunjin lhe proporcionou e pediu reforços aos seus colegas, esperando que eles viessem com a viatura para que levasse o seu novo delinquente para trás das grades sem mais demoras. Changbin confirmou que em cinco minutos estaria ali, contando que não estavam muito longe da delegacia.
Felix parou com Hyunjin de frente para o beco e observou a rua ainda deserta. Gradualmente, a madrugada dava lugar ao fraco amanhecer, e ele olhou para o horizonte, vendo o sol aparecer ainda tímido no céu.
— Eu quero fazer uma ligação — disse Hyunjin, após alguns instantes sem dizer nada.
— Depois.
— Eu tenho direito. Vi em um filme uma vez.
— Sim, você tem direito. Mas, primeiro, precisamos colocar você na linha.
— Na do trem? Prefiro morrer esmagado nos trilhos do que ficar preso naquela cela que fede a desinfetante de limão. A caixa de areia do meu gato é mais perfumada do que aquilo.
— Ah, você tem um gato? — Felix deu uma risada sarcástica. Hyunjin tinha respostas muito afiadas, e tudo que lhe restava era sucumbir a elas ou devolver no mesmo nível. Escolheu a segunda opção.
— Tenho. O nome dele é Senhor Miau.
— Adorável.
Hyunjin e Felix não tiveram tempo para completar sua incrível e nada irônica conversa sobre o gato de estimação, pois a viatura da delegacia parou bem de frente para onde estavam, e um Changbin de olho roxo e bastante irritado desceu do carro.
— Eu sabia que não podia tirar meus olhos desse pivete! — disse Changbin.
— Olhos? Que olhos? Você só tem um agora. — Hyunjin indicava o olho inchado do policial com um sorrisinho de canto, e Changbin avançou para cima dele, mas, antes que ele conseguisse tocar nele, Felix o impediu.
— Changbin, o camburão — disse Felix, indicando o que realmente ele foi fazer ali.
Changbin bufou e caminhou até a parte de trás do carro, abrindo-a.
— Sério que vai me colocar aí dentro? — Hyunjin protestou. — Eu não sou nenhum assassino ou batedor de carteiras. Eu sou um cidadão de Jinhae assim como vocês. Um cidadão que não fez nada de mais. Eu não merecia ao menos ir no banco de trás?
— Olha, garoto, você não pode exigir nada — disse Changbin, apontando o dedo para Hyunjin.
— Qual é… — Hyunjin revirou os olhos.
— Tudo bem, você pode ir no banco de trás — disse Felix, movido pela comoção e pela imagem horrível que se formou na sua mente de Hyunjin espremido dentro do camburão.
Mesmo que tenha sido excitante para Felix estar prendendo um meliante, ainda pensou que, por trás daquela maquiagem pesada e roupas femininas, poderia haver alguma coisa de valor.
Felix lamentou ao pensar que Hyunjin, aos vinte e três, poderia estar cursando alguma faculdade ou mesmo trabalhando em um emprego comum. Ao invés disso, ele estava sendo levado, algemado, até uma cela de prisão, tudo isso porque tentou se defender de uma violência. Seu emprego o deixava sujeito a esse tipo de coisa, mas pensar que um estuprador em potencial andava pelas ruas de Jinhae e, ainda mais, assediando pessoas que já eram subjugadas sexualmente diariamente, perturbou Felix.
Changbin tentou relutar, mas Felix não permitiu que ele se estendesse. Sentou-se no banco de trás ao lado de Hyunjin para garantir que ele não tentasse nada, mesmo vendo-o cabisbaixo. Sua ficha, aparentemente, estava caindo.
— Quando eu chegar, quero fazer minha ligação — ele sussurrou para Felix, como se não quisesse que Changbin ouvisse.
— Você vai fazer sua ligação. Apenas tenha paciência.
A curta viagem foi rápida e, assim que chegaram à delegacia, Felix viu Jeongin esperando na porta com cara de poucos amigos.
— Graças a Deus! — Jeongin gritou quando saíram do carro. Felix estava arrastando Hyunjin novamente, pois ele parecia ter uma grande aversão à delegacia. — Temos um problema aqui.
— Que problema? — indagou Felix, o cenho franzido.
O sol de início de manhã batia em seu rosto e, ao seu lado, Hyunjin batia os dentes pela brisa gelada que se chocava contra sua pele exposta.
Jeongin os guiava para dentro da delegacia e, assim que Felix entrou, viu um homem alto vestindo roupas sociais e carregando uma pasta de escritório. Ao seu lado, outro homem na mesma estatura com roupas casuais, porém, com um bom porte físico e o cabelo bem alinhado. Hyunjin engoliu em seco, e Felix percebeu aquele gesto porque conseguia ver, pela visão periférica, a expressão dele mudando completamente.
— Hyunjin! — O segundo homem disse, andando até Hyunjin. — Que susto me deu.
Hyunjin o olhava desconfiado, e seu nariz se erguia lentamente, olhos fixos no homem ainda inominado.
— Quem é este senhor, Hayun? — perguntou Felix para a recepcionista, que estava embolada com alguns papéis. Ela derrubou algumas folhas na mesa e colocou os cabelos longos para trás, atrapalhada.
— Esse é Choi Seunghyun — apontou para o homem que virava o rosto de Hyunjin para todos os lados, provavelmente verificando se havia algum ferimento. — E este ao meu lado é Kang Jiyong, o… advogado do detido.
— Advogado? — Changbin indagou.
As sobrancelhas de Felix se juntaram em pura confusão. Não que achasse um absurdo Hyunjin ter um advogado, mas era, no mínimo, chocante.
— Surpreso, ciclope? — Hyunjin deu um risinho convencido na direção do colega de Felix.
— Não me disse que tinha advogado — Felix disse para Hyunjin, que estava ao seu lado.
— Era minha carta na manga — deu uma piscadinha em sua direção.
— Bom dia, policial. Como a adorável moça já falou, eu sou Choi Seunghyun. Sou o padrinho do Hyunjin.
— Padrinho? — perguntou Felix com uma estranheza explícita.
Aquele homem não deveria ser muito mais velho do que ele, talvez uns trinta e três anos. Por mais que ele fosse alguns bons anos mais velho que o próprio Hyunjin, Felix não conseguia ver "padrinho", neste caso, como algo oficializado em uma igreja, no máximo uma denominação avulsa para que tivessem alguma nomeação de parentesco.
— Eu, bem… cuido dele — disse Seunghyun. — Quando soube que meu menino estava com problemas… — negou, olhando para baixo, e Felix poderia ter sido considerado paranoico caso dissesse que sua representação de preocupação era bastante teatral. — Não podia deixá-lo em apuros.
— Seu afilhado fugiu da delegacia, senhor Seunghyun. Mais do que isso, ele esfaqueou um homem e agrediu um policial.
— Dois policiais — Felix completou a fala de Jeongin. — Ele me deu um soco no queixo e uma joelhada na barriga.
Hyunjin segurava um riso divertido, e Seunghyun o repreendeu com o olhar.
— Hyunjin tem problemas — disse Seunghyun. — Ele é um pouco… difícil de lidar. — Hyunjin, ao lado dele, bufou com a descrição. — De qualquer forma, peço desculpas por toda a confusão.
— Isso não é uma briga de maternal, senhor. Hyunjin não é seu filho, tampouco somos os professores que solicitaram sua presença na diretoria — disse Changbin, chegando perto do padrinho de Hyunjin. — Hyunjin agrediu e desacatou autoridades diversas vezes.
— Bom, sim — disse o homem, e os olhos de Felix estavam atentos às expressões de Hyunjin, que variavam de segundo a segundo. — Mas acredito que não terão mais problemas com ele. Jiyong, por favor.
O advogado colocou a pasta sobre a mesa e tirou de dentro dela um papel sem nenhuma dobra. Ele caminhou até Jeongin e o entregou nas mãos do policial.
— Confirmação de recebimento de fiança? Alvará de soltura? Mas o quê… Isso nem mesmo é legal! Como conseguiram isso? — Jeongin franziu o cenho perante os documentos carimbados e assinados. Mesmo sem olhá-los de perto, Felix conseguia ver que havia seriedade.
— Meu advogado entrou em contato com seus superiores na central — disse Seunghyun. — E, bom, este é o resultado.
— Ah, pelo amor de Deus! Vocês não querem que aceitemos esses papéis forjados para liberar o garoto, querem? — Changbin ralhou. Ele era o mais irritado e o mais propenso a avançar contra Seunghyun e seu advogado em um acesso de raiva.
— Perdão — Seunghyun soprou um riso. — Forjados? Bem, Jiyong poderia contatar o delegado caso quisessem confirmar vocês mesmos.
— Ora, pois contate! — Changbin disse com as mãos na cintura, desacreditado.
— Não é preciso — disse Felix, interrompendo o advogado, que já segurava o telefone da delegacia em mãos para ligar para o delegado.
Seus colegas o olhavam sem acreditar, até mesmo Hayun, que geralmente só lhe direcionava olhares sedutores. Eles não esperavam isso de Felix, nem mesmo ele.
Embora ainda estivesse com o sangue quente por uma perseguição e uma prisão, algo dentro de Felix o dizia que manter Hyunjin preso não era certo. Não fossem suas roupas provocantes, sua maquiagem carregada e a escassa educação, ele seria apenas um garoto de olhos assustados que havia reagido a uma agressão. Mantê-lo preso parecia errado, mesmo que proporcionasse adrenalina.
Então, tudo começou a se clarear na mente de Felix. O desacato, as palavras chulas, as roupas sensuais, os giletes e canivetes escondidos em partes estratégicas do seu corpo, a defensiva constante... Hyunjin parecia armado para uma guerra. Ele parecia um soldado que recebia ordens diretas do general, e este general estava parado ao seu lado, sendo denominado de "padrinho" para disfarçar seu verdadeiro nome.
Algo em Seunghyun cheirava mal para Felix. Muito mal.
— Deixe que ele vá — Felix disse novamente, e Changbin bateu as palmas na calça do uniforme, inconformado.
Felix deixou para se resolver com ele mais tarde e pegou a chave das algemas, libertando os pulsos do Hwang.
— Felix, você tem certeza disso? — Jeongin indagou, e ele apenas balançou a cabeça positivamente.
— Os documentos não mentem — disse Felix mais para si mesmo do que para os outros, tentando se convencer de que estava fazendo a coisa certa.
— Agora, sim, você se mostrou um oficial exemplar. — Hyunjin deu um sorrisinho de canto, e Seunghyun abraçou seus ombros, deixando um beijo em seus cabelos emaranhados. — Será que podem devolver meu canivete? Não tenho mais nenhum daquela cor.
— Hyunjin — disse Felix, sério. — Apenas vá embora.
— Vamos, querido — disse Seunghyun, afagando seus braços. — Deus! Você está congelando — ele tirou o casaco pesado e embrulhou o corpo magro de Hyunjin com o tecido grosso, aquecendo-o. — Melhor?
— Hm-hm— Hyunjin respondeu.
Eles se despediram friamente, principalmente o advogado. Felix viu Hyunjin, que tanto custou para ser capturado, sair pela porta balançando os quadris e arrebitando mais a saia. Ele não olhou para trás em momento algum, mas Felix conseguia imaginar seus olhos alerta, olhos que mais pareciam dois faróis acesos em uma estrada muito escura.
Seunghyun parecia um bom homem. Parecia . Mas Felix já estudou muito sobre pessoas como ele, padrinhos aliciadores que não mediam esforços para não perderem a fonte de ouro. Seunghyun poderia parecer um bom homem, mas Felix conseguia sentir de longe o mau-caratismo e o cinismo que ele carregava, e, por mais que estivesse indo contra o protocolo, ele pretendia tirar a limpo quem, de fato, aquele homem era.
Chapter 2: Primeiro Grau
Notes:
Olá! As atualizações serão, sim, aos sábados, mas precisei atualizar na sexta essa semana por alguns motivos pessoais.
Primeiro, muito obrigada pela recepção no primeiro capítulo. Fiquei muito feliz de ver que gostaram do primeiro gostinho da história, mesmo ela não sendo, bem, doce.
Novamente reitero: caso alguém não tenha lido as tags, leia, por favor. Nesse capítulo, veremos bem mais quem o Felix é e quem o Hyunjin mostra ser.
Aproveitem esse segundo capítulo e não esqueçam de comentar, sim?
(See the end of the chapter for more notes.)
Chapter Text
Era sábado à noite. Felix não aguentava mais zapear os canais da TV em busca de alguma distração. Programas de auditório apelativos, pobres procurando algum jeito de sair da miséria, novelas melodramáticas, documentários sobre animais e danças do acasalamento… Nada minimamente interessante.
Sua casa estava revirada, roupas por todos os lados, algumas panelas sujas no fogão e uma tigela de macarrão instantâneo inacabada no pé do sofá. Uma das suas pernas estava para cima, um furo na meia branca deixando seu dedão à mostra. No fim do dia, não havia nada de glamouroso na vida de um policial de cidade pequena, ainda mais quando este policial era ele: sem expectativas ou maiores ambições. Estava estagnado e sabia disso, mas não via nenhuma outra saída a não ser continuar mudando os canais da sua televisão de vinte polegadas.
Já sem paciência, desligou a TV e jogou o controle remoto no tapete empoeirado, levando o cigarro pela metade até seus lábios ressecados.
Culparia a inércia de um sábado solitário pela sua própria mediocridade.
Soltou a fumaça pelas narinas quando ouviu batidas insistentes na porta. Ignorar não era uma opção, pois sabia que o dono daquelas batidas possuía nome, sobrenome e uma bundinha bonita.
Levantou-se do sofá e estalou as costas cansadas de um homem que muitos diriam jovem, mas que já havia passado da vitalidade dos vinte. Caminhou até a porta, ainda com o cigarro nos lábios. Olhou pelo olho mágico e conseguiu ver o (não) convidado. Antes que ele pudesse bater mais uma vez, girou a maçaneta e o encontrou batendo o pé sem nenhuma paciência.
— Oi — disse Felix, tragando o cigarro e vendo o melhor amigo invadir seu apartamento na mesma hora. — Não quer entrar, Jisung? — ironizou, ganhando um revirar de olhos.
— Você ainda não está pronto? — Jisung indagou.
Felix juntou as sobrancelhas em confusão.
Jisung olhou, enojado, para o estado do apartamento de Felix. Aparentemente, tentava ignorar.
— Pronto pro que exatamente?
— Não acredito que esqueceu! — Jisung cruzou os braços.
Ele estava com aquela expressão irritadiça, que dizia muito com apenas um olhar: você tá fodido, porra.
Felix olhou bem para Jisung e viu que ele estava arrumado; cabelos penteados para trás, uma calça jeans de clara e uma blusa branca com uma logo de alguma marca desconhecida (para Felix). Tentou puxar na memória alguma data importante: aniversário de amizade, talvez? Jisung gostava desse tipo de coisa, talvez fosse isso.
— Esqueci de quê? — perguntou Felix, antes que Jisung arremessasse algo nele.
— O aniversário do Minho! Nós íamos comemorar naquele bar de sempre, às nove!
— Puta que pariu — Felix passou as mãos pelos cabelos. Esqueceu completamente do aniversário de Minho, o namorado de Jisung há quase um ano. — Desculpa, cara, eu não lembrava mesmo.
— Eu venho te dizendo isso há semanas, Felix. Como você conseguiu esquecer?
— Eu tive dias cheios e…
— Dias cheios? Você nem faz nada naquela delegacia.
— Nossa, obrigado por lembrar.
— É sério, Felix. Você raramente sai com a gente e é importante pra mim que você esteja lá.
— Tudo bem, tudo bem — disse Felix, tragando seu cigarro pela última vez. — Eu vou me arrumar, só espera dez minutos.
— Rápido!
Jisung caminhou até o sofá e se sentou para esperar que Felix se aprontasse.
Felix correu para o quarto, que estava tão bagunçado quanto o restante da casa, e vasculhou o guarda-roupa limitado à procura de uma roupa que não estivesse para lavar. Optou pela combinação mais comum que existia: calças jeans e camisa de botões, sem se importar que aquela escolha fosse fazê-lo parecer dez anos mais velho. Tomou um banho rápido e se aprontou dentro dos dez minutos que prometeu, voltando para a sala ainda com os cabelos úmidos.
— Pronto — disse Felix.
Jisung se levantou do sofá.
— Vamos no seu carro.
— O quê?! Jisung, você sabe que meu carro não anda muito bem.
— Fala como se ele fosse um bebê — revirou os olhos, puxando Felix pela mão. — Qualquer coisa, coloco gasolina.
— O problema dele não é falta de gasolina.
— Tem razão. O problema dele é você.
— Quanta gentileza — Felix sorriu amarelo, saindo junto a Jisung e trancando a porta. — Não comprou um presente pra ele? — perguntou ao ver as mãos vazias do amigo enquanto desciam pelo elevador que fazia um barulho horrível.
— Já dei meu presente.
— E o que foi?
— Você não vai querer saber — deu uma piscadinha maliciosa na direção de Felix.
— Que nojo!
— Para de ser fingido, Felix. Não é porque você está criando teia de aranha nesse pau que as outras pessoas não podem transar.
— O quê?! — Felix deu uma risada nervosa e arqueou as sobrancelhas. Já estavam no estacionamento, e Jisung o encarava com um rosto provocante. Sua vida sexual (ou a falta dela) não deveria ser a pauta daquele diálogo que se iniciara tão despretensiosamente. — Não faz tanto tempo assim.
— Ah, é? Me diz um nome e uma data, então.
Com a mão na porta do carro, Felix parou e olhou para o vazio, tentando se lembrar da última pessoa com quem havia transado.
— Arn… Wooseok. Junho.
— Mentiroso — disse Jisung.
— O quê?! — Felix arregalou os olhos e Jisung deu a volta no carro, entrando e ficando no banco do passageiro. Felix ocupou seu lugar no do motorista e olhou para ele ainda intrigado. — Como pode saber que é mentira?
— Você nem conhece nenhum Wooseok.
— Claro que conheço.
— Felix, para de mentir e admite que faz mais de um ano que você não fica com ninguém.
— Vai se foder.
Aquele xingamento era uma triste confirmação. Jisung estava certo. Há mais de um ano, Felix não transava com ninguém. Não porque não queria — bater punheta no chuveiro satisfazia tão somente adolescentes —, mas porque estava de saco cheio. Ir a clubes fingir interesse em conversa fiada com desconhecidos só pra conseguir uma foda rápida e sem graça era mais entediante do que ver aquelas senhoras cruzando piscinas de obstáculos para não morrerem de fome em TV nacional.
Três bombadas, uma gozada fraca e, olha só, ele teria que ter aquela conversa.
Foi bom, né?
É, é, foi bom.
Porra nenhuma.
Além disso, Felix também não ajudava. Era seletivo e não sabia flertar nem se a vida dependesse disso. Resultado: cama vazia, uma mão calejada e nem uma ideia de como resolver aquela situação.
Felix deu partida no carro depois de girar a chave cinco vezes antes de ele pegar. Jisung também pareceu ter se cansado de discutir com ele, então, apenas ficou reclamando das fitas que ele geralmente escutava.
— Cara, você precisa dar um fim nessas fitas.
— O que tem de errado com elas? — Felix perguntou, olhos na estrada.
— Primeiro: são fitas. Segundo, quem ainda escuta essas bandas?
— Eu escuto — disse Felix, levando uma das mãos até as fitas que Jisung olhava para livrá-las do julgamento. — Para de falar mal delas.
— Se passasse mais tempo conhecendo alguns gostosos do que passa naquela delegacia entregue às moscas, você com certeza teria uma vida sexual melhor.
Estava enganado. Jisung não se cansou de questionar sua vida sexual.
— Jisung, eu não estou interessado em ninguém. Além disso, gosto do meu emprego — disse Felix com as mãos no volante.
— Gosta? E o que te faz gostar daquele lugar? Sei que não são as pernas da recepcionista.
— Pelo amor de Deus — Felix respirou fundo. — Hayun tenta há anos.
— E você nem para cortar as esperanças dela e falar que é bicha.
— Eu sou policial, Jisung. Não posso sair contando pra todo mundo que sou gay. E não me chama de bicha.
— E por que não, bicha? Você tem vergonha de quem você é? — Jisung perguntou, as sobrancelhas arqueadas.
Felix hesitou por um momento. Não tinha vergonha de quem ele era. Tinha?
— Não, claro que não. É só que… Eles não entenderiam.
— Não entenderiam porque são brutamontes. A esposa daquele seu colega, o Changbin. Coitada, tem uma cara de cu de dar dó. Em todos os anos de casada, deve ter gozado duas vezes ou nem isso. Aposto que aquele cara nem faz oral, e quando faz, é com nojinho — Jisung riu, e Felix quase conseguiu ver o veneno escorrer pelo canto da boca dele.
Felix girou o volante para virar a esquina.
— Fala como se fosse o melhor amigo dela. Além disso, eles são legais.
— É por isso que você está ficando cada vez mais ranzinza. Em vez de sair comigo e com o Minho pra balada, fica em casa vendo televisão ou senão trancado naquela delegacia com aqueles héteros sem graça. Até parou de ir aos nossos almoços de domingo na casa da Aerin. Ela vive perguntando de você, sabia? Oh, onde está meu querido policial? Sinto falta dele.
— Jisung, eles são meus amigos — disse Felix, tentando amolecer um pouco a cabeça dura do seu melhor amigo. — Gostam de mim. E diga a Aerin que eu vou aparecer, só estou ocupado.
— Queria ver se eles continuariam gostando se você contasse que é gay — negou, um quê de indignação em suas expressões.
— Não é porque eles são héteros que isso faz eles virarem completos idiotas.
— Felix, só existem dois tipos de héteros neste mundo: os que te odeiam na sua frente e os que te odeiam pelas suas costas. Quando você entender isso, vai conseguir ver quem é seu amigo de verdade.
Felix sabia porque ele era tão radical. Jisung se descobriu gay muito cedo. Felix e ele se conheceram na escola aos doze anos, e Jisung era uma criança de estrutura óssea pequena e com olhos enormes. Felix o protegeu de valentões e fez com que ele perdesse o medo do vestiário, mas ser quem ele era, à época e ainda hoje, era uma tarefa difícil.
Por ser apenas um pouco mais alto — apesar de muito magricela —, Felix conseguiu cuidar do físico de Jisung na adolescência, mas não do seu psicológico. O trauma que os anos de violência o causaram vivia com ele até então, e o fato de ele odiar pessoas que não era como ele não era de graça. Jisung sabia como elas podiam ser maldosas, sabia como elas conseguiam fazer com que se odiassem simplesmente por serem quem eram, e Felix não tirava sua razão em nenhum momento.
— Prefiro acreditar que existe um lado bom neles — disse Felix, assentindo com a cabeça.
Já conseguia ver o bar mais adiante. Alguns metros e chegariam ao seu destino.
— Seu problema é ser bonzinho demais, e dirigir essa banheira como uma tartaruga.
— Depois eu que sou ranzinza.
Felix estacionou o carro de frente para o bar. Era um estabelecimento bem localizado no centro da cidade e servia um camarão frito delicioso. Não era um bar para pessoas como eles, mas, ainda assim, era um bom lugar para ir.
Jisung e Felix entraram no bar, que estava cheio. Era um sábado à noite em uma cidade sem muitas atrações, então era comum que o movimento se intensificasse.
— Eles estão ali! — Jisung apontou para uma mesa onde estavam seu namorado, Yejin e Mingyu, outros dois amigos que eram mais amigos de Jisung do que de Felix, mas que eram pessoas agradáveis.
Na verdade, não lembrava muito de sair com eles. Duas vezes, talvez? Não estava interessado e planejou não encontrá-los novamente. Construir amizades não estava nos seus planos atuais.
Felix suspirou e o acompanhou até lá, com as mãos dentro dos bolsos, em um claro desconforto pela euforia de todos naquele ambiente.
— Oi! — Jisung cumprimentou e correu para sentar ao lado do namorado, mesmo que não o recebesse com beijos ou abraços por estarem em público.
— E aí? — disse Felix, sentando ao lado de Yejin e ficando de frente para Mingyu, um cara beirando aos trinta que tinha um rosto bonito e sorriso charmoso.
Ele trabalhava como gerente em uma loja de departamentos e, assim como Felix, escondia da maioria das pessoas sua homossexualidade. Felix não o julgava e nem mesmo questionava, pois sabia como era dura a não aceitação, ainda mais quando estavam em cargos que lidavam diretamente com os cidadãos conservadores daquela cidade.
— Demoraram — disse Minho, tocando a mão de Jisung discretamente por baixo da mesa. — Aconteceu alguma coisa?
— Só o Felix que teve um problema com o gás e se atrasou. Não foi, Felix? — Jisung o olhou. Felix sabia que ele queria que confirmasse o que disse, então limpou a garganta com o pigarro e assentiu várias vezes.
— Sim, é, é. O gás.
— Mas já consertou? — Minho indagou.
Felix sentiu-se mal por um instante por esquecer do aniversário dele. Minho era uma pessoa boa, um amigo de verdade, assim como Jisung. Aerin, a mãe dele, também foi uma grata presença em sua vida depois que ele e Jisung começaram o namoro. Embora afastado de todos, ainda assim, sentia que devia muito a todos eles.
— Já sim. Foi só uma… Uma… — Felix fechou os olhos, girando o dedo indicador na frente do rosto. Sua mente deu um branco total e ele nem mesmo conseguiu lembrar o nome da coisinha do gás. — Uma… É…
— Uma válvula? — Mingyu disse.
Finalmente, a mente de Felix se clareou.
— Isso! Uma válvula. Eu precisei trocar.
— Oh, que perigo, então — disse Minho. — Mas que bom que chegaram — sorriu largo, dentes proeminentes aparecendo entre os lábios. — Já pedimos petiscos e cervejas.
— Felix vai beber hoje ou policiais bonzinhos não podem encher a cara? — Yejin, com seus cabelos presos em um alto rabo de cavalo, perguntou. Felix estreitou os olhos.
— Eu estou dirigindo, então não posso beber. Vou ficar no refrigerante.
— Pelo menos alguém é responsável por aqui — disse Mingyu. — E aí, como anda o trabalho na polícia de Jinhae? Muitos gatinhos ficando presos em árvores?
— Vai bem — disse Felix, com sinceridade, apesar da ironia que recebeu. — Quase não tivemos ocorrências, mas ontem aconteceu algo bem esquisito.
— O quê? — Jisung perguntou.
— Por volta das três da manhã, chegou um garoto detido. Ele furou um cara e acertou um tamanco no olho do Changbin.
— Há! Bem feito. — Jisung comemorou com uma risada, seguida de uma palma seca.
Felix o repreendeu com o olhar.
— Ele era estranho… Usava umas roupas de mulher e maquiagem no rosto. O batom dele estava borrado e eu pude jurar que era sangue.
— Maquiagem? — Mingyu franziu o cenho. Felix assentiu. — Ele é uma drag queen?
— Hm, acho que não — Felix negou, pensando que o estilo do garoto estava bem longe das perucas volumosas e toda a peculiaridade do transformismo. — De qualquer forma, quando fui prendê-lo na cela, ele me deu um soco e uma joelhada e saiu correndo. Dá pra acreditar nisso?
— Fala sério! — Yejin arregalou os olhos. — E você deixou?!
— Não pude fazer nada. Ele foi rápido e eu corri atrás dele. Acabou que consegui pegá-lo depois de quase cuspir meus pulmões. Foi uma madrugada intensa.
— Uau! Jinhae está me surpreendendo. — Mingyu disse com um risinho no rosto. — Os policiais até mesmo estão tendo que trabalhar.
— Eu tenho trabalho, Mingyu, só não é trabalho prático. Vocês sabem, burocracia e essas coisas — Felix abanou a mão, desdenhando do próprio cargo. Não havia muito o que fazer, afinal. — Os meus colegas que costumavam fazer a ronda por aí enquanto eu ficava lá… Anotando fichas — bufou, olhando em volta para tentar se distrair. — Pelo menos, trabalho só quatro dias por semana.
— Puxa, que legal — disse Minho perante o silêncio que se estabeleceu na mesa após todos se darem conta da frustração intrínseca de Felix.
Alguns minutos depois, a bebida que Minho pediu chegou à mesa junto com alguns petiscos. Felix aproveitou para pedir um refrigerante, pois não identificou nada sem álcool em meio às muitas garrafas sobre a mesa. Receberam também uma porção de camarões fritos que rondaram a mente de Felix desde que entrou por aquela porta.
Enquanto comiam e bebiam, Yejin falou sobre seu emprego na prefeitura da cidade. Ela era recepcionista na ala da administração e os casos absurdos que ela vivenciava com os políticos arrancaram boas risadas. Minho e Jisung continuaram se acariciando por debaixo da mesa, e Minho foi ousado o bastante para dar um beijo na bochecha do namorado quando notou as pessoas ao redor alheias a eles. Já Mingyu, quase não falava sobre seu trabalho ou vida pessoal.
Felix tentou fingir que o caso do dia anterior não estava rondando sua mente o dia inteiro. Não conseguiu parar de pensar no Caso Hyunjin, como começou a chamar, e que envolvia seu padrinho, seu advogado estranho com gengivas escuras e como tudo aconteceu tão rápido. Havia uma pulguinha atrás da sua orelha coçando como pó de mico, e ele só ficaria em paz quando chegasse àquela delegacia na segunda e recebesse o que Hayun havia prometido conseguir: a ficha completa de Choi Seunghyun, com detalhes.
— Psiu — a voz grave de Jisung cortou os pensamentos de Felix. Piscou algumas vezes e olhou para ele, que estava com um sorrisinho de lado, malicioso. Jisung arqueou as sobrancelhas duas vezes e sussurrou: — Tem um cara te comendo com os olhos ali — virou a cabeça para outra direção, e Felix seguiu o movimento.
Era um cara no balcão. Estava meio de lado, chupando um drink de um jeito esquisito. A bebida era vermelha, com um guarda-chuvinha idiota na borda e ele tinha um sorriso safado estampado na cara. Quando percebeu que Felix estava olhando para ele, piscou apenas um dos olhos. Felix engoliu seco. Que merda era aquela?
— Ah, não — Felix negou várias vezes na direção de Jisung. — Nem fodendo.
— Por que não? O cara é um gato!
Felix revirou os olhos, quase com um embrulho no estômago.
— Vai fundo, Felix — Yejin insistiu, concordando com a sugestão de Jisung. — Ele é mesmo bonito e parece bem disposto a… como vocês, gays, falam? Dar umazinha?
— Não, porra. Ele não faz o meu tipo — disse. Quase na mesma hora, levou o copo de Coca-Cola à boca.
— Tipo? — Mingyu perguntou, curioso.
— Lá vem você de novo com essa porra, Felix! Vai tomar no cu! — Jisung se irritou, e Felix já sabia por quê. Ele nunca engoliu suas preferências.
— Gente? — Minho deu uma risadinha abafada. — O que tá rolando?
— O Felix que é um preconceituoso imbecil! — Jisung disparou, e Felix arregalou os olhos.
— Que porra é essa, cara?! — Felix rebateu, realmente ofendido com as palavras de Jisung.
— Pensei que já tivesse superado essa merda de preferência.
— Não superei, porque você mesmo disse: é uma preferência — disse com convicção, nem um pouco disposto a ceder às provocações de Han Jisung.
— Que preferência? Você não gosta de caras que tomam bloody mary? — Yejin brincou, e Felix viu que, infelizmente, teria que explicar o seu ponto.
— Afeminados — disse, já pronto para ouvir as críticas. — Eu não curto.
Todos, exceto Jisung, abriram a boca como se tivessem acabado de entender tudo. Imediatamente, olharam para o cara que estava se oferecendo para Felix. Eles viram o que Felix tinha visto na hora: pernas cruzadas no banco, um shortinho mesmo com o frio do caralho que estava fazendo nas noites de Jinhae e blusa colada no corpo. O cara praticamente tinha uma placa na testa gritando "afeminado”, e se Felix ia quebrar o jejum de um ano sem foder, definitivamente, não ia ser com um cara desses.
— É ridículo — disse Jisung.
— É uma preferência — retrucou Felix.
— Uma preferência preconceituosa!
— Uma preferência que existe! Sou eu quem vai ter que transar e ver isso em cima de mim, então eu decido se quero ou não.
— Você é um babaca — Jisung revirou os olhos.
— Vai brigar comigo só porque eu não gosto de pegar bichinhas?
— Bichinhas?! Ah, vai se foder! — Jisung disse alto.
Felix respirou fundo, já completamente desgastado daquele assunto.
Por que as pessoas não podiam entender que preferências existiam? Felix era um homem gay, consequentemente, ele gostava de homens, corpos masculinos, paus grandes e bundas fartas, cuecas e calções de tactel. Por que ele gostaria de ficar com um cara que queria parecer com uma mulher? Parecia tão simples para ele, então deveria ser para todos.
— Tudo bem, eu acho que não é necessário tanto estresse — disse Minho, tentando colocar um fim no clima pesado trazido pelos dois brigalhões.
Jisung negou, os braços cruzados. Felix sabia que ele demoraria alguns dias para ficar bem com ele novamente. Apesar disso, Jisung sempre acabava se desculpando, então não era algo com que Felix se preocupava.
Durante as horas que se passaram, Felix tentou não cruzar o olhar em nenhum momento com o cara do bloody mary, porque não queria que ele pensasse que estava dando algum tipo de retorno. Não iludir era a melhor opção. Comeu mais três porções de camarões fritos e bebeu uma lata de coca de uma vez, a sede secando sua garganta devido à da fritura dos camarões.
Perto da uma da manhã, eles saíram do bar. Jisung ainda estava irritado, mas fazer o quê?
Felix se despediu de todos, inclusive do seu melhor amigo, que disse que não voltaria com ele. Pegou o seu carro, um Ford Escort XR3 bege caindo aos pedaços e ocupou o banco do motorista. A rua, como de costume, já estava deserta.
Pensou que Jisung talvez tivesse jogado algum tipo de praga nele ou no seu carro, pois o automóvel começou a falhar com poucos minutos na estrada. Felix tentou acelerar, mas aquela porra de banheira velha foi diminuindo a velocidade cada vez mais. Bufou, batendo no volante quando, enfim, o carro parou próximo a uma esquina.
— Que porra!.
Xingar paria a única coisa que ele podia fazer naquele momento.
Girou a chave na ignição várias vezes e tentou dar partida, mas ele parecia mesmo estar decidido a não pegar. Depois de muitas tentativas, Felix pegou um maço de cigarros no porta-luvas e o seu isqueiro de emergência. Saiu do carro para fumar, mesmo que não importasse com o cheiro da fumaça no estofado meio rasgado do veículo.
As luzes da esquina estavam fracas, uma delas queimada. Felix tirou um cigarro do maço e colocou entre os lábios, acendendo-o com. Tragou a fumaça para dentro dos pulmões e conseguiu relaxar pela primeira vez em horas. A fumaça gasta saiu pelas narinas e tossiu um pouco, engolindo em seco em seguida.
A madrugada estava fria, e qualquer pessoa andando por ali àquela hora seria um louco ou algum maníaco. Jinhae não tinha registros de nenhum desses perfis mentalmente instáveis, então Felix se sentiu seguro, além disso, sua arma ficava muito bem guardada com os cigarros de emergência no porta-luvas. Quando o cigarro estava pela metade, foi até o capô do carro e o levantou, olhando o motor cheio de fitas isolantes e alguns remendos que o mecânico fez na última vez que o levou para o conserto. Deixou o cigarro preso entre os lábios para mexer nas peças do motor, aquelas engrenagens cheias de ferrugem que pareciam peças de um quebra-cabeça sádico. O que ele esperava, afinal? Um milagre que fizesse o carro ligar?
Felix esqueceu de contar os minutos que se passaram desde que seu carro o deixou a pé, mas sabia que já estava no terceiro cigarro e nada do desgraçado ligar. Pensou em chutar o pneu e ligar para o reboque quando chegasse em casa, mas antes que pudesse decidir qualquer coisa, ouviu passos rápidos se aproximando pelo asfalto vazio.
— Algum problema com o carro, bonitão?
Aquela voz não era estranha. Profunda, mas não como a sua. Felix se virou devagar. Quando fixou os olhos naquela figura alta, teve certeza de que o universo estava tirando um sarro fodido da sua cara.
Diferente daquela madrugada de merda, Hyunjin não estava uma completa bagunça. Ele estava com os dois saltos nos pés, sem meia-calça dessa vez, uma saia de couro cheia de pregas e uma blusa preta que não deixava sua barriga à mostra, provavelmente devido ao frio. Sua maquiagem estava um pouco borrada, mas não como da última vez. Não havia batom vermelho escorrendo pelo canto da borra agora, apenas o brilho sedoso e escarlate nos lábios. Felix ficou em choque ao vê-lo. Por outro lado, Hyunjin não pareceu muito feliz quando Felix se virou para ele.
— Ah, é você. — A decepção desdenhosa o fez enrugar o nariz. — Está me perseguindo, oficial? Não esqueça de que agora sou um homem livre.
— Foi você quem me abordou.
— Só porque não vi seu rosto. Na real, você é mais bonito de costas.
Os olhos de Hyunjin estavam trêmulos, as pupilas dilatadas mesmo que não estivessem no breu. Seu nariz estava vermelho, assim como o branco dos olhos. Hyunjin levou os dedos até a cartilagem das narinas e coçou algumas vezes. Felix não pôde evitar reparar.
— Então, Hwang Hyunjin… — Felix começou, vendo naquele encontro inesperado uma possibilidade de começar a entender o assunto que vinha pilhando sua mente. — Você anda bem?
— Fantástico — ele disparou. — Tenho duas pernas saudáveis e pés muito rápidos. Você que o diga.
Ironia. Teria que ser assim com ele.
— Nem tanto, já que eu te capturei.
— Não sou nenhum bicho pra ser capturado.
— Certo, certo — gesticulou, como se para encerrar a pequena sequência de ataques. — Estava pensando…
— Vinte mil wons a hora. Você paga o motel ou pode usar seu carro. Não faço sem camisinha a menos que pague o triplo — Hyunjin ditou uma série de absurdos.
Motel, carro, vite mil wons, camisinha, pagar o triplo. O que era tudo aquilo, santo Deus?
— O quê? — Felix perguntou, maneando a cabeça para os lados. — Eu não quero fazer um programa.
— Então o que você quer? — Hyunjin devolveu a pergunta. De repente, seus olhos se acenderam e ele os arregalou, dando dois passos para trás. — Você não vai me revistar, tá ouvindo? Não sem um mandado!
Hyunjin estava prestes a virar em seus calcanhares para sair das vistas de Felix, mas o policial segurou com força no braço dele, impedindo-o de ir embora.
— Não precisa de mandado pra revistar ninguém, mas eu não vou fazer isso — suspirou, fazendo as engrenagens da sua cabeça funcionarem para que ele perguntasse o que era preciso. — Me deixa te fazer uma pergunta? É importante
— Fala logo.
— Aquele seu padrinho… O nome dele é Seunghyun, certo?
— O que tem ele? — Hyunjin perguntou, defensivo.
— Ele… — Felix olhou para cima. Sentia-se ridículo ao fazer uma pergunta tão boba. — Ele te machuca?
— Do que você tá falando?
— Ele te obriga a fazer essas coisas? A se prostituir?
Hyunjin partiu os lábios e soltou o ar pelo nariz. Ele parecia ter sido pego de surpresa por aquela pergunta, e Felix não sabia diferenciar se ele estava nervoso ou simplesmente muito irritado. Confirmou a segunda alternativa quando ele disparou ríspidas palavras na sua direção logo em seguida.
— Por que você tá me perguntando isso?! — proferiu, agressivo, deixando Felix acuado.
— Hyunjin, se aquele homem faz alguma coisa que coloca você ou qualquer outra pessoa em risco, você pode me contar. Sei que não nos conhecemos, mas, como policial, tomarei as providências necessárias.
— Ah, porra, o quê?! — riu amargo, compartilhando do próprio pensamento de Felix. Era mesmo ridículo. — Por que você tá perguntando essa merda?
— Sei que pode parecer esquisito e… Eu sei, eu sei, não é normal policiais perguntarem isso não oficialmente, mas… — fechou os olhos, tomando coragem. — Eu o achei muito estranho. Algo nele não me cheirou bem.
— Quem você pensa que é? — Hyunjin cuspiu as palavras. — Seunghyun é bom e cuida de mim como ninguém nunca cuidou — disparou, e Felix deu dois passos para trás. — Cuida da sua vida, policialzinho de merda.
Felix decidiu ignorar o desacato. Não estava de serviço, não estava sequer na posição de perguntar nada a Hyunjin.
— Eu não quis te ofender, Hyunjin — ele disse. — Nem ofender seu padrinho, acredite, mas…
— Acho melhor você não se meter no que não é da sua conta — Hyunjin disse novamente. Fungou, o barulho do ranho tremendo na garganta arrepiando a coluna de Felix. — Eu sei muito bem me cuidar.
Hyunjin levantou a blusa que estava por dentro da saia. Quando Felix conseguiu enxergar o cós apertado, pressionando a pele pálida da barriga, viu dois novos canivetes presos contra a pele. Por um momento em que seus sentidos se anuviaram com a cena, pensou como Hyunjin explicava aos seus clientes duas armas presas à roupa quando ficava nu. Talvez não ficasse nu. Talvez Hyunjin levantasse a saia e fizesse Deus-sabe-o-quê com eles, de roupa, apressado, antes que tivessem que voltar às suas esposas beatas e fiéis que os esperavam com os filhos em casa.
Diante da mudez do policial, Hyunjin estalou a língua no céu da boca e se virou para a mesma direção de onde vinha.
— Espera — Felix tentou tocar em seu braço uma última vez, mas Hyunjin recuou.
Os olhos flamejantes, acesos como faróis, queimaram a pele do policial.
Do policialzinho de merda, talvez.
— Não fode, porra.
Hyunjin concretizou uma das opções iniciais de Felix quando o carro quebrou: deu um chute forte no pneu da frente.
Depois, ele saiu. Felix ouviu o barulho dos saltos pela estrada deserta e o fungado do seu nariz, que continuava molhado, fazendo ecos. Mesmo de costas, Felix via a postura defensiva de Hyunjin até mesmo quando ele caminhava.
Como fumaça, ele sumiu, deixando Felix com a porra de um carro quebrado e com um milhão de questionamentos rondando a mente.
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— Merda — Felix xingou pelo que parecia ser a milésima vez, mexendo no motor do carro na garagem do prédio.
Era segunda e ele precisava chegar à delegacia no período da tarde para iniciar seu expediente. Amanheceu com uma enxaqueca do inferno e não conseguiu ir trabalhar pela manhã. Pediu para Changbin cobri-lo e, quando se sentiu um pouco melhor, iniciou a missão de tentar consertar a lata velha que insistia em chamar de carro.
Desde o ocorrido com Hyunjin há duas noites, Felix sentia como se algo estivesse inacabado. Após as retrucadas rígidas vindas dele, Felix deveria desistir de tentar entendê-lo ou de buscar alguma coisa além do que ficharam naquela noite, mas não conseguia.
Havia algo nele além de um prostituto de saltos altos com lâminas escondidas na gengiva, pensou. Felix ainda não sabia o que era, mas pretendia descobrir.
— Não acha mais fácil levar a um mecânico? — indagou Minho, sentado ao lado de Jisung em uma cadeira enquanto via Felix trabalhar.
— Não tenho grana pra um mecânico — Felix disse, ainda com a cara enfiada nas ferragens do motor.
Ele não fazia a mínima ideia de que porra estava fazendo.
Jisung ainda estava bravo pela discussão de sábado à noite, mas não deixou de se meter.
— Eu já disse que eu empresto a grana pro conserto. Depois você me devolve.
— Não quero seu dinheiro, só o seu apoio moral — Felix não o olhou, apenas levou um dos polegares para ele.
— Bem, deveria querer. Eu que insisti para que a gente fosse no seu carro no sábado. Ele quebrou por minha culpa.
Felix poderia concordar com Jisung sobre o carro ser culpa dele e ter uma pequena vingança pessoal, uma vez que não tinha planos de colocá-lo na estrada até que tivesse dinheiro para mandá-lo a um bom mecânico. No entanto, sabia que Jisung ainda estava chateado com ele e com suas palavras — embora Felix não visse o motivo, mas dizer que ele era culpado de algo que não era, talvez, não fosse a melhor maneira de fazer as pazes.
— Relaxa — Felix disse. — Eu vou dar um jeito.
— Se quiser, eu posso dar uma olhada. — Minho ofereceu, despretensioso.
— Deixa ele, amor. Esse turrão acha que sabe de tudo — Jisung revirou os olhos. Felix deu uma risada sem humor. Seu melhor amigo era mesmo um doce. — Além disso, não quero que suje suas mãos de graxa.
Felix ouviu um estalo de beijo, e Minho deu uma risada fofa.
— Encontrei. Acho que é aqui — Felix anunciou após detectar um cano bastante suspeito que parecia estar soltando fumaça. — Ah, há! É isso!
Não podia ver Jisung e Minho de onde estava, mas Felix tinha a grande impressão de que eles se entreolhavam, desconfiados da sua capacidade de identificar o real problema do carro. Felix escorreu sua mão entre as peças do automóvel, torcendo para que conseguisse alcançar o cano defeituoso. O que faria com ele era problema para resolver depois. Apertou um pouco os seus ossos naquela tarefa e quase não conseguiu alcançar. Mas, quando finalmente tocou no cano, percebeu como era um imbecil.
— Ai, porra! — Felix exclamou ao sentir a superfície quente do cano.
Sua pele queimava sobre o metal, e ele arrancou sua mão em um reflexo cerebral, não rápido o bastante para sair ileso.
— O que houve? — Jisung indagou, levantando-se junto a Minho para ir até Felix.
— Essa merda de cano — Felix disse, segurando a mão queimada com a outra.
— Tá doendo muito? — Minho indagou, olhos doces. Felix assentiu, grunhindo gemidos de dor.
— Temos que ir ao hospital. — Jisung falou, com um tom de voz preocupado.
Sua vida era mesmo uma merda.
A última coisa que Felix queria era estar dando trabalho. Ainda por cima, ter que ir ao hospital quando claramente não podia perder muito mais tempo, já que precisava estar na delegacia depois do almoço.
— Não precisa — disse, negando enquanto abanava a mão. — Eu vou ficar bem.
— Não, Felix. — Jisung contrariou, puxando a mão queimada de Felix. — Olha isso, tá toda vermelha — ele estalou a língua no céu da boca enquanto negava com a cabeça. — Certeza que foi de segundo grau.
— Não exagera.
Jisung, com certeza, estava pensando "se não fosse eu, o que seria desse cara?", e Felix concordava com ele. Se já era fodido com Jisung na sua vida, já teria morrido sem ele.
— Vamos no meu carro — disse Minho. — Chegamos rapidinho.
— É sério, não precisa disso — Felix tentou relutar, mas, quando se deu conta, Jisung já estava puxando seu braço na direção do carro do namorado. — Vamos fazer os médicos perderem tempo — ralhou, sendo empurrado para o banco de trás do carro um pouco mais moderno que o seu, que, coitado, continuava com o capô aberto enquanto seus amigos dramáticos o levavam ao hospital por conta de uma simples queimadura.
Durante o caminho, Minho ligou o rádio e Baba O'Riley do The Who começou a tocar. Era estranho ver Jisung gostando de alguma música que não fosse os discos da Cher. Enquanto ele sempre criticava o gosto musical de velho de Felix, em suas palavras, seu namorado escutava música dos anos 70 e ele sorria apaixonado.
Isso devia ser porque a paixão fazia deles completos idiotas, era o que Felix sempre dizia.
Chegaram ao hospital.
Felix desceu do carro com uma cara de quem chupou limão, a cabeça latejando. Pensou em ignorar a queimadura e pedir ao médica um tarja preta que melhorasse aquela enxaqueca, mas duvidava que Jisung falasse com ele na próxima década se fizesse isso.
Não queria estar ali. Não era necessário, e, além de fazer os médicos perderem tempo enfaixando uma mão saudável, ainda perderia a hora do almoço. O pior de tudo era que, com certeza, chegaria atrasado na delegacia.
— É uma idiotice — Felix resmungou, mas Jisung não o deu tempo de concluir suas reclamações.
Ele pegou o braço de Felix e, quando ele se deu conta, já estavam na recepção.
— Boa tarde — disse Jisung, sorrindo gentil para a recepcionista mal encarada de cabelo castanho. — Meu amigo precisa ver o médico.
— Qual o problema dele? — ela perguntou.
Felix tentou mover os lábios para dizer alguma coisa que envolvia "nenhum problema, estou em perfeito estado", mas Jisung o cortou, como se fosse a droga do seu pai.
— Ele queimou a mão. Acho que precisa passar uma pomada e enfaixar.
— Hm. Aguardem ali — apontou com o queixo para algumas cadeiras vazias.
O hospital de Jinhae era, assim como o restante da cidade, bem monótono. Não havia muito com o que se preocupar a não ser eventuais acidentes de trânsito, alguns idosos fazendo tratamento de diabete e hipertensão e um ou outro caso de HIV, embora o prefeito dissesse religiosamente que Jinhae estava livre dessa praga, como ele mesmo chamava. Aqueles com o vírus, é, aquele que você podia pegar em uma transfusão ou dando a bunda por aí sem camisinha, já tinha causado muita dor de cabeça — menos do que sua enxaqueca — às autoridades e serviços médicos de Jinhar. Felizmente, não era mais 83, e, segundo o prefeito Jo Insung, a praga dos invertidos não era mais um problema por ali.
Meia hora depois, Felix percebeu que estava enganado sobre o médico não demorar a atendê-lo.
— Porra, que demora — resmungou, balançando um dos joelhos. — Com licença — chamou a recepcionista, que desviou o olhar de sua serrinha de unha para encará-lo com um rosto cheio de tédio. Ela não era a única. — Sabe me dizer se o médico vai demorar?
— Ele está com um paciente. Melhor esperar — ela disse e voltou a se concentrar em lixar as unhas.
Felix bufou, amaldiçoando Jisung por ser tão teimoso.
Os próximos dez minutos passaram como se o relógio girasse ao contrário. Era tedioso, irritante e demorado. Felix não conseguiu conter a carga de ansiedade que foi direto para a sua perna, e Jisung e Minho já estavam fartos da sua impaciência, mas eles eram os culpados de estarem ali.
Felix poderia muito bem passar um pouco de manteiga ou pasta de dente na queimadura, que nem estava tão feia assim, e ir trabalhar sem antes ter que ficar horas esperando por um médico preguiçoso.
A porta do consultório finalmente abriu. Felix respirou aliviado, levantando-se, assim como seus amigos.
— Até que enfim! — Felix soprou, vendo o médico dar um aperto de mãos condescendente no paciente que saía da sala.
Foi naquele momento que Felix viu que o universo estava conspirando contra ele. Quer dizer, talvez, a seu favor. Era Hwang Hyunjin.
Não o Hwang Hyunjin de duas noites atrás, com seus saltos altos e maquiagem no rosto. Era um Hyunjin quase normal.
Ele estava de calças jeans, uma camiseta preta que devia ser quatro vezes maior do que o corpo magro dele e um all star amarelo que ficava estranho com o restante das roupas. Não eram roupas bonitas, não eram roupas caras, eram apenas roupas para não sair de casa vestido em trapos.
Felix não esperava encontrar Hyunjin em um hospital em plena luz do dia, ainda mais tão diferente. Seu rosto estava limpo e sem o pó opaco da maquiagem. Apenas bochechas coradas naturalmente e cabelos parcialmente presos, deixando uma franja delicada sobre a testa.
— Lee Felix? — perguntou o médico, e Felix saiu do seu pequeno transe.
— Anda, cara — disse Jisung, empurrando Felix na direção do médico.
— Espera.
Hyunjin tentou passar por Felix com uma revirada de olhos e um envelope pardo nas mãos. Ele com certeza achava que Felix iria interrogá-lo novamente sobre seu padrinho ou apenas queria ir logo para evitar conversar com ele.
— Hyunjin — Felix disse, simples, e ele não respondeu. — Como tem andado?
— Com as pernas, na maior parte das vezes — respondeu com a piada mais tosca do mundo. — Qual seu problema de querer saber como eu ando?
— Eu só…
— É, é — fez uma careta. — Só larga do meu pé.
Dito isso, ele passou, ainda segurando o envelope, saindo do hospital sem olhar para trás.
Hyunjin intrigava Felix. Na verdade, vinha o intrigando desde o dia em que atirou um salto na cara de Changbin.
Hyunjin parecia sempre na defensiva demais, mas Felix tentava não julgar suas atitudes, tendo em vista a vida que ele levava. O fato de que Seunghyun cheirava a aliciador não saía da sua mente, e hoje seria o dia em que Hayun lhe entregaria o dossiê completo que pediu na outra noite. Por isso ele não podia perder mais tempo naquela porta de lugar fedendo a álcool gel.
— Oficial Lee — o médico repetiu.
Felix balançou a cabeça novamente, indo em direção ao consultório, ainda com a imagem de Hyunjin em mente.
Felix entrou na sala e sentou em uma cadeira pouco confortável.
— O que aconteceu, Felix? — ele perguntou, arrumando os óculos no rosto envelhecido.
— Arn, eu… queimei minha mão enquanto mexia no motor do carro — Felix estendeu sua mão machucada para ele, e o médico estreitou os olhos para poder enxergar melhor.
Ele tocou na mão de Felix para analisar o machucado. Em seguida, levantou-se da cadeira e indicou que Felix se sentasse na maca que ficava ao lado. O médico saiu da sala por alguns minutos e, quando voltou, estava segurando uma bandeja de alumínio — ou qualquer outro material prateado hospitalar — com alguns utensílios.
— Muito bem, vejamos… Foi uma queimadura leve — disse ele, confirmando o que Felix vinha dizendo há horas para Jisung e Minho. — Eu vou passar uma pomada anestésica e enfaixar, tudo bem?
— Vai demorar muito, doutor? É que eu estou um pouco apressado.
— Não se preocupe.
Ele pegou a mão de Felix e começou com os cuidados. De repente, a imagem de Hyunjin segurando aquele envelope ressurgiu na mente de Felix, e a curiosidade se alastrou pelo seu corpo. Estaria Hyunjin doente? Em tratamento? Machucado? Ou será que ele era um dos inomináveis aidéticos que o prefeito tanto temia que fossem revelados? Levando em conta sua vida na prostituição e uma revelação perturbadora de que ele fazia sexo sem proteção caso pagassem uma certa quantia, Felix não duvidaria.
— Doutor — Felix disse baixinho, e o médico, que estava empenhado em enfaixar sua mão, apenas murmurou para que ele continuasse. — Aquele rapaz que saiu daqui agora a pouco.
— Sim?
— Ele… — Felix deu uma pausa dramática, pensando no que dizer em seguida. — Qual o problema dele? — perguntou de uma vez e mordeu o lábio inferior, ansioso pela resposta.
— Não posso dizer nada sobre meus pacientes, oficial Lee. É confidencial.
— Bom, eu achei que…
— Sua mão está pronta — ele disse, terminando de enfaixar. — Pode tirar o curativo em dois dias.
— Eu realmente gostaria de saber sobre ele. Eu estou, bem… fazendo uma investigação e…
— E isso envolve a saúde e a vida pessoal do garoto? — O médico arqueou as sobrancelhas. Felix engoliu em seco e encolheu os ombros. — Seja cauteloso, policial. Eu vi como ele falou com você. Não vai querer ver o Hyunjin irritado.
— O quê?
— Eu o conheço há muitos anos. Apenas… tome cuidado, sim?
— Tomar cuidado? Com o que, doutor?
— Com tudo — ele suspirou. — Jinhae é uma cidade pequena, mas com coisas grandes dentro dela. Se eu fosse o senhor, não me envolveria com ele.
— Não quero me envolver, quero…
— Eu entendi, policial. Acabamos por aqui.
O médico finalizou. Felix apenas fez que sim com a cabeça, mas ainda havia muitas coisas que ele pretendia descobrir.
Ao sair do hospital, Felix se despediu de Minho e Jisung, negando a carona oferecida por eles, sem paciência ou bom humor para conversar. Pegou um táxi que o levaria até a delegacia, não se dando ao luxo de passar em casa e ter um almoço decente. Na pior das hipóteses, almoçaria macarrão instantâneo na copa, mas seu organismo já estava acostumado àqueles alimentos industrializados. Temia o dia em que comeria comida de verdade e seus rins falhariam por não identificarem aquelas substâncias desconhecidas, também nomeadas de vitaminas.
— Boa tarde — Felix cumprimentou, assim que chegou à delegacia.
Hayun teclava com força no computador de tubo amarelado enquanto deixava uma xícara de café esfriando em cima da sua mesa. Há tanto tempo trabalhava com eles que aquela pobre mulher acabou adquirindo os maus hábitos dos policiais, principalmente o vício em cafeína. Embora fosse sempre criteriosa ao lembrá-lo de que café amarelava os dentes, Felix achava que Hayun deveria primeiro se preocupar com os dentes dela.
— Boa tarde, oficial Lee — disse ela, com um sorriso doce.
Seus dentes eram brancos, a propósito.
— Onde estão os outros? — perguntou ele, não vendo nenhum dos colegas no ambiente.
— Tiveram que atender a uma chamada — ela disse. — A senhora Ahn teve mais anões de jardins roubados.
— Por que roubar anões de jardim?
Desaparecimento de adereços de jardinagem. Esse era o tipo de caso que se encontrava em Jinhae.
— Vai ver ela esqueceu onde guardou e acha que foram roubados — Hayun deu de ombros e parou de teclar por um instante. — Oficial Lee — chamou com uma voz dois tons abaixo do comum —, eu encontrei o que o senhor pediu.
Felix arregalou os olhos, indo até a mesa de Hayun e puxando uma cadeira para sentar ao lado dela.
— E o que você encontrou exatamente? — perguntou, vendo Hayun tirar alguns papéis de dentro de uma pasta.
— Bom, não muita coisa — ela deu uma risadinha, entregando os papéis ao policial. — Ele se chama Choi Seunghyun de verdade. Em suas declarações de bens, consta apenas um imóvel na rua Jayul. É um prédio de três andares que funciona como uma boate.
— Boate?
— Isso mesmo. Ele não tem nenhuma passagem pela polícia, pelo menos, não nos registros da delegacia.
— E nos da central?
— Eu não cheguei a procurar nos arquivos da central.
— Mas você pode?
— Tecnicamente, sim.
— Procure — disse, firme, e Hayun arqueou as sobrancelhas. — Digo… por favor — suspirou, exausto e com fome. — É importante.
— Há algo acontecendo, oficial? O senhor acha que esse Seunghyun…
— Não. — Foi rápido em dizer. Não estava nos seus planos compartilhar com outras pessoas as paranoias que eram entendidas apenas por ele mesmo. — É apenas… precaução.
E não estava mentindo.
Não tinha certeza de nada, tampouco se Choi Seunghyun era, de fato, alguém com quem precisava se preocupar. De qualquer forma, sabia que não conseguiria dormir enquanto não tirasse tudo a limpo.
Talvez, no futuro, culpasse sua sede de investigação e de adrenalina por tudo aquilo. Ou, quem sabe, um dia dissesse aos filhos de Jisung que seu tio foi apenas um policial inútil que passou a vida inteira procurando sarna para se coçar.
— Procurarei mais alguma coisa — disse ela, sem perguntar mais nada. — Vou informar ao oficial caso encontre algo.
— E o contrário também.
— Claro.
Felix deixou Hayun na recepção e partiu para o vestiário, onde sempre deixava um uniforme reserva para casos como aquele. Sua mão não doía, mas era difícil se vestir com ela enfaixada. Bufou quando teve dificuldade para abotoar os botões da camisa azul e, depois de quase vinte minutos, conseguiu terminar de se vestir.
Correu para a copa e procurou nos armários velhos algo que pudesse alimentá-lo pelas próximas horas. Cup Noodles, barrinhas de cereais, salgadinhos de queijo ou qualquer outra porcaria com gosto industrializado.
Encontrou, milagrosamente, um pouco de cereal matinal perdido entre teias de aranha e poeira escura. Buscou, na pequena geladeira, um pouco de leite e colocou tudo em uma tigela, sentando-se à mesinha encostada à parede. Depois, derramou dentro de um copo de papel uma quantidade considerável de café para que tomasse junto do cereal.
Leite, cereal de milho, café sem açúcar com uma dose tripla de amargura. O almoço dos campeões.
— Lee Felix! — escutou a voz alta de Changbin soar na copa no mesmo instante em que estava tomando um longo gole de café. — Por que chegou tão tarde?
Felix quase engasgou e fez uma careta.
O cereal acabou e tudo que lhe restou foi pegar um cigarro.
— Tive um problema — ergueu a mão enfaixada para ele. Changbin franziu o cenho.
O olho dele ainda estava roxo, e Felix teve vontade de rir ao lembrar do porquê.
— O que houve?
— Me queimei com o motor do carro — deu de ombros. — Mas e aí, qual a boa? A senhora Ahn esqueceu onde colou os anões de jardim?
Changbin negou em meio a um sorriso, puxando uma cadeira para sentar ao seu lado.
— Estavam no porta-malas — disse ele. — Jeongin foi pra casa. Estava de plantão desde ontem.
— Pois é…
Um silêncio matador se estabeleceu, até que Changbin pigarreou. O copo de café chegou ao fim, e Felix apenas continuou fumando seu cigarro lentamente, deixando a sala com cheiro (ou odor) de nicotina.
— O senhor Kang falou que te viu no sábado.
Felix engasgou, tossindo rouco.
— No sábado?
— É… — Changbin deu uma risada sem graça. — Mas ele deve ter visto errado, porque ele disse que você estava com um cara de saia.
— Eu? — deu uma risada trêmula, remexendo-se na cadeira.
— O único cara de saia que conheço é aquele filho da puta que fez isso na minha cara — apontou para o olho roxo. — Além disso, você não iria atrás de uma bichinha, né? — ele riu de verdade agora, dando um tapinha no ombro de Felix.
— É… Eu nem saí no sábado — negou, tragando forte o cigarro, na esperança de que aquela conversa terminasse de uma vez, embora mal tivesse começado. — E, tipo… O que eu faria com alguém como ele?
— Até parece que você ia se misturar com esse tipo de gente — Changbin rolou os olhos. — Eles são sujos, você sabe. Todos têm aquela doença nojenta e, fala sério, nem pra foder eles servem. Se for pra comer puta, que sejam aquelas com peitões e sem nenhuma surpresinha molenga debaixo da saia.
Ele gargalhou bem alto. Alto mesmo, batendo na mesa. Felix o acompanhou com uma risada sem graça, culpada. Tudo o que queria era sair daquela copa o mais rápido possível, mas não conseguia.
Era como Jisung dizia, no fim de tudo. Eles eram todos iguais.
Certas vezes, Felix temia se tornar igual a eles.
— Mas e aí? — Changbin continuou, após a crise de risos. — Alguma coisa pra nossa semana?
— Até agora, nada.
— Beleza, então eu vou tirar um cochilo nos fundos — Changbin anunciou.
Felix apenas assentiu, deixando a bituca de cigarro dentro da tigela vazia que outrora servia de recipiente para seu almoço ou café da manhã.
Changbin saiu e deixou Felix sozinho na copa. Ele bebeu cerca de dois copos e meio de água para tirar o gosto do café da língua e depois se jogou de volta na cadeira, apoiando o queixo na mão para encarar o vazio.
Às vezes, pensava qual foi a parte da vida em que se conformou. Era tudo tão igual, tão monótono, tão assustadoramente comum que sentia como se sua vida tivesse estagnado.
Não havia mais emoção em colocar o uniforme, não havia mais adrenalina em segurar uma arma. Não havia mais felicidade em levantar da cama todos os dias.
Ser policial deveria ter sido o ápice da sua vida, o orgulho dos pais, do bairro, mas em uma triste contradição, o primeiro dia de trabalho foi o ponto em que tudo começou a desandar.
Felix sabia que, talvez, estivesse pensando demais sobre o caso Hwang Hyunjin. Quem sabe, ele achasse que aquele poderia ser o único caso real que pegaria na sua carreira policial. Nada acontecia em Jinhae, e era egoísmo seu se aproveitar de situações perigosas que envolviam terceiros apenas para conseguir se sentir vivo novamente. No entanto, tentar encontrar algo que provasse que suas teorias tinham um fundo de realidade era uma das únicas coisas que o faziam levantar pela manhã.
Terminou seu terceiro cigarro em menos de quinze minutos e decidiu fazer o mesmo que Changbin. Apoiou os braços na mesinha e a bochecha contra eles, suspirando e tossindo antes de fechar os olhos para tirar um cochilo.
✧
22h46 e a rua estava deserta.
Jinhae nunca foi (e Felix acreditava que nunca seria) um exemplo de movimentação noturna, principalmente quando os principais bares da cidade guardavam as atrações para os fins de semana.
Não tinha o que fazer em uma noite de segunda-feira nas ruas da cidade, a menos, é claro, que você fosse um paranoico crônico como Felix.
Suas narinas ardiam quando a fumaça deixava os pulmões e tossia na própria mão, logo voltando a fumar. Deus, ele esperava que dali a alguns anos os transplantes fossem mais acessíveis, pois achava que havia uma grande chance de precisar realizar um de pulmões.
Caminhava vagarosamente por aquela rua na qual estivera há pouco mais de duas noites. Seu carro, ainda quebrado, não podia fazer muito por ele, então teve que optar por caminhar — e não foi tão ruim, já que andar era uma boa oportunidade para colocar a cabeça no lugar e organizar pensamentos outrora tão confusos.
Jogou a bituca de cigarro no chão e colocou as mãos dentro dos bolsos da jaqueta jeans, chegando perto da esquina que era, desde que saíra de casa, seu destino principal. Estranhou não haver ninguém ali. Em tese, Hyunjin deveria estar ali, a menos que estivesse com algum cliente.
Olhou ao redor e não encontrou nada além de alguns cachorros e gatos revirando latas de lixo. Com a frustrante percepção de que sua caminhada foi em vão, deu meia-volta. Estava pronto para apressar o passo e chegar em casa em menos tempo do que gastou indo até ali em busca de um garoto que provavelmente o mandaria à merda na primeira oportunidade.
Mas, felizmente, algo pareceu conspirar a seu favor (pela primeira vez).
Um carro preto estacionou próximo de onde estava anteriormente, e a porta se abriu abruptamente.
— É? Você pode enfiar bem no olho do seu cu — escutou uma voz áspera gritando sem nenhum pudor pela rua. — Putinha? Putinha é a cadela da sua mãe, seu viadinho incubado de merda!
Felix se virou para ver se suas suspeitas estavam corretas, e elas se mostraram tristemente verdadeiras.
Hyunjin, vestindo uma meia-calça preta fosca com alguns rasgos e uma minissaia vermelha. Ele usava uma blusa preta e coturnos pesados ao invés dos saltos da outra noite. Estava discutindo com a pessoa do carro e suas expressões denunciavam que a agressividade era proporcional à raiva. Antes do carro arrancar estrada afora, Felix conseguiu ver Hyunjin erguer ambos os dedos do meio, insultando o pobre coitado que deveria ter gasto alguns wons com ele.
— Eu devia ir correndo contar pra sua mulher, aquela vaca! — ele gritou para o carro que já se afastava. — Ela ia adorar saber que o marido gosta de chupar pau e levar na bunda!
Hyunjin ainda não tinha visto Felix, o que deu ao policial tempo suficiente para se aproximar antes que ele escapasse novamente como areia entre os dedos.
— Ah, fala sério! — Foi a primeira coisa que Hyunjin disse quando viu Felix. — O que você é agora? O meu stalker? — perguntou, afastando-se, como se somente a presença dele fosse opressiva.
Felix foi rápido. Quando Hyunjin se deu conta, ele já estava ao seu lado.
Respirou fundo antes de dizer:
— Preciso falar com você.
Hyunjin revirou os olhos.
— A menos que me pague vinte mil wons, eu não vou falar com você — respondeu, olhando para frente, tentando ignorá-lo.
— Escuta…
— Não, não escuto nada. Você é só um mosquito zumbindo perto de mim porque essa rua é cheia de lixo fedorento.
Felix foi mais rápido do que os passos apressados dele. Bloqueou o caminho. Hyunjin parou com uma expressão de pura raiva no rosto.
— Sai da minha frente.
— Não posso.
— Que porra você quer comigo?
— Hyunjin, eu estou tentando descobrir algumas coisas… Coisas que podem ser boas pra você.
— Você por acaso acha que eu sou uma mocinha presa em uma torre e que meu padrinho é a madrasta malvada?
— Talvez sim.
— Surpresa, stalker: essa é a realidade. Não estamos em um filme e eu não vou ficar perdendo meu tempo com você.
— Pode achar que eu sou louco ou o que quiser, mas preciso que você converse comigo.
Hyunjin revirou os olhos e tentou passar por ele, mas Felix deu um passo na mesma direção, impedindo-o.
— Sai da minha frente ou atiro spray de pimenta na sua cara.
— Eu não estou aqui como policial agora. Estou como…
— O tira insuportável que não larga do meu pé?
— Hyunjin, é realmente importante.
— Importante pra quem? Eu não dou a mínima pra esse monte de merda que vocês fazem naquele chiqueiro que chamam de delegacia.
— É importante pra segurança de Jinhae, pra sua segurança. Pode confiar.
— Eu não sou criança e não confio em ninguém.
Felix fechou os olhos e puxou fundo o ar para dentro. Como ele poderia dizer a Hyunjin que suas desconfianças eram baseadas em praticamente nada? Que tudo o que vinha pensando, desde a hora em que acordava até a hora em que deitava para dormir, era em como provar a si mesmo que ainda era um policial capaz de proteger aquela cidade? Que sua vida era mais do que assinar papéis burocráticos e tentar descobrir onde a senhora Ahn enfiou os anões de jardim?
Parecendo impaciente, Hyunjin trocou o peso de uma perna para outra.
— Ao contrário de você, policiais, eu preciso trabalhar. Sabe quanto consegui tirar hoje? Nada. Aquele cretino disse que ia pagar mais se eu gozasse na cara dele e depois me deixou aqui sem um centavo. Eu não sou como você, que ganha dinheiro pra ficar coçando a bunda na delegacia. Preciso ralar e você tá no meu caminho.
Felix, derrotado, passou as mãos nos cabelos.
— Merda, eu preciso fumar — Hyunjin resmungou, os olhos estreitos.
O pé dele balançava sem parar, o que Felix julgou ser ansiedade pela falta de nicotina. Conhecia bem aquela sensação.
— Você está com fome? — Felix perguntou, com esperança de que Hyunjin dissesse que sim.
Ele juntou as sobrancelhas e entortou os lábios, como se dissesse “tá maluco?”.
— Eu disse que quero um cigarro.
— Comida — Felix corrigiu, pensando que Hyunjin engolia mais fumaça do que alimento durante o dia, julgando pelo corpo magro. — Você quer?
— Não preciso de esmola. Não sou nenhum sem teto — respondeu, ofendido, tentando passar por ele pela centésima vez.
Felix segurou o braço dele com pouca força, determinado.
— Não disse que era mendigo ou que precisava de esmola. Posso te levar pra comer alguma coisa e então podemos conversar.
Hyunjin fechou os braços sobre o peito e o olhou com desconfiança. Bateu o pé na calçada algumas vezes e revirou os olhos.
Felix não sabia o que se passava na cabeça dele, nem o que sairia dos lábios vermelhos nos próximos segundos. Não conseguia decifrá-lo por mais que tentasse. Mesmo que olhasse para ele, não conseguia enxergar nada que o levasse a entender o que estava tentando a todo custo.
Hyunjin era sua única pista. O único com quem podia falar sobre aquilo que vinha tirando seu sono. Estranhamente, ele também fazia parte disso. Sabia mais do que Felix. Embora ele não quisesse falar, precisava tentar, para não terminar o dia com a sensação de que havia deixado de fazer algo que ainda poderia ser feito.
— Vai me levar pra comer na sua casa ou em algum restaurante onde os oficiais costumam se encontrar pra falar de futebol e buceta?
Felix ignorou a provocação, que tinha como objetivo, ele tinha certeza, afastá-lo.
— Tem uma lanchonete no fim da rua. Acho que eles servem comida americana. Hambúrgueres e panquecas, como os americanos gostam.
Hyunjin arqueou uma sobrancelha e não respondeu, apenas passou por Felix e começou a andar.
— Aonde está indo? — Felix perguntou, com um medo inconsciente de que ele fugisse.
— Comer comida americana, stalker. Você não vem?
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Duas porções de batata frita, um hambúrguer duplo e um milkshake de banana tamanho G. Esse foi o pedido de Hyunjin.
Felix estava sentado de frente para ele, observando-o comer desesperadamente. O estômago de Hyunjin roncava baixinho mesmo com a boca cheia, fazendo uma pergunta surgir como um balão de pensamento sobre a cabeça do policial: há quanto tempo ele não comia direito?
Era quase nojento o modo como Hyunjin não se preocupava em sujar os dedos de mostarda ou em enfiar um punhado de batatas na boca de uma vez, mastigando com pressa, como se alguém fosse arrancar a comida das suas mãos a qualquer momento. As bochechas ficavam inchadas quando ele enfiava muita comida de uma vez, e Felix viu quando ele engoliu em seco, forçando pedaços grandes garganta abaixo. Hyunjin nem mesmo parecia se lembrar de que Felix estava ali, esperando que falasse com ele, mas não queria apressá-lo. Tinha visto essa fome antes. Não era gula, era necessidade.
A lanchonete no fim da rua era bonita, mas o cheiro de óleo velho impregnava o ar, misturado ao aroma enjoativo de ketchup e do perfume barato de Hyunjin. O chão parecia pintado de preto — ou revestido por algum tipo de cerâmica, ele não sabia dizer — e as cadeiras eram estofadas, vermelhas, bem confortáveis, mas o estofado tinha manchas escuras que alguém tentou limpar e não conseguiu. Felix não pediu nada, contentando-se com um cigarro entre os dedos.
— Americanos são nojentos — Hyunjin disse de boca cheia, sem sequer olhar para ele.
Um fio de mostarda escorreu pelo canto da boca.
— Você parece estar gostando muito da comida deles.
Hyunjin limpou a boca com as costas da mão.
— Eu tô, mas continua nojento.
Hyunjin terminou o hambúrguer e as batatas com uma velocidade impressionante, deixando o milkshake de banana por último. As batatas faziam barulho quando ele as mastigava, e Felix notou como os ombros do garoto relaxaram gradualmente conforme o estômago se encheu. Limpou os dedos sujos de mostarda em um guardanapo que ficou manchado e oleoso, e olhou para Felix pela primeira vez desde que começou a comer. Seus olhos tinham um brilho diferente agora — menos desesperado, mais alerta.
— Então… — pigarreou Felix, deixando a bituca do cigarro entre os dedos. A fumaça subia entre eles como uma cortina. — Podemos conversar agora?
— O que você quer? — Hyunjin passou a língua pelos lábios, limpando restos de gordura.
— Eu vou te falar. Só quero te pedir pra não sair correndo nem me xingar antes que eu termine.
Hyunjin ficou em silêncio, engolindo.
— Você está bem? — Felix indagou diante do silêncio dele.
— É, eu acho que tô bem — deu de ombros, tomando um gole do milkshake que fez barulho no canudo. — Fala.
— Estou iniciando uma investigação sobre prostituição na cidade e…
Antes mesmo que pudesse concluir a primeira frase, Hyunjin suspirou irritado e rolou os olhos. Seu corpo se enrijeceu novamente, os ombros se erguendo em uma postura defensiva.
— Você foi o único garoto com quem tive contato que estava inserido nisso, e eu acreditava que você poderia me ajudar.
— Eu não posso. — A voz saiu mais firme agora, o tom casual desaparecendo completamente.
— Hyunjin, quero que entenda a seriedade disso. Embora não seja ilegal se prostituir, é ilegal induzir pessoas a isso — explicou com cuidado, tentando ser o mais didático possível. Felix se inclinou para frente, baixando a voz. — Por anos, eu achei que Jinhae não tinha nenhum caso de aliciamento ou coisa do tipo, que quem se prostituia, fazia isso por conta própria, mas agora…
— Agora você decidiu que precisa me salvar das garras do lobo mau.
Hyunjin soltou o canudo e cruzou os braços, o sarcasmo cortando o ar como uma lâmina.
— Não é sobre isso — Felix negou, cerrando os olhos e esfregando as têmporas. — Eu, como policial de Jinhae, tenho a responsabilidade de garantir a segurança e o bem-estar da população. É pra isso que estou ali.
— Achei que fosse policial pra poder pegar gostosas mais fácil e usar uma arma sem que te chamem de marginal — Hyunjin se recostou na cadeira, o corpo relaxado, mas os olhos afiados.
— Pode, por favor, conversar direito comigo? — Felix apagou o cigarro no cinzeiro com mais força que o necessário.
— Não vejo sentido nisso, oficial… Como é mesmo seu nome? — Hyunjin inclinou a cabeça, fingindo interesse genuíno.
— Felix, Hyunjin — respirou fundo, com os olhos fechados. Quando os abriu, havia uma frustração quase palpável ali. — Meu nome é Felix.
— Oficial Felix — repetiu ele, testando o nome na língua como se fosse algo estranho. — Estou bem. Não estou em perigo, se é isso que te preocupa.
— Tem certeza?
— Sim. Estou ótimo.
Seus dedos tamborilavam nervosamente na mesa, contradizendo as palavras.
— E o que estava fazendo no hospital hoje? — perguntou, enfim, deixando escapar o que estava entalado na garganta.
O ar na lanchonete pareceu ficar mais pesado. Hyunjin deixou o milkshake sobre a mesa com um baque seco e o encarou.
— Isso não é da sua conta.
— Alguém te machucou? Você apanhou? Tentaram te forçar a algo de novo ou… — Felix se inclinou ainda mais, seus olhos vasculhando o rosto de Hyunjin em busca de sinais.
Um riso seco e irônico deixou a boca de Hyunjin.
— Você é maluco? Eu só fui ao hospital — bradou, esquecido, por um instante, do milkshake.
Algumas pessoas na lanchonete se viraram para olhar, mas rapidamente desviaram o olhar quando Hyunjin os encarou de volta. Felix respirou fundo.
— Se você está com alguma coisa, isso acrescentaria na minha investigação e eu poderia te ajudar.
— "Está com alguma coisa?" — Hyunjin arqueou as sobrancelhas. — O quê? Você acha que eu tenho AIDS ou alguma merda desse tipo?
Felix sentiu o sangue subir para o rosto perante o confronto.
— Hyunjin, não foi isso que eu quis dizer…
— Foi exatamente a porra que você quis dizer — apontou para ele com raiva, o dedo tremendo ligeiramente, e Felix viu o pouco que tinha conseguido desmoronar. — Fui ao hospital porque faço exames a cada três meses pra garantir que eu não estou com essa coisa — empurrou o copo de milkshake para longe, o líquido balançando violentamente sem derramar.
Felix não conseguiu dizer nada. O barulho da lanchonete — conversas baixas, pratos batendo, frituras chiando — subitamente pareceu muito alto.
Hyunjin olhou pela janela ao lado da mesa e balançou a cabeça.
— Esses caras não ligam se eu ou eles estamos doentes, mas eu ligo. Muitos desses porcos até gostam da ideia de transmitir essa merda por aí, mas você achava que todo mundo que tem HIV é bicha, stalker? — Hyunjin se inclinou para frente, sua voz um sussurro venenoso. — Ficaria impressionado com o número de héteros de Jinhae que testam positivo. Homens casados, pais de família, empresários que vestem aquelas gravatas borboletas. Mas nem o prefeito e nem a polícia ligam, não é? É mais fácil dizer que não existem pessoas assim na cidade ou colocar a culpa na gente — disse, apontando para si mesmo com tanta força que o dedo quase tocou o próprio peito.
Felix olhou para baixo, escutando suas palavras com atenção e com um peso crescente nos ombros. O cigarro havia se consumido no cinzeiro, deixando apenas cinzas e o cheiro forte. Sentia como se também fosse culpado, como se contribuísse diretamente para aquela realidade, por fazer parte de uma das instituições que perpetuavam aqueles estigmas. O nó na garganta crescia a cada palavra de Hyunjin.
— Sinto muito, eu…
— Você devia cuidar da sua vida — Hyunjin interrompeu, firme. Ele puxou o milkshake de volta e tomou um último gole. — Não tente me enganar dizendo que se importa comigo ou com pessoas como eu. Você nunca vai entender como eu vivo, ou seja lá for qual merda você está tentando descobrir.
— Tudo que estou fazendo… Indo à sua procura, tentando me comunicar… Tudo é porque eu… Porque eu…
— O quê? — pressionou, e Felix suspirou. O vapor do seu hálito se misturou com o ar frio que vinha do ar-condicionado.
— Porque eu quero que todas as pessoas que vivem nessa cidade fiquem realmente seguras. Que pessoas como vocês não precisem colocar lâminas na gengiva para se proteger.
— Ah, não fode — Hyunjin negou, como se tivesse ouvido uma piada.
Felix encarou os olhos maquiados.
— Estou falando sério, Hyunjin — Felix engoliu seco, o som audível no silêncio. — O que vi naquele dia, quando eu vi você e aquele seu padrinho…
Hyunjin bateu ambas as mãos na mesa, um vinco na testa.
— Você é burro, stalker. Me perseguindo, você já estaria morto se eu fizesse parte de alguma coisa da cidade. Não passa pela sua cabeça que eu posso sair correndo daqui e contar que um policialzinho de merda está tentando meter o bedelho onde não foi chamado? — arqueou as sobrancelhas, mas havia algo quase preocupado na forma como olhava para Felix agora. — Hm? Os anos tomando café instantâneo fritaram seu cérebro?
Era lógico que Felix pensou na possibilidade de Hyunjin não ser uma completa vítima, mas a parte dele que enxergou olhos melancólicos por trás da maquiagem borrada falou mais alto. Havia algo na forma como Hyunjin o olhava, como se esperasse um golpe a qualquer momento, que dizia mais do que qualquer confissão. Ele não estava tentando ser piegas ou sentimental, mas, às vezes, a racionalidade traía, e seguir a mente em vez do coração apenas por sensatez era, no mínimo, entediante.
E Felix já estava entediado demais.
— Vai fazer isso? — perguntou, sua voz mais baixa agora.
— Eu poderia — respondeu Hyunjin, mexendo no resto do milkshake com o canudo, criando pequenos redemoinhos no líquido grosso. — Se eu fizesse parte de alguma coisa, o que não é o caso.
— Hyunjin…
— Eu sou um homem livre, señor — imitou um sotaque mexicano, com a acidez do humor quase escorrendo pelo canto da boca. Mas o sorriso não chegou aos olhos. — Quer um conselho? Continue assinando papéis, fodendo a recepcionista nos plantões ou, sei lá, salvando gatinhos de árvores. Desencana disso e vai viver sua vida como um cara normal. Sem contar que eu não estava muito a fim de continuar tendo você me seguindo por aí. É sinistro.
Quando pontuou o fim daquele discurso que parecia ensaiado, Hyunjin se levantou estalando as costas — Felix ouviu pelo menos três estalos distintos —, depois, apoiou a mão direita na mesa branca e chegou bem perto de Felix, encarando-o com os olhos escurecidos, a pupila no tamanho normal. Felix pôde sentir o cheiro doce do milkshake no hálito dele, misturado com algo mais amargo por baixo.
— Comida americana é nojenta — disse, tão perto que Felix sentiu o calor da respiração em seu rosto. Arqueou as sobrancelhas, soltando uma risada sem nem uma gota de humor. — Se estiver tentando conquistar alguma puta mais exigente do que eu algum dia, não a traga aqui, stalker.
Ele bateu na mesa com a palma aberta, um som seco que fez os outros clientes olharem novamente, e piscou — um movimento lento, quase sedutor, antes de virar as costas. Felix observou ele caminhar até a porta, os coturnos pesados fazendo barulho no piso de cerâmica, a minissaia vermelha balançando a cada passo.
Não demorou muito para a garçonete chegar com a conta. Ela olhou para a bagunça na mesa — guardanapos sujos, restos de batata, o copo vazio com marca de batom no canudo — e suspirou antes de deixar o papel na frente de Felix.
Prejuízo, foi isso que Felix ganhou. Pagou a conta com notas amassadas que tirou do bolso, desgostoso, e deixou uma gorjeta miserável. Ao sair da lanchonete, o ar frio da rua bateu em seu rosto como um tapa.
O gosto amargo na boca não era só do cigarro.
Resignado, foi embora, as mãos nos bolsos e os ombros curvados contra o frio.
Notes:
ENTÃO... Acho que deu pra conhecer um pouco nossos personagens, não é? O que acharam deles? Deixem-me saber as opiniões e se vocês já têm alguma teoria sobre o que vai acontecer com toda essa curiosidade do Felix.
A tag no X para falar sobre a fic é #bemjin, vamos conversar lá!
Um beijo e até a próxima semana <3
Chapter 3: Gole de Piedade
Notes:
A AUTORA ENLOUQUECEU!!!!
Nunca bato as alegações de ser ansiosa e não conseguir esperar as datas certas pra postar os capítulos, MAS QUEM PODE ME JULGAR? Por isso, aqui está o capítulo 03 e, amanhã, 06/09, sairá o 4.
Nesse capítulo, continuamos sob o ponto de vista do Felix, mas isso mudará no capítulo de amanhã, acho que por isso eu estou tão ansiosa. Vocês precisam conhecer o Hyunjin, conhecer por dentro, e isso está cada vez mais perto.
A propósito, sei que não é comum caracterizações dos hyunlix como em bemjin, digo, Felix trintão fumante crônico, pulmão preto, e Hyun de saia e salto alto? OMO. Sabendo isso, eu voltei à minha era photoshopeira e editei esses personagens do jeitinho que eles são na fic (vou colocar no corpo do texto do capítulo)
AH! Vocês estão ouvindo as músicas dos capítulos? Ela complemetam MUITO as cenas, então sempre recomendo que escutem <3
(See the end of the chapter for more notes.)
Chapter Text
Uma dor de cabeça quase crônica acompanhou Felix nos últimos anos. O café ajudava a amenizar o desconforto ao redor dos olhos, embora ele tivesse a leve desconfiança de que a falta de um sono de qualidade fosse a grande responsável pela enxaqueca.
Naquela madrugada, ele estava ao lado de Hayun, sentado em seu birô, enquanto ela organizava, pela milésima vez, alguns arquivos que deveriam ser transferidos para o computador. Felix odiava aquela coisa amarela e pesada e não sabia nem ligar na tomada. Graças a Deus, Hayun havia apoiado aquela posição, assim, não precisaria descobrir como mexer nessas teclas barulhentas. Havia um cigarro entre os dedos indicadores e médios, e um suspiro alto saiu de seus pulmões escurecidos quando ele tomou o último gol de café daquele plantão.
— Deveria trazer algum lanche nos plantões, oficial Lee — disse Hayun, despretensiosamente. — O senhor sempre passa a madrugada inteira à base de cigarros e café.
— São o meu combustível — Félix respondeu, sem olhar-la, um quê de amargura atravessando sua voz.
— Ah, mas todos precisamos comer. Eu mesmo trago um sanduíche de atum e algumas balas. Não é muita coisa, mas ajuda a manter o gás.
— Talvez eu pegue escondido o seu sanduíche de atum algum dia — Felix disse, esticando as costas na cadeira.
Ele pôde ver quando as bochechas pálidas de Hayun assumiram um tom rosado e ela deu uma risadinha, colocando uma mecha de cabelo preto para trás.
— Posso trazer um lanche para o senhor também, caso queira.
Foi aí que Felix descobriu que sua piada inocente havia alimentado mais aquela coisa que Hayun tinha, aquela que fazia ela usar saias mais curtas do que o hidratante para uma recepcionista e sempre retocar o batom várias vezes quando estava em sua presença.
— Eu não quis dizer...
Sua fala foi interrompida pela porta de entrada da delegacia sendo aberta. Felix achou, num primeiro momento, que poderia ser Changbin ou Jeongin, que tinha saído minutos antes para a ronda, esquecendo de alguma coisa. No entanto, seus olhos se fixaram em uma figura que Felix achou que nunca mais veria cruzando aquela porta: Hwang Hyunjin.
Naquela madrugada fria, ele usava um casaco preto pesado, que ia até a altura das coxas, cobrindo parcialmente um traje que mais parecia uma camisola rendada da mesma cor. Certo, não era uma camisola , mas era, com certeza, um vestido bem fino. No pescoço, ele carregava muitos colares compridos, que batiam no peitoral reto e esguio, com pingentes de cruz e alguns que imitavam terços. Deus o abençoe , Félix pensou.
— Santo Deus — Hayun colocou as mãos sobre os lábios, quase tremendo diante de Hyunjin, que caminhava até eles.
Ele estava usando os mesmos coturnos pesados da outra noite, mãos nos bolsos do casaco. Os cabelos longos e ondulados caíam pela testa em cascatas bagunçadas, e o batom vermelho não estava borrado dessa vez, mesmo que a sombra preta nos olhos estivesse escorrendo um pouco pela linha lacrimal.
— E aí? — Hyunjin disse, encarando Felix, apoiando-se no balcão da recepção.
Hayun deu um sobressalto assustado, afastando-se dele. Hyunjin a encarou com as sobrancelhas arqueadas e um meio sorriso debochado nos lábios.
— O que faz aqui? — Felix perguntou.
— Vi os dois patetas saindo agora a pouco e decidir dizer um oi — deu de ombros, como se não fosse nada demais. — Quero falar com você, stalker.
— Stalker? — Hayun sussurrou para ela mesma.
Felix pigarreou, tentando amenizar o clima denso que havia se formado entre eles.
— Sobre o que quer conversar comigo, Hyunjin? Achei que não quisesse pisar nessa delegacia nunca mais.
— Bom — ele afastou as mãos, que estavam dentro dos bolsos do casaco, dando uma visão melhor do vestido fino que usava por baixo dele —, eu posso entrar agora que sou um homem livre. E então, vai falar comigo ou não?
Felix ficou em silêncio por um segundo. Era aquilo que ele vinha tentando fazer, não era? Falar com Hyunjin. Mesmo com todas as fugas, respostas atravessadas e xingamentos hostis, agora ele quem estava pedindo para conversarem. Felix seria burro de negar, mesmo que tivesse que inventar uma ótima desculpa para Hayun para falar a sós, no meio do seu plantão, com um prostituto de vestido e coturnos barulhentos.
— Certo — disse Felix. — Venha comigo.
Felix levantou e virou as costas, indicando o caminho.
Hayun ainda estava acuada, encarando os colares no pescoço de Hyunjin. Quando ele percebeu o jeito com que ela encarava seus acessórios, deu um risinho de canto e disse:
— Você gostou, boneca? — segurou um dos seus colares com a ponta dos dedos, o da cruz prateada, grande e brilhante. — Eles me abençoam enquanto eu estou transando.
— Hyunjin — Felix o advertiu, olhando-o por sobre o ombro.
— Eu só estava sendo educado.
Hyunjin deu uma piscadela para Hayun, quase um flerte descarado. Ele cruzou o balcão da recepção e parou ao lado de Felix, que apenas indicou com o queixo a direção em que deveriam seguir.
Chegaram a uma sala pequena, onde, em tese, eles deveriam interrogar os detidos. A grande questão era que não havia detidos para serem interrogados, então, ela servia como um grande "guarda-entulho". Era ali que ficavam os arquivos de anos atrás, empoeirados e comidos por grilos, algumas provas de crimes, como um estilingue usado por crianças para quebrar vidraças, uma faca de cozinha enferrujada — que Felix sequer sabia para o que foi usada — e, bem no fundo de uma gaveta empoeirada, um canivete com o cabo cor-de-rosa, meio descascando, que Felix conhecia bem.
— Então — Felix fechou a porta atrás deles, o som ecoando no espaço apertado e mal iluminado. — Do que você quer falar? Achei que estivesse fugindo das minhas perguntas.
Hyunjin caminhou pela pequena sala, os coturnos fazendo um barulho alto contra o piso frio de cimento. Ele observou as prateleiras cheias de caixas de papelão amareladas pelo tempo, os arquivos empilhados de qualquer jeito, quase como se ele estivesse avaliando o lugar.
— Que chique — comentou, passando o dedo pela superfície cheia de poeira de uma mesa que ficava bem no centro. — Vocês policiais sabem bem como receber visitas. Não tem um cafezinho ou biscoitos?
— Hyunjin.
— Certo, certo — ele se virou, apoiando as costas em uma das prateleiras. O casaco pesado se abriu um pouco mais, revelando a linha do decote do vestido fino que usava por baixo. — Eu quero a minha coisa de volta.
Felix franziu as sobrancelhas.
— Que coisa?
— Você sabe muito bem que coisa — Hyunjin cruzou os braços, o movimento fazendo seus colares tilintar suavemente. — Aquela coisa que seus amiguinhos pegaram quando me prenderam.
Felix se lembrava bem. Na verdade, nenhum detalhe daquela noite em que Hyunjin chegou na delegacia saía da sua cabeça há dias. Era um canivete pequeno, mas afiado. Se sua memória estivesse boa o bastante, havia alguns adesivos de personagens de desenhos animados colados na lateral. Não era bem o padrão de uma arma — Hyunjin não era padrão de coisa alguma —, mas era igualmente perigosa e não deveria ficar no bolso de alguém tão instável quanto ele.
— Você fala do canivete — Felix disse, mais uma afirmação do que uma pergunta.
— Bingo, stalker — Hyunjin bateu palmas devagar, um sorriso irônico nos lábios pintados de vermelho. — Sabia que você era esperto.
— Onde estão todos os outros? Achei que ele não fosse fazer falta.
Hyunjin ficou em silêncio por um momento, olhando ao redor.
— Eu gosto de rosa.
— Hyunjin, eu não posso te devolver isso. É evidência de um crime.
— Evidência de quê? — afastou-se da parede, dando um passo na direção de Felix. — Eu nem fiz nada com aquele cara, só dei uma furadinha nele. Pode ter certeza que crime seria o que eu queria ter feito com aquele estuprador nojento.
— Isso não te ajuda.
— Tanto faz.
— Porte de arma branca sem autorização legal é crime.
— E você não acha que eu já paguei por ele?
— Você nem sequer ficou uma noite na cela.
Felix podia, agora, sentir o perfume de Hyunjin. Era algo doce e pesado, misturado com toques de nicotina de alguns cigarros que ele deveria ter fumado durante a noite. Se conseguisse apurar mais o nariz, sentiria as notas alcoólicas e sexuais grudadas na pele alva.
Havia algo quase hipnótico na forma como Hyunjin se movia, como se a presença dele naquela sala minúscula, cheirando a mofo e a papel velho, fosse quase ofensiva.
— Eu quero de volta — ele disse, ignorando os argumentos de Felix.
— Não é assim que funciona — Felix tentou manter a voz firme. — Armas apreendidas ficam arquivadas até...
— Até quando? — Hyunjin o interrompeu, agora bem próximo. Felix podia ver os detalhes da maquiagem borrada, a forma como o rímel havia escorrido levemente, criando uma sombra escura ao redor dos olhos dele. — Até que perca o fio guardada naquela gaveta junto com as porcarias que vocês guardam aqui?
Felix ficou em silêncio, braços cruzados.
— Eu preciso daquilo de volta, stalker — a voz de Hyunjin ficou mais dura agora. — É importante.
— Por que é tão importante? — Felix perguntou.
Hyunjin hesitou por um momento, como se estivesse decidindo o quanto revelaria.
— Digamos que é uma questão de segurança — ele disse. — Eu preciso me proteger e ele era o mais afiado.
— De quê? — arqueou uma sobrancelha. — Então você está em perigo?
Felix se achou muito inteligente com aquela sacada. Hyunjin havia afirmado várias vezes sobre não estar correndo perigo algum naquela cidade ou naquele ramo. No entanto, disse com todas as letras que precisava de um canivete rosa — com adesivos de personagens animados — para se proteger.
Hyunjin riu. Ele riu bem na cara de Felix, como se ele fosse um idiota.
— Você acha que eu vou entrar no carro de um velhote barrigudo pra trepar sem alguma coisa com que eu possa me defender, stalker? — disparou, sarcástico. — Você vive mesmo em uma bolha nessa delegacia fedorenta.
Então, Felix entendeu. As ruas não eram seguras para ninguém, muito menos para alguém como Hyunjin. Embora Jinhae fosse exemplar nas estatísticas de crimes do país, não dava para saber quando alguém mudaria aqueles gráficos perfeitos. Aparentemente, Hyunjin não gostaria de ser aquela pessoa.
— Eu não posso te entregar isso oficialmente — Felix disse após um suspiro.
— Eu não estou pedindo oficialmente — Hyunjin rebateu, chegando mais perto.
Agora, estavam cara a cara, e a diferença de altura entre eles era quase vergonhosa. Com os coturnos, Hyunjin ficava ainda mais alto. Ele, com os braços cruzados, olhava para baixo, quase como se Felix fosse um micróbio que ele poderia esmagar com seus sapatos. Felix levantou o nariz, olhando-o nos olhos, buscando qualquer coisa, qualquer pista, qualquer sinal de que ele estava pedindo ajuda, mas tudo o que encontrou foi a mesma hostilidade fria de sempre.
— É um favor — Hyunjin continuou. — Você devolve minha propriedade e eu fico te devendo uma — deu de ombros. — Quem sabe um dia, quando você estiver enjoado de comer aquela recepcionista no meio dessas caixas, você pode me procurar pra uma rapidinha. Eu juro que não mordo.
Felix olhou para frente, encontrando a faixa de pele exposta do colo de Hyunjin devido ao decote rendado do vestido preto. Engoliu em seco e voltou a subir os olhos.
— Não é minha praia — respondeu, seco, arrancando uma risada de Hyunjin.
— Beleza, então eu posso te apresentar umas putas que eu conheço que fazem sua praia. Negócio fechado?
A pergunta pairou no ar entre eles, carregada. Felix sentiu um frio na barriga e respirou fundo.
— Se alguém descobrir...
— Ninguém vai descobrir — Hyunjin afirmou. — Vai ser nosso segredinho.
Felix fechou os olhos por um momento, tentando pensar com clareza. Sabia que era errado, que aquilo violava todos os protocolos, que poderia custar, santo Deus, o seu emprego caso alguém descobrisse. Mas também sabia que a confiança de Hyunjin era crucial para sua investigação, embora, claro, ela estivesse parada no momento. Ele queria aquela proximidade, aquele contato menos evasivo, porque queria descobrir mais sobre aquele prostituto de batom vermelho, enigmático, e que parecia cada vez menos disposto a colaborar com o que Felix tanto queria descobrir.
— Certo — Felix disse, resignado.
O sorriso que se espalhou pelo rosto de Hyunjin foi triunfante e, ao mesmo tempo, quase inocente.
— Onde está?! — ele perguntou.
— Na gaveta de baixo da segunda prateleira — Felix indicou com o queixo. — Em uma caixa marrom.
Hyunjin se afastou, caminhando até a prateleira indicada. Felix o observou se abaixar para abrir a gaveta, o vestido fino esticando pelas pernas, os coturnos arrastando pelo piso.
— Achei — Hyunjin disse, levantando-se com uma pequena caixa de papelão na mão.
Ele abriu ali mesmo, revelando o canivete cor-de-rosa que Felix se lembrava. Hyunjin o pegou, abrindo e fechando a lâmina algumas vezes.
— Perfeito — murmurou, guardando a lâmina no bolso interno do casaco.
— O que eu vou dizer quando perceberam o sumiço disso? — Felix indagou, a perguntando aparecendo na sua mente de repente.
— Fala que os ratos comeram — Hyunjin deu de ombros. — Do jeito que isso fede, deve estar cheio de roedores e baratas por aqui. Vocês precisam de uma faxina.
— Tem algum problema com a poeira?
— Todos — respondeu no mesmo instante. — Tanto faz. Valeu, stalker. Quer dizer... como você disse que era mesmo seu nome?
— Felix — suspirou, massageando as têmporas. — Meu nome é Felix, Hyunjin.
— Valeu, Felix.
Havia uma ironia na forma como ele pronunciou seu nome, sem qualquer título o antecedendo, como se fosse, simultaneamente, um agradecimento e uma provocação.
— Hyunjin — Felix chamou quando ele se dirigiu até a porta. — Tome cuidado.
Hyunjin parou, virando para olhá-lo por sobre o ombro.
— Não sou eu que tenho que tomar cuidado.
Então, ele saiu com um assobio, ainda com as mãos nos bolsos, ainda arrastando os sapatos, ainda cheio de uma postura dura e defensiva que mostrava que, sim, ele tinha que tomar cuidado.
Felix puxou a cadeira tão empoeirada quanto as caixas, apoiou os cotovelos na mesa de mesmo estado e afundou os dedos curtos entre os cabelos.
Não sabia o que estava fazendo da vida, mas de uma coisa tinha certeza: ele precisava avançar nas suas investigações, ou então tudo aquilo estaria sendo em vão.
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Felix entrou na lanchonete de comida americana, às 22h30, duas noites após o encontro com Hyunjin na delegacia.
Com as mãos enfiadas nos bolsos do casaco marrom, Felix sorriu sem dentes para a atendente e pediu um combo de hambúrguer e batatas fritas. Pensou em comprar um milkshake de banana, o mesmo que Hyunjin pediu na outra noite, mas estava em falta, então, pegou um de morango. Não sabia se Hyunjin gostava de morango, mas decidiu arriscar.
Pagou com notas amassadas e saiu em direção à rua, segurando um saco de papel pardo e o copo de milkshake. A noite estava particularmente fria, a brisa batendo contra seus cabelos pretos e compridos. Pensou, pelo que deveria ser a milésima vez, em marcar um horário no barbeiro para cortar o cabelo, mas o pensamento sempre fugia e ele nunca marcava. Chegou até a pensar em pedir para Jisung ligar para o rapaz que cortava os cabelos dele e marcar um horário, mas aquele era outro pensamento que, na mesma velocidade que vinha, ia embora.
Felix não sabia se encontraria Hyunjin naquela noite. Nas duas noites anteriores, passou pela rua devagar, um gorro nos cabelos e o casaco alto, cobrindo parte do rosto, para não ser reconhecido. Encontrou com ele sempre próximo ao mesmo beco. Na primeira noite, ele estava fumando, sentado no meio fio enquanto encarava a rua, até que um carro encostou e, menos de um minuto depois, ele entrou. Na outra, ele estava de pé, mexendo nas unhas, vez ou outra coçando o nariz enquanto parecia mais agitado do que o normal. Em nenhuma das vezes ele viu Felix andando por ali. Se visse, com certeza teria motivos para chamá-lo de stalker, mas, na verdade, Felix só queria, mais do que qualquer coisa, entender o que acontecia.
Encontrou Hyunjin exatamente onde esperava. Ele estava sentado na beira da calçada, pernas esticadas, próximo ao beco de sempre. Dessa vez, porém, ele não estava com a postura altiva e provocativa que mantinha na delegacia. Os ombros dele estavam caídos, curvados para frente, as mãos enfiadas nas coxas nuas no que parecia uma tentativa desesperada de se aquecer. O casaco pesado que usava parecia insuficiente contra o vento gelado que cortava, impiedoso, a rua mal iluminada.
Hyunjin tremeu quando uma rajada mais forte passou por ele, e Felix conseguiu ver como ele apertou os lábios para evitar que os dentes batessem. Naquele momento, arrependeu-se de ter comprado um milkshake ao invés de um copo grande de chocolate quente. Havia, nele, mesmo ainda de longe, algo de muito vulnerável, fosse na forma como ele se encolhia ou como olhava ao redor, parecendo procurar ou temer alguma coisa.
Mood: O Mundo é Um Moinho - Ney Matogrosso
Felix se aproximou devagar, os passos deliberadamente audíveis para não assustá-lo de repente. Hyunjin levantou a cabeça quando ouviu o barulho, e pôde ver como ele, imediatamente, tentou endireitar os ombros e colocar de volta a máscara de dureza.
— Stalker — Hyunjin disse, a voz rouca devido ao frio ou ao cigarro, ou a ambos. — Não sabia que você fazia ronda nessa parte da cidade.
— Não faço — Felix respondeu, parando a alguns metros dele. — Na verdade, eu estou de folga, mas trouxe uma coisa pra você.
Hyunjin arqueou as sobrancelhas, os olhos fixos no saco de papel e no copo que Felix segurava.
— Já disse que não preciso de caridade — disse, mas Felix notou como os olhos dele se demoraram na embalagem engordurada e que tinha cheiro de bacon frito.
— Não é caridade — Felix rebateu, dando mais um passo.
— Então o que é? — Hyunjin perguntou. — Você vai querer a rapidinha?
— Não — Felix disse, simples, um embrulho no estômago ao notar que tudo na vida de Hyunjin parecia girar em retribuição. — Só achei que estivesse com fome. Geralmente, minha barriga ronca a essa hora.
— Então por que você não come? — apontou com o queixo para o saco de papel.
— Comida americana é nojenta — Felix disse, estendendo o saco e o milkshake.
Hyunjin o encarou por um longo momento, como se estivesse ponderando se aceitar seria algum sinal de fraqueza. O orgulho dele parecia lutar contra a fome, e Felix quase podia ver a batalha que ele travava através dos olhos borrados de maquiagem.
— Eu não gosto de morango — Hyunjin disse, mas pegou o milkshake mesmo assim.
— O de banana estava em falta — Felix disse, sentando-se no meio-fio ao lado dele, mantendo uma distância segura.
Hyunjin pegou o saco com o hambúrguer e as batatas cheio de hesitação, como se Felix pudesse mudar de ideia a qualquer momento. Quando abriu e viu a comida ainda quente, algo no rosto dele se suavizou por uma fração de segundos antes de voltar às expressões pastosas de sempre.
— Valeu — murmurou, quase inaudível.
Felix fingiu não notar a gratidão que vazou através daquela palavra que substituía o típico "obrigado". Hyunjin desembrulhou o hambúrguer e deu a primeira mordida. Mesmo que, a princípio, tivesse tentado morder devagar, a fome pareceu falar mais alto. Em poucos instantes, ele estava devorando o hambúrguer com tanta vontade que fez Felix achar que ele não comia direito há hora. Há dias.
— Devagar — Felix disse. — Não vai fugir.
Hyunjin parou de mastigar por um momento, se estivesse se dando conta da velocidade com que estava comendo. Engoliu o que estava na boca e limpou os lábios com as costas da mão.
— Quando você comeu hoje? — Felix perguntou, mas Hyunjin deu de ombros. — Você comeu hoje?
— Acha que eu sou algum mendigo?
— Claro que não.
— Comi — disse Hyunjin, sem olhar para ele.
— O quê?
Hyunjin não respondeu, focando nas batatas fritas. Felix observou como ele comia como se fossem a coisa mais deliciosa do mundo.
— Biscoitos — respondeu, enfim. — Eu gosto. São crocantes e com gosto de manteiga.
Felix respirou fundo e assentiu.
— Quanto tempo faz que você está... trabalhando aqui em Jinhae?
— Tempo suficiente — Hyunjin respondeu, puxando o milkshake pelo canudo. Apesar da reclamação inicial sobre morango, Felix notou como ele bebeu quase metade de uma só vez.
— Você nasceu aqui?
— Pra que você quer saber?
— Fiquei curioso.
— Nasci — disse, sem dar muita importância.
— E o que te fez começar a trabalhar com isso? Você...
— O meu trabalho — Hyunjin interrompeu, a voz saindo mais dura — não é assunto seu, stalker. Já disse pra não meter o bedelho nisso.
— Hyunjin, eu só queria uma informação. Só uma.
— Você tá perguntando pra pessoa errada — negou, olhando para o copo do milkshake. — Se você veio me dar comida esperando que eu vá te contar algo sobre as coisas imaginárias que você pensa que estão acontecendo nessa cidade, melhor procurar outro jeito.
— Eu sei que tem alguém por trás dos casos de prostituição em Jinhae — disse, ignorando as palavras de Hyunjin.
— Você tem razão — Hyunjin assentiu, e, por apenas um segundo, Felix teve um lampejo de esperança. — Quem está por trás da prostituição de Jinhae são os velhos tarados e casados que gostam de usar calcinha quando ninguém está olhando. Eu teria umas histórias iradas pra te contar.
Então, as expressões de Felix murcharam.
— Se estou tão errado assim, então me diz quem é aquele homem que te tirou da delegacia.
— É o meu padrinho — Hyunjin afirmou, olhando para ele. — Ele te disse.
— Eu não acredito nisso.
— Aí já não é um problema meu — tentou levantar, mas Felix segurou em um dos pulsos fino, sentindo a textura macia do casaco pesado. — Você vai abusar da sua força policial?
— Não — Felix respirou fundo, soltando o braço dele.
Para sua surpresa, Hyunjin sentou novamente.
— Seunghyun é a única pessoa que se importa comigo nessa porra de mundo — Hyunjin disse, depois de alguns momentos olhando para a estrada. — Ele ser ou não o meu padrinho não vai mudar isso.
— Ele é seu namorado? — Felix perguntou em um impulso.
Hyunjin soltou uma risada abafada, negando com a cabeça.
— Não, stalker, ele não é meu namorado. Você quer perguntar também o tamanho do meu sapato? Qual o número de roupa que eu uso ou se eu me depilo com cera ou com lâmina?
Felix sentiu o sangue subir até o rosto com a provocação de Hyunjin, mas forçou-se a manter a calma. Havia algo na forma como ele desviava o olhar, como se também estivesse se forçado a falar alguma coisa.
— Eu não quis parecer invasivo — Felix disse, um suspiro deixando seus pulmões.
— Claro que quis — Hyunjin rebateu. — Você é policial. É invasivo por natureza.
Eles ficaram em silêncio por alguns minutos. Hyunjin terminou as batatas fritas e dobrou o saco de papel com cuidado, colocando-o no copo vazio de milkshake. Felix observou o movimento, notando como as mãos dele tremiam devido ao frio.
— Por que você faz isso? — Hyunjin perguntou de repente, quebrando o silêncio. — Jinhae é uma cidade entediante. Qualquer policial gostaria de trabalhar aqui e não fazer absolutamente nada, então qual é a sua?
Felix pensou na resposta, mas ele também não sabia.
— Acho que vejo muito telejornal — suspirou. — Vejo muitos casos ruins que acontecem pelo mundo. Acho que tenho medo de que algo esteja acontecendo bem no meu nariz.
— Que merda — Hyunjin murmurou. — Eu não vejo telejornais.
— Não? — Felix indagou.
— Não. Detesto o jeito como eles falam, tão engessados, como se não tivessem personalidade.
— É um bom ponto.
Hyunjin esticou os braços para se espreguiçar.
— Seunghyun não é meu padrinho — respondeu, surpreendendo Felix.
Seu coração acelerou, mas ele se forçou a não reagir visivelmente.
— Eu sei.
— Mas ele também não é quem você pensa que ele é — Hyunjin continuou, olhando fixamente para a rua vazia, sem virar o rosto para Felix. — As coisas não são preto no branco como vocês, policiais, gostam de acreditar.
— Como são, então?
— Cinza — disse, simples. — Tudo é cinza, stalker.
Um carro passou pela rua, os faróis, que tanto pareceriam com os olhos dele, iluminando brevemente o rosto bonito. Felix achou ter visto, naquele curto segundo de claridade, a umidade sobreposta à luz. Quando o carro foi até o final da rua e deu a curva, Hyunjin respirou fundo e levantou.
— Você devia parar de me procurar — Hyunjin disse, firme. — Pelo seu próprio bem.
— Por quê?
— Porque ninguém gosta de policial curioso — Hyunjin disse, arrumando o casaco.
— Seunghyun não gosta? — arqueou as sobrancelhas, presunçoso.
— Eu não gosto.
A frieza com que Hyunjin disse isso fez Felix se arrepiar.
— Você está me avisando ou me ameaçando?
— Estou te dizendo pra deixar as coisas como elas estão, como elas são — corrigiu. — Agora vai embora antes que eu perca um cliente.
Felix engoliu em seco quando viu o carro parado a alguns metros de distância. De pé, Hyunjin tirou o casaco pesado e deixou o corpo exposto ao vento cortante daquela madrugada. O queixo dele tremeu, mas se exibir ao cliente em potencial parecia sua única opção naquele instante. Foi então que Felix reparou nas roupas que ele usava: saia preta de couro e uma blusa da mesma cor, muito curta. Ele ainda usava os mesmos colares da outra noite, com a diferença de que, junto deles, havia uma gargantilha preta rodeando o pescoço longo.
Hyunjin olhou para ele, expressivamente inexpressivo.
— Adeus, stalker.
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Felix não pretendia sair de casa naquela noite.
Tudo o que ele queria, depois de passar o dia inteiro ouvindo o barulho das teclas do computador da delegacia, com sua dor de cabeça crônica martelando e pressionando seu cérebro contra a caixa craniana, era chegar em casa e abrir uma garrafa de cerveja. O engranado provavelmente estaria vencido, já que fazia muito tempo que ele não ia ao mercado, mas queria deitar no sofá, ligar em um telejornal, deixar a televisão no mudo e tentar esquecer o fracasso da sua vida.
Podia parecer um tanto deprimente, e de fato era, não negaria. Quando conversou com Jisung pela manhã, depois de receber uma ligação inesperada do melhor amigo para saber como as coisas estavam, omitiu todas as reclamações sobre como estava cansado e ficando, dia após dia, ansioso com o que deveria ser uma investigação sobre prostituição em Jinhae.
Depois de levar comida para Hyunjin naquela rua escura, quase uma semana atrás, nada tinha avançado. Ele tentou fazer pesquisas, procurar documentos, contatar policiais da central, mas tudo era muito difícil, principalmente quando Hayun estava tão entretida desvendando as novas tecnologias do computador que sequer parecia lembrar sobre o pedido que fizera, semanas atrás, sobre Seunghyun. Então, sim, ele estava deprimido, e não, ele não queria estar naquele bar, repleto de héteros que, se soubessem quem ele era, o colocariam para fora à ponta pés, a começar pelos dois colegas de trabalho ao seu lado.
— Que cara é essa, Felix? — Jeongin indagou em meio a um sorriso, segurando uma garrafa de cerveja. Ao lado dele, estava Changbin, que pescava alguns petiscos.
— Ahn? — Felix, finalmente, pareceu voltar à realidade. — Eu estou fazendo alguma cara?
— Tá aí, de boca aberta, como se tivesse visto um fantasma.
— Desculpa, é que... — Felix pegou a própria cerveja e tomou um gole longo, sentindo a espuma travar na garganta. — Muito trabalho.
— Há muito trabalho naquela delegacia? — Changbin gargalhou, balançando a cabeça. — Só se você estiver catalogando os casos de roubos de anões de jardim dos últimos dez anos.
— É, os arquivos dão dor de cabeça — resmungou. — Você e o Jeongin ainda saem para as rondas, mas eu fico lá, ouvindo aquele barulho irritante do computador e tendo que aturar a Hayun falando com a cabeleireira dela no telefone.
Jeongin e Changbin riram. Felix não se considerava uma pessoa particularmente engraçada, mas seus colegas sempre acabavam rindo de alguma coisa que ele dizia.
— Eu acho que também ficaria estressado — disse Jeongin. — Mas a Hayun não é gostosa? Você tem sorte de passar o dia inteiro com ela, até porque ela tem uma quedinha por você.
Felix sabia, e queria morrer sempre que lembrava daquele detalhe.
— Não faz muita diferença — deu de ombros, a música alta do bar fazendo sua dor de cabeça aumentar ainda mais. — Ela não faz meu tipo.
— Aquelas pernas não fazem seu tipo?! — Changbin quase engasgou com a batata frita. — Do que você gosta, então?
Homens, Felix quis dizer. Homens fortes, com braços grandes e, de preferência, bem dotados.
— Prefiro as mais altas — pigarreou, bebendo mais um gole de cerveja.
Jeongin e Changbin se entreolharam e, segundos depois, caíram na risada de novo.
— Faz sentido — Jeongin falou. — Mas, na real, eu acho que você precisa relaxar. Altas, baixa, gordas, magras... São mulheres, cara! — Se estivesse próximo a Felix, com certeza, teria balançado seus ombros. — Aliás, quando foi a última vez que você saiu com alguém?
Mais um, Felix pensou. Já não bastasse Jisung o interrogando sobre sua falta de interesses românticos, agora ainda tinha que passar por isso com aqueles dois.
— Eu não tô com cabeça pra romance agora — negou, respirando fundo.
— Que nada! — Jeongin desdenhou. — Olha só as meninas daqui. Aquela ali, de vestido vermelho, tá te olhando faz tempo.
Felix seguiu o olhar de Jeongin e viu uma mulher loira, que realmente o encarava com olhos cheios de segundas intenções. Lembrou do cara afeminado que o olhou da mesma forma no dia do aniversário de Minho. Ambos não despertavam nada dentro dele. Felix forçou um sorriso, apenas para não fazer tão feio na frente dos dois colegas, e desviou o olhar.
— Não tô no clima — reforçou, tentando fazê-los entender.
— Cara, você precisa se soltar mais — Changbin insistiu. — Vai lá, chama ela pra conservar... A vida não é só aquela droga de delegacia.
— Sério, eu só quero terminar essa cerveja e ir embora.
Os dois colegas trocaram mais um olhar, e Felix sabia que, no fundo, eles estavam pensando o mesmo.
— Beleza — Jeongin disse após um suspiro. — Então vamos.
— Não precisam ir por minha causa — Felix balançou a cabeça. — Eu ia mesmo dar uma volta por aí.
— Relaxa — Changbin completou, já pegando o casaco jogado na cadeira. — Vamos logo, antes que aquela gata pule no seu colo e você grite feito uma mariquinha.
Mariquinha.
Só há dois tipos de héteros neste mundo, Felix. Os que te odeiam na sua frente, e os que te odeiam pelas suas costas.
A noite estava tão fria quanto Felix se lembrava quando eles saíram do bar. As ruas de Jinhae estavam vazias como sempre, deprimentes como sempre e propensas a todos os tipos de crimes como sempre, crimes que, por algum milagre, não aconteciam. Ou era o que todos achavam.
— Você tem certeza de que está bem? — Changbin perguntou enquanto caminhavam pela calçada estreita.
Não tinham ido de carro, sob o pretexto de que beberiam e não queriam parecer policiais hipócritas infringindo a lei.
— É só um pouco de enxaqueca — Felix não mentiu totalmente, enfiando as mãos nos bolsos do casaco. Ele estava com enxaqueca, mas não era só isso.
Changbin e Jeongin pareceram desistir de tentar puxar algum tipo de assunto com Felix, sob suas próprias palavras: ranzinza como um velho.
Eles entraram em um assunto aleatório que Felix sequer entendia. Talvez estivessem falando sobre jogos de futebol, talvez sobre como Changbin estava infeliz no seu casamento de anos. Eram assuntos limitados, mas desinteressantes.
Foi então que, quando estavam cruzando aquela rua, aquela mesma e corriqueira rua, onde levou comida para Hyunjin e o via sentado no meio fio, Felix ouviu uma voz familiar, próxima ao beco do outro lado da rua. Seu corpo inteiro enrijeceu ao reconhecer o tom da voz rouca.
Felix parou abruptamente, fazendo Changbin, que caminhava um pouco atrás junto a Jeongin, esbarrar nele.
— O que foi? — Jeongin perguntou, seguindo o olhar assombrado de Felix em direção ao beco.
No fundo da viela, iluminado apenas pela luz fraca de um poste distante, Felix conseguiu distinguir duas figuras.
Mood: Fera Ferida - Maria Bethania
— Eu disse não, caralho!
Uma delas, menor e mais esguia, tentava se afastar da parede onde estava encurralada. A outra, bem maior, pressionava-a com o corpo, impedindo qualquer defesa.
— Me larga, seu maldito! Eu vou arrancar o seu pau com meus dentes, seu desgraçado de merda! Você tá me ouvindo?! Eu vou acabar com você!
Era a voz de Hyunjin, tensa, mais aguda do que o normal, mais assustada.
O homem que o pressionava contra a parede deu uma risada sórdida. Felix engoliu em seco, o sangue fervendo, correndo como ácido nas artérias.
— Felix? — Changbin chamou, notando como ele estava pálido. — O que é aquilo?
Mas Felix não respondeu. Suas mãos já estavam fechadas em punhos quando viu o homem segurar o braço de Hyunjin com força, forçando-o mais para perto.
Ignorando os chamados dos dois colegas, Felix engoliu em seco e cruzou a rua a passos pesados, audíveis e raivosos. Ele estava pouco se fodendo se aquele cara tinha o dobro da sua altura; ele não iria deixar Hyunjin daquele jeito.
Então, Felix entrou no beco, o breu o engolindo como se tivesse mergulhado em um lago profundo e sujo.
Aquele homem estava tão concentrado em intimidar Hyunjin que sequer percebeu quando Felix se aproximou pelas suas costas. A vantagem da surpresa foi tudo o que ele precisou. Não que Felix fosse alguém sem a mínima noção sobre combate corporal, mas aquele cara era realmente grande, e Felix, bem, ele era o que sempre chamavam de "franzino".
Seu primeiro soco atingiu em cheio a lateral do pescoço do homem, fazendo-o cambalear e soltar Hyunjin imediatamente. Felix poderia ter usado voz prisão, mostrado seu distintivo e agido como um policial normal, mas, porra, ele estava puto! Admitia que era impulsivo, mas, naquele momento, ele sequer conseguiu pensar em outra coisa.
O homem dobrou-se sobre si mesmo, ofegante. Hyunjin, encostado à parede, partiu os lábios em descrença, mas Felix sequer conseguiu olhar para ele por muito mais do que dois segundos. Aquele cara era maior do que Felix, mais pesado, mais forte, mas a fúria que corria pelas veias do policial compensava a diferença. Felix foi até ele novamente e desferiu mais um soco, e outro, e um após o outro, aproveitando o estado atordoado do homem. O barulho seco dos punhos magros contra a carne do rosto dele ecoava pelo beco estreito.
— Já chega, stalker! Você vai se foder com isso! — Hyunjin gritou, ainda acuado.
— Eu que vou foder ele — Felix gritou, acertando mais um soco no rosto do homem.
No entanto, no próximo, ele conseguiu se esquivar e revidou com força. O punho dele, maior e mais pesado, acertou bem na mandíbula de Felix, e o outro, que veio logo em seguida, atingiu seu olho, fazendo-o cambalear para trás. A dor foi imediata, uma explosão de estrelas atravessando sua visão. Felix levou a mão ao rosto, sentindo o inchaço já começando a se formar e o gosto metálico do sangue na boca.
O homem, aproveitando a oportunidade, correu em direção à saída do beco. Felix, ainda zonzo, tentou seguí-lo, mas tropeçou nos próprios pés. Hyunjin estava imóvel, olhos arregalados. As mãos dele tremiam, não apenas pelo frio, mas pelo choque do que acabou de presenciar. O casaco pesado que ele deveria estar usando estava jogado no chão sujo, junto do canivete cor-de-rosa que havia recuperado na delegacia.
Os olhos de Hyunjin se moveram rápido de Felix, tentando se levantar do chão, até a saída, por onde o agressor havia escapado. Por lá, com movimentos rápidos, entraram Jeongin e Changbin. Hyunjin arqueou as sobrancelhas, espantado. Sem hesitar, abaixou-se e pegou o canivete, escondendo-o na barra da saia. O casaco continuou no mesmo lugar.
— Que porra foi essa?! — Jeongin gritou, Felix já de pé, com a mão no olho, e Hyunjin de volta ao seu refúgio contra a parede. — Puta que pariu, cara! Você é maluco?! Você tá sangrando!
— O cara foi por ali — Felix apontou na direção que ele tinha tomado, a voz saindo um pouco abafada. — Ele estava tentando... — olhou para Hyunjin, hesitando por uma fração de segundos. — Ele estava tentando machucar ele.
Changbin olhou de Felix para Hyunjin, os olhos demorando nas roupas reveladoras e na maquiagem chamativa.
— Você de novo, garoto?! — Changbin foi até ele, segurando firme no braço magro. — Por que sempre que eu te encontro, alguém acaba de olho roxo?
— Tira a mão de mim, porra! — Hyunjin puxou o braço com força, afastando-se do policial.
— Dá pra alguém ir atrás dele?! — Felix perguntou, enfurecido por nem Changbin e nem Jeongin terem tomado alguma atitude.
— Ele já deve estar longe, Felix — disse Jeongin. — Além disso, ele só deveria ser algum... cliente que desentendeu. Não é difícil arrumar confusão com esse garoto.
Hyunjin deu uma risada abafada, negando com a cabeça.
— O quê? — Felix perguntou, desacreditado. — Vocês vão deixar mesmo um agressor sair impune desse jeito?! Que porra de policiais de merda vocês são?
Policiais normais.
— Felix... — Jeongin tentou dizer, mas Hyunjin o interrompeu.
— Você está certo — disse, contrariando sua expressão de instantes antes. — Ele era um cliente e... a gente se desentendeu e eu chutei as bolas dele. Fala sério, ele queria transar aqui. Mão de vaca do caralho, nem pra pagar o motel. Então, ele se irritou e tentou me dar um soco, mas não conseguiu.
— Hyunjin — Felix olhou para ele, lábios partidos. — Você não precisa mentir.
— Eu não tô mentindo — disse ele, dando de ombros.
Felix não conseguia acreditar no que estava ouvindo. Hyunjin ia mesmo negar o que aconteceu?
Changbin suspirou alto, impaciente, limpando as mãos nos bolsos da jaqueta. Jeongin olhou para Felix e depois para a entrada do beco, claramente dividido entre fazer o que deveria como um policial — procurar o cara — ou acreditar na versão dita pela própria suposta vítima.
— Você quer prestar algum tipo de queixa? — Jeongin perguntou.
— Não — disse Hyunjin.
— Hyunjin, para — disse Felix.
— Eu não quero prestar queixa. Podem ir embora.
— Vem, Jeongin — disse Changbin, já puxando o braço do colega.
— É sério?! — Felix, exasperado e com a mandíbula doendo, quase gritou. — Vocês vão mesmo fazer porra nenhuma?!
— Puta que pariu, Felix! O que você quer que a gente faça, cecete? — Jeongin abriu os braços. — Ele não quer prestar queixa, então não podemos fazer nada.
— Não podemos fazer nada — Felix murmurou para si mesmo. — Não podemos fazer nada, não podemos fazer nada... É, nós nunca podemos fazer nada!
— Felix, ele não quer denunciar — Changbin repetiu. — Para de tentar bancar o herói e vamos sair daqui e ir ao hospital tratar desse seu olho.
— Não vou a lugar nenhum — disse ele, e Hyunjin olhou para cima, desacreditado.
— É? — Changbin arqueou as sobrancelhas. — Então a gente vai embora. Resolve isso sozinho, já que você acha que pode.
— Beleza, então podem ir.
— Felix... — Jeongin tentou falar, hesitando por um instante, os olhos presos em Hyunjin, como se quisesse dizer alguma coisa, no entanto, ele acabou se virando e seguindo Changbin em silêncio.
Hyunjin e Felix ficaram sozinhos naquele beco mal iluminado, com cheiro de lixo, cigarro velho e sangue recém-derramado.
Silêncio, tão espesso quanto o frio que cortava o ar. Hyunjin voltou a se encostar na parede, como se suas pernas mal conseguissem se equilibrar em cima dos saltos. Felix cuspiu sangue no chão e massageou a mandíbula dolorida.
Hyunjin cruzou os braços sobre o top preto, as luzes amareladas dos postes da rua lançando sombras esquisitas sobre o rosto, a maquiagem reforçando uma expressão que Felix sequer conseguia decifrar.
Felix limpou o sangue da boca com as costas da mão, o olho começando a pulsar devido à dor que se alastrava pelo rosto como se quisesse lembrá-lo de que ele era um idiota tentando salvar aquele garoto que não queria ser salvo.
— Por que você mentiu? — Felix perguntou. Hyunjin olhou para a lata de lixo e balançou a cabeça. — Por que você faz isso, Hyunjin?
— Faço o quê?
— Finge que não tá com medo de nada, que isso aqui é normal — apontou para o beco, depois, abaixou-se e pegou o casaco do chão, pressionando-o contra o peito de Hyunjin — Que está tudo bem com você, porra.
— Eu tô bem.
— Não, você não... — Felix ia gritar a última palavra, mas parou. O punho foi à a boca e ele girou em seu próprio eixo, dando uma risada amarga. — Eu vi o jeito que ele estava te encurralando, eu ouvi o que você disse e como você disse, Hyunjin. Você estava morrendo de medo.
Hyunjin apertou o casaco contra o próprio peito.
— Eu não tenho medo de nada.
— Ah, não? E o que acha que poderia ter acontecido se eu não tivesse chegado aqui? Ele teria te machucado!
Felix se escutou e percebeu, não, ele odiou o quanto parecia desesperado. Havia algo pulsando no seu peito desde que reconheceu Hyunjin naquele beco. Algo doía mais do que os dois socos que levou no rosto.
— Ele teria feito o que muita gente já fez. Que se foda. Ninguém nunca morreu porque uma puta não quis dar e comeram mesmo assim.
Felix ficou em silêncio, puro choque no rosto inchado.
— Essa é a minha vida, stalker — Hyunjin continuou, amargo.
— Isso não...
Hyunjin interrompeu.
— O que exatamente você tem a ver com isso? Você nem me conhece, porra. Você é só um policialzinho que colocou na cabeça que eu sou uma princesa em perigo. Me salvar do que quer que seja não vai mudar o fracasso da sua vida, então me deixa em paz.
Felix riu, o som seco e rouco escapando antes mesmo de ele notar. O olhar que lançou a Hyunjin não tinha raiva ou sarcasmo, apenas um cansaço velho, que escorria pelas suas expressões como o sangue escorria do canto da boca.
— Certo. Você não quer ajuda? Então ótimo. Eu não vou mais te ajudar.
— Ai, meu Deus, finalmente! — Hyunjin bateu palmas, sorrindo. — Eu achei que fosse me oferecer um quarto na sua casa, um emprego melhor e um passe livre pro céu.
Felix abriu a boca para responder, mas não tinha palavras. A verdade era que ele não sabia mais o que dizer, tampouco o que fazia. Ele queria ajudar, queria, desesperadamente, que Hyunjin não estivesse naquela posição, naquele beco, com aquelas roupas e passando por aquelas situações. Mas Felix não tinha um plano. Tudo o que ele tinha era aquele impulso insano, perigoso e quase suicida de ajudá-lo, sem saber sequer como.
— Você é ingrato pra caralho — Felix cuspiu, por fim.
— Eu nunca pedi sua piedade, muito menos a sua ajuda — Hyunjin retrucou.
— Isso nunca foi piedade.
— Não importa o nome — cortou, já se afastando da parede.
Hyunjin jogou o casaco nos ombros, endireitou a postura e encarou Felix uma última vez.
— Eu não preciso dessa merda, ouviu? — Hyunjin disse, muito perto do rosto arrebentado de Felix. — Sabe porque, stalker? Porque não tem nada de errado comigo.
Foi a última coisa que ele disse antes de virar as costas. Caminhou até a saída do beco com passos duros, os ombros curvados como se carregasse muita coisa sobre eles. Não olhou para trás, não hesitou nem por um segundo.
Felix permaneceu onde estava, sozinho, entre as sombras e o cheiro pungente de lixo, ainda com o olho latejando. O pior de tudo, no entanto, era a sensação de que, mais uma vez, não importava o quanto tentasse, ele nunca seria suficiente.
Notes:
ENTÃO!!! Nossa fera ferida ainda está arisca e eu não posso dizer que ela perderá o medo de ser cuidada tão cedo... Mas Felix está tentando. De um jeito meio torto, claro, ele é meio esquisito, mas está.
O capítulo 4 separará o joio do trigo, no sentido de: se você está achando tudo tranquilo, talvez seja melhor considerar. Novamente eu digo, Bemjin é pesada, e o próximo capítulo mostrará bem isso.
Até AMANHÃ!
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Comentem meus chuchus <3
Chapter 4: Cálice
Notes:
Ah, o capítulo 04... Eu estava ansiosa por ele, tanto que decidi postar seguido do 03. Não vou falar muito, acho que não precisa, mas só para saberem que, aqui, vocês conhecem um pouco mais do Hyunjin. Na verdade, bem mais. OBS: Lembrem-se dos avisos, por favor. O capítulo é cheio de gatilhos e se você se sente desconfortável com QUALQUER UM dos alertas iniciais, por favor, não leia!
(See the end of the chapter for more notes.)
Chapter Text
A televisão antiga, que Hyunjin arrastou da casa dos pais alegando que o pertencia por direito, estava ligada em um canal de desenhos animados, os chuviscos deixando as imagens distorcidas, e os sons, quase inaudíveis.
Hyunjin gostaria de ter uma televisão moderna, com um aparelho de videocassete no qual ele poderia assistir a Um Sonho de Liberdade. Ele nunca tinha assistido àquele filme, mas já tinha ouvido falar que era ótimo.
A sua televisão era muito pequena. Seus pais a compraram em 1985, quando Hyunjin tinha apenas 10 anos e ainda era um menino catarrento que gostava de andar de bicicleta pelo bairro com outros meninos catarrentos da mesma idade. Ela não era o bastante para distraí-lo quando chegava em casa, já que sempre ficava travada no canal do telejornal, e Hyunjin, definitivamente, odiava telejornais. Ele gostava de desenhos animados, como o Pica-Pau e os Looney Tunes, mas raramente os canais de desenhos estavam pegando, devido ao péssimo sinal daquele bairro. Ele até mesmo tentou colocar palha de aço nas antenas para tentar melhorar a captação, mas foi uma grande merda. Não funcionou e ele ficou sem seus programas.
Mas, naquela manhã, os canais de desenho estavam pegando, e seus olhos, estavam fixos na pequena tela, brilhando sempre que o Pica-Pau aparecia, mesmo se fosse a versão biruta.
Hyunjin também gostaria de ter uma poltrona mais confortável, além de um ventilador mais potente. A poltrona de couro preto e falso estava rasgada em alguns lugares, e a espuma branca pinicava um pouco a sua bunda quando ele sentava para ver TV. Estava fazendo calor durante o dia, embora as noites fossem frias, e o ventilador era fraco demais para refrescá-lo. Hyunjin preferiria que as noites fossem quentes, assim, não precisaria usar casacos tão grossos, e se os dias fossem frios, não precisaria de outro ventilador.
Uma risada ecoou pela sala. Hyunjin apoiou o queixo na poltrona, assistindo, vidrado, ao desenho animado. O ventilador girava quase parando, fazendo com que suas costas suassem ainda mais. As mãos agarraram o couro da poltrona, que estava virada para a parede. Hyunjin estava de joelhos, o peito grudado no encosto, o que só aumentava seu calor. O couro rangia, seus quadris se moviam em um ritmo instável, balançando com um som abafado de pele na pele que se misturava ao chiado da TV.
Murmurou, incomodado, quando os dedos de Seunghyun pressionaram sua cintura com força o suficiente para deixar uma marca roxa, semelhante à que já estava no pescoço. Levou a própria mão até onde a dele estava, fazendo com que parasse de apertar com tanta força. No entanto, Seunghyun pressionou as costas suadas de Hyunjin e deslizou devagar, como se quisesse acalmá-lo.
Hyunjin voltou a sorrir quando o Pica-Pau deu um beijo estalado no narigão vermelho do homem do navio que caçava a Moby Dick. Eu gosto de você!
Hyunjin, às vezes, também gostava de Seunghyun.
Seu corpo ia para frente e para trás sem que ele pudesse controlar. Para não desviar os olhos da TV, Hyunjin mantinha o queixo apoiado na poltrona e segurava os braços estofados com ambas as mãos, dando sustentação ao corpo. Sentia a respiração quente de Seunghyun nas costas, o baque surdo de seus corpos se chocando e, ainda assim, tentava não desviar o olhar da tela, como se o desenho fosse mais importante do que o que acontecia por trás. Mas era, porque Seunghyun sempre o fodia, mas não era sempre que ele conseguia ver o Pica-Pau.
Os cabelos começaram a grudar na testa pegajosa e na nuca, e Hyunjin os jogou para trás, tirando os fios pretos dos olhos. Riu mais uma vez e mordeu os lábios, o som da TV meio abafado por eventuais gemidos roucos que escapavam da voz grave de Seunghyun.
Estava quase se sentindo bem, quase gostando de Seunghyun, que costumava fazer barulho, mas que estava quase quieto — isso fazia Hyunjin odiá-lo menos — quando a televisão começou a chiar mais do que o comum, e as imagens do Pica-Pau sumiram da tela.
Hyunjin partiu os lábios e suas expressões se contorceram, quase desesperadas. Ele empurrou o corpo de Seunghyun para trás, que bateu com a cabeça na parede, sem muita força. Desceu da poltrona, correndo até a TV.
— Que porra é essa? Eu tava quase gozando — disse Seunghyun, enquanto Hyunjin batia com as palmas das mãos no tubo da televisão.
Hyunjin mexeu nas atentas cheias de palha de aço, tentando recuperar o sinal.
— Você disse que ia consertar!
— Eu vou consertar essa merda — Seunghyun respondeu, passando as mãos pelos cabelos molhados de suor. — Só tenha paciência.
Com as sobrancelhas vincadas, Hyunjin o encarou.
— Quando?
— Hoje, eu vou consertar hoje. Agora volte aqui — ele disse, e Hyunjin olhou para o corpo nu e para a TV, ponderando se valia a pena deixar Seunghyun gozar nele quando estava com tanta raiva.
— Estava no meio do episódio e você devia ter consertado há uma semana, Seunghyun. Você prometeu!
Lembrou-se de sete dias atrás, quando pediu para que Seunghyun levasse a TV para o conserto, pois não conseguia assistir quase nada sem interrupções. Ele prometeu que levaria no dia seguinte, mas Hyunjin quase sempre chegava em casa chapado demais para perceber se a televisão tinha saído do lugar, e só se dava conta que ela continuava ali quando ficava sóbrio de novo, mas logo voltava a esquecer.
— Eu não tive tempo — disse Seunghyun. — Eu estava ocupado e você sabe.
— Ocupado com o quê?
— Preciso mesmo dizer?
— Estava ocupado com suas putas? Demora tanto assim pra comer aquelas…
Seunghyun foi até ele e, com força, segurou na sua mandíbula, cortando sua fala.
— Cala a boca. Ouviu? Você não sabe de nada. Eu estava trabalhando.
O rosto de Seunghyun era bonito, mas também era assustador. Seu rosto era comprido, e a pele, bronzeada. Apesar de ser bem mais velho, ele não aparentava a idade que tinha. Seunghyun sempre se preocupou em parecer jovem, mas, quando chegava perto assim, voltava a parecer um velho nojento.
— Agora volte para aquela poltrona — ele disse, soltando seu rosto com força. Hyunjin engoliu em seco, olhando para o lado. — Ou então eu paro de fingir que não sei que anda de conversa com aquele policialzinho intrometido de merda.
Hyunjin arregalou os olhos. Seu primeiro impulso foi balançar a cabeça, negar, mas Seunghyun voltou a pegar em suas bochechas com os dedos firmes, apertando seu rosto novamente.
Não sabia como Seunghyun tinha descoberto que Felix estava no seu pé, principalmente porque já faziam duas semanas desde que o vira pela última vez naquele beco. A ideia de que cada passo seu era controlado por aquele homem arrepiava a espinha de Hyunjin.
— E-Eu não estava… — Hyunjin tentou dizer, mas recebeu uma risada amarga de Seunghyun em resposta.
— Você acha que eu sou burro?
Silêncio, depois, um grito.
— Hein, porra?!
Hyunjin engoliu arame farpado pela garganta.
— Não.
— Então por que ia negar que aquele merda anda te rondando?
— Não… não aconteceu nada — Hyunjin disse, dedos tremendo.
— Você trepou com ele?
— O quê?! — arregalou os olhos, balançando a cabeça. — Não, não, Seunghyun, ele nem chegou perto de mim.
— Ah, ele chegou, sim. Não me faça de idiota.
— Eu só… — mordeu o lábio inferior, buscando as palavras corretas. — Ele… Ele comprou comida pra mim, só isso.
— Comida? — Seungyun arqueou uma das sobrancelhas. — Eu não te dou comida, então? Agora as pessoas acham que eu te deixo passar fome?
— Não, Seunghyun, não é isso — apertou as mãos, a respiração rarefeita, quase falhando. — Ele… ele não apareceu mais, então não precisa se preocupar com ele.
— Me preocupar com ele? — A frase soou cômica. — Ele que tem que se preocupar comigo.
Hyunjin assentiu várias vezes, o lábio inferior entre os dentes. Então, ergueu os olhos quando Seunghyun respirou fundo antes de dizer:
— Quais são as nossas regras, Hyunjin?
Com os olhos lacrimejando de medo, Hyunjin lembrou daquelas regras que ele sabia há tantos anos.
— Não escolher cliente.
— Sim?
— Não ser malcriado.
— Muito bem.
Os lábios de Hyunjin tremeram.
— N-Não sair da cama até você mandar. Não olhar pra outro cara como olho pra você. Não transar de graça.
— Tem uma muito importante. Qual é?
Hyunjin fechou os olhos, uma lágrima solitária escorrendo pela bochecha. Ele queria fugir. Queria pular a janela e correr o mais rápido possível para longe e se atirar no trilho do trem. Se não conseguisse morrer, Seunghyun o mataria quando o encontrasse.
— Nada de policiais — disse, baixo, as palavras saindo embaralhadas pelo nervosismo.
— Nada de policiais — reforçou, a voz grave soprando contra o rosto de Hyunjin. — E por que temos essa regra?
— P-Por que não somos burros — disse ele.
— Mais alguma coisa?
— E porque… Porque eu sou seu.
Seunghyun sorriu, aproximando o rosto do dele para deixar um beijo nos lábios apertados.
Soltou as bochechas de Hyunjin e ele respirou fundo, caminhando, sem mais perguntas ou malcriações, de volta à poltrona. Ficou na mesma posição em que estava, mas agora, não tinha mais seus desenhos para distraí-lo do horror que era sentir Seunghyun tocar no seu corpo. Encostou a testa onde outrora o queixo estava e deixou que duas lágrimas grossas caíssem quando Seunghyun voltou a fodê-lo.
Era estranho que, mesmo depois de tanto tempo, ainda doesse.
Mas Hyunjin já estava acostumado com a dor e sequer se incomodava com ela.
O restante do dia foi como qualquer outro que Hyunjin teve desde quando se mudou para aquela pequena casa em uma viela mal iluminada na área oeste de Jinhae. Sua casa era pequena, tinha apenas quatro cômodos e móveis antigos, mas ele até gostava de morar ali — ou fingia para se poupar.
Ele saía para trabalhar às 20h e chegava pela manhã, geralmente, antes das 6h. Dormia a manhã inteira e um pouco à tarde. Por vezes, Seunghyun o acordava para atender algum cliente. Por vezes mais comuns ainda, para atendê-lo.
Hyunjin não reclamava. Não poderia pensar em reclamar.
Choi Seunghyun não morava com ele, mas era como se sempre estivesse lá. Seunghyun tinha um apartamento grande perto do centro, que Hyunjin nunca tinha visitado e nem sabia onde ficava. Não fazia tanta questão, mas ele gostaria de um pouco de conforto de vez em quando, já que as vezes em que dormia mais confortavelmente era quando seus clientes deixavam que ele cochilasse alguns minutos nas camas do único motel da cidade.
Hyunjin odiava quando Seunghyun passava o dia inteiro na sua casa. Ele se sentia ainda mais vigiado do que de costume, provocando nele uma falta de ar que parecia comprimir seus pulmões.
— Do que está precisando? — Seunghyun perguntou, sentado na cadeira da mesa pequena da cozinha. Ele usava óculos redondos de leitura e tinha um jornal aberto de frente para o rosto.
Hyunjin estava organizando o armário com a comida que ele tinha comprado mais cedo, sentado no chão, com as pernas dobradas e os calcanhares sobrepostos. Já fazia algum tempo que ele não tinha tanta comida em casa.
— Meu xampu acabou — ele disse, passando um paninho úmido no armário para tirar a poeira. — E o Senhor Miau está quase sem comida.
— Esse gato come mais que você — Seunghyun revirou os olhos. — Falando nisso, você está muito magro, até o policialzinho deve ter percebido, por isso te deu comida. Coma mais em casa.
— Tá.
— Mais alguma coisa?
— Preciso que compre camisinha.
— Seus clientes não levam camisinha?
— Levam, mas eles podem colocar doenças, ou sei lá — tremelicou os ombros, sentindo um arrepio no corpo ao pensar na possibilidade. — Gosto de ter as minhas.
— Tudo bem, mas você sabe que alguns caras detestam transar com um pedaço de borracha no pau e pagam mais pra fazer sem — Seunghyun revirou os olhos.
— Eu sei, mas não gosto — Hyunjin bufou, colocando os pacotes de arroz uns sobre os outros dentro do armário. — É perigoso.
— Você faz seus exames, então não precisa ter medo. Além disso, sabe que as pessoas de Jinhae não têm doenças.
— Duvido — deu uma risada amarga. — Outro dia, encontrei uma senhora que tinha uma coisa estranha.
— O que era?
— Não sei — deu de ombros, pois não sabia o nome daquilo que viu na buceta daquela velha. — Ela não quis que eu chupasse, sorte a minha.
— É, sorte a sua — Seunghyun deu um risinho, dobrando o jornal e espreguiçando as costas. — Tenho uma coisa pra você.
Hyunjin viu Seunghyun caminhar até a sala. No sofá, ao lado da poltrona, havia uma sacola plástica, que carregava quando chegou pela manhã, mas Seunghyun odiava quando Hyunjin fazia perguntas demais, então ele apenas ficou quieto e não deu importância para o pacote.
Seunghyun voltou para onde Hyunjin continuava arrumando os pacotes de comida e sentou ao seu lado no chão, tirando algo de dentro da sacola.
— Aqui — disse ele, entregando a caixa de papelão para Hyunjin, que pegou o embrulho sem muita empolgação.
— O que é isso?
— Abre.
Hyunjin fixou seus olhos na caixa e a abriu, podendo ver algo que se parecia com uma peça de roupa dobrada. Ele pegou no tecido, sentiu o couro falso em seus dedos, e o tirou da caixa.
— Gostou? — Seunghyun perguntou. — Quando vi, achei que ficaria linda em você.
Hyunjin analisou a calça preta, que provavelmente ficaria colada ao seu corpo.
— Gostei — Hyunjin respondeu com um sorriso pequeno.
Ele gostava de ganhar roupas. Gostava de se arrumar, de pentear os cabelos compridos e maquiar o rosto, embora não tivesse muita habilidade na hora de passar a maquiagem e sempre acabasse borrando alguma coisa. Sentia-se bonito quando passava um batom vermelho nos lábios grossos e calçava um dos saltos que tinha no armário. Era por isso que Seunghyun o mandava para rua ao invés da boate.
Uma coisa linda assim tem que ser vista e desejada por todo mundo. Não vou esconder ouro naquela boate.
— Não vai me agradecer? — perguntou Seunghyun.
Hyunjin ficou de joelhos, abraçando os ombros do padrinho.
— Obrigado — ele disse, dando um beijo rápido nos lábios de Seunghyun. — Vou usar hoje à noite.
— Já que tocou no assunto, eu preciso que vá até a boate hoje — disse Seunghyun, acariciando os cabelos da nuca de Hyunjin.
— Por quê? Eu quase nunca vou lá.
— Porque eu tenho uma pessoa especial pra você.
— Especial? — Hyunjin franziu o cenho.
Seunghyun sempre o levava para encontrar clientes. Certa vez, ele o levou até a casa de uma mulher muito rica fora da cidade que pagou pela noite inteira com Hyunjin. Ele não viu esse monte de grana, só os trocados de sempre. No final, ele ficou massageando os pés dela e chupando no meio das pernas enrugadas até que ela gozasse. Foi estranho, principalmente porque ele não gostava de transar com mulheres, apesar de elas sempre serem mais limpas e gentis que os homens com quem saía.
— Sim. É um cliente importante, então eu quero que fique bem bonito, sim?
— Tudo bem — Hyunjin dissr.
— Mesmo?
— Sim, eu estou bem.
— Se você se comportar hoje e fizer nosso cliente feliz, eu jogo essa TV fora e te compro uma nova.
Aquelas palavras acenderam algo quente dentro de Hyunjin.
— Sério? Uma com todos os canais de desenhos?
— Sim, com todos. E sem essas antenas ultrapassadas.
— Tudo bem! — Hyunjin assentiu, balançando a cabeça.
— Viu como ser bonzinho é melhor pra você? — Seunghyun disse, afagando sua nuca. — Você me ajuda e eu te recompenso. É assim que funciona.
— Eu sei — Hyunjin suspirou. — Às vezes, eu só…
— É malcriado — completou. — Sua sorte é que eu sou paciente. Deveria me agradecer por não dar umas palmadas nessa bunda gostosa pela conversinha com o policial.
Palmadas. Hyunjin quis rir. Ele deveria agradecer era por não ter levado uma surra, como da última vez em que brigaram e Hyunjin o xingou de filho da puta. Ficou uma semana com o nariz sangrando devido a um soco, hematomas expostos o suficiente para perceberem que ele tinha irritado muito alguém.
Seunghyun beijou a bochecha de Hyunjin e ele ficou em silêncio.
A tarde caiu. Seunghyun foi embora, mas não antes de colocá-lo de joelhos de novo. Depois, Hyunjin começou a se arrumar para trabalhar.
Tomou um banho demorado, esfregando bem o seu corpo para que qualquer resquício de sujeira fosse embora pelo ralo, embora ele sentisse que havia uma nódoa impregnada em sua pele cultivada pelos anos de prostituição que nunca sairia com água e sabonete.
Secou os cabelos, maquiou-se com a sombra preta e passou um gloss incolor, pois os olhos já estavam muito carregados. Vestiu uma meia arrastão, a calça nova, um top preto e calçou uma bota da mesma cor, com um pequeno salto. Perfumou-se e se olhou no espelho, gostando da sua aparência.
Ele estava lindo e em nada se parecia com o Hyunjin de duas horas atrás, que vestia uma calça moletom, uma regata branca e tinha o rosto limpo. Mas ele gostava de como ficava daquela forma, gostava de como parecia poderoso naquelas roupas apertadas.
Gostava de como elas pareciam deixá-lo invencível.
Hyunjin foi até a cômoda velha ao lado da cama e abriu a segunda gaveta, encontrando o que o defendia de pessoas cruéis. Pegou o canivete cor-de-rosa, colocando-o na barra da calça. Em seguida, pegou um menor, que escondeu no calcanhar, contra o material da bota. Um menor ainda foi escondido debaixo do braço, preso na lateral do top. Por último, pegou uma caixinha de lâminas e escondeu uma delas na gengiva.
Quando começou a fazer aquilo, anos atrás, sua língua sempre ficava cortada. Doía pra caralho. Com o tempo, foi pegando o jeito, e nem mesmo sentia que tinha algo cortante dentro da boca, a menos que um dia ela descesse pela garganta sem querer e o matasse no meio de um boquete.
Mesmo munido de todas aquelas armas, Hyunjin ainda tinha medo. Não medo de que o machucassem fisicamente, àquilo já tinha costume, mas medo da madrugada, do frio, da solidão que o acompanhavam ano após ano e que o acompanhariam após a morte, também.
E, mesmo acostumado, ele ainda sentia um gelo na boca do estômago sempre que colocava os pés para fora de casa quando o relógio batia 20h. Mas ele fechava o rosto, erguia o nariz, empinava a bunda e saia.
E ninguém desconfiava que, por baixo de tudo aquilo, existia um garoto com medo até da própria sombra.
Ninguém, além do oficial Lee.
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Hyunjin chegou à boate discreta que, por fora, parecia um prédio inabitado. Havia um segurança na porta, à paisana, sentado em um banquinho, enquanto ouvia uma estação de rádio. Hyunjin não se importou com ele e tentou empurrar a porta da frente para entrar.
— Onde a moça pensa que vai? — perguntou o segurança, levantando-se e segurando o braço de Hyunjin.
Hyunjin o olhou com fúria e desatou o aperto, dando dois passos para trás.
— Eu vou entrar.
— Não pode entrar assim. Quem é você?
— Alguém que vai esmagar suas bolas se não me deixar entrar — respondeu, ríspido, e o segurança deu uma risada abafada, negando com a cabeça.
— Circulando, boneca. Anda — apontou para a rua.
Hyunjin mordeu os lábios, inconformado.
— Chama o Seunghyun.
— O quê?
— Chama o Seunghyun agora, porra, eu tô mandando!
— Você acha que manda em alguma coisa? Ahn? Vai logo embora antes que eu te expulse à ponta-pés.
— Olha aqui, seu…
— O que está acontecendo aqui? — A voz de Seunghyun foi ouvida, e Hyunjin olhou para ele, encolhendo os ombros na mesma hora. — Pode me dizer, Soman?
— Ele estava querendo entrar na boate, patrão — disse o segurança. — Mas pode deixar que eu já vou cuidar dele.
— Está louco? — Seunghyun olhou para ele e o segurança franziu o cenho. — Venha — chamou Hyunjin, e ele foi ao encontro dele. — Converso com você depois — apontou para o tal Soman, que engoliu em seco.
Hyunjin, acompanhado de Seunghyun, entrou na boate, que não estava tão cheia quanto de costume. Estava cedo e era terça, então não havia como esperar muito movimento. Apesar disso, Hyunjin conseguiu ver algumas mesas cheias, alguns garotos e garotas dançando na pista com uns caras que deveriam ter o dobro da idade deles e o barman, Chris, preparando alguns drinks.
— Aquele cara me paga — disse Hyunjin, resmungando.
— Não se preocupe, vou dar um jeito nele.
Hyunjin não sabia o que “dar um jeito” queria dizer, mas ele não se importou, de qualquer forma.
— Quer tomar um drink? Seu cliente ainda não chegou, mas acho que não vai demorar.
— Posso tomar o de morango? — perguntou, olhos brilhantes, e Seunghyun riu. — Chris sempre faz os melhores drinks de morango.
Hyunjin adorava morango.
— Pode, pode sim — abraçou sua cintura com um só braço, acariciando as costas descobertas. — Você está uma delícia. Se ele não fosse tão importante, eu cancelaria seu programa na mesma hora e te levaria pros fundos, mas… — puxou o ar por entre os dentes, apertando com força a bunda marcada pela calça de couro. — Sai logo daqui logo, vai.
Hyunjin deixou Seunghyun e caminhou até o bar, onde estava Christopher, um homem bonito que sempre era gentil com ele. Na verdade, ele era um dos poucos que trabalhavam ali que realmente podia ser uma boa pessoa.
— O de morango, acertei? — disse Christopher, assim que Hyunjin sentou no banco alto e apoiou os cotovelos na bancada.
— Bem forte e doce — respondeu, já observando-o pegar os ingredientes para a bebida.
— Por que veio aqui hoje?
— Seunghyun disse que tenho um cliente especial. Não me disse quem é.
— Deve ser algum velhote rico — ele riu, derramando vodca na coqueteleira junto de morango, açúcar e algumas outras coisas que Hyunjin não sabia o que era. — Cuidado pra não engolir a dentadura.
— Que nojo! — Hyunjin colocou a língua pra fora, gargalhando.
— Então a princesa resolveu dar as caras…
Hyunjin prensou os olhos com força ao ver Yuna sentar na banqueta ao seu lado, cruzando as pernas longas.
Yuna era uma mulher que trabalhava na boate desde que ela foi aberta. Vinda de uma cidade ainda menor do que Jinhae, encontrou na prostituição uma maneira de sobreviver, mesmo que abominasse cada segundo daquela vida.
Mas se ela abominava sua vida, ela abominava ainda mais Hyunjin.
Christopher perdeu as contas de quantas vezes já teve que segurar Hyunjin para que ele não fizesse uma besteira, porque Yuna o provocava como se aquele fosse seu passatempo preferido.
— Sem gracinha, Yuna. Lembra do que o patrão disse — Christopher avisou.
Yuna revirou os olhos, como se não desse a mínima para as ordens do patrão.
— Só quero ver se o Hyunjin vai cumprir o que ele disse da última vez que nos vimos — disse ela. — O que foi mesmo? “Eu vou arrancar seus cabelos, vadia”?
— É, foi isso, sim — Hyunjin assentiu, encarando-a de cima. — E, se continuar aqui, eu vou fazer mais do que arrancar seus cabelos. Eu vou pisar nessa sua cara de vagabunda.
— Olha pra você… — ela deu uma risadinha, negando com a cabeça, expressões cheias de esprezo. — Acho que não sou eu que tenho cara de vagabunda.
Hyunjin estava pronto para ir até Yuna e cumprir todas as ameaças, mas Christopher foi rápido ao puxar seu braço, mantendo-o no lugar.
— Para de cair na pilha dela, Hyun. Fica numa boa — ele disse, e Hyunjin se soltou, sentando novamente.
— Você só tem papo, Hyunjin. Na hora de fazer, torce pra alguém te segurar — ela disse. — Isso tudo é porque sabe que o Seunghyun te protege. Queria ver se você fosse igual a todos aqui, se teria essa marra toda.
— Acha que eu não sou capaz, Yuna? Eu passo a noite inteira na rua enquanto vocês ficam aqui dentro. Eu já mandei um cara de dois metros pro hospital, sabia?. Melhor nem querer saber o que eu faria com uma puta como você — mostrou o dedo do meio pra ela.
Yuna gargalhou, levantando-se da banqueta.
— Uma princesa com bons modos — disse ela, ajeitando a saia no corpo. — Ainda bem que você não é pago pra falar, senão, meu bem…
— Hyunjin! — Christopher segurou Hyunjin novamente, mas Yuna saiu de perto, balançando os cabelos loiros.
— Eu vou matar essa vadia de merda! — Hyunjin esbravejou, passando as mãos pelos cabelos pretos. — Eu tava aqui quieto e ela veio me provocar, você viu!
— Eu vi, Hyun, mas relaxa. Não vale a pena se estressar.
— Ah, mas se ela mexer comigo de novo…
— Você não vai fazer nada.
— Paga pra ver?
— Não, e nem pense nisso. Vai, toma seu drink e esfria a cabeça — Christopher empurrou o copo com o drink de morango para Hyunjin.
Pegou a bebida e tomou tudo em vários goles seguidos, sem pausa para respirar. Christopher já estava acostumado ao jeito agitado de Hyunjin, e, por mais que ele fosse legal, às vezes, ele se assustava.
Hyunjin deixou o copo de vidro cair no balcão e arrotou para dentro.
— O Jiyong veio hoje?
Christopher suspirou, colocando um pano de prato sobre o ombro.
— É sério?
— Não vem pagar de certinho que eu sei que você também gosta — revirou os olhos, impaciente.
— É, mas não como você. Essas coisas vão te foder um dia, Hyunjin. Eu achei que fosse esperto.
— Eu sou esperto.
— Não é o que parece. Você sabe o que essa merda faz com você.
— Ela não faz nada comigo. Eu fico acordado, só isso.
— Só isso? — deu uma risada amarga, negando com a cabeça. — Se é pra ficar acordado, toma café, energético, qualquer coisa, não precisa encher o rabo de coca.
— Ele veio ou não? — Hyunjin tornou a perguntar, ignorando a pequena lição de moral.
Christopher deu-se por vencido, parecendo perceber que não conseguiria convencer Hyunjin do contrário.
— Ele está nos fundos.
— Tá — disse Hyunjin, levantando-se da banqueta e dando um selinho nos lábios grossos. — Te vejo depois, gostoso. No seu carro?
— Para — Christopher riu de lado. — Eu não tenho grana hoje.
— Ah, sério? — Hyunjin fez um bico, lambendo-o em seguida. — E se você me pagar depois?
— Aí o Seunghyun corta meu pau fora.
— Porra — bufou. — Você é o único que faz gostoso.
— E o único que vive sem grana, então vai logo.
Hyunjin bufou e rolou os olhos. Olhou para Christopher de lado e deu um sorrisinho.
— Beleza, eu tô indo.
— Se cuida, Hyun — ele disse, segurando na mão de Hyunjin.
— Pode deixar.
Hyunjin deu uma piscadinha e saiu em direção aos fundos da boate, passando pelas cortinas de veludo surradas que escondiam o corredor dos funcionários. A música abafada parecia martelar dentro do crânio, e o cheiro do ambiente começava a mudar: o perfume doce e sintético dos frequentadores dava lugar ao suor velho, cigarro barato e mofo das paredes úmidas.
Mood: Geni e o Zepelim - Chico Buarque
No fim do corredor, havia um aglomerado de cadeiras de plástico encardidas e uma copa pequena, com uma pia enferrujada e um micro-ondas quebrado. Hyunjin empurrou a porta com a ponta dos dedos, e lá estava ele: Kwon Jiyong. Ele estava de pé, encostado na parede de azulejos quebrados, o casaco grosso demais para seu corpo esguio e os olhos fundos encarando Hyunjin com um sorrisinho cínico.
— Pensei que não fosse mais te ver.
Hyunjin enfiou as mãos nos bolsos da calça, o couro fazendo um som pegajoso quando ele se moveu. Aproximou-se devagar, com um andar preguiçoso, como se quisesse fingir que ainda tinha o controle da situação.
— Por onde andou? Tava comprando de outro?
— Seunghyun tava arrumando pra mim — Hyunjin respondeu, empurrando a língua no céu da boca. — Você tem?
— Quanto você quer?
— O suficiente pra essa noite.
— E quanto é suficiente pra você?
— Jiyong, só me dá essa merda logo — disse, impaciente, agarrando o braço dele e puxando-o dos bolsos do casaco.
Alguns pacotinhos transparentes caíram no chão encardido. Hyunjin se abaixou na mesma hora, seus dedos trêmulos se fechando em um deles. Jiyong soltou uma risadinha áspera, expondo dentes amarelos e gengivas inchadas.
— Você deve precisar de um monte desses pra conseguir trepar com esses velhos.
Hyunjin se ergueu devagar, segurando firme o pequeno pacote.
— Não é da sua conta. Depois a gente acerta.
— Ô, pode ir parando — Jiyong estendeu o braço, bloqueando a passagem. — Você já tá me devendo, esqueceu?
— O Seunghyun disse que ia te pagar.
— Mas não pagou. Não posso deixar que você pegue mais mercadoria sem pagar o que me deve.
— Jiyong, qual é…
— Grana, boneca.
— Eu não tenho grana. Você sabe que eu não vejo a cor do dinheiro que eu ganho, então…
— Tenho certeza de que vai dar um jeito de pagar. Você é bem criativo.
Hyunjin olhou para o chão manchado de café seco e fluídos que ele preferia não identificar. Depois, olhou para o pacotinho na mão, pensando se valia a pena. Ele já sabia a resposta e odiava até onde ele iria para esfregar o nariz com pó nos dedos.
— O que você quer? — perguntou, a voz baixa, já derrotado.
— Não é como se não soubesse.
— Eu tenho cliente daqui a pouco e…
— Não vamos demorar — Jiyong disse, já sentando em uma das cadeiras encardidas.
Hyunjin hesitou. Sentiu o estômago se revirar, o suor frio escorrer pela nuca, mas a vontade vinha como uma onda que ameaçava arrastá-lo se não se agarrasse a alguma coisa.
Colocou o pacote no bolso da calça e se aproximou. O zíper da jaqueta de Jiyong estava meio aberto, revelando o peito magro e ossudo por baixo de uma camisa furada. Ele passou a mão pela barriga parcialmente descoberta de Hyunjin.
— Ajoelha.
Hyunjin engoliu em seco. As pernas fraquejaram quando se ajoelhou no chão, e o cheiro de desinfetante barato — quase o fazia lembrar do cheiro daquela delegacia — misturado à nicotina enchia suas narinas. Aquilo era pior do que se vender por dinheiro, era pior do que qualquer coisa.
Jiyong abriu o zíper e deixou a calça cair até o meio das coxas. Hyunjin fechou os olhos por um segundo, tentando dissociar, levar a mente à qualquer lugar, assim como fazia todas as noites com seus clientes. Mordeu os próprios lábios e se aproximou, sentindo o cheiro azedo. Segurou a base daquela coisa fálica e sebosa com as mãos, as unhas mal pintadas, uma delas quebrada.
Hyunjin queria vomitar o drink de morango que bebeu há poucos minutos, mas não podia. Ele precisava.
Os gemidos baixos de Jiyong se misturaram aos sons abafados da música vinda da pista de dança, e da saliva borbulhando na boca de Hyunjin. Os joelhos doíam no chão duro, os olhos lacrimejavam, a lâmina na gengiva estava machucando e ele não podia sequer respirar pelo nariz, porque o cheiro e o gosto ficavam mais fortes.
O ritmo aumentou, ficando mais áspero e mais agressivo. Jiyong segurou o cabelo dele, puxando devagar, enquanto Hyunjin se forçava para não vomitar. Foi então que a porta rangeu de repente e uma voz grave e furiosa cortou o ambiente abafado.
Deus sabia que Hyunjin odiava Seunghyun com toda sua alma, mas, naquele instante, agradeceu aos céus por ele existir.
— O que pensa que está fazendo?
Hyunjin se levantou em um pulo, o rosto vermelho, os olhos marejados e a boca suja de saliva. As pernas bambearam e ele não teve coragem de olhar para Seunghyun. Tudo o que fez foi recuar dois passos, como um bichinho acuado, e limpar o canto da boca.
Jiyong, com o zíper ainda aberto e o pau para fora, revirou os olhos e se encostou na cadeira, sem pressa nenhuma de se recompor.
— Qual é, grandão… Tava tudo resolvido por aqui..
Seunghyun o ignorou completamente. Seus olhos estavam cravados em Hyunjin e, por um segundo, o silêncio que pairou foi mais ensurdecedor do que qualquer batida de música eletrônica.
— Hyunjin, o que é isso? — ele perguntou. Hyunjin engoliu em seco, olhando para Jiyong na cadeira. — Anda, porra! Me responde.
— E-Eu… Eu só estava…
— Você não aguenta passar uma hora sem ficar de joelhos pra alguém, sua puta de merda? — perguntou, e Hyunjin abaixou os olhos. — Ahn?! — O grito cortou seus ouvidos. Hyunjin apertou os olhos com força, encolhendo os ombros, diminuindo-se perante o terror que sentia. — Ainda mais pra porra desse viciado?!
— Seunghyun, p-por favor, eu… — Hyunjin tentou dizer. — Eu só precisava de um pouco de coca. Eu não tinha dinheiro, porque você não me deu nada esses dias, e eu… Eu só… Eu precisava, eu…
— Cala a boca — ele disse, massageando as têmporas. — Eu te disse pra ficar no bar, e o que você faz? Me desobedece. De novo, Hyunjin. Quantas vezes você já fez isso?
— Me desculpa — pediu, baixinho, e Seunghyun passou as mãos pelos cabelos, controlando-se. — Seunghyun, por favor, não fica bravo comigo, eu…
— Eu disse pra calar a boca — ergueu o olhar, firme.
Hyunjin engoliu o choro que queria eclodir e se calou. Olhou para Jiyong, vendo que ele não estava dando a mínima para o que estava acontecendo.
— Anda. Seu cliente chegou.
Hyunjin assentiu. Seunghyun virou as costas, sendo seguido por ele. Eles caminharam até uma escada que ficava ao lado da pequena copa, escura e estreita, e Hyunjin teve medo de pisar em falso, rolar degraus abaixo e morrer com o pescoço quebrado, embora aquele cenário parecesse, brevemente, tentador.
Chegaram ao segundo andar, um lugar onde Hyunjin já esteve algumas vezes. Era um corredor longo, com diversas portas pintadas de vermelho, com cerâmica branca no chão e paredes de cor de marfim. Detrás de cada porta, um quarto bem montado com tudo que precisavam para passar uma noite maravilhosa.
Pararam de frente para uma das últimas portas do corredor. Hyunjin, ainda com as mãos trêmulas de medo, tentou abrir a maçaneta, mas Seunghyun segurou em seu braço.
— Não tão rápido assim.
Hyunjin o encarou.
Seunghyun apertou suas bochechas com força, forçando-o a partir os lábios. Com a mão livre, Seunghyun enfiou dois dedos dentro da boca de Hyunjin, procurando a lâmina que ele escondia ali. Ela saiu tingida de sangue, a gengiva cortada desde quando estava chupando Jiyong. Seunghyun a jogou no chão e pisou em cima.
— Se livra de tudo, anda — ele disse e estendeu a mão, abrindo e fechando os dedos.
Hyunjin respirou entrecortado, as palavras cruzando sua mente e deixando seu corpo inteiro em um estado de negação.
Se livrar de tudo significava entrar desprotegido naquele quarto.
— Por favor — ele tentou dizer, choramingando. — Eu… Eu já pedi desc-
— Eu não ligo pra porra de desculpas. Eu mandei você se livrar de tudo.
— M-Mas e se ele…
— Ele vai te comer, não te matar. Agora me dá logo isso.
Hyunjin, derrotado, entregou tudo, desde o canivete no cós da calça até a faquinha na bota. O gosto ferroso de sangue na boca amargou.
Então, ficou desarmado, desprotegido, completamente vulnerável.
— Só uma última coisa — Seunghyun disse quando já estava com todas as armas em mãos.
Hyunjin esperou que ele falasse qualquer coisa, mas as palavras não vieram. Ao invés de alguma humilhação verbal — todos os sinônimos para puta suja do caralho que ele pudesse lembrar —, um som estalado ecoou pelo corredor. Hyunjin sentiu a ardência do tapa no rosto, a bochecha formigando na mesma hora.
Os cabelos ficaram desgrenhados, e a marca dos dedos ásperos de Seunghyun chamaria mais atenção do que sua maquiagem.
— Pode entrar agora — Seunghyun respirou aliviado, como se o tapa tivesse liberado sua raiva. — Comporte-se, ou então eu vou te fazer lembrar que não é nada bom me irritar.
Hyunjin segurou o choro que queria vir pela garganta como lava em um vulcão. Passou os dedos pelos cabelos e voltou a girar a maçaneta, dessa vez, entrando no quarto.
O som das botas de Hyunjin fez a pessoa sentada na cama encará-lo. Quando a encarou de volta, Hyunjin franziu o cenho. Olhou para trás, onde havia apenas a porta fechada, buscando alguma resposta, ou que Seunghyun magicamente aparecesse para dar uma explicação.
— Boa noite — disse o homem. Sua voz era grossa e profunda.
Ele usava uma camisa preta de botões, calça e sapatos sociais. Seus cabelos eram cheios e penteados elegantemente, bem longe de ser um velhote como Christopher disse. Um relógio grande adornava seu pulso, e um sorriso, os seus lábios.
Era um homem bonito, mas Hyunjin nunca, em toda sua vida, achou que um dia iria para a cama com ele.
— Prefeito Jo?
Mood: Cálice - Indireto, Pitty
— Insung — ele disse, aproximando-se. — Só precisamos de formalidades em algumas coisas hoje.
— O quê… O que você…
— Shhh — Insung colocou um dedo sobre os lábios de Hyunjin, impedindo-o de falar. — Seunghyun tinha razão, você é uma pérola — tocou nos cabelos de Hyunjin e, em seguida, esfregou o polegar sobre a bochecha marcada. — O que houve?
Hyunjin virou o rosto para o lado, ainda encarando o prefeito.
— Nada.
— Bom, tudo bem — deu de ombros, estalando a língua no céu da boca. — Eu não posso passar a noite fora. Você sabe, eu sou um homem de respeito, então quero que faça o pouco tempo que temos valer a pena, certo?
— Tá.
— Sim, senhor — corrigiu, levantando o queixo.
Hyunjin engoliu o acúmulo de saliva em sua boca.
— Sim, senhor.
— Ótimo.
Insung caminhou até a cama, já abrindo os botões da camisa. Sentou com as pernas para fora, entreabertas. Com um dedo, chamou Hyunjin até lá.
— Dê uma volta.
Hyunjin girou em seu próprio eixo, o rosto fechado, odiando cada segundo daquele momento. Normalmente, ele tentava agradar seus clientes. Sorria, dizia coisas safadas para aumentar o tesão deles para que pudessem gozar logo, mas não conseguia, não naquela noite.
Quando voltou a ficar de frente para o prefeito, encontrou um sorriso nos lábios finos.
— Delicioso — disse ele, massageando o pau já duro por cima da calça. — Tire a parte de cima.
Hyunjin obedeceu. Mecanicamente, livrou-se do top, deixando o peito de fora. O prefeito mordeu os lábios e apalpou com mais força o próprio pau.
Hyunjin contou quantas vezes quis vomitar naquela noite. Primeiro, quando olhou para Jiyong, depois, quando chupou o pau dele, e agora, quando via as expressões perversas do prefeito.
— Agora, ajoelhe aqui — apontou para o meio de suas pernas, e Hyunjin ficou de joelhos mais uma vez naquele dia.
Em outras ocasiões, não estaria tão enojado, o hábito mais forte que os pudores. Eram raras as vezes em que Hyunjin fazia programas com alguém de boa aparência e que lhe desse algum tesão, geralmente, apenas quando Christopher o procurava no final do expediente e eles transavam no carro dele. Era bom, porque Christopher era gostoso e sabia como foder bem. No entanto, quando terminavam, ele ainda recebia notas amassadas, cumprindo a regra de Seunghyun de não transar de graça, que o lembravam de que aquilo não era prazer, mas trabalho.
Mesmo assim, embora o prefeito Insung fosse um homem de boa aparência, Hyunjin sabia quem ele fingia ser fora daquele quarto.
“Não há crimes em Jinhae”, disse ele em um comício para a cidade toda.
“Nossa cidade está limpa de infecções causadas por invertidos”.
“Conseguimos acabar com qualquer ponto de drogas que pudesse existir”.
Mas agora, ele estava ali, abrindo o zíper para Hyunjin, um invertido, que estava sujeito a infecções, em um ponto de prostituição e drogas. O quão engraçado era que ele mesmo estivesse financiando aquilo?
E Hyunjin sentiu mais nojo ainda quando Insung colocou o pau para fora, masturbando-se descaradamente na sua frente. Seu estômago embrulhou e sentiu que os biscoitos que tinha comido antes de sair de casa estavam prestes a voltar.
Hyunjin viu a mesma coisa estranha que tinha encontrado na buceta daquela velha que tinha mencionado mais cedo para Seunghyun. Ele não sabia o nome daquilo, nem mesmo se era contagioso — mesmo se não fosse, Hyunjin não gostaria de colocar a boca ali. Pareciam verrugas inflamadas espalhadas pelo pau, concentradas ao redor da glande. — O que está esperando? — Insun perguntou.
Sua garganta queimou, suco gástrico querendo voltar, e Hyunjin engoliu o que poderia ser o primeiro sinal real de vômito.
— A camisinha.
Insung negou, pegando na sua nuca.
— Não precisa.
— Mas…
— Eu estou pagando uma fortuna pra aquele filho da puta do Seunghyun, muito mais do que você cobra pra te comerem sem camisinha.
Hyunjin, que estava evitando olhar para o pau dele, levantou-se, encarando-o de cima.
— Não vou fazer nada com você se não colocar camisinha.
Insung levantou, sério.
— Do que tem medo? Você tem AIDS, por acaso?
Hyunjin quase soltou uma risada amarga. Ele?
— Não tenho AIDS, muito menos essas coisas estranhas e nojentas no pau, e pretendo continuar assim.
Ele poderia levar uma surra de Seunghyun depois disso, poderia ficar sem comer por uma semana, poderia ser chamado de todas as coisas mais horripilantes do mundo, mas não colocaria sua boca naquela nojeira. Chupar o pau fedorento de Jiyong era uma coisa; ele só não tomava muitos banhos, mas um pau doente era outra bem diferente.
— O que disse? — Insung perguntou.
— Coloca a camisinha — Hyunjin disse novamente, lábios trêmulos.
— Uma putinha como você deve ter colocado a boca em coisas muito piores. Não venha querer fazer cena pra mim.
— Quer saber de uma coisa? Vai se foder — Hyunjin bradou, tentando pegar o top no chão, mas Insung prendeu seu braço.
— Deita na cama.
— Não.
O tom de Hyunjin foi firme, mas o tremor em sua voz denunciava o medo que começava a rasgar suas entranhas. Insung estreitou os olhos, como se não tivesse entendido.
— O que disse?
— Eu disse não — repetiu, engolindo em seco. — Eu não vou deitar nessa cama com você, seu porco.
O silêncio que se formou foi pesado, mas foi cortado por uma respiração ainda mais densa.
— Você acha que pode falar assim comigo? — Insung perguntou com um sorriso frio nos lábios. — Eu sou o prefeito dessa cidade, sua puta. Eu sou a porra da lei.
— Não, você é só mais um velho nojento com um pau podre, escondido atrás de uma gravata — Hyunjin cuspiu, sentindo as lágrimas de asco arderem nos olhos.
Insung ergueu o braço, a palma da mão se chocando na mesma bochecha que Seunghyun bateu minutos atrás.
Olhos arregalados, a bochecha formigando, boca entreaberta. Hyunjin sentiu a garganta fechar e as pernas virarem pudim.
— Eu devia te mandar de volta e dizer o tipo de vagabunda que você é — disse o prefeito. — Mas o que esperar de uma bichinha?
Hyunjin olhou para ele, ainda paralisado.
— Mas eu acho que eu posso me divertir muito hoje.
Mais um tapa no mesmo lado. E outro. E outro. O som ecoava pelo quarto, estalos secos e agudos de pele sendo maltratada.
Quando Hyunjin viu o vulto fantasmagórico da mão de Insung se erguendo novamente, ele decidiu que já tinha apanhado o suficiente. Torceu o braço dele em um reflexo de sobrevivência e o empurrou, acertando um chute direto nas suas bolas descobertas. Insung caiu na cama, gemendo de dor, segurando as partes atingidas.
Hyunjin não perdeu mais tempo, correndo até a porta. Girou a maçaneta como se sua vida dependesse disso (e talvez dependesse) e saiu.
Olhou para o corredor e não viu ninguém ali. Atrás dele, Insung levantou da cama com dificuldade enquanto murmurava que Hyunjin estava morto.
Hyunjin aproveitou a caminhada lenta e dolorosa do prefeito para arrancar as botas dos pés, lamentando perder outro par de sapatos. Sem os saltos para atrapalhar, Hyunjin correu pelo corredor, escutando Insung amaldiçoá-lo.
“Você me paga, sua puta suja!”
“Isso não vai ficar assim!”
“Vou destruir a sua vidinha de merda!”
Hyunjin conseguiu ouvir algumas daquelas promessas enfurecidas, e não teve tempo para revidar. Desceu as escadas e quase tropeçou nos degraus pela falta de iluminação. Passou pelos fundos e olhou para ambos os lados, assustado, percebendo que Jiyong e Seunghyun não estavam mais ali.
Avistou a porta de saída dos fundos e correu, já ouvindo os passos rastejantes de Insung, que, provavelmente, estava ansioso para dar a ele um corretivo. Hyunjin correu até a porta e deu graças a Deus quando a encontrou aberta.
Deu de cara com o beco frio e escuro, que tinha apenas um latão de lixo e paredes pichadas. Ele apressou ainda mais o passo até cruzar o beco e chegar à estrada. Conseguia ouvir a música saindo de dentro da boate e começou a rezar para qualquer deus para que Seunghyun poupasse sua vida quando descobrisse que ele tinha chutado as bolas do prefeito.
Hyunjin continuou correndo, a boca seca e as panturrilhas doloridas. Estava tonto e enjoado, mal tinha comido durante o dia. As lembranças enevoadas do pau nojento de Insung e o mero pensamento de que ele teria que chupar aquilo foram o gatilho para Hyunjin apoiar as mãos nos joelhos e vomitar a pouca comida que tinha em seu estômago.
Ele colocou tudo pra fora, a garganta ardendo e aquela tontura que sempre acompanhava o vômito. Tossiu em meio aos grunhidos que vinham do fundo do estômago e apertou a barriga coberta apenas por parte da meia arrastão. Sujou o asfalto com suco gástrico e pedaços de coisas que ele não sabia o que eram, provavelmente macarrão instantâneo, bolachas de água e sal sabor manteiga, sangue da gengiva e restos de esperma de Seunghyun.
Duas lágrimas escorreram do seu rosto e ele as limpou depressa, olhando para trás. Insung saia do beco. Hyunjin arregalou os olhos e, mesmo tonto, quase um corpo funcionando no modo automático, continuou correndo.
Via imagens duplicadas e sua cabeça girava. O corpo estava fraco, exausto, magro, necessitando de vitaminas, de comida boa, de cuidado.
Hyunjin estava prestes a desmaiar, mas não podia parar. Se Insung o pegasse, ele o levaria para Seunghyun, e então Hyunjin terminaria a noite não apenas arrebentado, como também teria de olhar mais uma vez para o pau nojento do prefeito, porque Seunhyun o faria entender que ele não tinha querer nenhum naquela vida de merda.
Hyunjin continuou correndo pela estrada, até que seu corpo bateu em algo duro. Quase caiu para trás e se rendeu à destruição iminente. Com a visão turva, enxergou que não era algo, mas sim, alguém.
A pessoa o segurou firme e não o deixou cair. Hyunjin só conseguiu saber de quem se tratava quando ouviu a voz grave e rouca.
— Hyunjin? Hyunjin, o que aconteceu?!
Era Felix. Era a porra daquele policialzinho intrometido salvando a sua vida mais uma vez.
Hyunjin tentou virar o rosto e olhar para trás, para ver se o prefeito ainda o seguia, mas não conseguiu ver nada, já que tudo girava. Ainda assim, o medo permanecia colado em sua pele, como se Insung ainda estivesse ali, respirando em sua nuca.
— Eu… — murmurou, arrastando as palavras, o corpo inteiro apoiado no de Felix.
— Hyunjin, caralho! Pelo amor de Deus, o que fizeram com você?
Mas Hyunjin não respondeu. Seus olhos reviraram, o corpo cedeu, e ele desmaiou ali mesmo, nos braços do policial.
Felix se desesperou, segurando o corpo surpreendentemente pesado devido à altura. Os braços de Hyunjin estavam frios, os pés descalços e a pele marcada. Havia uma mancha gosmenta de algo que parecia vômito em seu queixo e algumas marcas roxas no pescoço.
— Não… Não, mas que porra! Hyunjin! — Fekix apertou o corpo desacordado com mais força, tentando manter a calma, mas o coração batia como um tambor dentro do peito.
Não esperava encontrar Hyunjin daquela forma quando saiu de casa para observar a boate de Seunghyun pelo quinto dia seguido. Tudo que queria era ver se havia algum tipo de movimentação suspeita no ambiente após um relatório detalhado de Hayun, que ela finalmente lembrou de entregar no meio da semana anterior. Mas agora, com Hyunjin desmaiado em seus braços, não sabia o que fazer.
— Merda, Hyunjin. Merda! — gritou enquanto o arrastava com dificuldade até o carro velho estacionado ali perto, que, por um milagre (e muita fita adesiva) tinha voltado a funcionar.
Jogou o corpo mole no banco do carona, e o rosto de Hyunjin tombou para o lado, inconsciente. Felix correu até o outro lado, pulou para o banco do motorista, bateu a porta com força e ficou um segundo parado, encarando-o.
— Puta que pariu. Merda. Caralho — bateu a testa contra o volante, uma, duas, três vezes, enquanto seu peito ardia. — O que eu faço com você, Hyunjin? Que porra eu faço com você?
Hyunjin estava com os cabelos grudados de suor e sem camisa. Felix olhou aquilo, junto com todo o resto, e sentiu um nó no estômago. Não era só raiva, era um sentimento de impotência que não desgrudava do seu cérebro. Era um ódio pungente de tudo — daquela cidade, daquele sistema, da porra de Seunghyun e até mesmo de Hyunjin, que não queria ser ajudado.
Quando estava prestes a ligar o carro, ouviu um som fraco.
— Hm…
Olhou para o lado e encontrou os olhos de Hyunjin se abrindo lentamente, pesados e sem brilho, apagados.
— Hyunjin? Ei! Você está me ouvindo? Como você está? — perguntou, aliviado, enquanto ele tentava ajustar a postura no banco.
— O quê…? Pra onde… você tá me… levando?
— Pro hospital. Você desmaiou.
— Não. Não… hospital… não — balançou a cabeça várias vezes, os olhos apáticos. — Não… Não… por favor…
Felix estendeu a mão imediatamente, tocando de leve o braço dele.
— Tudo bem! Tudo bem! — disse, tentando acalmá-lo. — Não vamos pro hospital, então. Eu vou te levar pra minha casa, tá bom?
Hyunjin o encarou, os olhos ainda perdidos, e falou baixo, quase em um sussurro:
— Eu… eu não quero transar… Dói… Meu estômago dói. Eu não quero… Eu não quero. Não… Não faz isso comigo assim…
Felix congelou, o coração afundando no peito.
— Eu não vou fazer nada com você — respondeu com a voz trêmula, sentindo um aperto no peito que quase o sufocava. — Eu só quero te ajudar.
Então, Hyunjin fechou os olhos de novo, sua cabeça latejando como o inferno. Sua barriga, embora embrulhada, roncava de fome. Não sabia onde estava com a cabeça quando passou o dia inteiro sem comer direito, e o enjoo de estar com aquele homem só piorou tudo.
Sentia o balançar do automóvel pelas estradas e então, minutos perdidos no tempo depois, o carro parou.
— Hyunjin — Felix chamou. Hyunjin o olhou. — Vem, eu te ajudo a caminhar.
Ele deu a volta no carro, abrindo a porta do carona. Passou o braço de Hyunjin por cima dos seus ombros e o ajudou a ficar de pé.
Hyunjin olhou ainda um pouco tonto para onde estava e viu o estacionamento de um prédio. Caminharam até um elevador velho, e Felix apertou alguns botões, programando seu andar.
A consciência de Hyunjin começava a melhorar aos poucos, e não demorou para chegarem ao apartamento de Felix. Abriu a porta e o ajudou a entrar.
Felix soltou o braço de Hyunjin, deixando-o de pé por conta própria, percebendo que ele já conseguia sustentar o próprio corpo. Acendeu a luz e trancou a porta, olhando para ele, que fixou os olhos em cada pedaço do apartamento.
— Hyunjin — Felix chamou. — Algum problema?
Hyunjin franziu o cenho, olhos indagativos e nervosos.
— Por que me trouxe aqui?
— Eu precisava te tirar de lá. Você estava…
— Eu não posso ficar aqui — disse, interrompendo a explicação de Felix. — Eu vou embora.
— Não — Felix o impediu, parando na sua frente. — Você está fraco, não pode sair assim.
— Você não entende, eu não posso… Não posso ficar na sua casa, na casa de um policial — passou a mão nos cabelos bagunçados e pensou no que seria dele se Seunghyun descobrisse que ele estava na casa de alguém como ele.
Além de ter esmagado as bolas do prefeito, estava descumprindo uma das piores regras que eles tinham. Hyunjin estaria morto antes do dia amanhecer se Seunghyun sequer desconfiasse do seu paradeiro. Não era só a casa de um policial, era a casa daquele policial.
— Hyunjin, olha pra mim — disse Felix. Hyunjin o olhou. — Eu vou te ajudar. Vou te dar comida e uma roupa quente. — Hyunjin olhou para o próprio corpo e sentiu vergonha do próprio estado. — Depois, eu te deixo ir. Além disso, preciso conversar sobre algo com você.
— Eu não posso…
Felix balançou a cabeça e prensou os olhos.
— Só por uma hora. Você precisa se recuperar antes de voltar para a rua.
Hyunjin ficou em silêncio por um momento, o estômago ainda embrulhado. A casa do policial não era grande e estava muito bagunçada, com tigelas vazias e copos sobre a mesinha de centro, maços de cigarro pelo chão e muita poeira.
Hyunjin odiava casas sujas, e ver aquilo quase o fez pedir uma vassoura e um pano para poder limpá-la, mas estava fraco e com medo demais para fazer qualquer coisa.
Felix assentiu quando viu Hyunjin ficar em silêncio, confirmando que ele aceitaria a ajuda — ou apenas porque estava sem forças para falar. Correu até o sofá cheio de almofadas e um amontoado de cobertores que, muitas vezes, servia como sua cama, já que pegava no sono ali mesmo enquanto assistia ao telejornal. Retirou tudo que estava ali e jogou no outro sofá, deixando o lugar livre para Hyunjin sentar.
— Vem, senta aqui.
Hyunjin o encarou um instante e caminhou até lá, ainda desconfiado. Sentou e juntou as mãos entre as pernas.
— Você se sente melhor? Eu acho que sua pressão deve ter caído.
— Estou bem — ele disse.
Embora sua visão estivesse mais nítida e seu estômago, aos poucos, estivesse voltando para o lugar, o frio na espinha causado pelo medo era o pior de tudo.
— Bom, eu não sei o que é bom para comer depois de um episódio de pressão baixa, mas… — Felix colocou as mãos na cintura, pensando o que poderia fazer para ajudar o garoto. — Talvez um copo de leite… Um suco? — ponderou. — Eu tenho suco de laranja na geladeira, você gosta?
Hyunjin assentiu lentamente, a boca reclamando de sede.
— Tudo bem, eu já volto.
Felix foi rápido até a cozinha, abrindo a geladeira quase vazia e pegando uma garrafa de suco de laranja industrializado. Gostaria de ter algo mais forte para oferecer, como um mingau de aveia, arroz, kimbap ou algo assim, mas estava precisando fazer as compras do mês e a correria da delegacia tinha feito com que ele esquecesse que precisava manter a geladeira cheia com outras coisas além de cerveja.
Encheu um copo grande com suco de laranja e vasculhou no armário algo que Hyunjin poderia mastigar, encontrando um pacotinho sobrevivente de biscoitos de amido de milho que tinha açúcar. O corpo dele deve estar precisando de glicose, pensou. Também tirou de um saquinho plástico um lenço macio e o umedeceu na pia.
Quando voltou à sala, encontrou Hyunjin do mesmo jeito que tinha o deixado, mordendo o dedo mindinho e encarando sua televisão.
— Quanto custou? — perguntou Hyunjin, apontando para o aparelho.
— O quê? A televisão? — Ele balançou a cabeça. — Ah, eu não sei, ganhei dos meus pais de natal no ano passado. Aqui, come. Vai se sentir melhor.
Felix entregou os biscoitos e o suco de laranja para Hyunjin. O policial amassou o lencinho em mãos e, antes de Hyunjin levar o suco aos lábios, ele passou lenço pelo queixo sujo, limpando-o antes que Hyunjin pudesse protestar.
— Você vomitou? — perguntou. Hyunjin olhou para baixo, uma confirmação muda. — O que houve, Hyunjin?
Ele tomou um gole generoso de suco, sentindo a sede passar. Depois, comeu dois biscoitos de uma vez. Ainda mastigando, encarou Felix e o encontrou com um olhar preocupado.
— Você parecia estar fugindo de alguma coisa… De alguém.
— Eu tenho clientes péssimos, achei que já soubesse — ele disse. — Não era nada de mais, eu só tive que fugir de um cara que tentou me enforcar.
— Enforcar?
— É, no sexo. Eu odeio essa merda — mentiu, sem olhar nos olhos do policial.
Felix assentiu, não sabendo se acreditava completamente nas palavras de Hyunjin. Ainda desconfiado, continuou o observando comer até que não sobrasse nada no copo e nem no pacote plástico de biscoitos. Recolheu os farelos e voltou à cozinha para buscar um copo com água. Hyunjin bebeu tudo de uma vez e já parecia bem melhor.
— Preciso te contar uma coisa — disse Felix, sentado na mesinha de centro de madeira, olhando para Hyunjin. — Encontrei o cara que tentou te machucar no beco.
Hyunjin franziu o cenho, e Felix respirou fundo para explicar. O olho dele já não estava mais tão roxo, Hyunjin percebeu, apenas pequenos pontos escuros lembrando o que aconteceu. Havia, apesar disso, uma pequena cicatriz no canto superior do lábio.
— Ontem, quando eu saí da delegacia, ele estava fumando do outro lado da rua, quase como se estivesse me observando. Eu o reconheci.
— E o que você fez? — Hyunjin perguntou, medo escorrendo na voz.
— Eu o abordei, e ele, estranhamente, não foi agressivo. Eu o levei até a delegacia e o interroguei. Não havia provas contra ele, nem a sua queixa, então Jeongin e Changbin não permitiram que eu o deixasse preso, mesmo eu insistindo como o inferno.
— Como sempre, a polícia ajudando a população — Hyunjin ironizou, e então Felix percebeu que ele estava recuperado.
— Preciso que deponha contra ele. Assim, teremos uma acusação formal.
— Eu não vou depor contra ninguém — disse Hyunjin.
— Hyunjin, se você fizer isso, eu posso colocar aquele cara na cadeia. Eu posso te ajudar!
— Você disse que não ia mais me ajudar, então por que está insistindo nisso?! — Hyunjin perguntou dois tons mais altos. — Por que?!
— Eu não sei — disse, abaixando os olhos.
— Eu sei — respondeu Hyunjin. — Você quer que as pessoas te vejam como um heroi, como alguém que vai salvar a cidade de estupradores e de padrinhos malvados.
— É isso que acha?
— Eu tenho certeza.
— Você está enganado. Mesmo que eu tenha começado isso por uma ambição profissional, eu me vejo disposto a te ajudar de verdade se você quiser ajuda. Eu sei que você mente pra mim, Hyunjin. Sempre que nos encontramos, você mente, e mente, e mente. Tudo que você faz é mentir.
— Você está louco.
— Estou? E o que fazia naquela boate? — Hyunjin partiu os lábios. — Viu? Eu sei da boate. Sei que acontecem coisas ilegais lá. Você sabe que se eu descobri da boate, eu vou descobrir sobre todo o resto, então por que não me conta de uma vez?
— Não tem nada pra contar. — Hyunjin ralhou. — Já se esqueceu sobre o que eu disse naquele beco? Você é burro e não pensa nas consequências de meter o bedelho onde não foi chamado.
— Então eu estou me metendo em algo que não devia? É isso que está dizendo?
Hyunjin riu sem humor, levantando-se do sofá.
— Você já cumpriu sua cota de caridade hoje.
— Não, Hyunjin — Felix ficou na sua frente, olhando-o cara a cara.
— Me deixa passar.
— Me deixa te ajudar — rebateu.
— Eu vou te dar outro soco — disse Hyunjin. — E vou garantir que seu olho fique roxo por muito mais tempo.
— E eu vou continuar tentando com um olho só.
— Me. Deixa. Passar.
— Não.
— Que droga, stalker! Eu estou tentando não te foder com toda essa merda! — gritou, exasperado.
Felix deu um passo para trás, percebendo que, mesmo sem pensar, Hyunjin havia dito tudo que ele precisava ouvir.
— Eu não vou te contar porra nenhuma, porque se eu abrir a boca, eu tô morto, entendeu?! Morto! E você também, caralho! É assim que você quer ser um herói?! Me fodendo e se fodendo junto?!
Felix ficou em silêncio e olhou para os pés descalços de Hyunjin, vendo-os sujos do pó preto que largava do asfalto. Subindo, encontrou a calça apertada de couro, a meia arrastão por baixo dela cobrindo sua cintura, e o peito, nu. No rosto, maquiagem borrada e uma marca vermelha na bochecha.
Olhos hostis escondendo tristeza.
Hyunjin engoliu um bolo que se formava na sua garganta e tentou passar mais uma vez, mas Felix segurou em sua mão sem força e sussurrou, em contraste com os gritos de Hyunjin.
— Vou te emprestar uma roupa quente. Você pode tomar um banho se quiser, mas, se você quiser ir agora, não vou te impedir.
Felix virou as costas, indo em direção ao quarto e torcendo para não ouvir a porta da frente bater. Quase um minuto depois, ele não tinha ouvido nada.
Dentro do quarto, separou uma calça moletom e uma camisa de mangas compridas que ajudaria Hyunjin com o frio que fazia naquela noite. Pegou uma escova de dentes fechada que tinha na gaveta e um sabonete novo, colocando tudo sobre a cama.
Então, ele ouviu passos e olhou para a porta do quarto, encontrando Hyunjin com o nariz vermelho e olhos marejados, os braços cruzados sobre o peito nu.
Ficando, após Felix deixá-lo ir.
— Stalker — ele chamou, encarando os próprios pés. — Também pode me dar uma toalha limpa?
Notes:
O que esperar agora? Os próximos capítulos serão frenéticos, eu diria, principalmente o capítulo 06. Eu falei no twitter e vou falar aqui. Essa fanfic é dividida em arcos. Nesse primeiro, que vai até o capítulo 06, é mais focado nesse reconhecimento dos personagens e no ponto de virada da fanfic. Do 07 ao 14 teremos um foco exclusivo para o desenvolvimento do relacionamento dos protagonistas. Do 14 ao 20... Bem. Vamos descobrir. Teorias? Deixe um comentário <3
Tag: #bemjin
TT: felixsaturnn
Chapter 5: Caldo Frio
Notes:
Olá! Os capítulos, agora, serão postados às sextas. Mudei porque eu sempre fico ocupada nos sábados, então fica difícil de postar :)
Muito obrigada peloscomentários e pelas interações no twitter. Eu gosto muito muito muito muito mesmo de ler o que vocês têm a dizer sobre bemjin, então não se acanhem de comentar, usar a tag #bemjin ou de falar comigo sobre a fic. Eu vou amar!
Chapter Text
Quando saiu de casa naquela noite, semelhante às outras quatro noites anteriores, Felix tinha a intenção presunçosa de coletar alguma informação que o levasse a dar passos mais atrevidos em sua investigação. Observaria a boate discreta de Seunghyun, espreitando como os detetives de séries de TV e filmes famosos. Seu papel era o de um policial astuto e inteligente — nem tanto. Depois, voltaria para casa com pelo menos algumas linhas escritas em sua caderneta pessoal, aquela na qual anotava os avanços, poucos, mas ainda ali.
No entanto, acabou não escrevendo nada nas linhas pautadas. Em vez disso, focou na leitura. Não na leitura de palavras, mas na leitura de Hyunjin. Leu aquele garoto de pés descalços, calça apertada e queixo sujo de vômito. Leu em seus olhos, que mais pareciam duas lamparinas, a melancolia da solidão e da tristeza.
Felix não era muito fã de literatura, nem mesmo quando sua mãe, professora, obrigava-o a ir à biblioteca pública para ouvir voluntárias contarem histórias bobas, mas Hwang Hyunjin, O Garoto Problema, como parecia estar estampado em sua testa, era um dos livros mais interessantes que já tinha aberto.
— Você ouviu? — Hyunjin perguntou. — Eu pedi uma toalha.
Felix balançou a cabeça, voltando à realidade. Ele fez que sim, surpreso por Hyunjin escolher ficar no seu apartamento, sob todos os perigos que já tinha listado e depois de ter recebido a chance de ir embora.
— Claro — Felix respondeu.
Ele caminhou até o guarda-roupa e abriu uma das portas.
Hyunjin não disse mais nada. Olhava para o chão e para os próprios pés, empoeirados e sujos de piche do asfalto. Os braços cobriam o peito nu, quase como uma armadura, com frio, e Felix presumiu que ele estivesse com vergonha da própria nudez.
— Toma — Felix entregou a toalha nas mãos dele, e só então Hyunjin o olhou. — O banheiro é ali — apontou para a porta ao lado do guarda-roupa, e Hyunjin assentiu. — Aqui na cama têm roupas, uma escova de dentes nova e um sabonete — completou com paciência, os olhos de Hyunjin parecendo menos mortos por um instante.
— Valeu — ele disse.
Felix permaneceu parado na frente de Hyunjin, que arqueou as sobrancelhas, como se quisesse dizer algo óbvio.
— Não vai sair? — ele indagou, desviando os olhos para a porta.
Mesmo fragilizado, Hyunjin ainda parecia ser o tipo de pessoa que não se esforçava para parecer gentil.
Felix assentiu várias vezes.
— Ah, claro, claro. Pode… pode ficar à vontade — completou, pigarreando um pouco antes de sair do quarto.
Fechou a porta, puxou o ar com força e passou as mãos pelos cabelos. Depois, correu até o telefone próximo ao sofá e discou os números da casa de Jisung, tão acostumado àquela ligação que sequer precisou consultar a agenda.
Felix bateu os pés diversas vezes no chão, impaciente, vez ou outra olhando para trás, tentando ouvir algum barulho que indicasse que algo estava errado, mas não ouviu nada. Quando Jisung atendeu, Felix, mordendo uma das falanges, soprou o alívio.
— O que você quer a essa hora? — Jisung resmungou do outro lado da linha. — Acordou o Minho.
— Ele agora dorme todos os dias na sua casa?
— É da sua conta?
— Escuta, eu me meti em uma fria — Felix disse, ainda olhando para a porta do quarto, enrolando o fio do telefone.
— O que você fez? Visitou um pneumologista e ele disse que seus pulmões estão pretos?
— Pode, por favor, apenas me ouvir?
Felix estalou a língua no céu da boca e conseguiu ouvir a voz de Minho ao longe, pedindo para que Jisung voltasse para a cama.
Diante do silêncio de Felix, Jisung disse:
— Tá, fala logo.
— O Hyunjin, aquele garoto que eu te falei… ele tá na minha casa — confessou de uma vez.
Jisung pareceu tão chocado que demorou para responder.
— Ele o quê?!
Felix afastou o telefone da orelha diante da voz esganiçada do melhor amigo.
— Você ficou maluco?! — ele continuou, ainda exasperado.
— Jisung, escuta…
— Você meteu um marginal na sua casa?! E se ele tiver armado? E se ele chamar os capangas dele, dizer onde você mora e eles te roubarem?!
— Roubar o quê, Jisung?! Eu não tenho porra nenhuma pra roubar — retrucou, quase tão desesperado quanto ele, e Jisung grunhiu.
— Sei lá, porra! Seus órgãos!
— Presta atenção: eu o encontrei quase desmaiando na rua quando fui investigar a boate daquele cara.
— Você ainda foi investigar sozinho?!
— Eu disse pra prestar atenção! — gritou, mas se conteve quando percebeu que poderia assustar Hyunjin.
Jisung, mesmo demonstrando um nítido desgosto com a série de escolhas negligentes do amigo, parou para ouvir, e Felix continuou.
— Ele desmaiou nos meus braços, Jisung, parecia que estava fugindo de alguém… Estava sujo de vômito, quase delirando, falando coisas que… gente não devia falar. Eu não pude fazer nada diferente.
— Não podia ter levado ele ao hospital? Por que foi levar ele justo pra sua casa?! Não tem noção do perigo que está correndo?
— Não consigo pensar em mim agora.
— Porra, Felix, você…
— Me dá um conselho de amigo.
— O meu único conselho é: manda ele embora ou então leva ele pra delegacia.
— Não posso! Merda, eu não posso mandá-lo embora. Ele está sozinho, sem nada, com fome, com medo e até mesmo sem os canivetes… Eu não fiz as compras do mês, só tem suco e água na geladeira e ele já comeu o último pacote de biscoito.
— Você disse canivetes?
Essa foi a única parte que Jisung pareceu se importar.
— Esquece os canivetes! Merda… Eu tô muito fodido — esfregou a testa, engolindo a sede pela garganta. — Alguma ideia útil?
— Meu Deus, você ia se foder muito se eu não existisse na sua vida — grunhiu, bufando em seguida. — Eu posso, sei lá, comprar umas coisas e ir deixar aí na sua casa, fazer uma sopa, algo que ajude a melhorar o estômago dele. Você disse que ele vomitou, né?
— Eu te amo, Jisung. Puta merda, eu te amo muito!
— Tá, não precisa exagerar. Eu chego em quarenta minutos e é bom que sua pistola esteja por perto e destravada.
Desligou na cara de Felix, fazendo-o ouvir apenas o tum tum tum da chamada encerrada.
Suspirou aliviado e deixou o telefone no gancho novamente, olhando ansioso para a porta. Foi até a TV e ligou apenas para que o silêncio não fosse mais tão alto, sentando-se no sofá.
Não pôde evitar balançar as pernas e esfregar as mãos. Sabia que Hyunjin não iria fugir pela pequena janela do banheiro, mas não tinha tanta certeza sobre ele roubar ou não alguma coisa. No entanto, não pôde evitar imaginar como ele estava se sentindo física e emocionalmente.
Ter Hyunjin desmaiado em seus braços foi uma das piores coisas que Felix já viu. Ele estava estilhaçado, e conseguia ver isso nos olhos acesos, porque o lia desde a madrugada em que chegou à delegacia com os lábios manchados de batom cor de sangue. Estranhamente, Felix sentia que, mesmo que Hyunjin se esforçasse para mantê-lo afastado, havia um ímã que sempre o puxava de volta.
E dentre as muitas coisas que não entendia ou gostava, o magnetismo estava incluso. Mesmo que não soubesse o que, de fato, Hyunjin tinha que o atraía, sabia que não poderia lutar contra, e que já estava envolvido o suficiente para não deixá-lo à mercê da própria sorte.
Minutos depois, a porta se abriu. Hyunjin saiu, os cabelos ainda úmidos, o nariz mais vermelho, assim como os olhos, e Felix presumiu que ele tinha chorado no banho. Estava vestindo as roupas que ele deixou separadas na cama. Não pôde negar que era estranho vê-lo com peças tão casuais, sem todo o couro e transparência e até mesmo da vulgaridade que eles carregavam.
A outra única vez que Felix o tinha visto daquele jeito foi no hospital, também com o rosto lavado, sem a maquiagem pesada. Daquele jeito, os olhos escuros de Hyunjin ficavam mais brilhantes, assim como as bochechas pareciam mais coradas como maçãs bem vermelhas, talvez pelo vapor do chuveiro quente.
Bonito, ele estava, e uma pessoa não devia ficar bonita daquele jeito depois de chorar seus pulmões para fora debaixo de um chuveiro quente.
Ainda pôde sentir o cheiro do sabonete e do xampu de mel vindo do banheiro. Notou que Hyunjin também tinha lavado os cabelos compridos. Era a primeira vez que sentia um cheiro quase inocente vindo dele, um cheiro que não era cigarro ou perfume barato.
— Eu já terminei — Hyunjin disse, mãos juntas na frente do corpo, os dedos trêmulos brincando com a barra da camiseta.
— Tudo bem. Hm… Um amigo vai vir aqui daqui a pouco preparar algo pra você comer, já que eu não sou muito bom na cozinha — Felix deu um sorriso nervoso, e Hyunjin franziu o cenho.
Ele deu dois passos para trás, olhos defensivos.
— Um amigo? Você disse pra alguém que eu estava aqui? Foi alguém da delegacia?! Foi aquele que tentou me revistar, não foi?! Se tiver chamado aquele desgraçado aqui, eu juro que mato você e ele!
— Não! Não, não foi ele e não foi ninguém da delegacia — respondeu, rápido, impedindo que Hyunjin deduzisse mais alguma coisa. — O nome dele é Jisung, ele é meu melhor amigo e eu confio nele de olhos fechados. Confia em mim, ele não vai te fazer mal.
— Eu não confio em ninguém — Hyunjin disse, cruzando os braços sobre o peito e olhando para o chão. — E não vou confiar em você só porque me deu um sabonete.
Felix assentiu e esfregou as mãos na calça.
— Certo. Eu não posso pedir sua confiança, mas posso pedir que acredite em mim, pelo menos por enquanto. Quando ele chegar, você vai comer alguma coisa. Aposto que está faminto.
Hyunjin deu de ombros, olhos vasculhando a sala.
— Mas eu já comi biscoitos.
— Biscoitos não enchem a barriga — Felix disse, olhos ainda fixos nele. — Você precisa comer comida de verdade.
Parecia irônico Felix estar tentando convencer Hyunjin a se alimentar direito, sendo que cereal matinal com leite e café preto, no dia anterior, foi seu próprio almoço. Mas Felix precisava que ele fizesse o que dizia, não o que fazia, ou então seriam duas pessoas com tendências a problemas pulmonares e a deficiências de vitaminas.
— Tá, tanto faz — Hyunjin deu de ombros, caminhando, ainda com os pés descalços, até o sofá.
Sentou ao lado de Felix, o estofado afundando ao seu lado.
Hyunjin deixou as mãos sobre o colo e batucou os dedos nas coxas, ansioso ou sem jeito. A televisão ainda estava ligada em um canal de telejornal qualquer, e ele fixou os olhos na tela.
— Por que você gosta tanto de ver isso? — Hyunjin perguntou de repente.
— Eu preciso saber das coisas que acontecem no nosso país e no mundo. Você sabia que esse mês ocorreu um ataque terrorista a embaixadas estadunidenses?
— Não ligo pros Estados Unidos — Hyunjin disse.
Felix engoliu a informação aleatória, percebendo que, talvez, ele não fosse um grande fã de notícias políticas (não que também fosse, mas não havia muito com o que se distrair).
— Tudo bem. Você quer que eu mude de canal?
Hyunjin balançou os ombros.
— Tanto faz.
Felix pegou o controle remoto e começou a zapear os poucos canais da TV aberta, já que seu salário não era suficiente para comprar um bom pacote de TV a cabo. Entre um pacote caro e ruim e um mais caro e bom, ele ficava com os de graça e péssimos.
De repente, o som daquela risada irritante daquele pássaro animado cruzou a sala. Pica-Pau. Felix simplesmente odiava aquele desenho.
— Cruzes — disse, e continuou passando pelos canais.
— Espera! — Hyunjin disse de repente. Felix percebeu o olhar sobre ele, e quando Hyunjin percebeu seu próprio tom de voz, encolheu um pouco os ombros. — Pode… voltar o canal?
— O canal da novela?
— Não… O Pica-Pau — disse, os olhos quase tímidos.
Felix franziu o cenho, pensando se tinha ouvido direito. Ele queria assistir ao Pica-Pau? Aquele passarinho irritante que infernizava a vida de todos os humanos e tinha uma versão biruta?
Hyunjin parecia ser do tipo que gostava de filmes de terror, ação, de porradaria e máfia, afinal, era armado com canivetes até os dentes — literalmente —, então era estranho que ele se interessasse por um desenho tão bobo e infantil.
— Pica-Pau?
— É.
— Tudo bem — Felix disse, ainda achando esquisito. Voltou dois canais e deixou o controle no sofá, cruzando os braços. — Você gosta mesmo disso?
— Aham, é mais legal do que telejornais.
— Bom, se você acha…
— Shhh!
Felix arregalou os olhos, percebendo que ele estava mesmo vidrado no desenho.
Então, parou de falar e o observou. Hyunjin dobrou as pernas sobre o sofá e apoiou o cotovelo nos joelhos, bochechas entre as mãos.
Então, gargalhou.
Pela primeira vez, Felix viu e ouviu Hyunjin rir de verdade. O rosto quase sempre defensivo e malicioso estava diferente agora. Além do cheiro de sabonete, da pasta de dente e do xampu de mel, havia, também, um sorriso. Hyunjin ficava ainda mais bonito sorrindo.
Meia hora se passou.
Felix não ousou abrir a boca e atrapalhar o entretenimento dele, que parecia, pela primeira vez desde que o encontrou naquela estrada, em paz, quase como se tivesse esquecido o que aconteceu há poucas horas. Achava que pelo menos para alguma coisa aquele passarinho da cabeça vermelha servia.
Instantes depois, Felix escutou alguém esmurrando a porta de entrada e lembrou que Jisung não era muito delicado quando batia.
— Meu amigo chegou — disse para Hyunjin, que mal desgrudou os olhos da TV.
Felix caminhou até a porta e a destrancou. Deu de cara com Jisung, que segurava várias sacolas do supermercado. Sorriu um pouco nervoso para ele, mas o amigo não parecia muito feliz.
Ele olhou para dentro do apartamento, receoso, franzindo o cenho ao ver Hyunjin gargalhar enquanto assistia ao Pica-Pau.
— Ele não parece um marginal perigoso — atestou, e Felix lançou um olhar repreensivo a ele.
— Ele não é. Agora entra — disse, pegando algumas das sacolas plásticas.
Jisung entrou, hesitante, enquanto Felix fechava a porta. Ele parecia com medo, mas tentou não julgá-lo.
— Hyunjin? — Felix chamou, mas ele não deu atenção. — Hyunjin?
— Acho que você não é tão importante — comentou Jisung.
— Esse é o meu amigo.
Finalmente, Hyunjin o olhou.
Ele analisou Jisung de cima a baixo. Jisung pareceu desconfortável, engolindo em seco, como se esperasse que Hyunjin o atacasse a qualquer momento.
— O nome dele é Jisung — Feliz apresentou.
— Oi, como vai? — disse Jisung, engolindo em seco.
— Bem — Hyunjin respondeu, voltando o olhar para a TV.
Pelo menos, ele parecia ter entendido que Jisung não era nenhum policial.
— Ele não é muito educado — Jisung comentou. Felix suspirou, puxando-o pelo braço até a cozinha. — Deixou ele usar suas roupas?
Felix soprou o ar pela boca, colocando as sacolas cheias de compras sobre a mesa.
— Ele estava quase pelado.
— Então você não vai usar isso de novo. Deixa ele levar.
— O quê? São minhas roupas.
— Felix, ele pode ter alguma doença. Você sabe, pessoas desse tipo costumam transar sem proteção e…
— Não tenho nenhuma doença, meio-metro.
A voz de Hyunjin ressoou no limiar da porta.
Felix fechou os olhos brevemente, esperando o que viria. Jisung se virou devagar e deu de cara com ele. Felix quase conseguiu ver os pelinhos do braço de seu amigo se arrepiarem.
— E-E-Eu…
— V-V-Você o quê? — Hyunjin disse em uma caricata imitação do nervosismo de Jisung. — Relaxa que eu não quero essas roupas fora de moda. Não fazem meu estilo.
— Não liga pra ele — Felix disse. — O Jisung é um pouco…
— Baixinho. É, eu vi — olhou para ele de cima a baixo novamente, devolvendo o julgamento. — Você não teria chances contra mim, nanico. Olha o meu tamanho — ergueu os ombros, impondo ainda mais sua presença. — Fica na sua.
— Hyunjin, sem ameaças por cinco minutos — Felix disse, vendo que Jisung estava quase tremendo de medo. — Pode continuar vendo TV. Nós vamos fazer algo para comer.
Hyunjin revirou os olhos, braços cruzados.
— O desenho acabou.
— Pode mudar de canal, se quiser.
Jisung ainda estava com os olhos fixos em Hyunjin, olhos estes que haviam dobrado de tamanho.
— Bu — Hyunjin brincou, inclinando o corpo na direção do então nomeado “meio-metro”.
Jisung piscou várias vezes e deu sobressalto no mesmo lugar.
Hyunjin arqueou as sobrancelhas, parecendo satisfeito, e saiu da cozinha, voltando para a sala. Jisung se virou para Felix com uma cara de puro pavor. Felix pensou que ele deveria mesmo estar apavorado, não pela brincadeira de assustá-lo, mas por os seus próprios preconceitos escrachados, quando era ele a julgar os que Felix carregava.
Felix maneou a cabeça duas vezes, ainda encarando as expressões aterrorizadas do melhor amigo.
— Não é pra tanto, Jisung.
— Ele me ameaçou!
— Ele me ameaça cinco vezes a cada dez minutos. Vai se acostumando.
— Você é maluco! Como você traz um garoto desses pra sua casa? Meu Deus, o cigarro só pode ter comido seu cérebro mesmo, puta merda.
— Vai repetir isso quantas vezes?
— Até você entender que essa sua síndrome de super-herói que vai salvar a cidade está indo longe demais. Certo, acho válido você querer fazer algo por Jinhae e até mesmo ajudar esse garoto, mas não quando isso te coloca em perigo. Ele pode fazer parte de uma gangue, Felix! Essa história de ele andar lotado de canivetes não é estranha?
— O estranho é ele precisar desses canivetes — disse, apanhando um saco cheio de vegetais. — O que eu faço com essas cenouras?
Jisung bufou, arrancando as cenouras da sua mão.
— Uma sopa, Felix. Vamos fazer uma sopa — disse, abrindo o armário. — Esse seu apartamento tá um nojo. Quando vai chamar alguém pra dar uma geral aqui? A tia Lina ia ter um infarto.
— Já está falando mal do meu apartamento? Limpa você, então.
— Ah, mas eu limpo mesmo. — Jisung pegou uma panela grande e a colocou sobre a mesa. — Seu chão é cheio de bitucas de cigarro, suas roupas ficam reviradas, você deixa garrafas de cerveja e restos de cereal na mesinha de centro e agora tem um prostituto no seu sofá vendo TV!
— Fala baixo! Quer que ele venha até aqui de novo? — Felix disse, porque sabia que aquele argumento faria Jisung se calar.
Funcionou, e ele parou de falar, pegando os outros legumes de dentro das sacolas.
Felix não tinha muito conhecimento sobre legumes, frutas e hortaliças, mas conseguiu identificar cenouras, cebolas, abobrinha, acelga e um pedaço grande de barriga de porco.
— Vai fazer sopa de barriga de porco?
— Vou. Olha como eu sou generoso.
— Ótimo. Minha barriga acabou de roncar.
— Há quanto tempo não faz uma refeição que preste, Felix? — Jisung indagou, e Felix deu de ombros, realmente sem saber qual foi a última vez que comeu algo que não fosse industrializado ou requentado.
— Já sei a resposta, então vou caprichar pra que você também coma — disse Jisung.
— Não iria caprichar se fosse só pra ele? Onde está sua compaixão? — Felix provocou.
— Morreu na hora que deixei de dormir de conchinha com meu namorado pra vir cozinhar barriga de porco na sua casa.
Felix apenas revirou os olhos.
Momentos depois, Jisung começou a cozinhar, e a barriga de Felix não parava de roncar nem um por um segundo.
Depois de alguns minutos, a refeição ficou pronta, e o cheiro da sopa e do arroz invadiu a cozinha. Jisung limpou a mesa com um paninho embebido em álcool para tirar a poeira e colocou a panela de arroz e as algas sobre a madeira, ao lado das tigelas de vidro, colheres e pauzinhos de metal, junto a cada tigela.
Felix foi até a sala e encontrou Hyunjin no mesmo lugar. Ele estava com os pés em cima do sofá, encolhido, com os joelhos contra o peito. Ele chupava o polegar, concentrado no programa de gincanas que passava na TV. É, aquele que as pessoas tinham que atravessar um pântano artificial para ganhar um vale-compras miserável. Hyunjin riu com o dedo na boca quando um participante escorregou no sabão, e o som da risada, assim como aquela cena, não lembrava em nada o Hyunjin que vinha conhecendo.
Os dois extremos fizeram Felix pensar em qual dos Hyunjin era o verdadeiro. O boca suja de salto alto e casacos pesados ou o garoto de moletom assistindo TV com o polegar na boca?
— Hyunjin? — a voz de Felix saiu vacilante. Pigarreou antes de continuar. — Já pode vir comer.
Hyunjin o olhou, assentiu e se levantou, caminhando ao lado de Felix até a cozinha. Quando chegaram, Jisung já servia a sopa nas tigelas, colocando-as na mesa ao lado dos talheres.
— Tem certeza de que quer comer do meu lado? Não tem medo de pegar sífilis pelo ar? — Hyunjin debochou, sentando-se ao lado de Jisung na pequena mesa redonda.
Ele engoliu em seco, soltando a tigela cheia.
— Me desculpa… Eu não queria ter dito aquilo.
— Dito o quê?
— Que você tem… sabe, doenças.
— Ah — Hyunjin deu de ombros. — É normal héteros pensarem que todas as bichas do mundo têm doenças, ainda mais uma puta como eu.
— Hyunjin — Felix tentou chamar sua atenção, mas ele pareceu não se importar.
— Eu não sou hétero — disse Jisung. Hyunjin arqueou as sobrancelhas. — Não me ofenda desse jeito.
— Uau, sério?!
Felix engoliu em seco, olhando para os lados, mas sentiu o olhar de Hyunjin sobre si.
— Então você é algum tipo de apoiador da causa, stalker? Abriga gays em situação de perigo e ainda contratou um pra cozinhar sua comida?
— Hyunjin, come. Vai esfriar — Felix tentou mudar de assunto.
Jisung, com o cenho franzido, também olhou para Felix. Agora, eram quatro olhos o massacrando.
— Fala sério, ele não sabe que você também…
— Jisung — Felix repreendeu, e Hyunjin deu um risinho de lado. — Podemos comer agora?
Hyunjin olhou para a sopa e pareceu se lembrar de que estava com fome. Felix, assim como ele, sentiu o estômago roncar ainda mais ao olhar o caldo brilhante e os pedaços de porco boiando. A tigela de arroz com pedaços de alga também encheu seus olhos.
— Está bom? — Felix perguntou, vendo Hyunjin devorar o arroz, quase enfiando os pauzinhos inteiros na boca. Depois, ele bebeu a sopa direto na tigela, erguendo-a da mesa.
— Uhum — respondeu depois de um tempo, enquanto Jisung observava, comendo discretamente e ainda desconfiado.
Eles comeram em silêncio, com exceção dos barulhos que Hyunjin fazia ao tomar a sopa e ao arrastar a colher na tigela de arroz. Quando terminaram, após repetirem a sopa algumas vezes, encararam-se sem falar nada, o que foi estranho, já que a sexualidade de Felix quase foi exposta e ele esperava ao menos uma piadinha da língua afiada de Hyunjin.
Quem quebrou primeiro o silêncio foi Jisung.
— Acho que preciso ir agora — ele disse, levantando-se da mesa. — Minho está me esperando em casa.
— Quem é Minho? — perguntou Hyunjin, indiscreto.
— Meu namorado — Jisung respondeu.
Hyunjin soltou um “uh lá lá” irônico, levantando-se.
— Posso continuar vendo TV? — Hyunjin perguntou para Felix, que balançou a cabeça positivamente.
Hyunjin saiu da cozinha em direção à sala. Felix respirou aliviado por não haver nenhum conflito entre ele e Jisung naquele curto período que passaram juntos, mesmo sentindo que estava no mesmo ambiente que duas bombas-relógio.
— Olha, eu vou embora, mas se esse garoto fizer qualquer coisa com você, e eu digo qualquer coisa mesmo, me liga que eu volto correndo e arrebento a cara dele.
— Jisung — Felix suspirou. — Olha o tamanho dele. Você não teria chance.
— Foi exatamente o que ele disse, mas isso não me intimidou.
— Não mesmo?
— Não. Você sabe como eu sou quando estou com raiva.
— Sei, sei, sim. Agora pode ir. Eu vou ficar bem.
— Tá bom, mas não esquece de me ligar. Ah, e liga pra Aerin quando tiver um tempo. E deixa sua arma por perto também.
— Tá, Jisung, já entendi. Obrigado pela ajuda — Felix disse, levando-o até a porta. — Depois eu te pago pelas compras.
— Não precisa, só para de ser inconsequente que já é meu pagamento — respondeu Jisung, já do lado de fora do apartamento. — Tchau.
Felix fechou a porta e voltou para a sala, onde Hyunjin continuava assistindo ao programa. Sentou-se ao lado dele, olhou o relógio no pulso esquerdo e percebeu que já passava das 3h da manhã.
— Precisamos dormir — Felix disse.
Hyunjin se virou para ele.
— Vai me deixar dormir aqui?
— Não vou deixar você passar a noite na rua, então claro que vai dormir aqui.
— Ah. Valeu.
— Não quer mesmo falar sobre o que está acontecendo? — Felix insistiu, esperando-o ceder.
Hyunjin negou, e Felix suspirou derrotado.
— Tudo bem. Vou buscar cobertas pra você.
Levantou-se e foi até o quarto, os passos ecoando no silêncio do apartamento. Felix abriu o guarda-roupa com cuidado e pegou uma coberta limpa e um travesseiro extra.
Antes de voltar, seus olhos pousaram nas roupas que Hyunjin usava quando chegaram. A calça preta estava dobrada perfeitamente no chão, a meia-calça arrastão formava um emaranhado escuro sobre ela, e ali, para sua surpresa (ou nem tanto, considerando tudo que já havia presenciado), uma calcinha delicada sobre o montinho de roupas na entrada do banheiro.
Felix sentiu um aperto no peito. Havia algo de vulnerável e, ao mesmo tempo, provocativo naquela cena.
Foi até lá e pegou as roupas para colocar no cesto de roupa suja, mas algo chamou sua atenção. Aos seus pés, um pequeno pacote branco escorregou do bolso da calça de Hyunjin, pousando no chão frio como uma bomba prestes a explodir.
Felix juntou as sobrancelhas no mesmo momento, o coração disparando. Não. Não podia ser o que estava pensando. Deixou tudo sobre a cama com as mãos trêmulas e se abaixou para pegar o que desconfiava, mas custava a acreditar.
Nas mãos, um pacote fechado de cocaína. Pequeno, inocente na aparência, mas carregado de todas as respostas que ele procurava sobre a agitação de Hyunjin nas vezes que o vira à noite, sobre os olhos dilatados, sobre a energia frenética seguida de respostas atravessadas.
Um nó apertou sua garganta. A saliva não desceu, mesmo tentando engolir repetidamente. As mãos tremiam enquanto segurava a evidência. Toda sua formação policial gritava uma coisa, mas seu coração sussurrava outra completamente diferente.
Ele ouviu a televisão na sala, o som de alguma comédia pastelão que parecia absurdamente inadequada para o momento, mas que deveria estar fazendo Hyunjin sorrir. Apertou o pacote na mão, fechando os olhos e tentando encontrar coragem. Não podia relevar ou fechar os olhos para aquilo. Por mais que quisesse proteger Hyunjin, por mais que cada fibra do seu ser gritasse para esconder aquilo e fingir que nunca tinha visto, ele não podia.
Merda. Merda, merda, merda.
Esquecendo a coberta e as roupas de Hyunjin sobre a cama, voltou à sala com passos pesados.
Encontrou Hyunjin ainda rindo para a TV, os pés descalços balançando no ar, uma imagem de inocência que contrastava cruelmente com o que Felix segurava nas mãos. Por um momento, considerou voltar e fingir que não tinha encontrado nada.
Mas não podia.
Felix foi até a televisão, a mão tremendo enquanto pressionava o botão do meio. O som cessou abruptamente, e o silêncio que se seguiu foi ensurdecedor.
Hyunjin fechou o rosto de repente, a expressão relaxada se transformando em confusão e depois em algo próximo ao alarme.
— O que foi? — perguntou, a voz ainda carregada do riso anterior, mas já com uma nota de cautela.
O pacote estava escondido atrás do corpo de Felix, apertado contra a palma da mão trêmula. Ele podia sentir o suor frio escorrendo pelas costas.
— Não tô com sono ainda — Hyunjin disse, provavelmente achando que Felix estava o mandando dormir ao desligar a TV. — Posso continuar assistindo? Prometo que não vou fazer barulho.
Felix fechou os olhos por um segundo, respirando fundo. Quando abriu, sua expressão havia mudado completamente.
— Hyunjin — começou, mas a voz falhou. — Quem te vende drogas? — Felix perguntou de repente, as palavras saindo como um tiro.
Hyunjin tencionou os ombros, todo o seu corpo se enrijecendo como se tivesse levado um choque. Piscou os olhos várias vezes, rápido demais, a respiração ficando superficial.
— Eu... o que...
Felix viu o momento exato em que a epifania atingiu Hyunjin. Era como assistir alguém se afogando em câmera lenta.
— Quem te vende drogas, Hyunjin? — repetiu, mais incisivo dessa vez.
— Do que você tá falando? — tentou disfarçar, mas sua voz estava diferente agora, aguda, desesperada. Felix soube que ele já entendia o motivo da pergunta.
— Disso aqui — Felix interrompeu, mostrando o pacote de cocaína.
A cor sumiu do rosto de Hyunjin. Por um momento, ele ficou completamente imóvel.
Então, ele explodiu em um piscar de olhos.
Hyunjin levantou depressa do sofá, quase tropeçando nos próprios pés, e caminhou até Felix com movimentos frenéticos, as mãos estendidas, desesperadas.
— Me devolve! — gritou, a voz quebrando. — Me devolve isso!
— Não — Felix respondeu, desviando o pacote das mãos que tentavam segurá-lo. Seus próprios movimentos eram rígidos. — Agora eu tenho uma prova do que acontece nessa cidade. Esse prefeito de merda pode tentar enganar quem quiser sobre não existirem pontos de droga por aqui, mas isso aqui...
— Você é maluco?! — Hyunjin interrompeu, a voz subindo. — Por que revirou minhas coisas, porra?! Você não tinha o direito!
— Não revirei nada, eu achei por acaso quando fui colocar suas roupas no cesto — Felix disse, tentando manter a voz firme. — Agora quero que me diga de quem compra, ou eu te levo pra delegacia.
— Você o quê?! — Hyunjin vincou as sobrancelhas, olhos nublados de decepção.
Por um momento, ele pareceu uma criança que levou uma bronca da professora preferida do jardim de infância.
— Hyunjin, eu ainda sou policial — Felix disse, as palavras saindo como vidro da sua garganta. — Eu tenho um juramento, eu tenho...
— Um mentiroso de merda, é isso que você é! — Hyunjin gritou, batendo o punho no ar. — Você disse que não ia me levar pra delegacia!
— Não vou — Felix controlou suas palavras —, a menos que você não me dê um nome.
Hyunjin começou a andar em círculos, as mãos nos cabelos, puxando os fios como se a dor física pudesse aliviar a angústia que sentia crescendo no peito.
— Você não entende — murmurou, depois, gritou: — Você não entende nada, porra!
— Então me explica! — Felix gritou de volta, perdendo o controle por um segundo. — Me explica por que você tá fazendo isso!
— Eu já falei que não posso! — Hyunjin parou de andar e encarou Felix, os olhos brilhando com lágrimas não derramadas.
— Por que não pode?
— Porque não, porra! Porque você não faz ideia do que tá pedindo!
— Hyunjin, por favor — Felix suavizou a voz, dando um passo em direção a ele. — Me fala quem te dá essas coisas. Eu posso te ajudar, mas preciso saber...
— Não — Hyunjin balançou a cabeça. — Não, não, não. Você não pode me ajudar. Ninguém pode.
— Então não tenho outra alternativa a não ser…
— Não! — Hyunjin gritou novamente, a voz quebrando. — Não, eu não vou voltar pra aquela delegacia! Se me levar até lá, Seunghyun vai me achar! Ele… ele sempre acha e eu não posso, eu... eu não posso...
Hyunjin apertou os cabelos com tanta força que Felix temeu que ele se machucasse, franziu o cenho e cerrou os olhos várias vezes.
— Estou te dando uma chance, Hyunjin — disse, a voz mais suave agora. — Uma última chance.
Os pés descalços de Hyunjin bateram no chão. O grito veio em seguida.
— Não, você tá me deixando sem saída!
— Pelo contrário! — Felix devolveu no mesmo tom. — Eu estou te dando uma saída, porque quero que você se livre de toda essa merda.
— Para de mentir.
— Eu não estou mentindo. Eu quero te ajudar, quero que você me diga tudo que sabe pra que isso tenha um fim, Hyunjin.
— Não! Por que você tem que se importar comigo?! Por que não me trata como merda como todo mundo?!
Felix sentiu como se tivesse levado um soco.
— Hyunjin...
— Porra, por que você me trouxe pra sua casa e cuidou de mim se no final vai me jogar naquele buraco de novo?! — As lágrimas finalmente vieram, escorrendo livres pelo rosto de Hyunjin. — Eu pensei... eu pensei que você fosse um pouquinho diferente daqueles porcos, mas vocês são todos iguais!
— Eu não queria ter que fazer isso — Felix abaixou o olhar, incapaz de sustentar a acusação nos olhos de Hyunjin. — Mas é meu trabalho. É quem eu sou.
— Que se foda seu trabalho, que se foda você! — Hyunjin avançou e começou a bater no peito de Felix. Os punhos moles e fracos sequer o machucavam. — Que tivesse me deixado morrer naquela estrada! Teria sido melhor!
Felix segurou os pulsos de Hyunjin, parando os golpes, mas não conseguindo parar a dor que eles causavam sob sua pele. Não fisicamente, mas dentro dele.
— Não diz isso — Felix sussurrou.
— Eu tô cansado... — Hyunjin desabou, o peso do seu corpo sendo sustentado apenas pelas mãos de Felix em seus pulsos.
Hyunjin chorou, abaixou o rosto enquanto Felix ainda segurava seus pulsos. Era um choro silencioso agora, devastador em toda sua quietude.
— Eu tô cansado, stalker... — fungou, e Felix engoliu seco, sentindo-o tremer em seus braços.
— Prometo fazer qualquer coisa pra te ajudar, Hyunjin — Felix soltou os pulsos e segurou o rosto de Hyunjin entre as mãos. — Eu prometo. Só me deixa tentar.
— Não promete, não — disse, negando, ainda tomado por lágrimas grossas. — Todos que prometem mentem. Todo mundo que diz que se importa, no final me abandona.
— Eu não minto.
— Todo mundo mente. Você não pode me ajudar. Ninguém pode. — Hyunjin olhou diretamente nos olhos de Felix, e o que ele viu lá foi puro desespero. — Ninguém pode me tirar disso. Ele não me deixaria sair vivo.
— "Ele"? — Felix sentiu um frio na espinha. — Seunghyun? O seu padrinho?
— Já disse que aquele filho da puta não é o merda do meu padrinho — respondeu, encarando Felix com olhos fulminantes.
Felix quis perguntar o que tinha acontecido com “Seunghyun é a única pessoa que se importa comigo”, mas ficou quieto. Quis perguntar, também, o que ele de fato era.
— Me conta, Hyunjin — Felix disse. — Me conta o que você sabe e vou te ajudar.
Hyunjin hesitou, como se estivesse na beira de um precipício.
— Se eu te contar... vou te meter numa merda gigante, stalker. Uma merda que vai destruir sua vida também.
— Eu não me importo — Felix disse sem hesitar. — Quero saber o que você tem a dizer.
— Como eu posso saber que não vai me levar pra delegacia depois disso? Como posso ter certeza de que você não vai me usar pra conseguir o que quer?
Felix segurou o rosto de Hyunjin com mais força.
— Porque eu...— parou, as palavras presas na garganta. — Eu prometo.
— Já disse que não acredito em promessas.
— Então você vai ter que esperar pra ver.
Hyunjin o estudou por um longo momento, os olhos vermelhos de tanto chorar buscando algo no rosto de Felix. Alguma verdade, alguma garantia que não existia.
Finalmente, apertou os olhos. Estava quebrado, e Felix soube disso. Também soube que, no momento em que Hyunjin sentou naquele sofá e o chamou para sentar ao seu lado, que estava prestes a descobrir um novo Hyunjin, o mais verdadeiro entre todos os que já conhecera.
— Tá bem — sussurrou Hyunjin, a voz rouca. — Tá pronto pra ouvir muita merda?
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20 de março de 1989
A adolescência era um período difícil para qualquer pessoa. Todas as espinhas sangrentas cheias de pus, o pau que ficava duro por qualquer coisa, os peitos sensíveis, a mente perturbada em formação que só conseguia focar em uma única coisa vinte e quatro horas por dia: genitálias.
Era naquela fase que, com margem de erro, ia dos doze aos dezoito, que os corpos passavam por diversas transformações físicas e mentais. Desenhos animados deixavam de ser interessantes, revistas em quadrinho perdiam a graça — mesmo que fossem as iradas do X-Man — e brincar na rua com os vizinhos se tornava entediante. No lugar de tudo isso, os adolescentes preferiam ir ao shopping com seus cabelos armados e maquiagem azul-escura, vestindo seus trapos feitos de jeans com cores chamativas. Eles bebiam Coca-Cola na frente dos adultos e, ao ficarem sozinhos, mandavam ver na cerveja barata que os deixavam com o arroto fedido.
Aquela era a realidade de quase todo adolescente, e não era difícil encontrar um monte deles escorados em carros de cores pastéis aos arredores do bairro em que Hyunjin morava. Ele não fazia parte dos grupos “descolados”, dos “populares”, dos “garotos bonitinhos que as meninas gostariam de beijar”, ao invés disso, ele os espiava pela janela do segundo andar no quarto da mãe desequilibrada, Chaeyoung, pensando como alguém conseguia enfiar a língua na boca de outro tantas vezes sem vomitar.
E quando Hyunjin dizia que sua mãe era desequilibrada, era no sentido literal, pois somente alguém sem alguns miolos na cabeça conseguiria transar com o velho rabugento que era seu pai — e ele pensava aquilo sem nenhum remorso, pois Hyungsun era mesmo um filho da puta arrombado do caralho.
Ele aprendeu aqueles palavrões em algum programa de TV que passava depois da meia-noite. Quando seus pais estavam fora fazendo sabe-se lá o quê, Hyunjin, sem sono, descia as escadas e sentava de frente para a TV, apoiava os cotovelos no móvel desgastado que segurava o aparelho de míseras dezessete polegadas e escutava o comediante boca suja ensinar o que era um “filho da puta arrombado do caralho”.
Aqueles adjetivos foram muito usados com o passar dos anos, mas, naquela época, Hyungsun era o único que Hyunjin julgava ser merecedor de ser tratado por aqueles nomes. Mais tarde, viriam muitos outros.
Foi no seu aniversário de catorze anos que Hyunjin finalmente se sentiu um adolescente de verdade. Ele acordou, olhou-se no espelho e abaixou as calças. Tocou umazinha enquanto admirava os cinco pelos finos que estavam nascendo em sua virilha e, ao terminar, tomou um banho no banheiro encardido do corredor.
Desceu as escadas, e em seus sonhos de criança — seu corpo podia ser de um adolescente, mas sua mente, por vezes, ainda era de um menino bobo — imaginava que se depararia com um monte de gente na sala de estar, um bolo na mesinha de centro, sua mãe usando um chapeuzinho rosa com um pompom na ponta, com um presente nas mãos e o corpo morto do pai apodrecendo no gramado.
Seria um aniversário do caralho.
Mas, ao descer o último degrau, nada viu senão Chaeyoung sentada na mesa da cozinha segurando papéis amassados e com uma das mãos sobre a testa suada. Hyunjin, vestindo um camisetão que tinha herdado do seu primo de segundo grau (ou seria terceiro?) e meias enodoadas como os azulejos do banheiro recém-visitado, deu-se conta da realidade.
Não teria bolo, não teriam convidados animados, não teria nenhum chapéu cor-de-rosa com um pompom na ponta. E foi quando Hyungsun saiu da dispensa, mostrando o traseiro enorme, que Hyunjin percebeu que ele também não estaria morto no gramado. Que porra.
— Não tem escola hoje? — perguntou Hyungsun, abrindo a geladeira velha em busca de uma cerveja, a mesma que os adolescentes bebiam, comprada na vendinha da esquina, talvez perto da data de validade, por metade do preço.
— Hoje é sábado — Hyunjin disse, próximo à mesa.
Chaeyoung ainda olhava os papéis, preocupada.
— Hoje não é quinta? — Hyungsun parecia bêbado às oito da manhã, e não era uma hipérbole criada pela raiva de Hyunjin, pois o cheiro pungente de álcool vinha direto para as narinas sensíveis dele e diziam, em letras garrafais, que aquela não era a primeira cerveja do dia.
— Hoje é sábado — repetiu, inexpressivo. — Vinte de março.
Ao dizer “vinte de março” com tanta clareza, esperava que sua mãe desviasse os olhos dos papéis idiotas e desse a ele um mísero parabéns. Não precisava de presente. Droga, Hyungsun não precisava morrer, mas um parabéns estava de bom tamanho.
Mas Chaeyoung não o olhou. Ela apenas ergueu a xícara vazia que estava ao lado dos papéis bagunçados em sua direção.
— Pega um café para mim? — pediu, o cenho franzido.
Hyunjin quis dizer não. Quis dizer que ela mesma podia levantar aquela bunda seca da cadeira e buscar o maldito café, mas não disse. Pegou a xícara e caminhou até a pia, sobre a qual estava a garrafa de café que não era do mesmo dia. Despejou o líquido já frio na xícara e entregou de volta a sua mãe, nem mesmo recebendo um contato visual.
— A conta de luz vai atrasar de novo, Hyungsun — disse Chaeyoung, bebendo um gole generoso de café em seguida.
— E de onde quer que eu tire o dinheiro? Do cu, porra? — respondeu ele, a cerveja pela metade.
— Seu patrão não aceitou aquele adiantamento que você disse que ia pedir?
— Não. Ele é mão de vaca, você sabe disso.
Hyunjin quis rir. Não rir da desgraça financeira da sua família que já tinha levado embora até mesmo sua bicicleta prateada, mas sim da cara de pau de Hyungsun, pois Hyunjin sabia que o velhote bundudo havia perdido o emprego há duas semanas e estava escondendo de Chaeyoung até então.
— Então preciso dar um jeito de pedir grana emprestada a alguém — Chaeyoung resmungou, deixando o papel que segurava sobre a mesa junto aos demais e tomando três goles seguidos do café frio do dia anterior.
— Posso dar meu dinheiro pra pagar a conta de luz — Hyunjin disse, mexendo na barra do camisetão preto enquanto seus olhos vagavam pela cozinha, evitando pará-los no pai.
— Que dinheiro, moleque? — perguntou Hyungsun.
— Estou economizando pra comprar um mini game.
Chaeyoung olhou para ele, desconfiada.
— E quanto você tem?
— 700 wons.
O semblante dela derreteu. Ela esfregou as têmporas com força enquanto Hyungsun ria.
— 700 wons não dá pra pegar nem o papel que eles usam pra mandar a conta, garoto — disse ele, e Hyunjin olhou para os pés encapados com a meia suja. — Quer ajudar a pagar a conta de luz? Vira homem e arruma um emprego, ou então sai mostrando esse pauzinho por aí, torcendo pra algum velhote dar uma grana pra passar a mão.
— Hyunsun! — Chaeyoung gritou sob a risada cheia de escárnio do marido. — Não fala isso com o garoto.
Hyunjin piscou os olhos, meio perdido no meio daquela loucura à qual já estava acostumado, mas que, estranhamente, parecia pior naquela manhã.
— Não tenho idade pra trabalhar — ele disse. — Eles só contratam garotos acima de dezesseis anos.
— Ele é só uma criança, Hyungsun. — Frustrada, Chaeyoung disse. — Só tem treze anos.
— Catorze — Hyunjin corrigiu, olhando para a mãe, que pareceu surpresa. — Tenho catorze anos.
— Catorze?
— Hoje é sábado. Vinte de março — Hyunjin disse, com a voz quebrada. — Catorze anos.
Virou as costas, expondo as panturrilhas magricelas e correndo de volta para o quarto. Chaeyoung bufou ao se dar conta de que era o aniversário do único filho, mas esqueceu de se sentir mal quando bateu os olhos em outro papel, o da conta do supermercado. Enquanto Hyungsun bebia a cerveja do arroto, ela pensou em como conseguiria fazer as compras do mês seguinte sem que Hyunjin precisasse sair mostrando o pauzinho por aí.
23 de novembro de 1991
As mochilas estavam cheias de latas de tinta spray que pesavam nas costas de Hyunjin. Os saltos altos batiam contra o asfalto da rua deserta e seus dedos estavam entrelaçados aos de Juyeon, um rapaz de dezenove anos que passava a altura de Hyunjin uns bons centímetros. Ele usava uma jaqueta de couro sintético (pois era duro demais para comprar uma de verdade) e calças pretas. Juyeon tinha um sorriso cafajeste quase constante em seu rosto bonito, e foi por aqueles dentes bem alinhados que Hyunjin se apaixonou.
Ele tinha quinze quando o conheceu, e não é que Juyeon fosse a “coisa gay” de Hyunjin. Hyunjin sabia que gostava de garotos, assim como gostava de saias e saltos altos, mas foi Juyeon quem o mostrou na prática os prazeres de tudo aquilo. Foi ele quem deu a ele o primeiro salto, a primeira calcinha e a primeira saia. Foi com ele que transou pela primeira vez, no natal de 90, enquanto riam das propagandas cheias de dingo bell que passavam na TV. Foi com ele que Hyunjin aprendeu mais palavrões que iam além de “filho da puta arrombado do caralho”, foi ele que deu um baseado a ele pela primeira vez e disse que “ficar chapado era uma onda foda”.
Juyeon não era a “coisa gay” de Hyunjin, ele era absolutamente tudo.
Foi entre 90 e 91 que Hyunjin percebeu que não era o tipo de garoto que sua mãe sonhou que ele se tornaria. Ele não seria um advogado de sucesso, tampouco inventaria a cura para o câncer. Aos dezesseis, Hyunjin só queria levar bem gostoso na bunda e fumar maconha. Anos depois, ele não sabia que, iria se arrepender de ter saído com Juyeon naquela noite.
— Não acha arriscado? — Hyunjin perguntou, olhando para o namorado com um semblante que ia do relaxado ao preocupado em poucos instantes. A vida com Juyeon era assim desde que se lembrava: uma montanha-russa de sentimentos, um passo ou menos até a bipolaridade.
— Não é arriscado, princesa — disse Juyeon, os dentes brancos se destacando na rua mal iluminada. — Ninguém vai pegar a gente, e se pegarem, você é menor de idade, então não vão te deixar preso.
— Mas e você?
Aquela era a única preocupação que Hyunjin carregava.
Juyeon não era um exemplo de bom moço. Sua ficha na polícia deveria ser maior do que a lista de compras da família Hwang, e seus antecedentes não o ajudariam na hora de se livrar de um flagrante por vandalismo. Já Hyunjin, era, até então, réu primário, e os recentes dezesseis anos o dariam uma série de privilégios que Juyeon, definitivamente, não teria. Estarem juntos naquela missão era, em grande parte, uma estratégia bolada por Juyeon. Se os policiais aparecessem, ele se mandaria enquanto Hyunjin ficava com a parte difícil. Sair da cadeia seria mole para Hyunjin, e ele o aceitaria de volta com toda a certeza do mundo após alguns pedidos de desculpas e um olhar de cachorrinho. Depois, eles transariam no sofá do apartamento velho de Juyeon enquanto Hyunjin contava como foi horrível ficar perto de tantos policiais.
Já estava tudo planejado.
— Eu me viro, você sabe — puxou a mão de Hyunjin até ele estar com as costelas coladas às suas. Deu um beijo nos lábios pintados de rosa e outro na bochecha manchada de ruge. — Pegou todas as latinhas?
— Aham. Seu amigo disse que algumas estavam vazias.
— Não tem problema — disse Juyeon, afagando os braços desnudos do namorado. — Vai ser o bastante pra dar uma lição naquele filho da puta.
— Não vai ser nada muito grande, né?
— Só vamos deixar um recadinho no muro dele, princesa — respondeu Juyeon com um sorriso cafajeste, um sorriso que Hyunjin muito julgou lindo e, tempo depois, descobriu ser nojento. — Um lembrete de que ele não pode mexer comigo de novo.
— Mas ele só bateu seu carro sem querer.
— Não é muita coisa pra você? — Juyeon ficou sério de repente e encarou Hyunjin com olhos tão expressivos que assustavam. — Bateria meu carro sem querer e esperaria parabéns?
Hyunjin engoliu o acúmulo de saliva em sua boca. Era óbvio que ele não esperaria parabéns de Juyeon. Ele não esperava parabéns de ninguém, mas não gostava quando Juyeon ficava daquele jeito, assustador. Era difícil para ele lidar com aquele lado do namorado, ainda mais quando ele estava sorrindo há breves instantes. Como sempre: menos de um passo para a bipolaridade.
— Claro que não — Hyunjin disse, por fim, olhando para o asfalto abaixo dos saltos.
— Ótimo, princesa — deu um beijo na bochecha corada novamente.
Hyunjin e Juyeon seguiram caminho pela madrugada, até pararem de frente para uma casa no subúrbio de Jinhae. Juyeon pegou a mochila que Hyunjin carregava nas costas, a colocou no chão e, por fim, abriu, retirando de lá várias latinhas de tinta spray. Elas serviriam para dar uma lição ou deixar um recado para Hui, um colega de farra de Juyeon que, no dia anterior, bateu o Mustang 1970 que Juyeon dirigia.
Hyunjin esfregou as mãos na saia, ansioso, olhando para todos os lados. A rua parecia deserta, iluminada apenas pelos postes de luz amarelada que carregavam uma morbidade que gelava sua espinha. Juyeon balançava as latinhas de spray à procura da mais cheia, aquela que não deixaria falhas nas pichações aleatórias que ele faria no muro de Hui.
— Vamos logo, Jun — Hyunjin disse, ainda movendo o rosto várias vezes para conferir se estavam em completa solidão.
Por um tempo, estavam, mas não demorou mais do que vinte minutos — tempo o suficiente para fazer aquela maldita pichação, mas não o bastante para achar uma latinha cheia — para que Juyeon e Hyunjin ouvissem o som quase silencioso dos pneus do carro da polícia. Sem sirenes, sem alarmes, sem tiros.
Foram pegos desprevenidos em um flagrante que argumento algum era capaz de sobrepor. Juyeon e Hyunjin estavam com as latinhas nas mãos, um pau enorme e peludo desenhado no muro de Hui ao lado da frase “bate meu cacete na sua cara ao invés do meu carro, seu desgraçado de merda”. Era uma situação complicada.
Mood: Construção - Chico Buarque
E Juyeon, que já tinha planejado os mínimos detalhes da missão, correu com toda a velocidade que tinha para longe da cena do crime antes mesmo dos policiais descerem do carro. Hyunjin gritou por ele e tentou correr assim como o namorado, mas, naquela época, ele ainda não tinha tanta prática com os sapatos — e depois daquele episódio, ele treinou como correr da polícia sobre dois saltos finos — e acabou caindo três passos depois.
Os policiais imobilizaram Hyunjin, prendendo suas mãos nas costas e empurrando sua bochecha contra o asfalto quente.
— Olha o que temos aqui — a voz rouca de um dos policiais disse.
— Eu apostei que encontraria uma princesa hoje à noite — outro disse.
— O que tem debaixo dessa sainha, hein?
— Aposto que uma surpresinha bem gostosa.
Hyunjin sentiu a palma da mão do policial pressionando seu ombro com força contra o chão, enquanto outro ria por cima dele, os dedos vasculhando a barra da saia como se tivessem algum direito.
— Me solta, seu filho da puta arrombado do caralho! — Hyunjin ralhou, mas recebeu como resposta uma risada cheia de catarro que rangia na garganta.
— Eu só estou te revistando, princesa — respondeu. — Sabe, vai que você guarda um canivete aqui em baixo. Deixa eu ver… — o policial enfiou a mão dentro da sua saia, apertando o que, anos atrás, Hyunsun disse que ele deveria mostrar por aí. — Olha, canivete eu não sei, mas tem uma coisa bem perigosa aqui.
Hyunjin engoliu em seco, tentando proteger o próprio corpo, mas sentiu como se estivesse invisível, um objeto à mercê da crueldade alheia. Hyunjin sentiu o estômago revirar, o rosto queimando de vergonha e medo, e um frio gelado percorreu sua espinha. Ele queria gritar, xingar, implorar para tirarem aquelas mãos imundas dele, mas nada saía além de sons sufocados, engolidos pelo peso da impotência de não conseguir fazer porra nenhuma.
Enquanto isso, Juyeon sumia, desaparecendo na escuridão do beco, sem sequer um olhar para trás. Nenhuma palavra, nenhum grito para mandar os filhos da puta soltarem o namorado dele. Tudo que Hyunjin ouviu foi o silêncio gélido da traição.
Depois, tudo foi um aglomerado de risadas, lágrimas e um gosto estranho na língua. As ruas desertas começaram a assustar Hyunjin. Como era possível ninguém ter visto ou ouvido nada? Teriam os moradores daquelas casas achado que o grunhido contra o asfalto eram apenas gatos revirando o lixo? Teriam eles achado que Hyunjin era o lixo e aqueles dois em cima dele eram os gatos, revirando-o?
Quando finalmente o jogaram na viatura, teve o ímpeto de chamar por Juyeon mais uma vez. Que idiotice. Ele já deveria estar muito longe. A porta se fechou, as mãos ainda trêmulas, os joelhos doloridos, a saia suja de asfalto, poeira e de um negócio branco que Hyunjin evitou olhar para não vomitar.
Foi a última vez que confiou em alguém.
Hyunjin foi liberado da delegacia no dia seguinte, depois de passar a madrugada inteira em silêncio, ouvindo os dois rindo e comentando sobre o que aconteceu em cochichos enquanto a recepcionista fazia sua ficha. Chegou em casa com as roupas que estava usando na noite anterior, o que era um problema. Seus pais não se preocuparam por ele passar a noite fora. Depois que conheceu Juyeon, eram raras as noites em que ele realmente dormia em casa, mas quando Hyunjin chegou com aquelas roupas, ele assinou ali o atestado de filho que nunca descobriria a cura do câncer.
— Que merda aconteceu com você? — perguntou Chaeyoung, vendo Hyunjin sentar no sofá após atirar os sapatos longe.
— Fui preso — disse ele, olhos vidrados nas dezessete polegadas da TV que estava ligada em um programa de bingo.
— Você foi o quê? — ela partiu os lábios em completa descrença. — Por quê? Onde? Que roupas são essas?!
— Eu fui preso, Chaeyoung. — Há algum tempo, Chaeyoung passou a ser Chaeyoung, não mãe, assim como Hyungsun nunca foi pai. — Mas dei um jeito.
— Que jeito, Hyunjin? Hein? Que jeito?! De que merda você tá falando?! — Chaeyoung gritava, os trapos que ela vestia deixando-a mais velha do que ela era. No seu auge, ela fora uma linda mulher, mas há muito tempo já havia perdido o brilho no olhar.
— Eu fui preso, cacete! Me pegaram pichando a porcaria de um muro! O que mais quer que eu diga?!
Que levantaram a saia de bicha que o Hyunsun odeia e gozaram na minha bunda?
— Pichando um muro? — A voz de Chaeyoung saiu em um quase sussurro, tratando o dizer daquelas palavras em voz alta como um pecado terrível. Ela não queria acreditar, não queria acreditar em nada do que estava vendo e ouvindo. — Foi aquele garoto, não foi? Aquele pedófilo?
Hyunjin massageou as têmporas, a dor de cabeça o matando pouco a pouco. Queria um cigarro mais do que qualquer coisa. Não, na verdade, ele queria que Chaeyoung calasse a boca mais do que qualquer coisa.
— Olha o que ele fez com você — apontou para as roupas amassadas de Hyunjin, a saia de pregas expondo as coxas fortes. — Está vestido como uma daquelas bichas!
— Ah, estou? — Hyunjin arqueou as sobrancelhas, dando uma risada que beirava ao deboche. — Que bom, Chaeyoung. Pode dizer para suas amigas que eu sou uma bicha, então.
— Olha como fala — ameaçou, o indicador erguido no ar. — Se seu pai chegar e te ver assim…
— O que ele vai fazer? Me bater? — perguntou Hyunjin, levantando do sofá. — Não seria a primeira vez que aquele porco maldito levanta a mão pra mim e muito menos que ele abaixa bem nos meus dentes.
— Ele vai te expulsar dessa vez — disse ela. — Seu pai não vai querer uma coisa dessas na casa dele.
— Uma coisa dessas? — As sobrancelhas grossas se ergueram ao ponto de quase atingirem a raiz dos cabelos bagunçados. Chaeyoung olhou para o lado, dando-se conta de suas palavras. — Você e ele são iguaizinhos. Estava só esperando a oportunidade pra dizer essas coisas pra mim, não é?
— Não coloque palavras na minha boca. Eu estou falando essas coisas para o seu bem, porque te amo e quero que você seja…
— Normal? — Hyunjin supôs, balançando os ombros. — Como quer se eu seja normal vivendo nesse barraco? Como quer ter um filho normal, sendo que nem você e nem ele são normais?! — gritou.
Chaeyoung se assustou, dando um passo para trás.
— Hyunjin…
— Ahn?! Acha que eu não queria ser normal? Acha que eu não daria qualquer coisa para ser a porra de um garoto normal?! — chutou a mesinha de centro com força, os dedos do pé se esmagando contra a madeira firme.
Hyunjin chorou naquela manhã quando se trancou no quarto. Tomou banho e buscou uma carteira de cigarros para emergências, perdida na gaveta de meias.
A briga com Chaeyoung foi péssima, mas nada comparada a que teve com Hyungsun quando ele voltou do bico que estava fazendo em uma oficina. Em vinte minutos de discussão, toda a coleção de porcelana falsa que Chaeyoung guardava no armário da cozinha foi quebrada, alguns pedaços atingindo Hyunjin. Tempos depois, ele ainda sentiria a ardência na virilha, local onde uma xícara partiu e cortou a pele sensível.
Hyunjin correu para fora de casa no mesmo dia. Levou consigo a roupa do corpo, os cigarros mentolados que tinha achado na gaveta e a televisão que arrancou da tomada dizendo que era sua herança.
Na noite de 24 de novembro de 91, Hyunjin dormiu no banco da praça da igreja de Jinhae, e três dias depois, ele conheceu um homem de barba feita e de roupas de marca chamado Choi Seunghyun.
Seunghyun o tirou da rua, o alimentou e comprou roupas para ele.
Sete anos depois, Hyunjin ainda se lembraria do semblante solene que ele tinha quando estendeu a mão e o levou para casa. Também se lembraria da primeira vez que ele entregou dinheiro em sua mão.
— Nossa! — exclamou Hyunjin, contando os vários wons nas mãos esbranquiçadas. — Tudo isso? — Os olhos muito puxados brilharam, o lençol branco cobrindo a cintura nua.
— E tem muito mais de onde veio esse — apontou para o dinheiro, logo em seguida, acariciando os cabelos pretos de Hyunjin, que não eram tão longos naquela época. — Você só precisa fazer com outras pessoas o que fez comigo essa noite.
— Foder?
— Isso — disse Seunghyun. — Você vai deitar em uma caminha cheirosa e deixar uns amigos brincarem com você. É fácil. Além disso, é gostoso, não é?
Hyunjin ficou em silêncio.
Transar com Juyeon era gostoso. O que aconteceu naquele asfalto quente, não. Com Seunghyun, foi mais ou menos.
Talvez, com os amigos dele, fosse melhor.
Há sete anos, Hyunjin não falava com Chaeyoung, nem mesmo com Hyunsun — rezava para que ele tivesse morrido de câncer ou de AIDS — ou com qualquer outra pessoa que conheceu na adolescência. Na verdade, ele não fazia questão de manter contato com aquelas pessoas, mas contato com a família era melhor do que contato com ninguém, que era o que Hyunjin tinha.
— Hyunjin, o que aqueles policiais fizeram foi…
— Não quero falar disso — Hyunjin cortou as palavras de Felix, olhando para o teto. — Eu nem… lembro mais da dor, então tanto faz. Passou.
Felix sabia que nada tinha passado, mas apenas assentiu.
— Sinto muito.
— Eu também — Hyunjin disse.
— E como me explica a cocaína no seu bolso? Seunghyun te dá?
— Não. Eu comprei.
— Pode me dizer de quem?
Hyunjin rezou para que ele não perguntasse como ele pagou por aquilo.
— De um cara chamado Jiyong, aquele que fingiu ser meu advogado — deu de ombros, olhando para as mãos sobre o colo. Hyunjin, dentro das roupas de Felix, parecia três vezes menor do que quando estava sobre os saltos altos e as calças e saias apertadas. — Eu não vendo nem nada — gesticulou, o medo de que Felix pudesse assumir novamente o papel de policial mau inundando seus pensamentos.
— Por que usa isso, Hyunjin? — Felix perguntou com uma nítida preocupação na voz.
— Não é fácil ficar acordado a noite toda. Não é fácil sentir o cheiro, o gosto na língua. Eu.. Porra — respirou fundo. — É só pra aguentar.
— Cocaína te deixa…
— Eu sei o que ela faz. Não sou idiota.
— Nunca disse que era — Felix retrucou, negando lentamente.
— Também não sou viciado.
A voz de Hyunjin não era segura. Felix soube que ele dizia aquilo mais para si mesmo do que para ele.
— Tem certeza?
— Tenho…
— Certo — Felix disse, suspirando. — Obrigado por… por me contar como você conheceu o Seunghyun, mas eu preciso que me conte no que mais ele é envolvido além de comandar esse esquema de prostituição.
— Drogas — Hyunjin confirmou. — Ele tem mais algumas boates por aí, aos arredores da cidade. Ele compra muita gente pra elas ficarem quietas, tudo é muito discreto, como eles dizem.
— Eu imaginei — Felix massageou as têmporas. — Eu vou… pensar no que vamos fazer. Por hora, quero que durma.
— Não vai mais me levar pra delegacia nem perguntar mais nada sobre os esquemas do Seunghyun além disso? — Os olhos pretos brilharam de esperança.
Felix negou com um sorriso de lado.
— Amanhã, resolveremos o que vamos fazer.
Felix caminhou até o quarto e seguiu para o banheiro. Abriu a tampa do vaso e olhou uma última vez para o pacotinho de pó branco em suas mãos. Com a unha um pouco crescida, rasgou o plástico e derramou a cocaína sobre a água azul, despejando-a completamente. A descarga levou a droga com a água, o plástico se perdendo no redemoinho.
Felix voltou para a sala e encontrou Hyunjin no mesmo lugar, um tanto encolhido no sofá. Um ponto de interrogação imaginário estava na sua testa e ele não pôde conter a língua.
— Sabe do paradeiro do seu ex-namorado? O Juyeon? — Felix perguntou.
Hyunjin negou após uma risada debochada.
— Não, nem quero saber. Não o vi depois que o filho da puta me largou para ser preso e espero nunca mais ver a cara dele. Desgraçado.
Felix apenas balançou a cabeça.
— Pode vir deitar — apontou para o quarto de onde ele tinha saído há poucos instantes.
— O quê? Deitar onde?
— Você vai dormir no meu quarto, e eu vou dormir bem aqui — deu dois tapinhas no estofado.
— Está dando sua cama pra mim?
— Sim.
— Nem fodendo — Hyunjin negou. — Não quero que pense que estou abusando da sua generosidade com os gays.
— Não está abusando de nada, Hyunjin — Felix disse. — Vá deitar antes que eu mude de ideia.
Hyunjin ficou de pé de frente para o policial. Felix, de braços cruzados sobre o peito, arqueou as sobrancelhas para ele, indagando de forma não verbal se ele gostaria de dizer mais alguma coisa.
— Valeu — Hyunjin disse. — Ainda não confio em você, mas acho que você não é como os outros daquela delegacia.
— Porcos de farda? — perguntou Felix.
— Porcos de farda — afirmou Hyunjin com um balançar de cabeça.
— Boa noite, Hyunjin.
— Boa noite, stalker.
Felix acordou com o despertador irritante do seu relógio no braço, apitando próximo ao ouvido.
Deu um pulo do sofá, assustado e com as costas doloridas. Olhou para o aparelho no pulso e viu que eram 7h00 em ponto. Bufou, caindo de volta no sofá e fechando os olhos.
Não dormiu nem quatro horas direito. A madrugada atípica foi longa junto a Hyunjin e havia acontecido muita coisa entre a hora em que saiu para investigar a boate e a hora em que ele finalmente pegou no sono. Estava cansado, sua cabeça latejava e ele queria mais do que tudo um cigarro e uma xícara de café bem quente.
Felix procrastinou por alguns minutos no sofá até ouvir um barulho estranho vindo da sua cozinha. Suas sobrancelhas se juntaram e seus instintos logo se aguçaram. Levantou em um salto, desviando, por instinto, das garrafas de cerveja e tigelas que deveriam estar ali, mas que não estavam.
Caminhou até chegar à cozinha, e a visão que teve ao chegar lá foi uma que não esperava nem em um milhão de anos. Hyunjin, com as costas nuas e usando apenas a calça moletom de Felix, estava na ponta dos pés, virado para o armário, limpando-o com uma flanela.
O policial, confuso, coçou a cabeça e viu que sua cozinha estava limpa como nunca esteve antes, nem mesmo quando sua mãe vinha limpá-la nos feriados. Ao parar para analisar por um instante, virou para a direção de onde veio e se deparou com a sala em perfeito estado. Não havia mais garrafas no chão, nem tigelas de macarrão instantâneo, tampouco bitucas de cigarro no piso. A mesinha de centro estava organizada, sem poeira e com o vidro limpo. Virou novamente para a cozinha, e Hyunjin continuava concentrado na limpeza.
Felix não conseguia acreditar. Hyunjin limpou todo o seu apartamento.
— Hyunjin? — Felix chamou.
Ele finalmente se deu conta de que tinha mais alguém ali. Virou para Felix, que engoliu em seco ao ver um pouco de suor escorrendo pelo tronco magro.
— Ah, você acordou — ele disse, segurando a flanela nas mãos.
— Eu… — Felix continuou olhando ao redor. — Nossa…
— Não estava conseguindo dormir — Hyunjin disse, colocando a flanela sobre o ombro. — Então eu fui arrumar tudo. Tinha muita coisa pra fazer aqui.
— Você limpou minha casa — afirmou, ainda embasbacado.
— Alguém tinha que fazer isso uma hora ou outra, e algo me dizia que não ia ser você.
— Eu não sou bom com essas coisas — coçou a nuca, puxando uma das cadeiras da mesa redonda.
— Deu sorte que eu não suporto casas sujas, senão, qualquer dia, você ia acordar com uma ratazana mordendo sua língua ou um monte de baratas nas suas calças.
— Que nojo — Felix disse, com uma careta feia.
— Nojento tava isso daqui — gesticulou para todo o apartamento. — Se eu fosse alguma das suas secretárias, eu nunca daria pra você em um lugar assim.
— Tá, tudo bem, eu já entendi que sou um péssimo dono de casa — Felix disse. — Já não bastava o Jisung.
— É, ainda bem que sabe. Eu fiz café — Hyunjin disse, e só então Felix percebeu que a garrafa térmica estava cheia.
— Eu estou mesmo precisando — massageou as têmporas, seu corpo quase implorando por cafeína e nicotina.
Ele sabia que seu estômago gritava para ele começar o dia com o restante da sopa da noite anterior, com uma fruta ou até mesmo panquecas americanas, mas seu sistema nervoso só conhecia uma palavra: café.
Hyunjin sentou com ele à mesa em uma cadeira que os deixava cara a cara. Felix encheu duas xícaras de café, uma para ele e outra para Hyunjin. Bebericaram das xícaras antes de iniciarem a conversa que ambos sabiam que teriam de ter.
— E então — Felix disse —, o que vamos fazer?
Hyunjin deixou a xícara sobre a mesa e deu um longo suspiro.
Pensou muito sobre aquela pergunta durante as horas em que passou acordado. Seunghyun deveria estar caçando-o pelos quatro cantos de Jinhae e, com a ajuda do prefeito, ele não demoraria para localizá-lo.
— Eu não sei — Hyunjin disse, sincero. As mãos pálidas foram direto para o rosto, pressionando as bochechas na intenção de fugir um pouco da realidade. Com a voz abafada, ele disse: — Eu tô fodido pra caralho, stalker.
— Não foi um cara qualquer que te enforcou, não foi? — Felix deduziu, e o rosto de Hyunjin foi sendo revelado pouco a pouco novamente.
— Foi o prefeito — Hyunjin disse. — Ele pagou pra trepar comigo sem camisinha, mas, cara, tinha uma coisa muito estranha no pau dele — tremelicou apenas ao pensar novamente na visão que tivera na noite anterior. — Eu disse que não ia fazer, ele me bateu no rosto, e eu meio que… chutei as bolas dele.
— Chutou as bolas do prefeito?
— Era isso ou meter a boca em um ninho de bactérias.
— Tudo bem, é um motivo plausível — Felix disse, o estômago embrulhado.
— Se Seunghyun descobriu, e eu tenho certeza que ele descobriu, eu estou morto, stalker.
— Não vamos deixar isso acontecer — Felix disse. — Vamos dar um jeito nisso.
— Como? Vai me manter na sua casa pra sempre?
— Não para sempre, mas até eu conseguir prender todos que te fizeram mal. Ou a central prender, que seja. É, acho que eles serão melhores nisso.
— Vão prender a cidade inteira?
— Hyunjin…
— Tá, tá, eu entendi — disse ele, respirando fundo ao sentir um gelo passar por sua espinha. — É que eu não estou acostumado a ter alguém querendo me ajudar assim… de graça.
— Minha recompensa vai ser poder dormir tranquilo sabendo que a cidade vai estar livre de pessoas como essas.
— Não vai ser fácil. Seunghyun tem gente de confiança em todos os lugares, ele praticamente manda em todos eles e… se sonharem que eu estou aqui...
— Ei, eu já disse que vou cuidar de tudo. — Uma das mãos de Felix puxou a de Hyunjin, palmas sobre as costas uma da outra, polegar acariciando as falanges avermelhadas. Hyunjin o encarou com olhos expressivos. — É o meu trabalho.
— Mas não se colocar em risco — retrucou Hyunjin.
— Faz parte.
— Quem quer correr perigo? — Hyunjin deu uma risada amargurada, recolhendo sua mão e colocando-a entre as pernas. — Você poderia ignorar tudo isso e me mandar embora. Eu não te deduraria e você ficaria seguro. O Seunghyun me daria um castigo e pronto. A vida ia voltar a ser como era.
— Você não quer que volte a ser como era — Felix disse, a voz mansa.
Hyunjin fixou seus olhos em Felix, na forma como ele o encarava, com o semblante doce e sob controle. Os policiais eram nojentos, pensava ele, mas Felix, mesmo que deixasse bitucas de cigarro espalhadas pelo chão, não parecia com eles.
— Preciso das minhas roupas — Hyunjin disse após um momento de silêncio. — E do meu gato. Se ele ficar sozinho, vai morrer de fome. Os vizinhos odeiam ele.
— O Senhor Miau?
— Lembrou do nome dele?
— Não é um nome muito difícil de lembrar — Felix deu de ombros, e Hyunjin esboçou o que poderia ser um sorriso.
— Será que poderíamos ir até a minha casa? Podemos nos disfarçar ou, sei lá, você que tem costume de espionar lugares.
— Acha que tem alguém te esperando lá?
— Seunghyun tem a chave da casa — Hyunjin disse. — Ele pode ter mandado alguém, mas não sei… Ele é imprevisível.
— Vai querer arriscar?
— O que não é arriscado na minha vida? — Hyunjin disse aquelas palavras com um pesar que Felix nunca tinha ouvido. Era de uma conformidade que chocava.
— Tudo bem, vamos até lá — Felix disse.
Ao terminarem as xícaras de café quente, não se importaram em comer alguma outra coisa, até porque a geladeira de Felix ainda estava desfalcada. Enquanto Hyunjin tomava banho e vestia outro par de roupas de Felix, o policial ficou no sofá, pensando em alguma estratégia.
Eles entrariam na casa de Hyunjin, pegariam roupas, o gato e, em menos de 10 minutos, estariam no carro novamente. Ele levaria sua pistola e colocaria em Hyunjin seu colete à prova de balas. Estava certo. Daria certo.
Hyunjin saiu do quarto já vestido com uma calça jeans folgada e uma blusa preta sem nenhuma estampa ou desenho. Cabelos penteados, cheiro de sabonete e novamente do xampu. Felix se repreendia todas as vezes em que pensava no quanto Hyunjin ficava bonito em suas roupas.
Então, o policial tomou banho e se vestiu, enquanto, dessa vez, Hyunjin quem repassava a mesma estratégia. Rezava, mesmo que não fosse muito religioso, para que Seunghyun estivesse caçando-o bem longe do aglomerado de casas que era o bairro em que ele morava. Rezava, também, para que Senhor Miau ainda estivesse lá, fazendo cocô na sua caixinha de areia e que suas roupas não tivessem sido rasgadas ou queimadas. Vindo de Seunghyun, tudo era possível.
— Tudo pronto — Felix disse, aparecendo vestido à paisana. Não seria burro de colocar uma farda. Ele segurava uma pistola prateada com a mão direita e, logo em seguida, colocou no cós da calça.
— Tudo bem com você?
— Tudo bem — Hyunjin disse. — Quer dizer… eu acho que está tudo bem comigo.
— Tenho algo aqui que vai te deixar mais seguro.
Hyunjin ainda não tinha percebido (talvez por ter se distraído ao ver Felix empunhar aquela pistola), mas ele segurava uma espécie de colete preto com a mão esquerda.
— O que é isso? — perguntou, indo até Felix.
— Um colete à prova de balas.
— Você tem outro desses?
— É o único.
— Então por que está me dando?
— Porque você é o possível alvo, não eu.
— Stalker, não…
— Hyunjin, o colete é pra você — insistiu, e Hyunjin deixou seus ombros caírem. — Por favor, não discuta sobre isso.
Hyunjin, sabendo que Felix era tão teimoso quanto ele mesmo, deu-se por vencido. Felix, então, fez ele virar de costas, e quando Hyunjin ergueu a blusa preta que usava e expôs as costas com alguns de sinais de nascença, ele pensou que, caso as situações fossem diferentes, Felix se sentiria atraído por ele.
Hyunjin era alto, tinha um maxilar marcado, corpo esguio e uma bundinha linda — não pôde deixar de perceber —, além disso, seu sorriso, embora raro, era muito bonito. Hyunjin chamaria sua atenção por vários motivos, mas isso, claro, se estivesse sempre naquelas roupas masculinas, sem toda a maquiagem e sem os saltos altos voadores.
Felix terminou de fechar o colete o mais seguro possível no tronco de Hyunjin, depois disso, abaixou a camiseta, cobrindo o corpo dele novamente. Hyunjin virou para Felix com um sorriso de lado, um quê de implicância em seu olhar.
— Preciso de um desses pra trabalhar — Hyunjin disse. — Com meus canivetes e um colete à prova de balas, vou ser a puta mais blindada do país.
— Não diga besteiras — Felix disse, arrumando a arma no cós da calça. — Vamos. Quanto mais cedo formos, mais cedo voltaremos.
— É uma letra de rock?
— Você disfarça seu medo com sarcasmo? — perguntou Felix, já próximo à porta. Hyunjin o seguia com o som dos tênis surrados do policial em seus pés.
— Não, geralmente eu disfarço meu medo chutando as bolas de algum filho da puta. — O sorriso que veio em seguida fez Felix soltar o ar pelas narinas, escancarando a porta antes de pegar a chave do carro velho em um móvel perto da entrada da casa que, em dias comuns, estaria empoeirado e com manchas de dedos.
Eles saíram e pegaram o elevador até o estacionamento. Ao chegarem lá, Felix e Hyunjin foram até à lata velha e rezaram para que ele não morresse justo quando mais precisavam dele.
Entraram no automóvel, e Felix assumiu o banco do motorista. Colocaram os cintos de segurança e, antes de dar partida, o policial deu um longo suspiro, buscando a coragem que sabia existir em algum lugar dentro dele.
— Relaxa — Hyunjin disse.
— É um pouco difícil fazer isso quando estamos saindo em um resgate felino com possíveis atiradores nos esperando no local.
— Frita os miolos deles, ué.
— Fácil assim?
— É só apertar o gatilho — Hyunjin deu de ombros, tratando a ideia de “fritar os miolos” de alguém com bastante naturalidade.
— Não vamos fritar os miolos de ninguém — Felix disse. — Vamos entrar na sua casa, buscar suas roupas e seu gato, e depois vamos voltar para cá ultrapassando os limites de velocidade.
— Uau, um oficial quebrando as leis de trânsito — Hyunjin brincou, arqueando e abaixando as sobrancelhas duas vezes seguidas, malicioso.
— Eu sou policial, posso fazer o que eu quiser.
— Vai achando — Hyunjin disse. — Agora pisa no acelerador antes que eu mesmo tome o volante.
Hyunjin não sabia dirigir, bem mal sabia os nomes técnicos das peças de um carro, mas Felix não precisava saber.
Felix, como Hyunjin pediu, pisou no acelerador e deu partida no carro. Para a sorte deles, o automóvel não demorou para engatar, tampouco estava andando como uma tartaruga manca. Felix se lembraria de elogiar seu possante mais tarde, quem sabe encher o tanque com uma gasolina da boa. “Manda ver, amigão” disse em pensamento, saindo da garagem do prédio.
— Onde você mora? — indagou Felix, dirigindo pelas ruas de Jinhae.
— Fica a cinco quilômetros do centro, na rua Eondeog.
Felix se remexeu no banco do motorista, prendendo um pigarro na garganta.
— Você mora lá?
— Sim, algum problema?
— Nada, é só que… é uma favela.
— Grande descoberta, achei que morasse em um prédio de frente pro mar — debochou, revirando os olhos. — Eu sei que moro na favela, stalker. Não é como se eu gostasse.
— Tudo bem, eu não quis ofender, eu só…
— Fica quieto e dirige. Você é tão mais bonitinho calado.
Felix arregalou os olhos e fechou a matraca. Não queria discutir com Hyunjin, aquilo estava bem longe de fazer parte do plano. Tinham que ficar unidos, juntos, em paz, se quisessem concluir a missão com êxito.
Quando já tinham percorrido um terço do trajeto, Hyunjin, entediado, começou a remexer no porta-luvas do carro, encontrando, com sua curiosidade quase infantil, a coleção de fitas de Felix. Ficou atento, esperando algum tipo de comentário debochado como Jisung costumava fazer por ele colecionar fitas de músicas antigas. Hyunjin, no entanto, apenas arregalou os olhos ao ver uma fita em especial, o nome “Bon Jovi” escrito em um esparadrapo branco.
Mood: - Livin' On a Prayer - Bon Jovi
— Você tem fitas do Bon Jovi? — Hyunjin perguntou, os olhos brilhando.
— É, tenho algumas.
— Adoro Bon Jovi. Posso colocar?
— Claro — respondeu Felix, olhos no volante.
Hyunjin encaixou a fita no toca-fitas do carro e logo a melodia de Livin’ On a Prayer começou a ressoar dentro da banheira barulhenta. Hyunjin sorriu de orelha a orelha e Felix batucou os polegares no volante.
— Tommy used to work on the docks — cantou Hyunjin com toda sua voz, fechando os olhos e cerrando os dedos em um punho, balançando a cabeça no ritmo da música.
Felix riu, negando com a cabeça. Estavam indo para um confronto direto com algum maluco contratado por um cafetão experiente, ou com o próprio cafetão experiente, e Hyunjin estava cantando Bon Jovi como se estivesse no chuveiro.
— She says, we've got to hold on to what we've got — começou a batucar os dedos como se eles fossem baquetas em uma bateria, olhos fechados, boca escancarada cantando aquela música que ele costumava ouvir no rádio quando estava arrumando a casa.
Por um minuto, Hyunjin esqueceu de toda a merda em que ele tinha se afundado, esqueceu de Juyeon, dos policiais fedorentos no asfalto quente, de Seunghyun, do prefeito e do pau seboso, da cocaína outrora em seu bolso. Esqueceu que estava com um colete à prova de balas sob a camisa, uma pistola no cós da calça de Felix que Hyunjin sabia que não seria utilizada para fritar os miolos de ninguém. Por um minuto, ele só queria cantar Bon Jovi enquanto era levado até sua casa para resgatar o Senhor Miau.
— Vamos, stalker, você já tá de luto?! Relaxa. Só vamos morrer daqui a alguns minutos.
— Woah, we're half way there! — Felix cantou, dando uma curva na esquina, rindo da forma como Hyunjin gargalhou ao ouvir sua voz cantando a música.
— Woah, livin' on a prayer, Take my hand, we'll make it I swear, Woah, livin' on a prayer — cantaram juntos em uma harmonia desarmoniosa, ambas as vozes se sobrepondo à música que tocava no toca-fitas tão velho e defeituoso quanto o carro.
E cantaram a música inteira, até a voz de Bon Jovi sumir lentamente no efeito típico de final de música dos anos 80. E quando tudo ficou em silêncio novamente e o único barulho que podiam ouvir era o dos pneus cortando a estrada, deram-se conta de que aqueles quatro minutos haviam passado como se fossem apenas um.
Hyunjin daria tudo por mais quatro minutos ouvindo Bon Jovi.
Daria tudo para esquecer, de verdade, da dor que sentiu naquela madrugada de novembro de 1991. Daria tudo para esquecer o rosto de Juyeon, o sorriso perverso de Seunghyu, a ardência que ainda formigava dos tapas que recebeu de Jo Insung e da voz dele chamando-o de puta suja. Daria tudo para que sua gengiva cortada pela gilete sarasse antes que ele bebesse suco de limão, porque ardia. Daria tudo para que sua saia nunca mais fosse manchada de branco. Daria tudo para que Hyunsun estivesse morto e para que Chaeyoung tivesse engasgado com café requentado e ficado muda pra sempre.
Mas o gosto agre na boca veio com a constatação miserável de que ele passou a vida inteira dando tudo para muita gente, sem nunca receber uma foda de migalha de volta.
Chapter 6: Pólvora
Notes:
Ok, agora vocês estão pensando que eu realmente sou uma maluca que não sabe esperar e postar as coisas no dia certo. EU SOU! Fazer o que se sou ansiosa? Capítulo 06 fresquinho e, amanhã, 19/09, sai o 07. Por quê? PORQUE EU QUERO IR LOGO PRO ARCO 2. Sim, estamos encerrando o arco 1 neste capítulo e vocês vão sentir uma diferença IMENSA no arco 2. Eu diria que esse capítulo 06 é totalmente o oposto de todo o resto do arco 2, que é muito mais intenso, frio e denso. São 7 capítulos no arco seguinte e todos eles focando 100% no desenvolvimento do relacionamento dos Hyunlix.
Falando nisso, quero deixar claro, se é que já não está, que o relacionamento deles é difícil e conturbado. Não esperem nada bonitinho como foi em Two Queens, por exemplo. É um relacionamento duro e desconfortável em vários aspectos, então não digam que não foram avisados, ok?
Enfim, vamos ao capítulo 06!
Obs: Meios de investigação/sistema de saúde, como já mencionado, não têm nenhum compromisso com a realidade.
(See the end of the chapter for more notes.)
Chapter Text
Mood: É Preciso Dar Um Jeito, Meu Amigo - Erasmo Carlos
Felix ainda sentia a melodia da música arrepiar seus pelos. Engoliu em seco, a boca meio rachada e cinzenta pelo cigarro tremendo a cada metro mais perto que chegava do amontoado de casas que era a rua Eondeog, uma das comunidades mais carentes de Jinhae.
— Para o carro aqui — Hyunjin disse, dando dois tapinhas no braço de Felix. O policial assentiu e estacionou na esquina. — É melhor a gente ir andando pra que não reconheçam seu carro depois.
— Tudo bem — Felix respondeu, já tirando o cinto.
Hyunjin ofegou, fechando os olhos em seguida. Abriu a porta do carro com uma determinação que nem sabia se era real.
— Vamos.
Hyunjin e Felix saíram do carro e encontraram apenas algumas senhoras de vestido florido varrendo a calçada. Hyunjin rezou para que elas não o reconhecessem, que deixassem as roupas masculinas e largas passarem despercebidas, como se ele fosse mais um garoto pobre andando por ali e não o invertido de saia e salto alto que parecia feder a veneno de barata de tanto que torciam o nariz quando o viam.
Afinal, vestido daquele jeito, Hyunjin até mesmo parecia…
Eu estou falando essas coisas para o seu bem, porque te amo e quero que você seja…
normal
normal, Hyunjin
por que você não pode ser a porra de um garoto normal e parar de envergonhar sua família?
— Pra que lado fica sua casa? — Felix perguntou.
Hyunjin, que tinha os olhos perdidos na rua irregular de paralelepípedos, saiu do transe em que ele ouvia a voz áspera de Chaeyoung sete anos atrás.
— Subindo a ladeira — ele disse, apontando para a subida de pedregulhos.
Caminharam lado a lado. O sol estava quente, escaldante, fritando as faixas de pele expostas, e eles apertavam os olhos em linhas finas para protegê-los da luz. Subiram a ladeira e, quando chegaram ao topo, viram mais casas amontoadas, algumas com a madeira carcomida aparente, sem nenhum revestimento ou pintura. O estômago de Felix deu um nó ao se deparar com aquele lugar que ele sabia existir, mas que ignorava todos os dias, assim como todas as autoridades daquela cidade sabiam de tudo que acontecia com pessoas como Hyunjin e também as ignoravam.
— Qual é a sua ? — Felix perguntou.
Hyunjin engoliu em seco, olhando para todos os lugares à procura de alguém que parecesse suspeito, vendo apenas algumas crianças brincando nas calçadas, homens de meia-idade consertando coisas na frente de casa e mulheres de cabelos grisalhos costurando e bordando ao ar livre.
Não havia nada de suspeito. Estava tudo normal.
normal
normal
por que você não pode ser normal, Hyunjin?
O perigo morava na tranquilidade.
Com os olhos quase se fechando e sobrancelhas junto juntas, virou-se para Felix.
— Vão me entregar.
— Do que está falando? — indagou o policial, segurando nos seus antebraços.
— De todos eles.
Felix olhou ao redor, não vendo ninguém que parecesse observá-los diretamente.
— Seunghyun mandou todos vigiarem a rua — Hyunjin completou.
— Hyunjin…
— Vão me entregar, stalker, eu sei que vão.
— Ei, calma — Felix pediu, levando uma de suas mãos até a bochecha pálida de Hyunjin, fazendo com que ele olhasse dentro dos seus olhos. — São apenas pessoas normais. Não vão te entregar.
— Mas…
— Confia em mim — disse, mesmo sabendo que pedir confiança a Hyunjin era bem difícil. — Me mostra onde é sua casa. Nós vamos pegar o Senhor Miau e suas roupas, voltaremos em poucos minutos para o carro e vai dar tudo certo.
— Não vai.
— Vai, sim — Felix afirmou, apertando mais os braços de Hyunjin, tentando passar uma segurança que nem ele mesmo tinha.
No carro, fazendo piada com que poderiam enfrentar, Hyunjin não parecia o garoto assustado que tinha o queixo tremendo e os olhos percorrendo cada pedrinha da rua.
— Fica bem ali — Hyunjin apontou, mostrando uma casa pequena que tinha a fachada pintada de azul.
— Tudo bem, vamos até lá.
Então, Felix o incentivou a caminhar até a casa azul. Foram até lá com uma desconfiança genuína quase maciça entre eles, prestando a atenção em todas as pessoas que cruzavam com eles na rua. Felix levou a mão ao cós da calça onde estava a pistola várias e várias vezes, pronto para sacar a arma caso alguém se aproximasse além da linha imaginária de proteção ou tentasse algo contra eles.
Chegaram à casa de Hyunjin e ele suspirou aliviado. Pelo menos, tinha sobrevivido ao primeiro caminho. Hyunjin abriu o pequeno portão enferrujado e deu passagem para Felix entrar. Quando ele o fez, tornou a fechá-lo.
— A porta está trancada — Hyunjin disse com um certo alívio após tentar girar a maçaneta.
— Você tem a chave?
— Tem uma no girassol morto do lado do portão — apontou para onde Felix estava.
Ao lado dos seus pés, um pequeno jarro com o que um dia foi um girassol bonito, mas que agora estava marrom como o céu em dias de muita poluição.
Felix se abaixou e pegou o jarro, procurando, na terra poeirenta, a chave reserva. Quando a encontrou, entregou para Hyunjin.
— Entra — Hyunjin disse quando abriu a porta.
A primeira visão que Felix teve ao entrar foi a sala de estar. Era um cômodo pequeno, iluminado apenas pela luz do sol que adentrava por uma fresta da janela quebrada de vidro. Havia uma poltrona preta de couro rasgado, com um pouco de espuma branca vazando. A TV pequena de no máximo dezessete polegadas estava sobre um móvel antigo, cuja madeira, de tão deteriorada, começava a se desfazer.
Hyunjin, ao seu lado, encolheu os ombros e desviou os olhos para o lado, as bochechas vermelhas com o que parecia ser… vergonha.
— Vou pegar o Senhor Miau — ele disse, como se para sair dali.
Felix assentiu, ainda olhando para os detalhes.
A casa, apesar de simples, era muito organizada. O chão estava limpo, os móveis não tinham pó e havia até mesmo um cheiro bom de lavanda, talvez devido a algum produto que Hyunjin passava no ar.
Enquanto isso, Hyunjin foi até a área de serviço, onde o Senhor Miau geralmente ficava. Ao chegar lá, encontrou o gatinho preto dormindo debaixo da pia. A caixinha de areia suja com cocô e xixi denunciava que ele não tinha saído dali nas últimas horas.
— Oi, bebê — Hyunjin sussurrou, abaixando-se para ficar próximo ao gato. — Papai veio te buscar.
Ele acariciou o pelo escuro do gatinho e ele acordou, espreguiçando as patas frontais e abrindo o bocão cheio de dentes miúdos. Senhor Miau reconheceu o dono — ou papai — e se esfregou nas pernas de Hyunjin, ronronando e quase dizendo “senti sua falta, cara. Quem iria encher minha tigela de comida?”
— Vem, eu vou te levar daqui — Hyunjin disse, fazendo carinho entre as orelhas do gatinho. — Não é mais seguro.
Hyunjin o pegou no colo e o levou até a sala, onde Felix ainda permanecia como um cão de guarda. Ele estava atento a qualquer coisa que pudesse entrar pela janela ou pela porta da frente.
— Vou pegar minhas roupas. Você olha o Senhor Miau pra mim? — Hyunjin perguntou, entregando o gato nos braços do policial.
— Tá, eu… olho — disse, meio desconfortável com o gatinho em seus braços. — E aí? — falou com o gato.
E aí, manézão? Diria Senhor Miau, caso pudesse falar, mas, como não podia, apenas ronronou, gostando dos braços de Felix.
Não demorou mais do que dez minutos. Hyunjin voltou à sala com uma mochila nas costas, provavelmente onde havia amontoado algumas peças de roupa e sapatos, apenas o bastante para passar os dias que precisava na casa de Felix.
— Tudo pronto — ele disse, segurando na alça da mochila.
— Podemos ir?
— Aham — Hyunjin respondeu, respirando fundo ao olhar para sua casinha. Não era de fato sua, mas passou sete anos naquele muquifo e acabou se apegando ao local.
O Senhor Miau, ainda no colo de Felix, não se deu conta da gravidade do que iria acontecer quando Hyunjin abrisse a porta. Ele ronronou mais uma vez nos braços do policial, esfregando os pelos pretos na camisa dele, sem se importar se ela ficaria impregnada com os fiozinhos finos.
Hyunjin girou a maçaneta. O que viu fez seu estômago embrulhar.
— Indo a algum lugar, meu menino lindo?
A voz dele era suave, como Hyunjin lembrava de ouvir todos os dias. Quase paternal.
ou infernal
A diferença era que, agora, ela carregava uma frieza que seria capaz de congelar até mesmo o sangue nas veias de Hyunjin.
Seunghyun estava apoiado no batente da porta. Usava uma camiseta de cetim escura, parte do peito à mostra, os cabelos perfeitamente penteados para trás, que reluziam com o gel caro. Também havia aquele maldito sorriso que Hyunjin conhecia tão bem e ainda assombraria os seus pesadelos por muito tempo.
— Seunghyun — Hyunjin sussurrou, e foi como se toda a sua força tivesse sido drenada.
— Eu sempre achei que você fosse inteligente, Hyunjin — ele riu baixinho, um som que não tinha nada de alegre. — Mas voltar para essa casa depois do que você fez ontem… tsc — estalou a língua no céu da boca. — Não foi a coisa mais esperta.
Felix sentiu o corpo de Hyunjin tremer ao seu lado. Os dois estavam paralisados.
— Sete anos, Hyunjin — Seunghyun continuou. — Sete anos investindo em você, cuidando de você, e você me trai desse jeito?
Instintivamente, Felix deu um passo à frente, colocando-se parcialmente entre os dois.
— Ah, o policialzinho de novo? — Seunghyun o encarou, passando a língua pelos lábios. — Você faz ideia de quanto vale a mercadoria que está tentando roubar de mim, oficial?
A palavra mercadoria fez Hyunjin cambalear para trás. Felix sentiu uma onda de náuseas ao compreender o que ele estava querendo dizer.
— Ele não é a sua propriedade — Felix rosnou, a mão indo até a pistola no cós da calça.
— Não mesmo? — Seunghyun riu, mas o som era cortante como vidro. — Você não faz ideia de no que está se metendo, seu policial de merda. Eu construí um império nessa cidade. Jinhae é minha antes mesmo de você vestir aquela sua farda e ganhar essa pistola. Você acha que, sozinho, metendo esse seu nariz onde não deve, vai conseguir acabar com alguma coisa?
Então, Felix sentiu uma onda de adrenalina percorrer seu corpo. Ele estava certo. Por todo aquele tempo, ele estava certo.
Seunghyun bateu a porta com força, forçando-os a entrar na casa modesta. O gato preto se assustou nos braços de Felix e, depois, pulou para fora deles, assustado.
— Seunghyun — Felix disse —, se você cooperar, podemos nos dirigir à delegacia e você terá direito a uma defesa como qualquer cidadão coreano. Se continuar fazendo isso, terei que seguir pelo método mais difícil.
A risada amarga fez o estômago de Felix revirar.
— Eu acho que quero ver seu método mais difícil, oficial Lee — debochou, muito porque sabia sobre o comportamento negligente dos policiais de Jinhae.
— Seunghyun, eu o aconselho…
— Eu quero falar com o Hyunjin primeiro — interrompeu, cruzando os braços sobre o peito.
Hyunjin já mordia os lábios com força, olhos molhados e uma dor no peito que o fazia ignorar até mesmo o Senhor Miu se esfregando em suas pernas.
— Você lembra do que eu te disse quando te tirei da rua, Hyunjin? — Seunghyun disse, olhos fixos nele. — Eu disse que você ia ser meu a partir dali. Corpo, alma, até mesmo os seus pensamentos eram meus. E você acreditou e até gostava.
— Eu nunca gostei — Hyunjin sussurrou, mas sua voz carecia de convicção.
— Não? — sorriu, cruel. — Então por que você nunca gritou por ajuda por todos esses anos?
— Porque você dizia que ia me matar! — Hyunjin esbravejou, as lágrimas começando a rolar pelo rosto. — Você dizia que se eu contasse sobre o que você fazia a alguém, eu ia me foder e você ia destruir a minha vida! Era isso que você dizia todo dia, Seunghyun, todo maldito dia!
Felix viu Hyunjin começar a tremer mais violentamente, e algo dentro dele se partiu. A manipulação psicológica entre eles era evidente, como Seunghyun plantou dúvidas e um medo crônico na mente de Hyunjin durante anos era assustadora.
— E eu vou, sua puta suja — Seunghyun cuspiu no chão. Hyunjin se encolheu dentro de si mesmo, negando com a cabeça. — Seu pedaço de merda. Eu vou destruir sua vida, sim, mas eu não vou te matar. Sabe o que eu vou fazer com você?
— Mais uma palavra e eu te dou voz de prisão, porra — Felix tentou mais uma vez, mas tudo que recebeu foi mais uma risada amarga.
Como ele era fraco.
— Eu vou te acorrentar em um dos quartos da boate por um mês — apontou para ele. — Vou te deixar sem ganhar um tostão, trabalhando pra mim de graça, trepando com quem eu mandar, até eu decidir que você foi punido o suficiente.
— Não… — Hyunjin murmurou.
O Senhor Miau começou a arranhar sua calça, então ele, em um gesto impensado, abaixou-se e pegou o gatinho, abraçando-o. Era seu único ponto de refúgio naquele momento.
— Bem, aqui vai minha proposta, oficial Lee — Seunghyun bateu as mãos na calça jeans, respirando fundo. — Hyunjin volta comigo e você pode continuar com sua carreira na polícia, fingindo que é cego, surdo e mudo, como todos os policiais e autoridades dessa cidade. O que acha?
— Vai pro inferno.
— Sendo assim… — Seunghyun puxou mais o ar para dentro dos pulmões, levando a mão até o cós da calça.
Hyunjin tremeu.
— Não — ele disse, dando um passo à frente. — Eu vou com você, mas deixa ele em paz.
— Hyunjin, não — Felix protestou, mas Hyunjin já estava indo na direção de Seunghyun.
— Eu sou seu, não é isso que você disse? — Hyunjin engoliu em seco, sob o olhar apavorado do policial. — Então ótimo. Me leva, me castiga, faz o que você quiser comigo. Eu não valho porra nenhuma mesmo, mas você vai ter que me prometer que vai deixar ele em paz.
— Bom menino — disse Seunghyun, mordendo os lábios. — Você conseguiu tirar uma lasquinha dele, oficial? — riu de lado, segurando no rosto de Hyunjin. — Aposto que você ia gostar. Caso cumpra nosso acordo, eu deixo o senhor visitar o quarto onde ele vai ficar de castigo, pensando se vale a pena me desobedecer.
Felix quis matar naquele homem, fritar os miolos dele, como nunca pensou que desejaria. Seu sangue estava fervendo, borbulhando sob a pele. Ele tinha que fazer alguma coisa.
Mas, como sempre, ele se provava como a porra de um incompetente de merda, um policial que não merecia o distintivo ou a farda que fazia os moradores o respeitarem. Ele era uma vergonha, um completo bosta que achou que poderia mudar alguma coisa em sua vida naquela investigação, mas tudo o que conseguiu foi falhar. De novo, e de novo, e de novo.
— Stalker? — A voz de Hyunjin cortou o silêncio, tirando Felix dos seus devaneios. — Quer ver uma coisa maneira?
Seunghyun franziu o cenho, mas não conseguiu dizer mais nenhuma palavra. O soco veio seco, sem qualquer aviso. Hyunjin acertou o nariz dele, e enquanto Seunghyun estava segurando o osso possivelmente quebrado, agarrou a mão de Felix. Com o braço livre, apertou o Senhor Miau contra o peito, arrastando-os para fora daquele lugar.
— Ele está vindo atrás de nós — Felix disse, com a voz ofegante pela corrida quando atravessaram o portão.
— Corre e não olha pra trás — respondeu Hyunjin.
Eles correram pela rua de casas amontoadas, os olhares das pessoas repreendendo aqueles dois jovens que pareciam tão inconsequentes. Hyunjin ainda chorava com as imagens do que poderia acontecer com ele caso Seunghyun conseguisse capturá-lo.
Primeiro, Hyunjin levaria uma surra, daquelas que o deixava de cama por uma semana. Sabia como era, porque aconteceu um par de vezes. Depois, ficaria trancado em casa sem comer, sem TV, sem seu gato (que Seunghyun daria um fim) e sem qualquer tipo de direito humano básico. Seu estômago embrulhou. Depois, Seunghyun cumpriria o que disse sobre acorrentá-lo em um dos quartos na boate. Porra. Ele quase conseguia sentir isso acontecendo.
Felix e Hyunjin correram ainda mais rápido quando Seunghyun começou a se aproximar, e os ofegos de Felix eram audíveis a metros de distância.
Talvez fosse má sorte, talvez o destino escarrasse na cara de Hyunjin mais uma vez, lembrando-o brutalmente que ele não merecia nada além de dor. Um pedregulho irregular explodiu contra o bico do tênis como uma armadilha esperando há anos por sua vítima, fazendo Hyunjin voar por alguns segundos antes de se chocar contra o chão. O Senhor Miau deu um grito esganiçado, caindo de pé em algum lugar. Enquanto isso, suas palmas se acabaram contra as pedras afiadas como cacos de vidro, a pele se abrindo em arranhões que não sabia se eram ou não profundos, mas que pingavam algumas gotas de sangue quente sobre o chão. Seu queixo bateu contra as pedras com um estalo nauseante, deixando um rastro carmesim.
Ele se viu jogado de volta ao inferno de 91, quando era apenas um garoto destruído e abandonado no chão, sem ninguém, sem nada, sem esperança, sem a única pessoa que um dia pensou tê-lo amado.
— Juyeon!
O grito rasgou sua garganta naquela época, mas o namorado simplesmente pisoteou seu coração partido e seguiu em frente.
— Felix!
Desta vez, o desespero transbordou naquele grito e, ao ouvir aquele clamor agonizante ecoando pela rua, Felix sentiu cada fibra do seu coração se despedaçar antes de abandonar qualquer perspectiva de fuga para correr até ele.
Seunghyun surgiu como uma sombra vingativa e cravou suas mãos nos tornozelos de Hyunjin, arrastando seu corpo machucado contra os pedregulhos cortantes, que rasgavam sua pele como lâminas com sede de sangue. Hyunjin se contorceu em agonia, tentando escapar daquelas mãos que o puxavam de volta para uma vida miserável, para um castigo sádico, para qualquer coisa que o reduzisse a uma massa inútil de carne e ossos que não serviria para nada além de foder.
Já era tarde demais.
— Me solta! — Hyunjin gritou, tentando chutar Seunghyun com a pouca força que tinha, mas foi em vão.
— Eu vou te destruir, sua putinha miserável — Seunghyun cuspiu. — Eu vou te matar, porra!
E foi só ali que Hyunjin percebeu o que ele carregava na mão. Um revólver preto, bem diferente da pistola prateada que Felix guardou no cós da calça. Hyunjin sentiu sua espinha congelar como se ele tivesse acabado de sair de um freezer gigante.
— Solta ele! — Felix gritou, tirando a pistola da calça. Escorreu o dedo pela trava e apontou para Seunghyun. No mesmo instante, ele também teve o cano do outro revólver apontado em sua direção. — Eu vou te colocar em uma cela suja, você tá me ouvindo, porra?! Você vai apodrecer na prisão, seu filho da puta!
Seunghyun riu cheio de escárnio.
— Ah, eu vou?
De repente, o cano se voltou contra Hyunjin, mirando a testa suada.
Hyunjin estremeceu, apertando o braço de Seunghyun que envolvia seu pescoço como uma coleira. Seu queixo arranhado tremeu, assim como as pernas de Felix. O policial engoliu em seco, apertando a pistola entre os dedos, as mãos trêmulas.
— Solta ele. — Felix disse. — Solta ele, caralho, eu tô mandando!
— Você não manda em porra nenhuma, seu policial de bosta.
Felix olhou para o revólver, o cano parecia debochar dele. A saliva atravessou, áspera, a garganta, quase corrosiva.
— Solta ele e eu… eu deixo você ir.
— Só pode ser piada — Seunghyun rebateu.
— É uma troca justa.
— Estamos bastante justos aqui — ele balançou o revólver próximo a cabeça de Hyunjin. Ele estava com o dedo no gatilho.
— Eu já ouvi tudo sobre seu esquema nojento em Jinhae, então não acha melhor ir embora agora antes que as coisas piorem pro seu lado? — Felix tentou negociar, mas ele parecia se esquecer do tipo de gente com que estava lidando.
— Eu acho melhor você ir embora se não quiser uma bala nessa sua cabeça.
— Não é uma opção — Felix disse, dando passos tão curtos que se perdiam no nervosismo que cruzava seu corpo.
— Então temos um problema bem aqui.
— F-Felix… — Hyunjin choramingou, sentindo o cano gelado do revólver contra sua têmpora esquerda. — Vai embora, eu vou ficar bem.
— Não — Felix respondeu firme. — Não saio daqui sem você.
O Senhor Miau, rondando aqueles três personagens do que poderia ser um filme de terror amador, começou a se agitar, assustado, como se tentasse entender o motivo de o cara que enchia sua tigela de ração estar gritando e chorando tanto.
— Por favor — Hyunjin disse com a voz quebrada. — Vai.
— Melhor ouvir meu menino — disse Seunghyun. — Ele tem razão quando diz que vai ficar bem. Eu vou dar um jeito nele.
O sangue de Felix ferveu, seus olhos ficaram escuros e ele apertou a pistola com uma força que só se lembrava de ter feito quando estava nas aulas de tiro. Pensou por um segundo, talvez dois, antes de puxar o gatilho e atirar para cima, fazendo os moradores gritarem assustados, inclusive Hyunjin.
— Eu estou avisando. A próxima vai ser na sua perna — disse o policial. — Ou no coração.
— Pelo amor de Deus — Hyunjin gritou entrecortado. — Felix, sai daqui, caralho!
— Não vou sair daqui, porra! Eu não vou te deixar.
Felix, vislumbrando o olhar cruel daquele homem que apontava o revólver para Hyunjin, continuou dando passos curtos, e foram tantos que o fizeram chegar próximo aos dois. Seunghyun apertou mais o pescoço de Hyunjin.
— Nem mais um passo.
— Estou bem aqui — Felix disse. — Mas você vai correr agora.
O segundo tiro foi dado nos pedregulhos sob os pés de Seunghyun, que o fez cair para trás. Hyunjin, aproveitando o momento de desequilíbrio dele, saltou da coleira agonizante que era o braço de Seunghyun, pegou o Senhor Miau com uma só mão e correu para longe dele.
Mas Hyunjin sabia que não estava ficando louco. Ele ouviu mais uma coisa.
Bastou olhar para o lado que ele soube que não foi disparado apenas um tiro vindo da pistola de Felix, mas sim, dois, e o segundo saiu da arma que Seunghyun empunhava.
E aquela segunda bala saiu quente bem na direção de Felix.
Mood: Bohemian Rhapsody - Queen
Hyunjin ficou atordoado, como se o mundo a sua volta tivesse entrado em câmera lenta. Seus olhos piscavam repetidas vezes, tentando assimilar o que tinha acabado de acontecer, mas ele não conseguia associar o que estava vendo ao que realmente tinha ocorrido.
Fora rápido como cair no sono, mas era mais violento e sangrento; o disparo de uma bala era ligeiro, mas tudo que se seguia depois era uma pura e demorada agonia.
Gritos altos ao seu redor e um resmungo de dor logo em seguida. Enfim, ele saiu do pequeno transe que havia se iniciado há poucos instantes, e foi como se mudassem o modo câmera lenta para um efeito de aceleramento em poucos milésimos. Alguém estava com o controle remoto da TV monitorando aquela cena, e ele rezou baixinho para ela escolher qual modo de reprodução viria a seguir com sabedoria, pois Hyunjin não aguentaria mais uma troca brusca.
As pessoas ao redor, tão assustadas quanto o próprio Hyunjin, correram na direção do disparo para saber qual seria o desfecho daquela cena quase teatral. Seunghyun ficou parado no meio da estrada, respirando fundo. O desespero de Hyunjin foi tanto que ele esqueceu a dor de um queixo sangrando e das mãos arranhadas para correr até Felix e ampará-lo.
O policial estava de joelhos no chão.
— Felix! — gritou, ainda segurando firme o Senhor Miau. — Felix, você tá bem? Pelo amor de Deus, me diz que você tá me ouvindo!
Felix olhou para Hyunjin com as pupilas dilatadas, cílios emaranhados por lágrimas grossas que teimavam em escorrer de seus olhos e uma dor excruciante que parecia queimar a pele do braço esquerdo. A pistola estava esquecida no chão de pedregulhos, que deixou cair quando a bala passou raspando pelo seu antebraço. Lembraria de agradecer à péssima mira de Seunghyun por não acertar aquele projétil em seu coração.
— E-Estou… arg! — grunhiu com a dor que se alastrava pelo braço, sangue escorrendo pelo rasgão feito pela bala.
Mas, através da névoa de dor que nublava sua visão, Felix viu Seunghyun se aproximando novamente, um meio sorriso cruel estampado no rosto, como se admirasse sua própria obra. A fúria explodiu no peito de Felix como lava.
Com um movimento que desafiou toda a agonia que sentia, Felix esticou o braço bom e agarrou a pistola do chão, arrastando pedregulhos e areia junto. Seus dedos tremiam, mas a determinação era mais forte que a dor.
— Filho da puta! — rosnou entre os dentes cerrados.
O primeiro disparo atingiu o ombro de Seunghyun, fazendo-o girar e cambalear. O segundo perfurou sua coxa, derrubando-o de joelhos. Felix continuou atirando com uma precisão letal, mesmo que nunca tivesse estado em um embate como aquele em toda sua carreira policial.
Seunghyun desabou no chão, gemendo e se contorcendo em uma poça de seu próprio sangue, finalmente provando do mesmo veneno que havia oferecido momentos antes.
Felix parou na frente dele, o braço queimando, Hyunjin em pânico logo atrás.
— Você nunca mais vai tocar nele — Felix disse, a mandíbula travada. — Você me ouviu, seu desgraçado? Você nunca mais vai colocar essas suas mãos imundas no Hyunjin. Sabe por quê? — apontou a arma para o peito de Seunghyun, fechando um dos olhos para que a mira não falhasse. — Porque você vai pro inferno hoje.
Então, Felix atirou. Ele atirou no peito de Seunghyun, bem no coração.
Ele caiu com um estalo seco no chão, olhos arregalados, encarando Hyunjin, que apertava o Senhor Miau contra o peito e tinha a boca escancarada.
— Seung… Seunghyun — ele murmurou, vendo a vida deixar o corpo moribundo de quem foi, por anos, o seu pior algoz. — Seunghyun… Não… Seung… Seunghyun…
— Eu sou policial! — Felix gritou para os moradores, que observavam tudo com os olhos escancarados. — Eu sou policial, porra! Então ninguém vai dar um pio até ser autorizado, ouviram? Ninguém!
O ferimento no braço ardeu como o inferno, e Felix grunhiu. Caminhou cambaleando, estranhamente, sem carregar nenhum resquício de culpa por tirar a vida daquele homem.
— Precisamos sair daqui — Felix disse, chegando perto de Hyunjin, a voz rouca, mas firme.
Hyunjin tinha o rosto molhado de sangue, suor e lágrimas, e expressões que demonstravam o seu choque.
Seunghyun estava caído no chão, morto. O homem que esteve todos os dias ao seu lado, por sete anos, comprando comida, roupas, comida para o Senhor Miau, e o fodendo sempre que tinha vontade. Seunghyun estava morto. Que beijava seu cabelo e respirava no seu pescoço. Morto. Mortinho mesmo.
Felix o matou.
— Seunghyun — Hyunjin piscou os olhos, grogue, em um estado quase catatônico. — Você… você o matou… você…
— Hyunjin — Felix chamou, sério, o braço queimando. — Temos que ir a um hospital e ligar para a central cuidar disso. Precisamos ir.
— Mas… Ele não pode ficar aí… ele… — mordeu o lábio inferior, olhos fixos no corpo de Seunghyun caído nos pedregulhos. — O sol… ele não gosta… ele… temos que…
— Hyunjin, porra! — Felix gritou tão alto que sua garganta doeu. — Olha pra mim! — sacudiu os ombros dele com o braço que não estava ferido. — Olha pra mim agora! — Hyunjin, enfim, olhou para ele. — Vamos embora agora, ouviu?
— Ouvi — Hyunjin disse, ainda baixo. — Eu ouvi.
— Então vem.
Então, eles saíram, enquanto os inúmeros curiosos começavam a fazer uma roda ao redor do corpo de Seunghyun estirado no chão, ainda com os olhos arregalados.
A mochila pesada, ainda presa nas costas de Hyunjin, pesou, mas aquilo era a última coisa que ele conseguia pensar no momento. Com dificuldade, Hyunjin conseguiu ajudar Felix a caminhar ladeira abaixo, já que ele estava tonto devido à perda de sangue do ferimento.
Havia um gosto amargo na sua língua. Não sabia o que era, mas algo dentro dele estava corroído pelo medo e pelo choque de ter visto Felix atirando em Seunghyun. Nunca imaginou que fosse ver aquela cena alguma vez na sua vida. Nunca.
Felix estava agindo como se não soubesse sequer o que fazer desde que encontraram Seunghyun na entrada da casa, mas, repente, ele havia se transformado. Os olhos escureceram, a pele ficou arrepiada, e a voz, já grave e rouca, pareceu ficar ainda mais profunda.
Então, ele atirou em Seunghyun, jurando que ele nunca mais colocaria as mãos em Hyunjin.
Felix matou uma pessoa para protegê-lo.
Eles abriram a porta do carro e tomaram seus respectivos lugares por meros instantes. Hyunjin olhou para Felix com o cenho franzido, e o Senhor Miau, que estava em seu colo, confuso o pobrezinho, sequer sabia o que estava acontecendo.
— Precisamos estancar o sangue — Felix disse, mordendo o lábio inferior para conter um gemido de dor. Hyunjin assentiu várias vezes, virando um pouco o corpo para o lado para ter acesso ao braço do policial. — Tira minha camisa.
O estado de choque de Hyunjin ainda anestesiava seu corpo e sentidos.
— O quê?
— Hyunjin, tira minha camisa pra que eu possa estancar o sangue! — Felix disse, alto, e Hyunjin, confuso e já começando a dizer coisas sem sentido, deu-se conta do que teria de fazer.
Com as mãos trêmulas, começou a desabotoar a camisa de Felix com cuidado para não machucar ainda mais o ferimento no braço. Pouco a pouco, o dorso do policial foi exposto, e Hyunjin enfim conseguiu ver o estrago que aquela segunda bala havia feito.
O braço direito de Felix estava com uma ferida circular, de onde jorrava uma quantidade absurda de sangue. Hyunjin arregalou os olhos e sentiu o estômago vazio revirar, o gosto amargo da ânsia em sua boca.
— Está muito feio? — Felix perguntou, torcendo um pouco o pescoço para conseguir ver o estado do seu braço.
— Eu acho que vou vomitar.
— É, está bem feio — disse, apertando os olhos com força para tentar esquecer a dor. — Rasga um pedaço da minha camisa, uma tira grossa.
— Tá — Hyunjin assentiu.
— E depois amarra no ferimento. Vai ajudar a estancar o sangue.
Hyunjin apenas balançou a cabeça, já colocando os dentes no tecido da camisa de Felix para poder rasgar a faixa que serviria como uma gaze enquanto não chegavam ao hospital.
— Me dá seu braço — Hyunjin pediu, acomodando Senhor Miau entre suas pernas e puxando o braço de Felix bruscamente.
— Com cuidado! — Felix disse.
Hyunjin assentiu. Já com a faixa de tecido em mãos, envolveu o braço do policial com o tecido extraído da blusa.
— Urg! — Felix gemeu de dor quando Hyunjin pressionou a tira com força. — Tudo bem, tudo bem — disse ele para si mesmo, acalmando-se. — Preciso… Preciso chamar os policiais da Central — murmurou, encostando a cabeça no branco do carro. — Changbin e Jeongin mais atrapalhariam do que ofereceriam alguma ajuda.
— Como vai fazer isso? — Hyunjin indagou.
— O rádio do carro. Nunca precisei usá-lo, mas acho que agora é uma boa hora.
— Tá, então faz isso logo.
Felix esticou o braço que não estava ferido em direção ao rádio do carro, suas mãos tremendo ligeiramente enquanto ele ajustava a frequência. O som estático preencheu o silêncio tenso por alguns segundos antes de ele conseguir estabelecer o contato.
— Central, aqui é o oficial Lee Felix, distintivo 2847 — Felix disse, a voz profunda e profissional, mascarando ao máximo a dor que sentia. — Preciso de apoio imediato na rua Eondeog.
A voz crepitante do outro lado respondeu:
— Lee Felix, confirme sua posição. Recebemos chamadas sobre disparos na área.
Felix respirou fundo, organizando os pensamentos. Hyunjin o observava, ansioso, ainda segurando o Senhor Miau contra o peito.
— Confirmo a posição. Tivemos um confronto armado. Um homem foi morto em legítima defesa. O suspeito havia sequestrado um civil e estava armado. Houve uma troca de tiros e preciso de uma equipe de perícia no local.
— Entendido, oficial Lee. Há feridos?
Felix olhou para o curativo improvisado em seu braço, já tingido de vermelho pelo sangue que não deixava de escorrer.
— Afirmativo — ele respondeu à pergunta. — Eu fui atingido no braço. Ferimento de bala, mas estável. A vítima do sequestro está em estado de choque, mas saiu apenas com alguns arranhões.
Hyunjin o olhou com uma mistura de surpresa e gratidão. Felix estava mentindo sobre a gravidade dos ferimentos para protegê-lo, transformando toda aquela bagunça na qual haviam se metido em uma operação policial legítima.
— Equipes a caminho, oficial Lee. Tempo aproximado de quinze minutos.
— Recebido, central. Lee Felix, câmbio e desligo.
Felix desligou o rádio e se recostou no banco, os olhos fechados por um instante.
— Eu sempre quis dizer isso — Hyunjin comentou.
— O quê?
— Câmbio e desligo, como nos filmes.
— Ah.
— Devia ter pedido uma ambulância — disse, apontando para o braço de Felix.
— Não dá, vai demorar muito. Precisamos ir ao hospital agora.
E foi aí que alguns detalhes entraram em questão: Felix estava com o braço ferido, impossibilitando-o de fazer muitos movimentos, já que dirigir com apenas uma mão e sentindo uma dor tão forte quanto a de um tiro era impossível e, para piorar, Hyunjin não sabia dirigir um carro. Eram muitos problemas vindo em uma enxurrada só, e quando ambos se deram conta disso, olharam-se espantados.
— Você precisa dirigir — Felix disse, e Hyunjin negou várias vezes, lábios partidos em descrença.
— Não, não mesmo — negou com a cabeça várias vezes. — Não vou pilotar essa lata velha!
— Hyunjin, você precisa!
— Eu vou terminar de te matar!
— Bom, não teríamos muito a perder…
— Eu nunca dirigi um carro na vida! Se está querendo se matar, pega — entregou a pistola prateada na mão do policial —, manda ver, mas me tira dessa!
— Escuta aqui — Felix disse, duro —, você vai sentar nesse banco, pegar esse volante e fazer tudo que eu disser. Não são muitos quilômetros até o hospital, vamos ficar bem.
— Stalker, você está completamente louco.
— É isso ou eu sangrar até a morte enquanto espero uma ambulância.
Determinado, Felix saiu do carro, atravessando-o até estar do lado da porta do passageiro. Hyunjin olhou para ele com os olhos arregalados, descrentes de que ele realmente iria fazer aquela loucura.
Vendo-se em uma via de mão única, Hyunjin percebeu que não havia mais nada a fazer a não ser mover-se para o assento ao lado, já colocando o cinto e deixando-o bem seguro. Felix sentou-se no lugar onde outrora ele estava.
Hyunjin respirou um, dois, três, e apertou firme no acelerador, dando partida no carro. No mesmo instante, gritou, não sabendo como controlar o volante e nem a embreagem.
— Calma! — gritou Felix, vendo o desespero de Hyunjin, mas, pelo menos eles já estavam cruzando a rua em linha reta. — Vai devagar. — Hyunjin a soltou de uma vez, fazendo o carro acelerar rapidamente, dando um solavanco para frente. — Devagar!
— Para de me pressionar! — gritou Hyunjin, desesperado.
— Ai, meu Deus. Meu Deus, eu vou morrer — Felix disse. O Senhor Miau miou alto, completamente perdido em meio àquela confusão.
Após alguns instantes, Felix disse:
— Presta atenção, coloca a mão na marcha.
— O que é isso? — Hyunjin franziu o cenho.
— Isso aqui, a marcha — pegou uma das mãos trêmulas de Hyunjin e a posicionou sobre a marcha, colocando a sua por cima. — Vai soltando devagar, senão o carro desliga — disse ele, frisando a parte do devagar. — Quando precisar mudar de novo, eu falo.
— Isso é pra gente doida — Hyunjin disse, as mãos suando no volante, sentindo que, a qualquer momento, aquela banheira iria começar a andar por contra própria até que estivessem se chocando contra um poste.
— Continua, você está indo bem — Felix disse, mentindo para si mesmo e para Hyunjin.
Já haviam saído do bairro e agora dirigiam pelas ruas irregulares de Jinhae. Hyunjin controlava o acelerador e o volante enquanto Felix o auxiliava, dizendo a hora em que ele deveria passar as marchas. Eles haviam estancado algumas vezes por conta da falta de habilidade de Hyunjin, e Felix teve que livrá-los de um baque mais de três vezes, mudando a direção do volante com seu braço bom.
— Vira a direita com cuidado — Felix disse, e Hyunjin virou o volante para o lado indicado, conseguindo com muito nervosismo.
— E seu braço? — perguntou Hyunjin, segurando no volante com ambas as mãos, focado em não bater em nada pelo caminho.
— Ardendo como o inferno — respondeu Felix. — Concentre-se e mude a marcha.
— Estou concentrado — Hyunjin disse sem desviar o olhar em nenhum momento e mudando a marcha como Felix disse.
— Vire com cuidado na próxima esquina.
E foram mais alguns minutos até que eles parassem de frente ao Hospital de Jinhae. O trânsito ao chegar ao centro foi um pouco conturbado, mas Felix havia conseguido guiá-lo bem e, com alguma ajuda divina, não morreram e nem mesmo bateram em nada.
— Eu consegui — Hyunjin disse, colocando as mãos no rosto, embasbacado por conseguir levá-los até o hospital. — Puta merda, stalker, eu dirigi um carro!
— É, meus parabéns — Felix disse e, logo em seguida, deu um grunhido de dor.
Percebendo que o estado de Felix não era algo que pudesse ser esquecido, Hyunjin deixou sua surpresa por um novo talento descoberto de lado e disse:
— Vem, eu te ajudo.
Hyunjin tirou a mochila das costas, deixando-a no banco de trás. Ele saiu do carro e foi até a porta de Felix, abrindo-a. Olhou para os lados para ter certeza de que não havia ninguém os espionando e, então, ajudou o policial a sair.
— Papai volta logo, bebê — Hyunjin disse para o Senhor Miau.
Tomou cuidado em deixar as janelas entreabertas para o bichinho tomar ar fresco e fechou a porta. Lembraria de trazer algum petisquinho para ele.
Felix se colocou de pé com certa dificuldade. Hyunjin o olhou e viu gotículas de suor escorrendo pelo rosto bonito, o peito nu igualmente suado e pegajoso pelo esforço e pelo calor do carro. Algumas pessoas ao redor estranharam ao ver alguém naquele estado em Jinhae, mas Hyunjin tratou de não dar importância para elas.
— Vamos demorar para ser atendidos — Felix disse, lembrando do dia em que teve de esperar horas quando estava com a mão queimada.
— Claro que não, isso é uma emergência.
Adentraram o hospital e deram graças aos céus pela sala de espera estar praticamente vazia. Foram até a recepcionista, que não tinha cara de muitos amigos, e Hyunjin tratou de informar o estado de Felix. Ao ver que se tratava de um policial, ela arregalou os olhos e apertou com força um botãozinho que ficava ao lado do telefone da recepção, falando com o médico, alegando urgência no carro.
Os índices de homicídio e violência na cidade de Jinhae, para a alegria dos profissionais da saúde — e do prefeito com o pau em decomposição —, eram quase nulos. Isso, claro, os denunciados nas estatísticas anuais.
Claro, enfermeiras e médicos mais atentos sabiam que as estatísticas de quedas da escada e escorregos em banheiros eram bem mais altas do que as de violência doméstica, e aquilo queria dizer muita coisa sobre a cidade e aqueles que a governavam — licitamente ou não.
Hyunjin, durante os 7 anos levando a vida que levava, descobriu que ter um amigo no hospital era uma de suas melhores alternativas para se manter saudável. Ao perceber aquilo, chegou a oferecer favores ao médico Choi para que seus machucados e possíveis futuras infecções — ele era cuidadoso, mas realista — fossem tratadas com cuidado e urgência sempre que ele estivesse no hospital. O médico negou o favor prontamente, sua integridade e caráter se mostrando mais importantes do que um boquete no banheiro do consultório, e quando Choi disse que se compadecia da sua história e que por ser Cristão — com C maiúsculo, pois Hyunjin achava que ele, sim, era um verdadeiro seguidor de Cristo — faria aquilo por ele sempre que necessário, Hyunjin viu que, no meio de tantas pessoas que o maltratavam, alguém havia o estendido a mão.
Hyunjin conseguia ver em Felix o mesmo que havia encontrado no médico Choi, um médico meio careca com os poucos fios bagunçados, mas com uma alma pura. O policial, embora chato e até mesmo um pouco irritante, tinha estendido a mão para ele assim como o doutor, tirando-o de uma situação de vulnerabilidade que não sabia se conseguiria sair sozinho.
Perdido naquela estrada escura, seminu, bile fétida escorrendo pelo queixo e com um homem maníaco e doente correndo atrás dele, Hyunjin estava no fundo do poço. Encontrar Felix naquela estrada, ser cuidado, alimentado, banhado e vestido foi a sua luz que já não tinha tanta certeza se conseguiria encontrar algum dia.
E mesmo depois de uma perseguição insistente, uma preocupação quase burra sobre seu bem estar e o que de fato acontecia por debaixo dos panos da perfeição de Jinhae, Felix se mostrou bem mais do que um policial obsessivo e com poucos hábitos de higiene doméstica: ele era bravo, e se mostrou ainda mais disposto a seguir ajudando um prostituto barato, como costumavam chamá-lo na maioria das vezes.
Um tiro. Felix havia levado um tiro na tentativa de livrar Hyunjin das garras de Seunghyun. Antes disso, ganhou um olho roxo e um maxilar quase deslocado. Superior a tudo e o mais perturbador: havia matado uma pessoa por ele. A pessoa que fazia todas aquelas engrenagens de Jinhae funcionarem e que, agora, não poderia, nunca mais, olhar em seus olhos e dizer que ele era uma puta suja que não merecia nada a não ser desprezo.
Mas agora, Hyunjin conseguia manter uma mísera faísca de esperança em seu peito, uma confiança que fora adquirida no momento em que Felix se colocou na frente daquela bala inesperada, protegendo não somente a Hyunjin, mas também a pequena criatura em seus braços, um animalzinho que havia causado a maior parte daquele incidente.
Para salvar Senhor Miau, seu único amiguinho, Felix acabou sendo baleado, e Hyunjin não conseguia pensar em prova maior de comprometimento e confiança do que aquela.
Não demorou, como Hyunjin disse, para estarem no consultório médico. Ao vê-los, o mesmo doutor íntegro que recusara o boquete no banheiro e que tinha um sorriso gentil deu um suspiro pesaroso ao perceber o que deveria ter acontecido. Pesaroso, mas não surpreso.
— No que andou se metendo, menino? — perguntou o médico. Hyunjin ainda segurava Felix pelos ombros.
— É uma longa história — respondeu.
O médico Choi fechou a porta do consultório e olhou para ambos os homens. Hyunjin estava com o queixo e mãos feridos, enquanto Felix dispensava apresentações: estava uma bagunça completa, ensanguentado, suado e descabelado.
— Ele levou um tiro. — As palavras de Hyunjin saíram acompanhadas de um choramingo de dor de Felix, que começava a suar frio. — Por favor, ajuda ele.
— Deite ele na maca — disse Choi.
Hyunjin, com dificuldade, mesmo que Felix não fosse pesado, levou ele até lá. O policial subiu dois degraus e se prostrou na maca coberta por um lençol branco, deitando-se com dificuldade, sentindo todos os seus músculos doerem, não apenas o local que bala havia perfurado.
— A bala ainda está dentro? — indagou Hyunjin. O médico, munido de uma pequena lanterna que apontava para o ferimento, analisou com cuidado. — Não me mata de agonia, doutor. Fala logo.
— Aparentemente, o tiro pegou de raspão — disse o médico após alguns minutos analisando o ferimento —, mas ele está perdendo sangue e precisa pontear o ferimento.
Hyunjin, sentado em uma cadeira com os cotovelos contra os joelhos, mordeu o polegar direito, completamente nervoso pelo que viria a seguir.
— Vou providenciar os utensílios necessários para fechar a ferida — disse Choi, calmamente, sem gerar nenhum tipo de pânico. — Aguardem por um minuto, eu já volto.
Então, o médico Choi saiu pela porta do consultório esvoaçando o jaleco branco que tinha seu nome bordado. Felix estava com os olhos baixos, pálpebras pesadas impedindo que ele ficasse alerta. A euforia e adrenalina do momento quando estavam fugindo havia o deixado acordado, mas deitar e repousar a cabeça no colchão, mesmo que duro, pareceu ativar algum tipo de sistema depressivo em seu organismo, pois tudo que ele queria era fechar os olhos e tirar uma soneca.
— Hyunjin — chamou Felix, apertando os olhos por conta da dor que ainda se alastrava por seu braço.
Hyunjin correu até ele no mesmo instante, assim como Felix havia corrido pouco tempo antes quando ele foi capturado.
— O quê? A dor tá muito forte? Quer que eu peça um analgésico?
— Não, não, está tudo bem — negou lentamente, tomando o ar em seguida para poder continuar. — Pega um papel e uma caneta na mesa do médico — apontou.
Hyunjin, sem pestanejar, correu até lá e pegou o que Felix pediu.
— Agora anota um número — Felix sussurrou baixinho nove números, enquanto Hyunjin escrevia em um papel de receitas. — Vá até a recepção e ligue para o Jisung, esse é o número dele. Fala pra ele vir de carro com o Minho e pra não comentar com ninguém sobre isso além dele.
— Mas… mas…
— Por favor — disse ele. — Liga e conta o que aconteceu, precisamos de carona para voltar pra casa.
Felix segurou a mão de Hyunjin brevemente, apenas para que ele pudesse perceber que precisavam de algum amparo, e Jisung, embora rabugento, era o único que ele realmente achava ser confiável o bastante para compartilhar aquele momento com eles.
— Tá. — Hyunjin assentiu, apertando a mão do policial. — Eu vou logo. Não dorme, tá? — perguntou e Felix murmurou algo inaudível. — Tá?!
— Tá…
Hyunjin, um pouco mais aliviado por ter ouvido a voz dele antes de sair, tomou seu caminho até a recepção. Estava eufórico, amedrontado, e rezou para que a recepção estivesse vazia como quando chegaram. Para sua sorte, estava.
— Posso usar o telefone? — perguntou Hyunjin, vendo a moça atrás do balcão escrever algo em uma folha de papel presa a uma prancheta. Ela continuou escrevendo, sem dar atenção para ele. — Ei? Moça? — estalou os dedos duas vezes na frente do rosto dela, até que finalmente ela abandonou o papel e a caneta um pouco a contragosto. — Posso usar o telefone?
— Você não é aquele garoto que fica na rua durante a noite? — perguntou ela, e Hyunjin respirou fundo, contendo-se. — O que usa sapatos e roupas de mulher?
— É, acho que sou. Por quê? Seu marido já parou o carro pra mim? — disse duro, e a mulher arregalou os olhos, horrorizada com a resposta.
— Mas é claro que não, meu marido não…
— Dá pra me deixar usar o telefone?
A recepcionista, escandalizada por ouvir algo que não queria depois de dizer algo impulsivo, entregou o telefone na mão de Hyunjin com nojo, olhando feio para ele, como se ele fosse algum tipo de inseto que ela deveria dedetizar.
Hyunjin a ignorou. Em outras ocasiões, xingaria ela de alguns nomes nada bonitos antes de sair da recepção, mas ele não tinha tempo para se importar com uma pessoa igualzinha a todas as outras de Jinhae. Então, ele apenas discou os números escritos no papel de receita para ele e colocou o telefone na orelha.
— Dá licença? Isso é meio particular — Hyunjin disse para a recepcionista, antes de Jisung atender o telefone.
Bufando, ela saiu de trás do balcão, caminhando para algum lugar, aproveitando a baixa movimentação do hospital.
O telefone chamou mais algumas vezes. Jisung, do outro lado da linha, atendeu.
— Alô? — Hyunjin respirou aliviado ao ouvir a voz aguda do baixinho que fazia barriga de porco muito bem. — Quem fala?
— Oi, oi, meio-metro! É o Hyunjin, o cara que estava na casa do Felix ontem — Hyunjin disse, mexendo com o fio encaracolado do telefone. — A gente precisa da sua ajuda.
— Pera aí, pera aí — disse Jisung, parecendo um tanto chocado e até mesmo tentado a rir. — Meio-metro? Com quem você acha que tá falan…
— Olha, depois você me xinga — Hyunjin disse alto, vendo que a recepcionista não estava por perto. — O Felix levou um tiro. Dá pra você vir pro hospital, tipo, agora?!
— O quê? Um tiro? Mas que merda ele estava fazendo pra levar um tiro?!
— Eu te explico depois. Ele disse pra você vir de carro e trazer o Minton, sei lá quem — disse com a voz nervosa. Ele estava nervoso.
— O nome dele é Minho! O Felix tá bem? Ele… Aí, me conta alguma coisa! Onde foi esse tiro? Ele tá em coma?!
— Não, ele não tá em coma, cara — Hyunjin disse, percebendo a preocupação de Jisung. — Foi de raspão no braço, mas ele não pode dirigir e eu meio que não sei nem o que é uma marcha, então dá pra vir logo e trazer o Minton?
— O nome dele é Minho! — Jisung repetiu, e Hyunjin revirou os olhos.
— Isso. Traz o Minho e não fala para mais ninguém sobre isso, ouviu? Ninguém. É confidencial.
— Era só o que me faltava mesmo — disse Jisung, aparentando uma impaciência típica. — Tá, eu chego em dez minutos.
— Valeu — Hyunjin suspirou aliviado, desligando o telefone em seguida.
Colocou o telefone de volta em seu lugar, sem se importar verdadeiramente se a recepcionista notaria o pequeno nó que ele havia feito no fio durante sua breve conversa com Jisung.
Hyunjin caminhou de volta para o consultório e, assim que entrou no local banhado de tinta branca que irritava seus olhos, pôde ver Felix sentado na maca do consultório com o médico Choi ponteando seu ferimento.
— Au! — Felix gemeu, apertando os olhos. As expressões de dor fizeram o coração de Hyunjin se apertar.
— A anestesia não está funcionando? — perguntou Choi, sem tirar os olhos da linha que passava pela carne do policial.
— Está, mas essa agulha furando minha pele me dá agonia — disse ele, e Hyunjin fechou a porta atrás de si, caminhando até eles.
— Ele vai ficar bem, doutor? — perguntou em uma súbita preocupação. Choi deu um sorrisinho, assentindo.
— Não foi nada grave. Ele vai ficar pronto para outra.
— Espero que não tenha outra — Hyunjin disse, esfregando as mãos raladas.
Hyunjin estava aliviado apesar de tudo, e sorriu fraca e brevemente para Felix, talvez para mostrar algum tipo de apoio.
Poucos instantes depois, Choi fez o último ponto, totalizando apenas três. Felix sentiu um peso ser tirado de suas costas quando ele começou a enfaixar o braço machucado já completamente limpo. O ar condicionado do consultório havia secado o suor do seu corpo e agora o calor havia dado espaço para um frio pegajoso.
— Pronto, está tudo certo — disse o médico, tirando as luvas brancas descartáveis. — Você precisa ficar aqui um pouco para que eu possa observar seus sinais vitais. Pressão, febre e essas coisas.
— Entendido — Felix disse. — Obrigado, doutor.
— Não há de quê — respondeu ele.
Felix lembrava do que o médico havia dito na última vez em que esteve naquele consultório. “Eu o conheço há muitos anos. Não vai querer ver Hyunjin irritado”. Pegou-se pensando sobre o que significava aquela frase que saiu de forma tão natural dos lábios do médico. Sabia, também, que ele parecia conhecer Hyunjin mais do que demonstrava ou dizia, e talvez aquele tenha sido um conselho de alguém que conseguia sentir o perigo chegando.
— Sua mão já está em perfeitas condições, presumo — disse Choi, apontando para a mão de Felix, que já nem mesmo estava enfaixada devido à queimadura de semanas atrás.
— Oh, claro, está ótima — respondeu Felix.
Choi deu um sorriso gentil e tocou com a ponta do dedo indicador duas vezes no relógio de pulso, talvez para dizer que precisava encontrar outros pacientes internados — talvez alguma mulher que caiu da escada pela terceira vez no mês.
— Vou mandar uma enfermeira em meia hora verificar seu estado, oficial Lee — disse Choi antes de sair da sala. — E você, rapazinho — apontou para Hyunjin —, cuide desses arranhões.
Hyunjin tocou em seu próprio queixo no mesmo instante e assentiu, sentindo o ardor do pequeno corte que havia sido feito no local na hora da queda. Choi saiu do consultório, e Felix e Hyunjin ficaram sozinhos, um silêncio confortável entre eles.
— Que bom que foi de raspão — Hyunjin disse após um longo suspiro, indo até Felix e sentando ao seu lado na maca, mesmo que não fosse muito recomendado pelas normas do hospital. Ele não se importava, no fim de tudo. — Achei que você ia ter que amputar o braço, ou sei lá, fazer uma cirurgia de emergência.
— Amputar o braço? — Felix deu uma leve risada, as dores que outrora turvavam sua mente um pouco menos presentes por conta da anestesia local. — No máximo, uma transfusão de sangue, eu acho.
— É, mas demos sorte — Hyunjin disse. — Se o Seunghyun fosse um pouquinho mais bom de mira, você não teria saído só com um tiro de raspão.
— Melhor — Felix corrigiu, e Hyunjin franziu o cenho. — Se fala melhor.
— Grande coisa — debochou Hyunjin, empurrando-o com o ombro. — Você pode ser inteligente, mas eu sou o esperto. Nunca teria dado meu colete à prova de balas para um qualquer e ficar desprotegido.
— Você não é um qualquer.
— Não devia dar tanta importância às pessoas assim — Hyunjin disse, olhando para os dedos entrelaçados sobre o colo. — Você nem me conhece.
— Conheço o bastante — Felix disse. — Eu me envolvi nisso, Hyunjin. Me envolvi o suficiente para não conseguir mais ignorar o que você estava passando sabe lá Deus há quanto tempo. Isso daqui — apontou para o braço enfaixado com desdém — não é nada comparado ao que eu sei que acontece com pessoas como você. Mas agora eu juro que vai acabar.
Hyunjin manteve a cabeça baixa, queixo tremendo, emoções disparando dentro do coração que sempre fora subjugado. Estava tudo uma bagunça dentro dele; a adrenalina, a morte de Seunghyun, o tiro de Felix, ele dirigindo um carro pela primeira vez na vida e não morrendo…
— Ainda não entendo porque você está fazendo isso — Hyunjin disse. — Você infringiu as regras da delegacia, você me deu comida, me salvou de um infeliz nojento e agora, meu Deus, você literalmente matou uma pessoa.
— Eu já disse porque faço tudo isso — respondeu Felix, sua voz estava bem mais firme.
— É, mas ainda parece loucura pra mim — balançou os ombros, curvando os lábios para baixo antes de continuar: — Você poderia estar vivendo sua vida normal, mas agora…
— Estou vivendo — Felix disse. — Não é normal, mas estou vivendo.
— Correndo risco de vida, que legal — ironizou e ouviu uma risada vindo de Felix.
— Desse jeito, vou começar a achar que se importa comigo — disse o policial, e Hyunjin revirou os olhos.
— Também não sou nenhum insensível, stalker — Hyunjin disse. — Só que eu não queria ninguém se metendo na minha vida e muito menos se arriscando por mim.
— Por quê? Você não queria ajuda?
— Eu não queria que corressem perigo por minha causa. Eu me meti nisso, não é justo que outras pessoas acabem se machucando só porque eu decidi largar a escola e foder com qualquer um em troca de uns trocados.
As palavras de Hyunjin saíram duras e atingiram o peito de Felix. Naquele momento, pareceu doer mais do que o ferimento em seu braço.
— Não foi escolha sua, Hyunjin — Felix disse, encarando o rosto tristonho. — Você me contou o que aconteceu e não foi sua culpa.
— Claro que foi…
— Não foi sua culpa — repetiu e Hyunjin o encarou de volta, olhos marejados. — Não foi.
Como um novo sabor que havia acabado de experimentar, Hyunjin sentiu o gosto de uma nova sensação: a compreensão. Felix foi a primeira pessoa que olhou em seus olhos e disse aquilo que tanto importava — “não é sua culpa”. Hyunjin não sabia que precisava tanto daquelas palavras até ouví-las.
Antes que ele pudesse dizer qualquer coisa, a porta do consultório foi aberta de repente em meio a gritos.
— Senhor, eu já disse que não pode entrar desse jeito em um hospital! — A voz da megera da recepção foi ouvida e, junto dela, um Jisung exasperado, que mais parecia um furacão.
— Onde está o Felix?! — Ele vinha perguntando desde que adentrou a porta principal. — Aí, graças a minha Santa Cher! — disse quando finalmente colocou seus olhos no amigo sentado na maca.
— Se o senhor continuar falando nesse tom, eu terei que…
— Senhora, eu peço inúmeras desculpas. O meu amigo, ele está um pouco… — Minho tentou intervir, e Jisung olhou feio para ele.
— Namorado. Sou o namorado dele — respondeu com convicção, e a recepcionista arregalou os olhos.
— Desculpa mais uma vez — disse Minho, olhando para a mulher. — Vamos fazer silêncio agora, sim?
Ela olhou para os quatro homens dentro do consultório médico. Em sua cabeça, Hyunjin achou que ela com certeza estaria imaginando que eles iniciariam uma orgia depravada assim que ela saísse. “Três boiolas e um policial em uma sala, o que mais pode acontecer?”
Sem muito o que fazer, a recepcionista andou dois passos para trás, saindo e fechando a porta em seguida. Ao se verem livres da presença dela, Jisung correu até o melhor amigo em uma velocidade que quase fugia aos olhos. Hyunjin desceu da maca, dando espaço para eles.
— Você quase me mata do coração! Um tiro, Felix? Pelo amor de Cher, eu não pude imaginar que…
— Pode parar de tratar essa cantora como uma deusa? É ridículo — disse ele, sendo esmagado pelo melhor amigo.
— Não vou entrar nessa questão com você — apontou o indicador para ele. — Não faz mais isso, por favor — choramingou, em seguida, fez uma expressão de raiva —, senão eu quem vou te balear.
— Eu estou bem — Felix disse. — Foi um tiro de raspão.
— É, ainda assim, a porra de um tiro!
— Eu sou policial, Jisung. Estou sujeito a esses incidentes.
— Tenho certeza de que não foi exercendo o papel de um policial que isso aconteceu.
Hyunjin olhou para o chão e recuou mais um passo, braços cruzados sobre o peito.
— Não liga pra ele — disse Minho, chegando perto de Felix com olhos cheios de preocupação. — Como você está?
— Eu estou bem — Felix disse, sorrindo minimamente para o namorado do amigo. — Foi por pouco.
— Bem pouco — disse Jisung, olhando de soslaio para Hyunjin, que se mantinha distante.
— Hyunjin, você pode pegar um pouco de água? — Felix pediu, apontando para um bebedouro que havia próximo ao birô do médico. Ele assentiu rapidamente e se dirigiu até lá.
— Toma com cuidado pra não engasgar — Hyunjin disse, entregando o copo de água na mão de Felix e se afastando novamente.
— Obrigado — respondeu o policial enquanto Hyunjin estava sob os olhares do casal.
— Depois você vai me contar direitinho o que aconteceu — disse Jisung.
Poucos minutos depois, a enfermeira designada pelo doutor Choi apareceu, entregando um atestado de algumas semanas que comprovava a incapacidade do policial para trabalhar no momento. Ela verificou a pressão arterial de Felix, mediu sua temperatura e verificou seus sinais vitais. Deu a ele alguns analgésicos e, quando ela confirmou que estava tudo bem, ele foi liberado para ir embora. Três suspiros aliviados puderem ser ouvidos dentro do consultório.
Hyunjin, Jisung e Minho ajudaram Felix a caminhar até o lado de fora do hospital com cuidado, embora Felix insistisse que suas pernas estavam em ótimo estado.
O carro de Felix e o de Jisung estavam lado a lado, e a primeira coisa que Hyunjin fez ao chegar lá foi ir ao encontro do Senhor Miau. Hyunjin havia pegado um copinho de plástico e enchido com água geladinha, pois presumia que seu gato estivesse com sede.
— O que ele está fazendo? — perguntou Jisung quando Hyunjin enfiou a mão pela janela entreaberta para pegar o bichano. — Um gato?
— Oi, bebê — Hyunjin sorriu para o Senhor Miau. — Quer aguinha?
O gato aceitou de bom grado a água gelada e começou a beber, ainda sendo segurado pelo dono. Sob o olhar confuso de Jisung, Hyunjin revirou os olhos e disse com um punhado de sarcasmo:
— Que foi? Nunca viu dois gatos?
— Ah, fala sério — respondeu Jisung.
Antes que algo pudesse acontecer entre eles, Felix decidiu intervir.
— Tudo bem, acho melhor irmos andando. Minho pode ir com Hyunjin no carro do Jisung, enquanto Jisung e eu vamos no meu.
— Tá, mas vamos para onde? — indagou Jisung, com as mãos na cintura.
— Para a minha casa — Felix respondeu. — Temos muito o que fazer a partir de agora.
— É — disse Jisung. — Eu aposto que temos.
Notes:
Aposto que por essa vocês não esperavam muhahahaha
HELO SEUNGHYUN MORREU MESMO? morreu
ELE NÃO VAI VOLTAR? não vai não
MAS ELE NÃO É O GRANDE VILÃO DA FIC? vc ficaria chocado
FOI-SE MESMO? aham
MORTO MORTO? mortinho da silva <3
Agora, veremos a vida do nosso Hyun sem essa criatura demoníaca na cola dele e eu acho que essa é minha parte preferida da fanfic, ver como esse menino machucado vai lidar com a suposta normalidade de uma vida que nunca sequer sonhou em ter, vivendo sob o mesmo teto com alguém que precisa provar ser de confiança. Bem, vai ser uma jornada bem emocionante.
Vejo vocês amanhã <3
Tag: #bemjin
TT: felixsaturnn
Chapter 7: Fumaça de Óleo Diesel
Notes:
OIII! Acho que todo mundo tá feliz com a morte do cramunhão no capítulo passado, apesar de bem inesperada hehehe. Enfim, eu espero muito que aproveitem esse segundo arco e eu reforço DE NOVO que não esperem um relacionamento bonitinho entre os hyunlix.
(See the end of the chapter for more notes.)
Chapter Text
Mood: Sangue Latino - Secos e Molhados
Felix conseguiu sentir a oleosidade acumulada em sua testa quando a esfregou pela quinta vez em cinco minutos.
Quando chegou ao seu apartamento, antes de dizer qualquer coisa, pediu para Jisung preparar algo para que pudesse comer. Hyunjin estava em jejum, com as barrigas roncando, mesmo que a fome só tivesse aparecido depois da adrenalina evaporar pelos poros. Jisung reclamou, disse que queria saber de tudo e que Felix não tinha nada nos armários. Minho disse que ele era bom improvisar, então, com farinha de trigo, água e um pouco de ovos e açúcar, conseguiu fazer panquecas finas, já que não tinha manteiga ou fermento.
Comeram em silêncio, o som da mastigação de Hyunjin sendo praticamente o único barulho ecoando pela casa. Depois, eles sentaram todos no sofá da sala e, enfim, contaram o que tinha acontecido. E foi aí que apareceu a enxaqueca de Felix: quando Jisung deu o primeiro grito exasperado.
— Você matou uma pessoa?!
— Eu matei um verme — Felix disse, ainda esfregando a testa. — Ele nem mesmo pode ser considerado um ser humano, Jisung. Ele era podre.
— Mesmo assim, você matou uma pessoa — ele repetiu, agora, andando de um lado para o outro na pequena sala, enquanto Minho o observava apreensivo.
— Foi defesa legítima — Hyunjin respondeu, tentando amenizar a situação, uma culpa ainda ardente latejando em seu peito.
— Ai, meu Deus, meu Deus... Eu sabia que nunca devia ter deixado você entrar pra polícia — Jisung negou, afundando o rosto nas mãos suadas. — Agora meu melhor amigo é um assassino.
— Não, ele não é — Hyunjin gritou, ficando de frente para Jisung. Ele já estava sem o colete à prova de balas e seus cabelos não estavam mais tão bagunçados. — Felix fez isso pra me salvar e salvar o Senhor Miau — designado para o gatinho, que estava deitado no pé do sofá. — Ele só matou o Seunghyun porque ele ia me matar e, depois, matá-lo também. Você não sabe quem ele era ou faz que ele era capaz, meio-metro, então não chama ele de assassino por ter tirado a vida de uma pessoa como aquele maldito.
Jisung, pálido e parecendo chocado com as palavras de Hyunjin, engoliu em seco. Ele olhou para os sapatos e concordou, provavelmente reconhecendo que não havia usado a melhor expressão para o que aconteceu.
— Você já tem um plano? — Minho disse a Felix, diante do silêncio do namorado. — Os policiais da central vão querer saber de tudo.
— Vou contar a verdade — Felix respondeu, concordando. — Quer dizer, o mais próximo da verdade que eu posso. Não posso dizer que estive em uma investigação paralela.
— E você vai pedir um favor ao Félix, não vai? — Jisung disse, com os braços cruzados, para Hyunjin. — Você precisa testemunhar e dizer que ele fez tudo em legítima defesa e pra te proteger.
— Eu... — Hyunjin respirou fundo, olhando para o teto. — Eu vou.
Felix ergueu o rosto de repente, parecendo surpreso com o que Hyunjin disse. Ele, que tinha uma grande resistência a depoimentos e tudo que envolvesse delegacia e policiais, estava concordando em depor ao seu favor.
— Obrigado — Felix sussurrou, apenas para que ele ouvisse.
Hyunjin assentiu em resposta ao agradecimento de Felix, mas havia algo pesado em seus olhos.
— Mas tem uma coisa — disse Minho. — Se vocês vão manter a versão de legítima defesa, precisam ser convincentes. Os investigadores vão questionar tudo.
— O que você quer dizer? — Felix perguntou, finalmente parando de esfregar a testa.
— Eu quero dizer que eles vão querer saber por que você estava na casa do Hyunjin, por que não chamou reforços, por que saiu do protocolo — Minho enumerou nos dedos. — E, principalmente, vão querer entender a relação entre vocês dois.
O silêncio se estabeleceu entre eles. Jisung parou de andar e olhou para Felix e Hyunjin, esperando alguma resposta.
— Posso dizer que presenciei alguma situação que me deixou desconfiado e eu soube que precisava ajudá-lo — Felix deu de ombros. — Não é uma mentira, no fim de tudo.
— Mas eles vão querer saber o motivo de você ter se arriscado tanto por alguém que nem conhece — Jisung insistiu. — Não faz sentido, Felix. Você mentiu para os seus superiores, matou uma pessoa e, se descobrirem que você fez tudo pelas costas de todos, pode perder seu emprego. Então por quê?
— Porque era a coisa certa a se fazer — Felix disse, a voz defensiva. — Qualquer policial faria o mesmo.
— Não aqueles dois da sua delegacia — Jisung disse, revirando os olhos.
Hyunjin tinha colocado o Senhor Miau em seu colo e continuou olhando para o chão, os dedos brincando nervosamente com a orelha do gatinho.
— Olha, não importa o motivo — Hyunjin disse, a voz baixa. — O que importa é que nós dois poderíamos ter morrido.
— Isso deve valer de alguma coisa — Felix respirou fundo. — Além disso, o Hyunjin é uma testemunha e eu me importo com ele como pessoa, por isso agi da forma como agi.
Hyunjin ergueu os olhos, talvez tentando decifrar o que o policial queria dizer com "me importo com ele como pessoa".
— Mantenham a versão simples — disse Minho. — Você estava protegendo uma testemunha sequestrada, a situação escalou e você agiu em legítima defesa. O homem morto confessou um esquema de crimes em Jinhae e você precisa que seja investigado.
Felix assentiu.
O Senhor Miau escolheu aquele momento para pular do colo de Hyunjin para o de Felix, ronronando alto, alheio à tensão presente entre eles.
— Pelo menos ele não tem que se preocupar com depoimentos — Felix disse após um suspiro. — Gatos têm sorte.
Apesar da tentativa de amenizar o clima, todos sentiam que havia questões muito mais profundas e que precisavam ser debatidas e resolvidas. No entanto, por enquanto, ficariam aguardando o telefone tocar e a solicitação dos depoimentos tanto de Felix quanto de Hyunjin, e eles torciam para que tudo fosse consistente o suficiente.
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Mood: Softcore - The Neighbourhood
Já era tarde da noite quando Felix fechou a porta da frente com um suspiro pesado, o som do trinco ecoando pelo apartamento silencioso. Os investigadores da delegacia central de Jinhae tinham finalmente ido embora após três horas de questionamentos sobre os detalhes daquela operação quase suicida que o oficial Lee planejou. As perguntas foram exaustivas, mas ele e Hyunjin conseguiram manter a versão combinada: legítima defesa, proteção de testemunha, uma situação que explodiu como uma bomba sem que eles tivessem oportunidade de mudar o desfecho de tudo.
Antes da polícia chegar, Jisung e Minho haviam saído para comprar mantimentos para a geladeira e armários vazios da cozinha de Felix. Chegaram com pães frescos, frutas em uma tigela, pacotes de biscoito, leite e comidas com mais nutrientes para almoço e jantar. Sentiu-se aliviado por tê-los em sua vida. Eram aquelas pequenas gentilezas que pareciam trazer a Felix uma esperança, mesmo que latente, nos seres humanos.
Seu braço ainda estava ardendo, mas, como estava imobilizado, não doía tanto. Tomou alguns analgésicos enquanto aguardava os investigadores colherem o depoimento de Hyunjin, trancados no quarto para a maior privacidade e conforto dele. Fumou oito cigarros, um atrás do outro, enquanto a caneca de café quente foi cheia três vezes. Estava uma pilha de nervos. Mas agora seu coração batia em um ritmo mais contínuo e seu corpo já não tremia mais como há algumas horas.
Agora sozinhos, Hyunjin estava sentado no sofá, com as pernas dobradas e as mãos enfiadas dentro dela. O olhar estava fixo em algum ponto indefinido na parede, Senhor Miau enroscado em seu próprio corpinho ao lado dele, mas nem mesmo o ronronar suave do gato parecia alcançá-lo.
— Hyunjin? — Felix se aproximou devagar, evitando, ao máximo, assustá-lo. — Você está bem?
Em um primeiro momento, Hyunjin não respondeu. Os olhos dele piscaram uma vezes, devagar, mas continuaram presos no mesmo ponto.
Felix se sentou ao lado dele, estudando o perfil anguloso do queixo e do nariz.
— O investigador disse que tudo foi muito concreto — Felix tentou dizer novamente, a voz suave. — Disse que nossos relatos bateram e que eles vão assumir o caso. Acabou, Hyunjin. Tudo vai ficar bem.
Hyunjin, finalmente, moveu a cabeça, olhando diretamente para Felix pela primeira vez desde que ficaram sozinhos. Seus olhos pareciam ver através dele, seu coração e sua alma.
— Eu não contei tudo — murmurou, a voz rouca.
Felix sentiu o estômago se contrair.
— Como não? Você contou sobre o esquema de prostituição, sobre as boates daqui e dos redores da cidade, sobre as drogas, então o quê...
— Sobre mim — fechou os olhos com força, puxando o ar para dentro dos pulmões.
O silêncio pairou entre eles. Felix esperou, sabendo que qualquer pressão poderia fazer Hyunjin se fechar novamente.
— Hyunjin...
— Ele me deixava na rua — Hyunjin disse, a voz dura. — Eu era um dos únicos que tinha que ir pra rua ao invés de ficar na boate, porque ele dizia que eu era bonito demais pra ficar preso naquele lugar e que precisavam me ver. Ele... me deixava passar frio, fome, medo...
As mãos de Felix se fecharam em punhos involuntariamente. Uma raiva surda, diferente de qualquer coisa que já havia sentido, começou a queimar em seu peito.
— Ele sabia que eu gostava de drogas — disse, e, logo em seguida, remexeu-se em seu lugar. — Coca, mas... quando eu estava muito agitado, ele me dava uns comprimidos. Eu não sei como se chamam, mas eu odiava a sensação. Eu ficava... não sei, desligado. Não conseguia pensar direito, não conseguia resistir. Então ele... — Hyunjin engoliu em seco, os olhos transbordando. — Ele fazia o que queria comigo. Eu tentava lutar, dizia que não queria, mas era como se meu corpo não me obedecesse. No dia seguinte, ele agia como se nada tivesse acontecido, me dava um presente, dizia que ia consertar minha televisão, dizia que eu estava bonito, que eu era bonito e que iria cuidar de mim, como cuidou sete anos atrás.
Com um impulso, Felix segurou em uma das mãos de Hyunjin, suada e fria nas mesmas proporções.
— Não era sua culpa — disse, a voz firme, apesar do tremor que sentia por dentro. — Nada do que ele fez com você foi sua culpa, Hyunjin.
— Eu sabia o que ele era — sussurrou, as lágrimas escorrendo pelo rosto. — Sabia que ele machucava outras pessoas. Garotos e garotas mais novos, mas eu não fazia nada. Eu era covarde demais para denunciar, para fazer qualquer outra coisa.
— Você era vítima dele também — Felix apertou novamente a mão dele, tentando ancorá-lo no presente. — Você estava preso, Hyunjin, assustado. Não podia ter feito nada diferente.
Hyunjin balançou a cabeça, soluçando agora.
— Tantas pessoas... ele machucou tantas pessoas, e eu podia ter impedido.
— Não — Felix disse com firmeza. — Você não podia, mas agora ele não pode mais machucar ninguém. Nunca mais.
O Senhor Miau se levantou e se espreguiçou, caminhando até Felix e roçando a cabeça em seu braço, como se quisesse confortá-los da única forma que sabia.
— Agora os investigadores sabem de tudo sobre os crimes dele, mas não sobre mim — Hyunjin disse entre soluços, limpando o rosto com as costas da mão. — Contei sobre quem vende as drogas, sobre os parceiros dele, sobre tudo que eu sabia.
Felix assentiu, de certa forma, orgulhoso.
— Foi corajoso da sua parte.
— Não me senti corajoso — Hyunjin riu sem humor, um som amargo deixando sua garganta. — Me senti... vazio. Como se estivesse falando sobre a vida de outra pessoa e não sobre a minha.
Felix, ainda mantendo uma distância respeitosa, arrastou o corpo mais para perto.
— E agora? Como você está se sentindo?
Hyunjin ficou em silêncio por um longo momento. Os soluços pararam, mas as lágrimas ainda escorriam.
— Confuso — admitiu, finalmente. — Eu deveria estar feliz, não deveria? Aquele filho da puta está morto e não pode mais machucar ninguém, mas...
— Mas?
— Mas, por sete anos, ele foi... a única pessoa constante na minha vida. — As palavras saíram em um sussurro cheio de vergonha. — Eu o odiava, stalker. Odiava com toda força que eu tinha dentro de mim, mas ele também era... também era o único que... — Hyunjin pausou, lutando para encontrar as palavras certas. — O único que me dava atenção, que sabia meu nome, que lembrava que eu existia — Hyunjin cobriu o rosto com as mãos. — Que tipo de pessoa doente isso me torna? Sentir falta e ficar triste com a morte de alguém que me machucou tanto?
Felix sentiu seu coração se apertar. Ver a dor crua nos olhos de alguém que estava experimentando o gosto amargo daquele sentimento era tão doloroso quanto.
— Isso não te faz doente, Hyunjin — Felix disse. — Isso te faz humano.
— Ele me dava presentes tão bobos — Hyunjin continuou, como se tivesse se livrado daquela máscara muda e estivesse disposto a dizer tudo que estava preso em seu peito. — Depois de... depois de me machucar. Ele me dava pirulitos de cereja, chocolates, comida boa para o Senhor Miau. E eu ficava feliz, porque parecia que ele gostava de mim.
— Ele sabia o que estava fazendo e você também sabe os motivos dele ter feito isso.
— Eu sei — Hyunjin sussurrou. — Eu sei, stalker, mas tem uma coisa no meu peito — ele pressionou a mão no próprio coração. — Uma coisa que dói quando penso que ele morreu.
O Senhor Miau começou a ronronar mais alto, como se sentisse a angústia de Hyunjin e tentasse consolá-lo. Felix observou os dedos trêmulos dele acariciando o pelo do gato.
— O investigador falou que vão procurar as outras vítimas, até aquela puta da boate, a que me odiava — Hyunjin deu um riso amargo, negando com a cabeça ao lembrar de Yuna. — Ela também passou por muita merda.
— Outras pessoas vão ter justiça por causa do que fizemos, Hyunjin. Por causa do que você fez.
— Então isso vai acabar de verdade? — ele perguntou em meio a um suspiro, já com o choro mais controlado.
— Vai, vai, sim. E você vai ter que aprender a viver uma vida diferente — Felix completou.
— Não sei como fazer isso — Hyunjin admitiu. — Não sei nem quem eu sou sem o Seunghyun.
Felix se virou completamente para Hyunjin, estudando o perfil cansado. O rosto estava vermelho, e os lábios, trêmulos.
— Você vai ter tempo pra descobrir, e não precisa descobrir sozinho. Eu ainda quero te ajudar.
Hyunjin fixou seus olhos em Felix. Ele encontrou pupilas tremendo, rosto cheio de sardas e um cabelo longo e sem corte definido. O rosto dele era suave, confortante, quase parecia confiável.
— Por que você fez isso, stalker? Por que se arriscou tanto por mim?
A pergunta flutuou no ar. Felix podia dar a resposta de sempre: porque era o que qualquer um faria no meu lugar, mas, vendo a vulnerabilidade crua de Hyunjin, parecia insuficiente.
— Porque... — Felix hesitou, mas decidiu cuspir sua honestidade. — Porque vi algo em você que valia a pena salvar.
Hyunjin assentiu lentamente, parecendo processar as palavras.
— Obrigado — sussurrou, pela primeira vez dizendo a palavra certa. Obrigado. — Por me salvar e por matá-lo.
— Você não precisa me agradecer por isso.
— Preciso — insistiu. — Porque agora, depois de tantos anos, eu vou dormir sabendo que ele não vai voltar.
Eles ficaram em silêncio por alguns minutos, o peso das palavras cozinhando entre eles. O apartamento estava escuro, apenas com a luz de alguns postes da rua entrando pelas janelas.
— Você vai ficar aqui — Felix disse, de repente.
Hyunjin virou os olhos para ele, surpreso.
— O quê?
— Você vai ficar aqui comigo — deu de ombros. — Pelo menos, até que a investigação acabe e que eu sinta que você não corre mais nenhum perigo.
— Stalker, você é maluco? — Hyunjin balançou a cabeça. — Eu não vou morar no seu apartamento.
— Bom — Felix suspirou —, você tem seu gato e eu estou baleado. Vou precisar de alguém pra limpar minha bagunça.
— Não vou ser seu faxineiro — revirou os olhos, mas Felix quis repuxar os lábios em um sorriso.
— Você não vai conseguir resistir quando vir as garrafas pela sala e a pilha de roupas para dobrar jogadas na cama.
Hyunjin mordeu os lábios, olhando para baixo. Por um instante que durou menos do que pareceu, ele considerou aquela possibilidade. Bem, eles foram buscar suas roupas e o Senhor Miau para que ele ficasse escondido no apartamento de Felix. Agora, ele não precisava ficar escondido, mas ainda podia ficar ali, pelo menos enquanto ele dava um jeito na sua vida.
Felix já havia se mostrado alguém digno da confiança defasada de Hyunjin. Havia uma série de motivos para que ele não duvidasse da bondade do policial, tão diferente de todos os porcos de farda que ele já tinha conhecido em sua vida. Felix era diferente. Ele era bom e não o machucaria.
Hyunjin queria acreditar nisso mais do que em qualquer coisa da vida.
— Tá bom, stalker — Hyunjin disse, as lágrimas já secas no rosto. — Mas eu não vou lavar suas cuecas.
Felix riu, assentindo e olhando para ele.
Havia um alívio em ambos os peitos, não dito, mas presente. E, por hora, era o bastante.
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Felix não acreditou quando Hyunjin disse que o Senhor Miau comia muito.
Nos primeiros quatro dias, tentaram alimentá-lo com sobras de comida, principalmente carne, já que ele parecia ter um paladar meio infantil para vegetais, mas estavam ficando um pouco preocupados com a quantidade de miados finos que ele dava a cada cinco minutos.
— Ele está faminto — Hyunjin disse na manhã daquele dia, acariciando o pelo preto do gatinho.
— Ele não bebe leite? — Felix perguntou, jogado no sofá, massageando as têmporas enquanto sua enxaqueca o fazia querer arrancar a cabeça fora.
— Gatos só bebem em desenhos animados, stalker — Hyunjin rebateu, ninando o gatinho em seus braços. — O Senhor Miau precisa de ração.
— Certo — suspirou, sentando-se.
Felix estava dormindo no sofá desde a noite em que resgatou Hyunjin na estrada, enquanto ele estava ocupando seu quarto. Os dois tiveram uma breve discussão sobre aquilo, mas Felix dizia que preferia dormir no sofá, já que gostava de ver o jornal da madrugada e costumava levantar algumas vezes durante a noite para fumar na janela da sala. Hyunjin, mesmo a contragosto, acabou aceitando, e agora estava instalado no quarto pequeno, dormindo na cama de casal de Felix.
Naquele dia, ele acordou particularmente destruído. Não conseguiu dormir bem na noite anterior, e a dor de cabeça costumeira estava tirando o resto de vontade de viver que ele ainda tinha. Engoliu três aspirinas com o café, sob o olhar julgador de Hyunjin, que comia mingau enquanto o olhava tomar o café quase em um só gole, um cigarro entre os dedos anelar e médio. Por falar nisso, Felix dobrou a quantidade de cigarros que fumava durante o dia, mesmo que ele devesse diminuir devido ao ferimento. No entanto, estar morando com Hyunjin, embora ele não fosse um incômodo, deixava-o ansioso, o tipo de ansiedade que só a nicotina conseguia amenizar.
Hyunjin, apesar de também ser fumante, fumava menos do que Felix. Foram poucas as vezes em que ele pediu por um cigarro, mas não era aquele vício que o preocupava. Felix vivia em uma constante apreensão sobre outras substâncias; cocaína, para ser mais específico. Pelo que Hyunjin contou, era um hábito que ele carregava por muito tempo, e Felix não achava que ele fosse esquecer daquilo tão fácil, mesmo que parecesse, até o momento, tranquilo.
— Vou comprar ração pra ele — Felix disse, ficando de pé. Ele respirou fundo e, com o braço ainda na tipoia, estalou as costas. — Um saco é o bastante?
— Pra quinze dias — Hyunjin deu de ombros. O Senhor Miau miou mais alto, como se soubesse que teria comida em abundância muito em breve.
— Tá bom — assentiu, olhos baixos e olheiras fundas debaixo dos olhos. — Você quer alguma coisa do mercado?
— Não — respondeu muito rápido, o que fez Felix estreitar as pálpebras.
— Tem certeza?
— Uhum.
— Pode pedir o que quiser, Hyunjin.
— Não... Eu estou bem — balançou a cabeça, levando o Senhor Miau até o nariz, aspirando o pelo do gatinho.
Felix assentiu, pegando a carteira em cima da mesinha de centro. Caminhou poucos passos até o quarto e, um minuto depois, voltou com a arma no cós da calça. Não poderia arriscar, ainda, sair completamente desprotegido. Não sabia quem poderia encontrar na rua, se a investigação da central já tinha tido efeito e prendido os outros membros da equipe criminosa de Seunghyun ou algo do tipo, então tinha de ser cuidado.
Felix teria que ir andando, o que não era tão ruim, já que precisava de um pouco de sol e a gasolina andava bem cara nos últimos dias, então ele apenas respirou fundo e caminhou até a porta.
— Posso ver TV? — Hyunjin perguntou quando Felix já estava com a mão na maçaneta. — Está na hora do Pica-Pau.
— Claro — Felix disse, assentindo. — Eu volto logo.
Felix cruzou a porta. Hyunjin ficou sozinho no apartamento pela primeira vez desde o acontecido, cinco dias atrás. O Senhor Miau pulou do seu colo e foi explorar a casa pela milésima vez, procurando algo que pudesse arranhar suas pequenas garras. Hyunjin respirou fundo, juntou as pernas contra o peito no sofá e ligou a televisão. Ela estava ligada no canal de telejornais, já que Felix gostava de ver aqueles homens engravatados falando sobre as desgraças do mundo. Ia zapear o canal seguinte, ansiosos para se distrair com qualquer episódio do Pica-Pau, mas algo chamou sua atenção.
Na tela da televisão, muito mais moderna do que a sua, que era cheia de palha de aço nas antenas, a imagem de um cemitério apareceu. O repórter engravatado, daqueles que Hyunjin odiava ver na TV, com sua voz sempre solene e robótica, narrava sobre um enterro que havia acontecido no dia anterior. Hyunjin sentiu um gelo na espinha.
— O funeral de Choi Seunghyun, de 43 anos, aconteceu ontem, no cemitério municipal de Jinhae, com a presença de poucos familiares. — A voz do jornalista ecoou pelo apartamento silencioso.
O controle remoto escorregou das mãos de Hyunjin bem no assento do sofá. Seus olhos ficaram fixos na tela, observando as imagens do caixão descendo os sete palmos de terra, algumas coroas de flores espalhadas ao redor. Não havia nenhuma multidão ou muita comoção, sequer pessoas chorando ao redor do túmulo. Havia apenas algumas pessoas de preto, talvez parentes distantes que sequer sabiam quem Seunghyun realmente era.
— Choi Seunghyun era suspeito de liderar uma rede de tráfico de drogas e exploração sexual na região de Jinhae e arredores da cidade — o repórter continuou, segurando o microfone. — Sua morte, há quase uma semana, causada por um dos policiais da 7º delegacia, em legítima defesa, juntamente com os dados coletados por esse mesmo policial, abriram caminho para uma ampla investigação que tem revelado a extensão de atividades criminosas outrora desconhecidas na nossa pacata cidade.
Mood: Because of You - Kelly Clarkson
Hyunjin sentiu o peito arder, doer. As imagens do cemitério deram lugar a fotos antigas de Seunghyun, algumas de quando ele era mais jovem, outras mais recentes, que denunciavam aquele brilho frio que Hyunjin conhecia tão bem. Engoliu em seco, sentindo as mãos tremerem levemente.
Não conseguia entender porque estava se sentindo daquele jeito. Era uma pontada estranha no peito, algo se partindo dentro dele em muitos pedaços.
— A investigação resultou na prisão de cinco pessoas envolvidas. — A voz pomposa continuou, e agora, imagens daquela boate com as portas lacradas pela polícia apareciam na tela. — A boate onde os aliciamentos e esquemas de prostituição aconteciam foi fechada definitivamente após as autoridades encontrarem evidências de atividades ilegais no local.
Hyunjin sentiu um nó na garganta ao perceber que, em momento algum, o prefeito foi mencionado. Aquele homem inescrupuloso, nojento, que quase o matou de ânsia e medo naquela noite, sequer seria cogitado como um dos consumidores de tudo que acontecia naquela boate. No entanto, ver aquelas portas fechadas levava a Hyunjin uma confusão de sentimentos que ele mal conseguia discernir.
— Entre os presos estão dois seguranças do local, que também atuavam como traficantes, um gerente e dois intermediários, que facilitavam o recrutamento de jovens vulneráveis — o repórter prosseguiu, enquanto, na tela, os rostos pixelizados daquelas pessoas apareciam enquanto eram conduzidas pela polícia, um deles, Hyunjin conheceu como Jiyong. — As prostitutas e prostitutos do local, incluindo os funcionários da boate, ainda estão sob investigação.
Por um instante, Hyunjin lembrou de Christopher. Ele nunca se envolveu com toda a merda que acontecia ali, só preparava drinks de morango para Hyunjin e o fodia no carro, com carinho e com gentileza, diferente de todos os outros. Christopher era bom e não merecia ser metido naquilo tudo quando só queria ganhar uns trocados para se sustentar sem precisar roubar. Hyunjin fechou os olhos por um instante e pediu para qualquer coisa para que ele saísse dessa ileso.
Uma lágrima escorreu por seu rosto sem que ele percebesse. Quando sentiu a umidade da bochecha, levou a mão até a pele, surpreso. Por que estava chorando? Seunghyun era um monstro que havia destruído sua vida, usado seu corpo, transformado o final da sua adolescência em um pesadelo frio, fétido e doloroso, do qual ele ainda tentava acordar. Em uma contradição miserável, mesmo de forma distorcida e doentia, ele era o único que ainda lembrava dele. Seunghyun o dava comida, um lugar para dormir, drogas quando a dor de deitar com todas aquelas pessoas parecia insuportável e, no fim, uma razão para viver.
— Que merda, porra — murmurou, a voz embargada.
Mais lágrimas vieram. Hyunjin se encolheu ainda mais no sofá, apertando as pernas contra o peito. O Senhor Miau apareceu de volta na sala e pulou no sofá. Hyunjin agarrou o gatinho e enterrou o rosto no pelo macio.
O que houve, cara?
— Por que estou triste, Senhor Miau? — sussurrou. — Seunghyun merecia morrer. Ele me machucou tanto... Então por que eu não consigo ficar feliz?
Na televisão, a reportagem continuava, mostrando os números e as estatísticas de Jinhae que, agora, mudariam completamente. Hyunjin deveria se sentir vingado, deveria, finalmente, sentir-se livre. Em partes quase ínfimas, ele se sentia, mas também havia aquele vazio estranho, uma parte sombria dentro dele, como se sua vida já não fosse mais sua.
Seunghyun estava morto, pessoas estavam presas, ele não tinha notícias de Christopher, e ele estava ali... chorando no sofá de Felix, daquele policialzinho intrometido, odiando-se por não conseguir sentir apenas alívio.
— Ele não vai voltar — disse baixinho, repetindo palavras que traziam um conforto em meio ao turbilhão de sentimentos que eclodiam em seu peito. — Nunca mais vai poder me machucar ou me foder enquanto eu assisto desenhos. Ele não vai voltar, Senhor Miau, nem reclamar de comprar sua comida. Agora o stalker vai comprar ração, mesmo com dor de cabeça e com um braço enfaixado, ouviu? Agora podemos ver TV sem colocar palha de aço nas antenas, e isso é bom, não é? Agora tudo vai ficar bem. Tudo.
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Felix tentou equilibrar com uma só mão — que era o que lhe restava — um pacote de ração para gatos, um engradado de cerveja, cinco maços de cigarro, uma revista, um pacote de papel higiênico, três bandejas de kimbap para o almoço e alguns pirulitos de cereja. Achou ter ouvido que Hyunjin gostava. Colocou tudo em cima do balcão da mercearia da mãe de Minho, uma senhora de cabelos vermelhos como fogo e que usava batons da mesma cor, combinando (ou não) com as sombras azuis nos olhos.
Aerin estava concentrada na televisão pequena, presa em um apoio alto próximo à algumas prateleiras atrás do balcão. Quando ela ouviu o som dos itens escolhidos por Felix, finalmente o olhou.
— Oh, querido! — Aerin disse, olhando para a forma como Felix tentava organizar os produtos com um só braço. — Deixe que eu ajudo, não se esforce.
— Obrigado, Aerin — Felix suspirou, puxando um sorriso de lado. — Como vai? Desculpe por não ter te visitado ou ligado nos últimos tempos.
— Vou bem, meu amor, e não se preocupe com isso — sorriu largo para ele. — Venha aqui, deixe-me ver uma coisa — puxou a camiseta de Felix para frente, depois, girou o rosto dele em vários ângulos diferentes. — Oh, céus, você está um caco — soltou o rosto dele, juntando as sobrancelhas.
Felix crispou os lábios e olhou para o lado, assentindo. Ele estava mesmo um lixo.
— É, eu estou passando por uma fase complicada — disse, coçando a nuca.
— Meu bebê Jisung me contou sobre tudo que aconteceu, e eu também acabei de ver no noticiário — apontou para a pequena TV. — Que bom que conseguiram prender todos aqueles patifes, não é mesmo? Veja só, uma coisa dessas acontecendo bem na nossa cidade e ninguém tomava uma providência! Ainda bem que ainda tínhamos você, querido, para fazer alguma coisa. Ah, e todas aquelas garotas e garotos explorados por aquele monstro... — fechou os olhos, balançando os cabelos chamativos. — A propósito, como está o rapazinho que você salvou?
— Seu bebê Jisung também contou isso? — Felix soprou uma risada.
— Mas é claro que sim! Jisung me conta tudo — sorriu, suspirando.
Aerin realmente amava Jisung e não podia apoiar mais o relacionamento de Minho com ele. Mesmo que fosse uma mulher de mais idade, Felix nunca viu Aerin olhar torto para qualquer pessoa diferente, muito menos para pessoas como ele e Jisung. Ela sempre dizia que defenderia seu filho até a morte e jamais permitiria que alguém o ferisse, fosse com palavras ou ações. No fundo, Felix queria ter uma mãe como ela, que o olhava com carinho, a despeito de ele gostar de homens.
— Está tudo bem com o Hyunjin — Felix respondeu, observando Aerin passar os produtos pelo leitor do caixa. — Ele está... se recuperando.
— Que bom, que bom — ela murmurou, digitando os preços. — Oh, céus, esse produto não deveria estar com esse preço! — negou com a cabeça, teclando em alguns botões que eram tecnológicos demais para ela.
— Não se preocupe, Aerin, eu não estou com pressa — Felix disse, tentando acalmá-la.
— Obrigada, querido — ela suspirou, virando-se para ele. — É que está ficando difícil cuidar disso aqui. Minho está sempre ocupado com o trabalho e eu estou ficando velha... Às vezes penso em contratar mais alguém para ajudar, mas, você sabe, não posso pagar muito. O menino Seungmin quase não ganha o bastante para os livros do cursinho.
— Entendo — balançou a cabeça. — E não se chame de velha. Na verdade, você é muito jovem. Se não fosse gay, eu com certeza te daria uns beijos.
— Oh, querido! — Aerin gargalhou, dando um tapinha no ombro de Felix. Quando ele sentiu o impacto no braço machucado, fez uma careta de dor, e Aerin partiu os lábios. — Me desculpe, me desculpe!
— Sem problemas — resmungou, remexendo o braço dentro da tipóia.
Em meio às risadas divertidas de Aerin, o sininho da porta da mercearia tocou. Felix e ela olharam para a entrada, encontrando Changbin e Lia, a esposa dele, que vestia um vestidinho floral. Changbin estava à paisana e, até então, pareceu não notar a presença do colega de trabalho. Eles pegaram uma cestinha verde e entraram.
— Bom dia — Lia cumprimentou Aerin e Felix educadamente, dando um sorriso simpático.
— Bom dia, querida — Aerin respondeu.
Changbin, então, percebeu Felix parado na frente do balcão, meio desconcertado, meio tentando não ser visto. Ele parou e respirou fundo, sério como se estivesse com dor de estômago.
— Pode ir pegando as coisas, amor — ele disse à Lia, que assentiu e se dirigiu às prateleiras dos fundos.
Changbin esperou que ela se afastasse antes de se aproximar do balcão.
— Felix — ele disse.
— Changbin — respondeu friamente, tensionando os ombros.
Aerin, parecendo perceber a mudança no ar, diminuiu o ritmo com que passava os produtos, fingindo se concentrar nos códigos de barras.
— Será que dava pra gente conversar? — Changbin perguntou, enfiando as mãos nos bolsos.
— Podemos falar aqui mesmo — Felix disse.
— Felix — Changbin insistiu, a voz mais baixa.
Felix suspirou e se afastou alguns passos do balcão, mas não o suficiente para sair do alcance da audição de Aerin.
— O que você quer falar em particular? — indagou, um tanto defensivo.
Felix já conseguia imaginar a opinião do colega sobre tudo que estava acontecendo. Ele e Jeongin eram estoicos o suficiente para não quererem mexer com nada que pudesse mudar a realidade pacata na qual viviam, mesmo que isso significasse fechar os olhos para uma série de eventos nojentos e criminosos que deveriam, como parte de uma coisa chamada polícia, colocar um fim.
— Que porra você estava pensando? — Changbin sibilou entre os dentes. — Investigar essa merda toda sozinho? Sem informar a ninguém da delegacia e sem uma autorização da central?
— Era o meu trabalho, Changbin. Havia pessoas em perigo.
— Seu trabalho era seguir o protocolo — retrucou. — Era me avisar, avisar ao Jeongin... Porra, era primeiro comunicar ao delegado! — Changbin gesticulou, como se estivesse ensaiado todas aquelas palavras antes. — Agora o prefeito Jo está uma fera com toda essa exposição da cidade. A mídia, os jornalistas, estão descendo aqui de tudo que é canto. Eles não te procuram só porque o juiz decretou sigilo e proteção sobre as testemunhas, mas enquanto isso, eles caem em cima da gente. Você transformou essa cidade num maldito circo.
Lia apareceu entre as prateleiras com alguns itens na cesta, mas, ao ver a tensão entre os homens, recusou discretamente.
— Eu ajudei a salvar pessoas, Changbin. Porra, você viu quem ele mantinha naquela boate? Eram quase crianças! Era meu dever proteger essa cidade, proteger quem não podia se proteger sozinho!
— Proteger? — Changbin deu uma risada amarga. — Você causou o maior escândalo que essa cidade já viu. Sabe quantos telefonemas a coitada da Hayun está tendo que atender todos os dias? Quantas perguntas sobre a nossa competência os repórteres já fizeram?
— Talvez, se tivéssemos feito nosso trabalho do jeito certo desde o primeiro dia, eu não precisaria ter feito isso sozinho.
O rosto de Changbin ficou vermelho, o sangue subindo pelas artérias. Ele estava puto.
— Cuidado aí, herói — cuspiu com escárnio a última palavra. — Você não é melhor do que ninguém só porque decidiu bancar o justiceiro.
— Pelo menos, fiz alguma coisa quando percebi que essa cidade não era uma ovelhinha tão branca quanto gostavam de pintar, inclusive o prefeito Jo.
— O quê? O que quer dizer do prefeito?
— Uma hora todos vão saber — Felix disse. — O que importa é que pessoas foram salvas por causa disso, mesmo que você esteja putinho.
— Ah, é? — Changbin riu novamente, a cada risada amarga que ele dava, Felix sentia mais raiva. — Incluindo aquele viadinho que você salvou naquele beco e que disse que não queria sua ajuda? Aposto que ele estava metido até o pescoço nessa sujeira toda.
Felix ficou rígido, a mandíbula trincando.
Viadinho.
Só existem dois tipos de héteros neste mundo.
— Cuidado com o que você vai dizer, Changbin — Felix avisou, a voz grave e baixa.
— Como é mesmo o nome dele? Hyunjin? — Changbin pronunciou com desdém. — Ele é só mais uma bicha como todas as outras. Ele provavelmente sabia de tudo que estava acontecendo e ficou quietinho até as coisas darem errado pra ele.
Lia, novamente, aproximou-se, ainda hesitante.
— Amor, já terminamos aqui? Preciso começar o almoço e...
— Já vou, já vou — Changbin disse, sem olhar para ela, mantendo os olhos em Felix.
— Você não sabe que merda está falando — Felix disse entre dentes cerrados.
— Não sei? Todos eles são iguais, Felix. Vivem nesse mundo sujo, se envolvem com gente errada... — deu de ombros. — Esse Hyunjin sabia exatamente no que estava metido e agora está se fazendo de vítima.
— Quer saber de uma coisa? — Felix estreitou os olhos. — Vai à merda, porra.
A esposa de Changbin, alguns passos atrás deles, arregalou os olhos. Aerin, no balcão, cobriu uma risada com o punho fechado.
Felix caminhou até o balcão novamente, tirou algumas notas da carteira, sem se importar se estava pagando a mais e estendeu o braço para pegar as sacolas da mão de Aerin.
— Felix, querido, calma — Aerin disse, preocupada, segurando as sacolas por um momento.
— Está tudo bem, Aerin — ele disse, virando-se para Changbin. Não disse nada em direção a ele, apenas o encarou, sério, por alguns instantes. — Obrigado por tudo. Diga ao Minho que mandei um abraço.
Felix caminhou até a porta, empurrando-a com o ombro, fazendo o sininho tocar violentamente. A porta bateu atrás dele e, quando viu a rua e o sol encadeou seus olhos desacostumados com a claridade, sentiu um alívio no peito de ter feito o que, no fundo, sempre quis fazer: mandar Seo Changbin à merda.
✧
Hyunjin ainda esperava Felix. Parecia uma eternidade desde que ele saiu para comprar a ração do Senhor Miau. Não que estivesse sentindo falta dele, mas ainda era estranho ficar naquele apartamento sozinho, sem ouvir as tosses eventuais e a voz grave dele murmurando alguma coisa.
Quando seu coração pareceu mais calmo depois de ver o noticiário, Hyunjin percebeu, logo embaixo da TV, um aparelho de videocassete. Seus olhos brilharam.
Hyunjin levantou do sofá, onde ainda estava sentado com as pernas encolhidas, e se aproximou do móvel da televisão. Sentou no chão com as pernas dobradas e abriu a portinha.
— Vamos ver o que temos aqui — murmurou, passando os dedos pelas lombadas das fitas VHS.
O Senhor Miau se aproximou, como se também estivesse curioso sobre o tipo de filme que Felix guardava para ver em seu videocassete.
— Oi, bebê — Hyunjin sorriu, já que o gatinho tinha saído para a cozinha momentos antes. — Sua comida já vai chegar.
Senhor Miau ronronou e se deitou ao lado de Hyunjin, observando-o mexer nas fitas.
— O stalker tem uns gostos interessantes — Hyunjin comentou, encontrando alguns clássicos. — Olha aqui, "Um Sonho de Liberdade"! Eu sempre quis assistir esse.
É melhor do que o Pica-Pau.
— Você acha que ele vai me deixar assistir? — Hyunjin perguntou, tomando a cabeça para o lado. — Acho que sim. Ele parece o tipo que gosta de filmes sérios, já que é tão rabugento — pausou, um pequeno sorriso aparecendo em seus lábios. — Ele é meio bonitinho, não é, Senhor Miau? Mesmo com aquela cara de poucos amigos.
Um gato, modéstia à parte.
— Acho que ele não é como todos esses héteros imbecis que odeiam os gays — Hyunjin suspirou. — Até mesmo o melhor amigo dele gosta de caras... Não sei, tem algo estranho nele além de ser um grande apoiador da causa.
O gatinho apenas miou e se esfregou nas suas pernas.
Hyunjin continuou procurando entre as fitas, mas, de repente, parou. Suas sobrancelhas se uniram em uma só quando encontrou, atrás de uma pilha de livros, uma seção de VHS escondidas.
— O que é isso? — murmurou, puxando algumas fitas com capas bem diferentes do que ele havia visto até então.
Os olhos de Hyunjin dobraram de tamanho quando percebeu do que se tratava. Diferente dos títulos clássicos que ele guardava à mostra assim que a portinha era aberta, aqueles tinham um bom motivo para ficarem escondidos. Eram todos explícitos, com títulos sujos e até meio engraçados, como "Encostei Sem Querer", "Mamando no Quartel", "Tesão no Campo de Beisebol", "Uma História de Prisão Muito Pegajosa", "Quarto Ardente dos Recrutas Bem Dotados". Mas que porra?
Estava tudo bem homens como Felix, solteiros e com um possível quadro de celibato não opcional, terem uma pequena coleção de fitas pornô. No entanto, o que não fazia sentido para Hyunjin era o fato de todas serem pornô gay.
O Senhor Miau miou de curiosidade e tentou escalar as pernas de Hyunjin para ver as fitas.
— Não pode, Senhor Miau! Isso não é pra crianças — virou de costas para o gatinho, ainda encarando as fitas. — Então quer dizer que o stalker gosta de homens, é? — sorriu de lado, batendo uma das VHS nas costas das mãos. — Interessante.
Continuou vendo as fitas por mais alguns instantes, no entanto, foi tirado do seu pequeno transe quando ouviu o som da chave girando na fechadura. Arregalou os olhos em pânico. Rapidamente, jogou as fitas no lugar de qualquer jeito e pegou uma flanela que estava perto da TV.
— Merda — murmurou, sabendo que seria pego próximo à portinha.
Sua única alternativa foi fingir que estava tirando a poeira dali, então, ele ficou com os joelhos no chão, de costas para a porta, o corpo inclinado para alcançar o fundo do móvel.
A porta se abriu. Felix entrou, carregando as sacolas, mas parou na soleira assim que viu Hyunjin naquela posição.
— Oi — disse ele, com a voz baixa. — O que você está fazendo?
Hyunjin se virou rapidamente, ainda apoiado nos joelhos e com o rosto corado.
— Eu... estava limpando essa banquinha — disse, apontando para o móvel. — Estava cheia de poeira, porque esse lugar aqui é pior do que um chiqueiro, e o Senhor Miau solta muitos pelos.
Felix não conseguiu evitar que seus olhos percorressem a silhueta de Hyunjin. Ele estava vestindo uma calça moletom cinza e uma camiseta preta, que não marcavam muito o seu corpo, mas que, naquela posição, ficavam grudadas à pele. A curva das costas, a cintura fina, como a calça se ajustava nos quadris... Bem, Felix era gay, e Hyunjin era um homem bonito, mas, de qualquer forma, ele não fazia o seu tipo.
— Você não precisa... — Felix pigarreou, desviando o olhar e fechando a porta com mais força do que o necessário. — Não precisa limpar todos os dias.
O Senhor Miau correu até Felix, miando alto e tentando alcançar as sacolas com as patinhas, provavelmente sentindo o cheiro da ração.
— Oi pra você também, Senhor Miau — Felix murmurou, mesmo que não conseguisse se abaixar para fazer carinho no gato.
Hyunjin se levantou lentamente, aliviado por Felix não ter percebido que ele estava bisbilhotando, ainda com a flanela na mão.
— Correu tudo bem? — Hyunjin perguntou, tentando soar casual.
— Sim — assentiu, decidindo deixar de fora a parte de que mandou Changbin à merda. — Está com fome?
Hyunjin deu de ombros, como se não quisesse responder.
— Hyunjin, você precisa comer — Felix suspirou, deixando as sacolas no sofá. Rapidamente, já com as mãos livres, ele puxou o pulso direito de Hyunjin. — Olha isso. Seu braço está mais fino que meus dedos.
— Não enche — revirou os olhos, mas Felix não o soltou.
Era estranha a sensação de tocar em Hyunjin. Um formigamento esquisito cruzou sua espinha, a textura macia e quase translúcida da pele dele em contato com seus dedos. Algo travou na garganta, saliva ou alguma coisa ácida. Hyunjin o encarou, sem desviar aqueles olhos escuros e tristes do seu rosto. Ele era bonito. Hyunjin era muito bonito.
Havia uma queimação percorrendo os tecidos e os órgãos de Felix, dolorosa e excitante nas mesmas proporções. Sentir a pele de Hyunjin daquele jeito, mesmo um toque quase insignificante, parecia demais. Aquele calor continuou subindo, arrepiando-o, nublando sua visão por um instante. Felix soltou o pulso de Hyunjin rapidamente, balançando a cabeça e pigarreando.
— Trouxe kimbap — ele disse. — Vamos comer.
Não esperou a resposta de Hyunjin. Felix pegou as sacolas novamente, levando-as até a cozinha. Quando chegou lá, de costas para a porta que dava acesso à sala, respirou fundo e olhou para os dedos que outrora tocavam o pulso de Hyunjin. Estavam formigando, ardendo como se tivessem sido queimados na boca acesa do fogão. Olhou para baixo e, porra, quis enfiar a cabeça em uma panela de água fervente. Ele estava duro dentro dos jeans, latejando. Jogou a cabeça para trás e amaldiçoou qualquer reação biológica que poderia tê-lo feito ficar com tesão por ver Hyunjin limpando seus móveis e por ter tocado no pulso dele. No pulso.
Ele deveria estar doente, com certeza.
Doente pra caralho.
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Todas as noites, Hyunjin limpava o curativo do ferimento de Felix.
Dois dias atrás, Felix havia voltado ao hospital para retirar os pontos, e agora, a ferida estava apenas com um pequeno curativo, que precisava ser higienizado regularmente.
Felix tentou fazer isso sozinho, mas ele tinha pouca coordenação motora. Depois, Hyunjin se ofereceu para limpar ele mesmo o ferimento. Felix percebeu que ele era bom com aquilo, tinha os dedos suaves e não pressionava onde ainda estava dolorido. Hyunjin era delicado, aquela era a palavra correta, e Felix sempre ficava grato por ele estar lá.
— Au! — Felix, sentado sem camisa na cama onde Hyunjin dormia, deu um sobressalto. Mesmo que Hyunjin não tivesse a mão pesada, ainda sentia uma certa agonia cruzar seu corpo quando ele espirrava o soro fisiológico no ferimento para limpá-lo.
— Deixa de ser fracote, stalker — Hyunjin disse, segurando o braço dele com mais firmeza. — É isso ou deixar sua ferida suja, até criar vermes na sua carne que vão te fazer amputar um dos membros.
— Vira essa boca pra lá — Felix disse, prensando os olhos. — Ah, porra, anda logo.
— Por que a pressa?
— Preciso fumar.
— Você parece uma chaminé — Hyunjin resmungou, esfregando delicadamente ao redor do ferimento. — Quantos maços você fuma por dia?
— Você também fuma — Felix retrucou, observando as mãos de Hyunjin trabalhando em seu curativo.
— Bem menos que você.
— Tanto faz.
— Já tentou parar?
— Já — Felix bufou, coçando a nuca com a outra mão. — Não consegui passar nem dois dias. E você? Já tentou... parar com alguma coisa?
Aquela era sua chance de entrar no assunto. Há dias vinha tentando achar uma oportunidade de indagar Hyunjin sobre as drogas e como ele estava se sentindo estando longe delas. Felix não queria parecer invasivo — mesmo que Hyunjin acreditasse que ser invasivo era uma característica natural dos policiais —, então, aquela pareceu uma boa hora.
— Parar com o quê? — Hyunjin perguntou, mesmo que soubesse. A voz, ligeiramente tensa, denunciava seu nervosismo.
— Você sabe, Hyunjin — Felix respondeu. — Ou esqueceu do pacotinho que achei nas suas coisas?
Houve um momento de silêncio. Os olhos de Hyunjin tornaram-se vazios, de modo que ele já não estava sequer mexendo no ferimento de Felix. Ele levantou da cama de uma vez e se afastou como se tivesse levado um choque. Suas mãos foram até os lábios, esfregando-os quase compulsivamente.
— Hyunjin — Felix chamou.
— Por que está falando disso? — Hyunjin perguntou, encarando a janela do quarto, que dava vista para a rua. — Você... Você acha que eu ainda tô usando, é isso? Eu nem saio da droga desse apartamento.
— Ei, calma — Felix também levantou, indo até ele. — Eu não estou te acusando de nada, só estou perguntando.
— Eu... Eu parei, tá legal? — Hyunjin se virou de repente para Felix, braços cruzados, apertando o próprio corpo. — Não uso mais essa merda. Eu... Eu nem poderia, mas...
Hyunjin parou de falar e começou a mexer as mãos várias vezes.
— Mas? — Felix incentivou.
— Mas é difícil pra caralho — Hyunjin engoliu em seco, olhando para os pés descalços. — Eu acordo no meio da noite suando frio e com vontade de cheirar qualquer coisa, só pra... só pra não sentir essa coisa dentro de mim.
Felix ficou parado, mas Hyunjin começou a andar de um lado para o outro no quarto pequeno, respirando fundo e com o coração acelerado dentro do peito.
— Minha cabeça não para de pensar, stalker. Não para nunca. Quando eu usava, eu... sei lá, esquecia de tudo isso — abriu os braços, deixando-os cair ao lado do corpo logo em seguida. — Mas agora, eu só penso, penso, penso — bateu na própria testa com força.
Felix arregalou os olhos e segurou o braço dele com força. No pulso.
— Hyunjin, para — disse, preocupado. — Eu não devia ter tocado no assunto.
— Você sabe como é acordar todos os dias e não conseguir pensar em mais nada além disso? — Hyunjin disse, baixinho. — Você... Você faz ideia do que é já ter chupado o pau de um viciado de merda pra conseguir um pouco de pó?
Felix engoliu em seco, ainda apertando o braço dele de leve.
— Eu sinto muito — Felix disse. Era tudo o que conseguia dizer.
— Eu também, stalker. Eu também sinto pra caralho.
Hyunjin estava respirando com força, como se seus pulmões estivessem trabalhando apenas com metade da capacidade. O quarto não estava com todas as luzes acesas, apenas o abajur ao lado da cama lançando lampejos fracos de luz em direção à cama. A luz que entrava da janela, amarelada e com alguns tons de azul, vinha dos postes da rua, e os iluminava, parados no meio do quarto. Felix, de frente para Hyunjin, viu muita coisa naqueles olhos. Estavam marejados, as sobrancelhas vincadas, formando apenas uma linha fina, e as bochechas estavam sem viço. Os cabelos de Hyunjin estavam muito compridos, bem mais do que os seus, e pensou que ele ficaria bonito se fosse ao cabeleireiro. Pensou, também, em como ele ficava bem naquelas roupas masculinas, sem os saltos altos, as saias e calças de couro e sem os tops provocantes. Ele parecia bonito, atraente, homem, e Felix sentiu algo se mexendo dentro dele. Algo que vinha sentindo desde que ficou de pau duro quando tocou no pulso de Hyunjin, exatamente onde estava tocando naquele momento.
Mas Felix ainda temia muito por ele. Hyunjin era instável. A cada dia que ficavam presos naquele apartamento, era um passo a mais para que tudo explodisse. Hyunjin parecia calmo na maior parte do tempo, mas bastava uma pergunta, uma faísca, para que a pólvora se acendesse e o consumisse. Felix não queria, um dia, pisar em cima daquela armadilha de urso que eram as amarras que Hyunjin construiu nele mesmo, porque tinha certeza de que não conseguiria se livrar delas.
— Desculpa — Felix disse mais uma vez, esfregando o polegar nos relevos das veias do pulso de Hyunjin. — Sei que isso não é fácil.
Hyunjin tremeu o queixo. Felix notou que ele estava quase chorando, mas engoliu o possível bolo pela garganta e assentiu.
— É mesmo uma merda.
— Olha, como eu disse, não consegui ficar dois dias sem cigarro — Felix deu um sorriso torto. — Imagino como deve ser com alguma droga, então não precisa ficar assim comigo.
Hyunjin olhou para os pés e assentiu. Ele não tinha mais o que dizer. Obrigado? Ele deveria agradecer Felix por ter dito aquelas palavras? Se fosse listar as coisas pelas quais ele deveria ser grato àquele policial, demoraria horas escrevendo todas elas.
Felix soltou o pulso de Hyunjin lentamente, vendo-o caminhar até a cômoda velha do quarto e pegar um maço de cigarros e um isqueiro esquecidos ali. Suas mãos ainda tremiam.
— Vamos fumar — Hyunjin disse, abrindo o maço e entregando um cigarro para Felix.
O curativo não tinha sido concluído, mas podia esperar.
Felix assentiu com a cabeça e pegou o cigarro. Hyunjin se deitou na cama com as pernas estendidas contra a parede, próximas à janela. O vento da noite entrava, balançando suavemente as cortinas abertas e iluminando o rosto dele de azul perolado. Felix sentou ao lado dele e viu quando Hyunjin acendeu o cigarro com o isqueiro. Depois, ele estendeu o isqueiro para Felix, que se inclinou na direção dele, com o cigarro entre os dentes, para que Hyunjin pudesse acendê-lo.
Felix se acomodou contra a cabeceira enquanto o olhava. A camiseta que ele usava deixava uma pequena faixa de pele da barriga à mostra, como se, inconscientemente, estivesse pedindo pelo roçar suave das pontas dos dedos de Felix. Começaram a fumar em silêncio por alguns minutos, a fumaça flutuando entre eles, misturando-se à brisa.
Mood: Olhos de Farol - Ney Matogrosso
Em algum momento, os olhos de Hyunjin se fecharam. Não estavam prensados, apenas cerrados, tranquilos, os lábios se fechando ao redor do filtro do cigarro, que se consumia a cada tragada. Felix deixou o próprio cigarro entre os dedos anelar e indicador, perdido em alguma coisa que vinha de Hyunjin. Era uma sensação abstrata, algo que subia pela pele, esquentava-o por dentro e fazia sua cabeça revirar. Hyunjin era lindo, e estava começando a ficar assustado com a quantidade de vezes em que se pegava pensando nisso.
Felix observou a fumaça subir dos lábios de Hyunjin, algo hipnótico naquele movimento que prendia seu olhar e não o deixava desviar para mais nada naquele quarto. Os pensamentos, embaralhados como cartas de um mágico fajuto, mesclavam-se com imagens que ele não sabia se eram seguras projetar. A forma como Hyunjin falou sobre como conseguiu drogas uma vez — chupando o pau de um viciado de merda, em suas próprias palavras — começou a incomodá-lo. Não era exatamente repulsa, era algo mais profundo. Era como se duas partes muito distintas de Felix estivessem brigando: uma delas queria proteger Hyunjin de tudo que ele viveu, e a outra que se sentia... perturbada com a presença dele. Excitada, talvez. A ideia de Hyunjin com outros homens, com tantos homens, criava um nó estranho no estômago de Felix.
— Stalker — Hyunjin perguntou de repente, virando a cabeça para olhá-lo. — Por que virou policial?
Felix deu uma longa tragada no cigarro para ganhar tempo.
— Meus pais — ele disse. — Eles queriam que eu seguisse uma carreira respeitável. Meu pai é contador, minha mãe é professora. Gente certinha, sabe? Igreja nos domingos, casa arrumada, boa vizinhança... Achei que ser policial fosse dar orgulho pra eles e pra mim também.
— Foi sua mãe que ligou pra você ontem? — Hyunjin observou, parecendo lembrar da ligação que Felix recebeu no meio da tarde. — Ouvi vocês falando no telefone.
— Ligam sempre que podem — Felix assentiu e suspirou. — Minha mãe ficou bem preocupada com tudo que aconteceu, mas ficou aliviada quando falei sobre a liminar do juiz que me protege.
— E ela sabe de mim?
Felix ficou em silêncio. Deu mais uma tragada e olhou para o teto.
— Não sabe, não — negou lentamente, antes que pensasse na dureza do significado daquelas palavras.
— É — Hyunjin deu uma risada amarga, fumaça saindo pelo nariz. — Seria uma merda se sua mãe, professora e crente, soubesse que você está dividindo o apartamento com um viciado que trepa por dinheiro, né?
As palavras pareceram sair tão naturalmente que Felix quase engasgou com a fumaça.
— Você não faz mais essas coisas — Felix disse, e viu quando Hyunjin balançou os ombros.
— Você sente falta deles? Dos seus pais? — ignorando o que Felix disse, ele perguntou.
Felix pensou por um momento. Ele sentia, sim, mas era complicado. Sentia falta da segurança que eles representavam em sua vida, da organização que havia se perdido em meio à poeira do apartamento e das garrafas de cerveja pelo chão. Mas, ao mesmo tempo, estar ali com Hyunjin, fazia com que ele sentisse que aquele sentimento era muito distante, quase irreal.
— Às vezes — admitiu. — E você? Sei que eles eram filhos da puta, mas você não sente nem um pouco de falta deles?
O rosto de Hyunjin mudou. A expressão relaxada se tornou dura, quase sombria.
— Minha mãe — ele pausou, levando o cigarro aos lábios novamente. — Às vezes, sinto falta dela. Ela tentava me proteger do meu pai quando não estava chapada, mas não conseguia.
— E o seu pai?
— Espero que esteja morto — Hyunjin disse com uma frieza que fez os pelos de Felix se arrepiarem. — Espero que tenha morrido de câncer, ou de alguma coisa que dói muito, que faz a pessoa definhar lentamente. Quero que ele tenha sofrido pra caralho, stalker, assim como ele me fez sofrer.
O ódio na voz de Hyunjin era palpável. Felix não soube o que dizer, então, apenas ficou em silêncio, observando o perfil dele contra a luz.
Depois de alguns minutos, Hyunjin jogou a bituca do cigarro pela janela. Em vez de se sentar direito na cama, ele deslizou pelo colchão até ficar de bruços, apoiando o queixo nas mãos dobradas. Estava muito perto de Felix agora.
— Você tem medo de mim? — Hyunjin perguntou, baixinho, ao notar que Felix endureceu seus ombros com a proximidade.
Felix podia sentir a respiração dele contra sua pele. Por estar quase deitado na cama, seus rostos estavam separados por poucos centímetros.
Os olhos escuros de Hyunjin o encaravam com uma intensidade perturbadora.
— Não — ele disse.
— Mentira — Hyunjin sorriu, algo predatório na forma como passou a língua pelos lábios. — Você tem medo, sim, mas não de que eu vá te machucar.
Felix engoliu em seco, ainda segurando os últimos resquícios do cigarro. Ele estava certo: Felix não tinha medo de que Hyunjin o machucasse. Era um medo que vinha de dentro, medo daquelas coisas nauseantes que estava sentindo, dos pensamentos que vinham como uma onda alta e o deixavam zonzo.
— É medo de quê, então? — Hyunjin insistiu, aproximando-se mais um centímetro.
Felix podia sentir o calor emendando do corpo dele, o cheiro de sabonete, a pintinha abaixo do olho esquerdo que nunca notou até então. Seus olhos desceram para os lábios de Hyunjin, e teve que fazer um esforço doloroso para voltar a olhar nos olhos dele.
— Eu... — Felix começou, mas as palavras morreram na garganta.
Hyunjin inclinou a cabeça como uma cobra venenosa, um predador estudando sua presa. Hipnotizou-se mais uma vez por aqueles lábios que se mexiam tão lenta e deliberadamente.
— Você fica vermelho quando chego perto — Hyunjin riu baixinho. — Seus pais certinhos devem ter te falado que gays são criaturas perigosas, não é?
Felix queria se afastar, mas não conseguia se mover. O calor que irradiava dele fazia seus ossos se retesarem, assim como os músculos rígidos.
— Hyunjin — disse, e sua própria voz soou muito rouca.
— Hm?
— Vou tomar banho.
Hyunjin estalou a língua no céu da boca e riu, afundando o rosto no colchão. Felix não sabia o que aquilo queria dizer, mas não perguntou.
Levantou da cama, pegou uma roupa no armário e uma toalha limpa. Hyunjin ficou na cama. Felix entrou no banheiro.
No chuveiro, com a água quente lavando do seu corpo todo aquele sentimento profano, ele deslizou as mãos até a dureza sórdida entre as pernas, que latejava quente e ansiosa por algum alívio. Enquanto isso, Hyunjin encostou-se à porta do banheiro, ainda coberto parcialmente pela penumbra do quarto, recebendo lampejos azuis e amarelos das luzes da rua. Ele ouviu a respiração culpada e ofegante de Felix, o barulho molhado da mão deslizando pelo pau, o som da testa batendo contra o box e o gemido arrastado que ele soltou quando gozou. Hyunjin piscou preguiçosamente, um gelo na boca do estômago que ele não sabia o que queria dizer. Medo ou tesão. Ou os dois.
Quando Felix saiu, vestido, vermelho e com a pele quente pelo banho, Hyunjin perguntou sobre o curativo. Felix disse que estava tudo bem, que ele mesmo faria naquela noite, e foi para o sofá após pegar os esparadrapos e as gazes.
Ao pegar no sono, sonhou com Hyunjin. Sonhou com os olhos predatórios, com a língua vermelha e com os lábios dele profanando pecados de morte contra sua orelha. Felix tremeu em sonho, porque viver sob o mesmo teto que Hwang Hyunjin estava, um pouco a pouco, fazendo-o conhecer lados seus que ele nunca pensou existirem.
Notes:
Esse Felix, viu... Enfim! O que acharam? Acham que ele vai aguentar muito tempo sem ficar INSANO morando com esse diabinho no AP?
Até a próxima semana!
tt: felixsaturnn
tag: #bemjin
Chapter 8: A Cera
Notes:
Oi, oi, oi! Esse capítulo é muito bom e marca uma mudança no nosso Hyunjin, tanto externa quanto interna. Acho que é um capítulo no qual os pensamentos deles, sobretudo os do Felix, ficam bastante claros pra vocês. Eu não preciso ficar botando aviso de gatilho todo capítulo, né? Vocês já sabem e leram os avisos (né?). Enfim!
Aproveitem a primeira att da semana!
(See the end of the chapter for more notes.)
Chapter Text
— Então, eu trouxe pasta de dente, aspirinas, anti-inflamatórios, antibióticos, álcool gel, desinfetante — Jisung listava os produtos, colocando-os na mesa da cozinha. — Ah, e eu também comprei band-aids e essa coisa de passar em ferimentos, acho que o nome é antisséptico... ou será que é pomada cicatrizante? — ele pausou, franzindo a testa enquanto examinava o pequeno tubo. — Enfim, o farmacêutico disse que era bom para cortes e arranhões, ou seja, deve ser bom pro seu ferimento.
— A ferida está quase cicatrizada, Jisung, não precisava de tudo isso — Felix, parado ao lado dele, respirou fundo.
Era uma quinta-feira de manhã, e já fazia um mês desde que tudo tinha acontecido. Um mês que ele não visitava a delegacia, um mês que estava morando com Hyunjin, um mês que estava à beira de um colapso de nervos.
— Sempre é bom se prevenir — disse Jisung. — Além disso, você não acha que está na hora de cortar esse cabelo?
Felix tocou nos próprios fios escuros, crescidos e tocando a nuca. Ele assentiu, lembrando que, quase dois meses atrás, já achava que seus cabelos precisavam de um corte. Agora, mais do que nunca, ele queria cortá-los, mas sempre esquecia de ligar para marcar horário no cabeleireiro.
— Você pode marcar o horário pra mim?
— O que acha de deixar a Aerin cortar? — Jisung sugeriu, uma sobrancelha arqueada. — Ela era cabeleireira quando era jovem. Deve ter cortado os cabelos de toda a população gay de Jinhae.
— De todas as cinco pessoas? — Felix debochou, arregalando os olhos. — Puxa vida, ela realmente tem experiência.
— Vai se foder — Jisung fingiu que atiraria uma caixa de aspirinas nele. — Saindo daqui, eu vou até a casa dela. Você podia ir comigo.
Antes que Felix pudesse responder, Hyunjin apareceu na entrada da cozinha. Ele tinha acabado de acordar e, aparentemente, não teve uma boa noite de sono. Os cabelos compridos estavam despenteados, os olhos meio fechados, um bico quase fofo nos lábios e os pés descalços. Ele estava usando uma camiseta branca muito larga que ia até a metade das coxas. Felix sentiu o ar fugir dos pulmões como sempre fugia quando encontrava Hyunjin pela manhã. Mesmo passando todos aqueles dias com ele, ainda parecia irreal tê-lo tão perto. Embora desarrumado e com cara de poucos amigos, Hyunjin ainda conseguia ser uma das criaturas mais bonitas que Felix já tinha visto. Aquilo o assustava, deixava-o zonzo, tornava-o um tolo.
— E aí, meio-metro? — Hyunjin disse, passando direto por Jisung para abrir um dos armários.
— Bom dia, Rapunzel — Jisung respondeu, já habituado ao jeito de Hyunjin. — Dormiu bem na sua torre?
Felix observou a interação entre eles e deu um sorriso de canto. Nas últimas semanas, Jisung e Hyunjin haviam desenvolvido uma relação interessante, quase como um gato e um rato — que o Senhor Miau não ouvisse aquela comparação —, com provocações constantes disfarçadas de cordialidade, testando os limites um do outro o tempo inteiro.
Hyunjin ignorou o comentário, pegando uma lata com a ração do Senhor Miau. Felix não conseguiu deixar de notar como as costas dele se arquearam para alcançar a prateleira mais alta, fazendo a camiseta subir e expor um pedaço das coxas pálidas. Engoliu em seco e forçou-se a olhar para os remédios sobre a mesa.
— Senhor Miau? — Hyunjin chamou, fazendo aqueles estalos com a língua que qualquer gato reconheceria como hora da comida.
O gatinho apareceu como um fantasma camarada, roçando nas pernas de Hyunjin antes de ficar ao lado da tigela. Felix observou a cena com uma pontada estranha no peito, algo que fazia seu coração acelerar inconvenientemente.
— Então — Jisung continuou, limpando a garganta e trazendo a atenção de Felix novamente para ele. — Como andam as coisas por aqui? Vocês não parecem estar se matando.
— Está tudo bem — Felix respondeu rápido demais, e Jisung arqueou uma sobrancelha. — Quer dizer, tudo normal. Tranquilo, eu acho.
Hyunjin soltou um ruído parecido com uma risada abafada enquanto colocava a comida na tigela do Senhor Miau.
— Normal e tranquilo — Hyunjin disse. — Nunca pensei que fosse fazer parte de um ambiente normal e tranquilo, meio-metro, acredita?
Hyunjin se virou para encará-los com um sorriso que não chegava aos olhos. Os cabelos dele caíam pela nuca, quase chegando aos ombros. A franja, que antes cobria sua testa, estava quase tão longa quanto o restante do cabelo, emoldurando o rosto que, agora, estava com bochechas mais cheias. Felix pensou, mais vezes do que o normal e tranquilo, sobre como seria a textura daquele cabelo. Como seria o cheiro dele, se seus dedos deslizariam facilmente pelas mechas, se o couro cabeludo era suave... Pior ainda, Felix se pegou muitas vezes sonhando em puxá-los, em empurrar a cabeça de Hyunjin para baixo enquanto ele estava com o rosto no meio de suas pernas. Eram quase pesadelos culposos, que o faziam acordar com a nuca suada e com uma ereção miserável presa na calça. Estavam sendo dias terríveis, nada normais e, puta merda, nem perto de serem tranquilos.
— Eu preciso cortar o cabelo — Felix disse, de repente, a voz saindo mais alta do que pretendia.
Jisung e Hyunjin o olharam com o cenho franzido.
— Eu acabei de falar sobre isso — Jisung disse, lentamente, cruzando os braços. — Sobre o seu cabelo.
— Eu sei, mas... — Felix gesticulou vagamente na direção de Hyunjin. — O cabelo do Hyunjin também está grande e... eu... eu acho que a Aerin faria um bom trabalho.
Hyunjin passou uma das mãos pelo próprio cabelo, quase defensivamente, dando um passo para trás.
— Eu gosto do meu cabelo assim — disse, mas havia uma certa hesitação em sua voz.
Era claro que ele gostava. Hyunjin gostava dos cabelos longos, de roupas femininas, de saltos altos e de maquiagem. Era Felix quem não gostava de tudo aquilo. Era Felix quem gostava de cabelos curtos, roupas largas e rosto lavado. Era Felix quem odiava ficar com caras afeminados, com caras como Hyunjin.
— Ouvi dizer uma vez que cortar o cabelo pode marcar uma mudança de fase — disse Jisung, dando de ombros depois. — Acho que você poderia tentar algo novo.
— É, exatamente isso! — Felix estalou os dedos, apontando para Hyunjin. — Há quanto tempo você usa o cabelo comprido?
— Hm — Hyunjin pensou. — Acho que desde sempre.
— Viu só? — Felix continuou, meio nervoso, mas tentando parecer casual.
— Acho que você tem razão, stalker — Hyunjin cruzou os braços, balançando a cabeça. — Cortar o cabelo pode ser legal, contanto que ela não me deixe careca.
— Aerin jamais faria isso — Jisung respondeu, orgulhoso. — Ela sabe como nos deixar estilosos, por isso o Minho sempre tem os melhores cortes de cabelo.
— Aerin é a mãe do namorado do Jisung — Felix complementou, e Hyunjin arqueou as sobrancelhas. — Você vai?
— Beleza — suspirou. — Vamos cortar o cabelo, então.
✧
Aquela seria a primeira vez que Hyunjin sairia do apartamento de Felix desde que tudo aconteceu.
Felix notou a mudança no comportamento dele na hora de se arrumar. Hyunjin trocou de roupa três vezes, sempre voltando ao quarto com uma expressão insatisfeita, até que finalmente escolheu uma calça jeans escura e um moletom azul com um capuz. Não era nada parecido com as roupas que ele usava quando se conheceram, mesmo que Felix soubesse que elas ainda estavam nas gavetas, bem no fundo, esperando o momento de serem usadas.
Hyunjin ficou parado na frente do espelho do banheiro por quase dez minutos, olhando para o próprio reflexo, tentando se enxergar. Felix teve que chamá-lo duas vezes.
— Você está bem? — Felix perguntou, enquanto eles desciam pelo elevador.
Jisung havia descido antes para tirar o carro do estacionamento.
— Claro que estou bem — Hyunjin respondeu, rápido e firme, mas as mãos estavam nervosas, deslizando pelos cabelos várias vezes, como se estivesse tentando sentí-los uma última vez. — Por que eu não estaria?
Felix podia ver as mãos dele tremendo levemente, mas ficou em silêncio.
O trajeto até a casa de Aerin foi silencioso, com Jisung cantarolando baixinho no banco da frente e Hyunjin grudado na janela do banco de trás. Felix, no banco da frente, observava-o pelo retrovisor. Ele parecia absorver os detalhes da calçada, das estradas, das pessoas caminhando.
Hyunjin sentia como se estivesse conhecendo tudo de novo. Um mês trancado em um apartamento, vendo somente Felix, o Senhor Miau e, eventualmente, Jisung e os investigadores da Central, aplicaram um anestésico potente em suas sensações. A luz o incomodava um pouco, as coisas pareciam muito coloridas e estranhas. Havia, também, uma sensação de medo subindo pelo estômago. Por vezes, encolhia-se um pouco no banco quando passavam por um grupo de pessoas, especialmente homens. Felix sentia uma pontada no peito sempre que capturava, com olhos atentos, aquele gesto doloroso.
— Olha — Jisung apontou para uma casa amarela com um pequeno jardim na frente. — É aqui.
Eles estacionaram, e Felix pôde ver Hyunjin respirar fundo antes de abrir a porta do carro. Os três saíram quase ao mesmo tempo. Jisung foi direto até a entrada, mas Hyunjin hesitou na calçada, olhando ao redor com expressões mistas de ansiedade e curiosidade.
— Vem — Felix disse, tocando levemente o cotovelo de Hyunjin.
Foi naquele momento que um homem passou ao lado deles na rua. Era uma pessoa comum, de meia-idade, caminhando com um cachorro branco na coleira. No entanto, quando ele passou próximo a Hyunjin, murmurando um "com licença" baixinho, o efeito foi instantâneo. Hyunjin se enrijeceu completamente, como se tivesse levado um choque. A mão, trêmula e suada, apertou a de Felix. Os dedos estavam gelados, e Felix sentiu seu corpo tensionar com o dele.
— Ei — Felix sussurrou, olhando para o rosto pálido de Hyunjin. A respiração dele estava quase ofegante, e o aperto em sua mão se tornou tão forte que doeu. — Hyunjin? Olha pra mim.
Mas Hyunjin pareceu perdido em algum lugar na própria mente, o corpo inteiro em estado de alerta, como um animal que já foi muito ferido. Felix podia sentir o pulso acelerado através do aperto em sua mão, e uma onda de proteção furiosa tomou conta dele.
— Hyunjin — disse de novo, um pouco mais firme. — Você está seguro, ouviu? Eu estou aqui com você.
Jisung, que estava quase na porta da casinha amarela, virou-se e percebeu que eles haviam parado. Voltou até eles com a expressão preocupada.
— O que aconteceu? — perguntou, apreensivo.
— Nada — Felix respondeu rapidamente, sem tirar os olhos de Hyunjin. — Só... dê um minuto.
Lentamente, muito lentamente, Hyunjin começou a piscar, como se estivesse voltando ao presente. O aperto na mão de Felix afrouxou um pouco, mas ele não a soltou completamente.
— Foi mal — Hyunjin murmurou, a voz rouca. — Eu... Foi mal, stalker, eu me assustei.
— Tudo bem — Felix disse, percebendo que ainda estava de pé entre Hyunjin e a calçada, como se seu corpo tivesse se movido instintivamente para protegê-lo. — Quer voltar? Não precisamos fazer isso hoje.
— Não — Hyunjin balançou a cabeça, soltando finalmente a mão de Felix. — Não, eu quero...
Felix estudou o rosto dele, procurando algum sinal de que ele não estava bem o suficiente para fazer aquilo. Hyunjin ainda estava um pouco pálido, mas havia uma certa determinação nos olhos escuros que Felix reconhecia: a mesma teimosia de sempre.
— Tem certeza?
— Tenho.
Jisung olhou entre eles, claramente ansiando perguntar alguma coisa, mas apenas acenou e virou para a casa da sogra novamente.
— Você vai gostar da Aerin, Hyunjin — disse Jisung, tentando aliviar a tensão. — Ela vai ficar feliz em ter mais alguém pra mimar.
Enquanto caminhavam pelo pequeno jardim até a porta da frente, Felix percebeu que Hyunjin estava mais perto do que o normal. Quando olhou para baixo, viu que sua própria mão ainda formigava no local onde ele tinha tocado, como se aquele gesto tivesse deixado uma marca invisível, mas intensa, na sua pele.
Jisung tocou a campainha e eles esperaram na varanda. Felix ficou perto o suficiente de Hyunjin para que ele soubesse que ele estava ali e não iria a lugar algum.
Quando a porta se abriu, deram de cara com uma mulher de olhos cansados, porém brilhantes, cabelos vermelhos vibrantes presos em um coque chamativo e com uma tiara de girassóis na cabeça. Ao ver os três parados na sua porta, Aerin bateu uma palma na frente do rosto e sorriu largo o bastante para seus olhos virarem dois risquinhos adoráveis. Sorrir foi inevitável para Jisung e Felix, e Hyunjin olhou para os lados, desconsertado, como se ver uma pessoa feliz daquele jeito fosse algo estranho.
— Oh, meu bebê Jisung — ela disse, já abrindo os braços para receber o genro em um abraço apertado. Depois, foi a vez a de Felix. — E olhe só para você, querido, está bem melhor do que a última vez que eu te vi.
— Obrigado, Aerin — Felix disse com um sorriso pequeno. — Bem, este é o Hyunjin.
Aerin deu uma boa olhada nele, examinando desde os cabelos até os tênis meio encardidos nos pés. Hyunjin olhou para as próprias roupas, encolhendo os ombros.
— Céus — Aerin suspirou, estonteada. — Que rapaz mais lindo — sorriu largo novamente. — Você é bonito como um raio de sol, querido!
Hyunjin sentiu as bochechas ficarem quentes, o elogio sincero atravessando suas orelhas e atingindo um ponto caloroso dentro dele. Felix e Jisung se entreolharam e deram um sorriso cúmplice, sendo o efeito que Aerin tinha nas pessoas.
— Venham, entrem, entrem! Eu acabei de passar um café e têm panquecas.
— Você adora panquecas — Felix disse para Hyunjin, que apenas mordeu os lábios, assentindo.
Eles entraram na casa pequena e acolhedora. Na casa de Aerin, era tudo muito caprichoso, desde as decorações de plantas e flores, até as paredes pintadas de amarelo e vermelho. Hyunjin achou que a casa dela parecia com aquelas casas de bruxas dos desenhos animados, que eram sempre coloridas e que cheiravam a bolo para atrair as crianças. Bem, se ele fosse uma criança perdida na floresta e visse a casa de Aerin e sentisse o cheiro de baunilha e melado daquelas panquecas em cima da mesinha da cozinha, ele com certeza seria devorado vivo.
Os três sentaram à mesa de Aerin, que não demorou para servir café fresco para eles. Hyunjin sentiu a boca salivar quando ela serviu as panquecas e derramou o melado em cima delas. Apertou os dedos entre as coxas, olhando para Felix quando ele tocou de leve o seu braço.
— Come — ele disse, já mastigando. — As panquecas da Aerin são ótimas.
— Coma, raio de sol! — Aerin incentivou, sentada ao lado de Jisung. — Eu uso leite desnatado e ovos de galinhas felizes.
— O que são galinhas felizes? — Hyunjin perguntou, falando pela primeira vez.
— São galinhas que crio no meu próprio quintal — ela apontou para uma portinha que dava acesso aos fundos da casa, onde ela tinha um galinheiro repleto de galinhas felizes. — Sem crueldade, apenas milho e ração da melhor qualidade!
— Legal — Hyunjin assentiu, pegando os talheres. Ele levou um pedaço de panqueca até a boca e arregalou os olhos quando sentiu o doce do melado e o sabor suave da baunilha. — Puxa!
— São as galinhas felizes — Aerin sorriu, balançando a cabeça.
Felix e Jisung riram, também comendo. Hyunjin devorou todas as quatro panquecas em seu prato em um período muito curto, sob o olhar atento de Felix. O policial tentava não reparar tanto assim nele, deixando-o se virar no que ele podia e conseguia fazer, mas observá-lo era inevitável. Nem sempre era para cuidar do que ele estava fazendo. Às vezes, ele só gostava de ficar olhando para o rosto bonito de Hyunjin, bonito como um raio de sol, como Aerin disse. Ele duvidava que Hyunjin, um dia, já tivesse sido elogiado daquele jeito.
— E então — Aerin finalmente disse, quando todos já tinham acabado de comer —, quais ventos trouxeram vocês até aqui hoje?
— Felix e Hyunjin querem cortar o cabelo — disse Jisung, deitado no ombro da sogra. — Eu disse que você faz isso muito bem.
— Meu bebê tem razão — assentiu, fazendo um carinho maternal nos cabelos de Jisung. — Cortei os cabelos de toda a população gay de Jinhae quando era cabeleireira.
— Viu só? — Jisung olhou para Felix, que negou com a cabeça. — Eu disse.
— Bom, então o que estamos esperando? — Aerin bateu palmas. — Vamos ao trabalho!
Aerin desapareceu casa adentro por alguns minutos e voltou carregando, com dificuldade, uma cadeira de madeira, que colocou bem no meio da sala. Depois, foi buscar uma caixa, na qual guardava suas tesouras antigas, pentes, borrifadores e uma capa floral para cobrir as roupas, que já tinha visto dias melhores.
— Tudo pronto! — anunciou, orgulhosa do seu pequeno salão de beleza improvisado. — Quem vai ser o primeiro? Felix ou o raio de sol?
Felix e Hyunjin se olharam. Hyunjin, ainda um tanto acanhado, empurrou Felix sem força para que ele fosse.
— Tudo bem, então acho que eu — ele disse, rindo de lado.
— Que tipo de corte que você quer, querido? — Aerin perguntou enquanto prendia a capa ao redor do pescoço de Felix.
— Algo mais curto — Felix disse, tocando os fios crescidos, que estavam longos como ele nunca tinha deixado antes. — Talvez um sidecut?
— Seu pedido é uma ordem! — ela exclamou, já pegando um pente cor-de-rosa e uma tesoura prateada.
Hyunjin, sentado no sofá ao lado de Jisung, observou quando Aerin começou a trabalhar. Ele deixou o dedo mindinho entre os dentes, mordiscando a unha, olhos atentos. A tesoura se movia com precisão, e aquilo o fez perceber que ela sabia realmente o que estava fazendo. Em poucos instantes, os cabelos escuros de Felix começaram a cair no chão da sala. Primeiro, ela aparou as mechas e, quando o tamanho estava bom o suficiente, usou uma máquina para cortar bem as laterais, criando um leve degradê.
A cada segundo, Hyunjin sentia algo se contraindo no peito. Felix estava ficando diferente, o rosto ficando mais evidente, a linha da mandíbula mais marcada. Quando Aerin finalmente terminou, Hyunjin engoliu em seco.
— Meu Deus — Jisung murmurou, vendo a transformação.
Felix estava quase irreconhecível. O corte acentuava todos os traços que antes ficavam meio escondidos pelos cabelos sem corte, desgrenhados, que ele sequer sabia como cuidar direito. Agora, ele parecia mais maduro, mais... atraente de um jeito que fez Hyunjin apertar os punhos no colo.
— Está lindo, querido! — Aerin exclamou, orgulhosa, retirando a capa. — Vá se olhar no espelho do banheiro.
Felix se levantou, passando as mãos pelo cabelo novo, e foi na direção do corredor. Hyunjin não conseguia tirar os olhos dele, acompanhando-o até ele desaparecer dentro do banheiro.
— Sua vez, raio de sol — Aerin disse, indicando a cadeira para Hyunjin.
Mood: Como Eu Quero - Kid Abelha
Hyunjin se levantou devagar, sentindo as pernas meio bambas. Quando se sentou na cadeira, Felix voltou do banheiro com uma expressão satisfeita, e Hyunjin teve que fingir que não estava vidrado no rosto dele.
— E você? — Aerin perguntou, passando os dedos pelos cabelos longos de Hyunjin. — O que você gostaria de fazer?
Hyunjin hesitou, olhando para Felix. O que Felix gostaria que ele fizesse nos cabelos?
— Que tal um corte mais moderno? — Aerin sugeriu, estudando o rosto dele. — Com esse rosto tão delicado, você ficaria lindo com uma franja e o resto um pouco mais curto.
Felix, que estava sentado ao lado de Jisung, onde outrora Hyunjin estava, sentiu o estômago revirar quando Aerin levantou a primeira mecha de cabelo. Aquele cabelo macio, que ficava esparramado no travesseiro quando ele deitava na sua cama, que grudava na nuca quando ele saia do banho, que acordava bagunçado, que o deixava tão, tão lindo... Era como se Aerin estivesse prestes a arrancar uma parte de Hyunjin.
— Espera — Felix disse, quase se levantando do sofá. Todos olharam para ele, fazendo-o respirar fundo e conter o tom de voz. — Você... você tem certeza, Hyunjin? Você disse que... que gostava do seu cabelo comprido e, sei lá, não quero que se sinta pressionado a fazer isso.
Hyunjin deu de ombros, uma expressão que Felix não conseguiu decifrar.
— Eu tenho certeza, stalker — ele disse. — Além disso, é só cabelo. Vai crescer.
Mas Felix podia ver nas mãos de Hyunjin, apertadas no colo, que não era só cabelo. Era uma mudança que Felix tinha sugerido, empurrado por seus próprios preconceitos e desejos.
Aerin começou a cortar com cuidado os cabelos de Hyunjin. Os fios sedosos começaram a cair em mechas, e Felix sentiu cada corte como se estivessem dilacerando suas próprias entranhas. Hyunjin permaneceu quieto, olhando para baixo na maior parte do tempo.
— Olhe para frente, raio de sol — Aerin pediu gentilmente quando começou a cortar a franja.
Mesmo com o corte inacabado, já era possível ver a mudança. O rosto de Hyunjin estava exposto agora, os traços delicados mais fortes. As maçãs do rosto altas, os olhos expressivos, os lábios cheios que pareciam ainda mais bonitos sem a moldura dos cabelos longos. Aerin cortou a franja com um leve desfiado, deixando todo o cabelo bem curto, mas não tanto quanto o de Felix, mantendo um comprimento que ainda tinha movimento e que tocava a nuca.
— Pronto — Aerin disse, afastando-se para admirar o trabalho.
O silêncio na sala foi absoluto. Hyunjin estava de tirar o fôlego. O corte transformou seu rosto, realçou a beleza já forte e inegável, deixando-a mais suave e marcante. A franja caía sobre a testa, e ele, surpreendentemente, parecia ainda mais jovem.
Felix sentiu o coração disparar, chocando-se contra sua caixa torácica. Era como se estivesse vendo Hyunjin pela primeira vez, e a intensidade da sua reação, o jeito como vê-lo daquela forma mexeu com ele, o assustou.
Não era apenas aquela atração corrosiva que vinha sentindo, era algo mais profundo, quase possessivo. Hyunjin estava tão lindo que Felix quis escondê-lo dos olhos de Aerin, de Jisung, de todos na porra do mundo. Ninguém deveria ter o direito de olhar para algo tão lindo além dele, e era tão injusto que simplesmente pudessem.
— Uau — Jisung sussurrou, quebrando finalmente o silêncio.
Hyunjin desviou o olhar, parecendo um tanto intimidado com tantos olhos em cima dele.
— Espere, eu vou pegar um espelho — Aerin disse, correndo em direção ao banheiro.
— Ela gosta mais dele do que de você — Jisung riu, empurrando o ombro de Felix. — Mandou você ir se olhar no banheiro.
— Cala a boca — Felix retrucou, ainda com os olhos fixos em Hyunjin.
— Como eu estou? — ele indagou, encarando Felix e tocando na franja.
— Você está...
— Aqui, veja! — Aerin voltou, entregando um pequeno espelho para Hyunjin.
Ele se encarou no reflexo. Puxa. Estava mesmo diferente, mas parecia... bom. A parte de trás estava um pouco mais curta e a franja caía pela testa. Aquele estilo combinava com ele, mas ainda era estranho se ver de cabelo curto depois de tantos anos usando os fios compridos. Seunghyun costumava dizer que ele ficava bem com os cabelos longos, que ele parecia uma boneca e que era sua marca registrada. Bem, ele estava apodrecendo debaixo da terra, então a opinião dele não importava mais.
Mas a de outra pessoa importava.
— Você gostou? — perguntou sob um impulso, olhando para Felix.
Felix arregalou os olhos e engoliu em seco, esfregando as mãos na calça.
— Gostei — Felix disse, mesmo que aquela palavra não representasse nada do que ele realmente queria dizer. — A Aerin fez um ótimo trabalho.
Hyunjin o olhou por um longo momento, e Felix viu algo mudar nos olhos dele. Quando ele desviou novamente para o seu reflexo e chacoalhou a franja, um sorriso tímido surgiu nos lábios grossos.
Depois de mais alguns minutos naquela casinha de bruxa de desenho animado — uma bruxa que gostava de girassóis e tulipas —, eles tiveram que ir para casa. Aerin recusou qualquer tentativa de pagamento e disse que ficaria ofendida caso Felix insistisse. Ainda tentou alongar mais o tempo com os três, mas disse que o pobrezinho do Seungmin estava sozinho na mercearia e precisava ir ajudá-lo, com aquela voz doce e cheia de amor. Então, eles aceitaram que teriam que voltar para o apartamento cinza de Felix e deixar aquele aconchego maternal que Aerin tinha.
Na viagem de volta, Hyunjin ficou se olhando pelo retrovisor o tempo todo, sorrindo vez ou outra. Quando Felix o pegava fazendo isso, não conseguia evitar um sorriso de lado, quase orgulhoso dele.
Então, Jisung foi embora e, de novo, eram só Felix e Hyunjin.
✧
Hyunjin estava fumando, apoiado na janela do quarto quando Felix abriu a porta de repente, chamando sua atenção.
Já era noite do dia sabe-lá-Deus-qual que ele estava no apartamento de Felix, vendo desenhos e filmes na TV, dando comida ao Senhor Miau, falando com investigadores esporadicamente e fingindo que não sabia que Felix batia punheta no chuveiro pensando nele. Era bem monótono.
— Você está com fome? — Felix perguntou, parado na soleira da porta.
Hyunjin esmagou a bituca de cigarro no parapeito da janela e olhou para Felix, a luz da rua iluminando a lateral do seu rosto.
— Você vai me levar a um jantar? — Hyunjin brincou.
— Na verdade, vou — Felix assentiu. — A comida acabou e eu não gosto de pedir delivery com frequência, então...
— Espera — Hyunjin franziu o cenho, balançando a cabeça. — Você vai mesmo me levar pra jantar?
— Por que a surpresa?
— Você vai ser visto comigo — respondeu como se fosse óbvio.
Felix respirou fundo e encolheu um pouco os ombros. Sim, ele seria visto com Hyunjin, mas as circunstâncias eram outras naquele momento. Seu atestado estava quase chegando ao fim e, dentro de poucos dias, ele teria que voltar ao trabalho, tendo que encarar Changbin e Jeongin e Hayun quatro vezes por semana. Há dias pensava no que diria para eles, como voltaria à sua rotina, como ficaria de plantão nas sextas-feiras e deixaria Hyunjin sozinho naquele apartamento cinzento. Mas ele estava tentando não focar tanto nisso agora, caso contrário, enlouqueceria antes do tempo.
— Isso não é importante — Felix disse, ainda no mesmo lugar.
Hyunjin o estudou por um momento, a cabeça ligeiramente inclinada. O novo corte de cabelo fazia seus olhos parecerem maiores na penumbra do quarto.
— Beleza, então — disse, afastando-se da janela. — Me dá uns quinze minutos pra me arrumar?
Mood: Bandido Corazón - Ney Matogrosso
Felix assentiu e fechou a porta, mas não conseguiu se afastar completamente. Ficou perto da porta, indo até a sala e depois voltando. Ele colocava a mão na maçaneta, encostava a testa na madeira e respirava fundo. O som das gavetas abertas, os tecidos das roupas farfalhando, os passos descalços no piso frio... Tudo deixava Felix tão excitado. Ele tinha certeza de que estava ficando louco.
Depois de alguns minutos — bem menos do que quinze —, ele começou a sentir aquele formigamento na boca do estômago, a garganta seca e uma ansiedade que subia pela espinha. Ele precisava fumar, e Hyunjin estava fumando quando entrou no quarto. Os seus cigarros estavam no móvel da TV, com o isqueiro, mas ele poderia pedir um dos cigarros de Hyunjin. Claro, estavam mais perto.
Então, Felix bateu na porta duas vezes. Sem esperar resposta, ele a abriu.
— Hyunjin, posso pegar um...
A palavra morreu na sua garganta. Na verdade, ele quase engasgou com ela.
Hyunjin estava de costas para a porta, ainda vestindo uma calça jeans escura. O tecido estava na metade das coxas e Felix teve uma visão fantasmagórica da curvatura da bunda dele, da linha suave da cintura, da pele pálida das costas. Os músculos com pouco volume se moviam sutilmente quando ele puxava a calça para cima. A boca de Felix secou ainda mais do que quando sentiu a necessidade da nicotina.
Hyunjin se virou, percebendo a presença dele, e não pareceu constrangido por ele ter entrado.
— Que foi? — perguntou, abotoando a calça com um movimento lento.
— Eu... — Felix limpou a garganta, forçando-se a olhar para o rosto dele. — Cigarro. Queria pegar um cigarro.
— Ah — Hyunjin disse, caminhando rapidamente até a cômoda para pegar o maço e o isqueiro.
Ao invés de simplesmente entregá-lo, Hyunjin tirou um cigarro de dentro e se aproximou de Felix, estendendo-o para ele. Felix ficou imóvel quando Hyunjin chegou tão perto, mas tentou estender a mão para pegar o cigarro. Hyunjin negou e esticou a mão, até que o cigarro estivesse perto dos seus lábios.
— Toma — ele murmurou, os dedos roçando de leve nos lábios de Felix, que aceitou o cigarro entre eles.
O mundo parou por um instante. Felix podia sentir o cheiro da pele de Hyunjin, algo quente, doce e que subia como veneno do pulso dele até o seu nariz. Instintivamente, Felix fechou os olhos, inalando aquele cheiro quase sem perceber. Era nocivo, uma mistura do sabonete barato que dividiram e algo que era puramente Hyunjin.
Sentiu sua pele queimar, principalmente quando ele acendeu o isqueiro e o fogo tocou o cigarro. Foi como se aquele fogo estivesse queimando diretamente sua boca, seus olhos, seus órgãos. Era quente, excitante, e tão desesperador, que Felix quis morrer.
Quando Felix abriu os olhos, Hyunjin ainda estava perto, com os olhos escuros fixos no seu rosto. Havia algo nos olhos dele que Felix não conseguia decifrar, mas era algo perigoso.
— Obrigado — Felix conseguiu dizer, a voz mais rouca do que pretendia.
Hyunjin deu um passo para trás, um sorriso pequeno brincando nos lábios.
Felix saiu do quarto, fechando a porta atrás de si, apoiando-se nela por um momento. Ele tentou controlar a respiração, tragando a fumaça como se ela fosse a única coisa capaz de acalmar seus batimentos. A pele ainda formigava, o cheiro do pulso dele o inebriando, aquele desejo corroendo como pites os tecidos do seu corpo.
Conseguiu mover suas pernas até o sofá e sentou ali, fumando enquanto esperava a porta do quarto se abrir novamente. Quando Hyunjin saiu, Felix teve certeza de que morreria naquela noite.
Ele usava a mesma calça jeans, mas agora, sua roupa estava completa. Contornando o tronco, um colete de couro preto e, por cima, uma jaqueta do mesmo material. Colocou alguns colares prateados e o cabelo estava despojado pela testa.
Era devastador. Hyunjin parecia alguma coisa que os linguistas ainda não sabiam nomear. Bonito não era uma palavra forte o suficiente, lindo era eufemismo, deslumbrante ainda não chegava nem perto. Ele tinha um tipo de beleza desconcertante, que fazia Felix questionar se ele era mesmo real ou se havia conseguido enlouquecê-lo o bastante para que ele começasse a vislumbrar seres de outra dimensão.
Já fazia muito tempo que Hyunjin não usava maquiagem. Mesmo que, na fuga, ele tivesse conseguido colocar algumas coisas na mochila, ainda não conseguiu maquiar os olhos de preto ou passar o batom vermelho na boca. Era um medo estranho, uma hesitação que tomava conta dele sempre que pensava em se pintar. Sentia como se a maquiagem, que antes servia como uma máscara que usava na rua, pudesse lembrá-lo de todo o horror que viveu por sete anos. Mesmo assim, ele ainda gostaria de confrontar sua imagem montada no espelho e dizer "ei, seu merdinha, você não pode me vencer!"
— Como eu estou?
Felix teve que engolir em seco antes de conseguir responder.
— Você está... — começou, e a voz falhou. Limpou a garganta e tentou de novo. — Está bem.
Mas a maneira como Felix o olhava dizia muito mais do que só "está bem". Seus olhos estavam percorrendo todos os detalhes de Hyunjin de forma quase obsessiva, e ele notou. Hyunjin notou tudo.
— Só bem? — aproximou-se devagar, os coturnos pesados nos pés.
Ele estava perto do sofá agora, e Felix teve que se levantar e se afastar para evitar tocá-lo.
— Vamos logo — disse, abruptamente. — Antes que eu mude de ideia.
— E então eu ia ter que jantar pipoca de novo.
— É, pra você ver.
Hyunjin riu baixinho e procurou o Senhor Miau pelo apartamento, apenas para se despedir. Quando encontrou o animalzinho, fez um carinho suave entre as orelhinhas dele e disse que voltava logo.
Enquanto desciam pelo elevador, Felix manteve uma distância segura de Hyunjin, mas não conseguia deixar de olhá-lo pelas portas metálicas. As linhas do corpo dele, os movimentos naturais que fazia quando passava as mãos pelo cabelo novo... Céus, Felix estava a um passo da insanidade.
Completamente perdido.
✧
— Você não vai comer, stalker? — Hyunjin perguntou, a boca cheia de um macarrão cremoso que haviam pedido no restaurante simples.
Estavam sentados um de frente para o outro, dois pratos de macarrão na mesa e uma garrafa de vinho. Felix ignorou o aviso de "não fume" pregado na parede e acendeu um cigarro enquanto esperavam os pratos. Quando o garçom chegou com os pedidos, ele ainda estava na metade e decidiu terminar.
— Eu não estou com tanta fome — Felix respondeu, tragando mais uma vez.
Hyunjin deu de ombros e continuou comendo. Felix percebeu que ele realmente gostava de comer, mesmo que, no início, comesse poucas vezes ao dia. Ele era realmente magro, apesar de comer a quantidade que comia em algumas refeições. Na verdade, ele só comia bastante coisas que gostava, mas não fazia tanta questão assim de comer várias vezes ao dia, talvez por hábito adquirido durante os sete anos de escassez.
Felix gostava de vê-lo comer, e quase se sentia satisfeito só de olhá-lo. No entanto, quando terminou o cigarro, viu-se na obrigação de comer o próprio macarrão.
Começou a mastigar mecanicamente, mais preocupado, sendo sincero, em observar Hyunjin do que saborear a comida. O restaurante era pequeno e não era exatamente um lugar de gente rica, mas não era tão ruim assim. As luzes amareladas das lâmpadas no teto faziam a pele de Hyunjin parecer dourada, etérea, sedosa. A forma como ele enrolava o macarrão no garfo, depois o levava à boca e lambia os lábios era tão hipnotizante que beirava ao patológico.
— Eu gostei daqui — Hyunjin comentou. — Melhor do que aquela lanchonete com aquela comida americana nojenta.
Felix observou a pequena mancha de molho no canto da boca de Hyunjin. Ele teve uma vontade quase animalesca de se inclinar sobre a mesa e passar o dedo no canto dos lábios róseos.
— Eu vinha aqui às vezes — Felix respondeu, tomando um gole do vinho. A acidez queimou um pouco a garganta, mas não tanto quanto a consciência de que ele estava adoecido pela beleza de Hyunjin. — Não sei cozinhar e esquecia de ir ao mercado, então ou era isso ou comer lasanha congelada todas as noites.
— Eca — tremeu o corpo. — Você tem sorte de que agora eu cozinho pra nós dois. O meu kimchi é muito gostoso e eu faço uma sopa de algas deliciosa.
— É — Felix assentiu com um pequeno sorriso. — E suas panquecas também são ótimas nos domingos.
— Gosto de cozinhar, apesar de que não tinha tanta comida — disse como se não fosse nada de mais, mas o coração de Felix pesou um pouco. — Quando eu tinha comida de sobra, gostava de fazer algumas receitas que eu via na TV ou nas revistas.
— Agora você pode fazer sempre que quiser — Felix comentou. — Mesmo que eu vá ficar menos tempo em casa em breve.
Quando ouviu aquilo, o olhar de Hyunjin ficou distante, como se tivesse caído na armadilha de lembrar daquele fato. Ele brincou com o colar prateado no pescoço, o metal refletindo a luz das velas sobre a mesa.
— Quanto tempo você ainda tem de atestado?
A pergunta caiu como um chute no estômago de Felix. Eles não tinham conversado sobre aquilo ainda, embora soubessem que, uma hora ou outra, ele teria que voltar ao trabalho. Seu braço estava em perfeito estado agora, sem dores, sem mais complicações. Ele tinha que enfrentar a realidade, como se nada tivesse mudado desde que decidiu investigar os podres de Jinhae. Como se não tivesse se acostumado à vida naquele apartamento com Hyunjin.
— Uma semana — respondeu, a voz mais baixa. — Tenho que voltar em uma semana.
— Ah — Hyunjin parou de comer por um momento, o garfo suspenso no ar. — Eu vou ficar sozinho, então?
Havia algo na voz dele, uma vulnerabilidade que ele estava deixando transparecer ultimamente. Era como se, em alguns momentos, as máscaras que tanto ele quanto Felix usam caíssem, revelando o medo cru de encarar a realidade e do abandono.
— Serão apenas algumas horas por dia — Felix tentou amenizar. — Quatro vezes por semana, contando com o plantão da madrugada na sexta.
— Tá, mas é que... — Hyunjin voltou a comer com menos entusiasmo. — Eu não faço nada agora. Eu só fico vendo TV, brincando com o Senhor Miau e lendo revistas. Me sinto meio inútil.
Felix colocou o garfo no prato, a atenção voltada totalmente para Hyunjin.
— Você não é inútil.
— Mais ou menos — deu um sorriso amargo. Era um sorriso que carregava anos de autodepreciação, achando que seu único valor estava no seu corpo, na sua capacidade de satisfazer os outros. — Você paga tudo, cuida de tudo, e eu só existo ali. Tá, eu limpo o apartamento e cozinho, mas não é grande coisa. Talvez eu devesse, sei lá... — hesitou, mexendo no colar novamente. — Talvez eu devesse voltar a trabalhar.
— Voltar a trabalhar? — Felix franziu o cenho.
— Na rua — deu de ombros. — Pelo menos, eu ajudaria com alguma coisa.
Ouvir aquelas palavras foi como se tivessem cortado os pulsos de Felix e arrancado as suas veias com os dentes. Por um momento, ele sequer conseguiu respirar direito. A imagem que se formou na sua mente foi como assistir a um filme de terror: Hyunjin de volta àqueles becos escuros, mãos estranhas percorrendo a pele que Felix estava começando a reverenciar, olhares famintos devorando aquele corpo perfeito. A ideia de outros homens tocando em Hyunjin, das mãos sujas na tez quente, de olhares maculando as curvas delicadas era, simplesmente, insuportável.
— Não. — A palavra saiu mais agressiva do que Felix pretendia. Hyunjin ergueu as sobrancelhas, surpreso com a intensidade da resposta. — Você não vai mais fazer isso.
— Mas eu não sei fazer mais nada, e...
— Eu disse não, Hyunjin — ele reafirmou em um rugido baixo, lutando para manter calada a tempestade que se formava dentro dele.
A mera conjectura de dividir Hyunjin com qualquer pessoa, de vê-lo sendo usado da forma como foi por anos, exposto aos perigos de uma vida incerta deixava Felix transtornado, como se cada célula do seu corpo se rebelasse contra aquela ideia.
— Certo — Hyunjin murmurou, mas havia algo diferente em seus olhos agora.
Talvez fosse repulsa pela forma como Felix impôs algo sobre ele que ele sequer poderia ter direito de impor, talvez fosse a realização dos pensamentos protetores e preocupados que, no fundo, só demonstravam o bem que ele queria a Hyunjin.
Felix se esforçou para relaxar o punho, mas o nó na garganta permaneceu, assim como a sensação de que poderia ter falado de outro jeito.
— Só... não pense mais nisso, okay? — Felix fechou os olhos. — Você sofreu para sair disso, então não pense em voltar.
— Foi só uma ideia — Hyunjin respondeu, dando o assunto por encerrado.
Felix estava prestes a dizer alguma coisa, talvez se desculpar pela reação exagerada ou tentar explicar de alguma forma a tempestade que, diariamente, aumentava dentro dele, quando viu os olhos de Hyunjin se iluminarem de um jeito que fez seu estômago despencar.
Mood: Jealous - Labrinth
— Chris? — Hyunjin chamou, já se levantando da cadeira com uma animação que Felix não o via demonstrar há semanas.
Felix virou-se para ver um homem baixo, de cabelos pretos e ombros largos, que estava saindo do restaurante com um uniforme que dizia que ele trabalhava ali. O homem, Chris, virou-se ao ouvir seu nome, e um sorriso largo e caloroso se espalhou pelo rosto bonito quando viu Hyunjin.
— Hyunjin? Meu Deus, Hyun, é você mesmo! — A voz do homem era grave, confiante, e Felix quis calá-lo no mesmo instante.
Hyunjin praticamente voou até ele, deixando Felix sozinho na mesa. Felix assistiu, com uma sensação horrível crescendo no peito, como ácido subindo pela garganta, enquanto Hyunjin abraçava o tal Chris com uma intimidade que fez o seu sangue ferver e as mãos tremerem imperceptivelmente.
Era um abraço cheio de afeto. Chris envolveu Hyunjin com braços fortes, levantando-o brevemente do chão, e Felix pôde ver o sorriso radiante no rosto de Hyunjin, aquele sorriso que ele raramente via, salvo quando estava assistindo aos seus desenhos.
Por que Hyunjin nunca sorria daquele jeito pra ele?
Eles conversavam animadamente perto da porta, Hyunjin rindo, e cada risada era como uma punhalada no peito de Felix, uma confirmação dolorosa de que havia partes de Hyunjin que ele ainda não conhecia e que, talvez, jamais conhecesse. Existiam pessoas na vida dele que Felix não sabia quem eram, pessoas que o conheciam melhor do que ele, que sabiam mais sobre sua vida, sobre seus gostos, sobre tudo.
Chris colocou a mão no braço de Hyunjin enquanto falava, um gesto casual, mas que fez Felix apertar a taça de vinho com força, imaginando como seria esmagar aqueles dedos confiantes que apertavam Hyunjin.
Quem era Chris? Como eles se conheciam e por que merda Hyunjin sorria daquela forma para ele, como se ele merecesse aqueles sorrisos? Onde estava aquela vulnerabilidade de momentos atrás? O medo de ficar sozinho, de ficar sem Felix? Por que ele saiu correndo da mesa para falar com Chris, quando Felix estava falando com ele?
Felix tentou ouvir a conversa, inclinando-se para frente, mas estava longe demais. Ele apenas via os gestos, a forma como Chris tocava em Hyunjin, a linguagem corporal que o fazia se inclinar quando Chris falava. Felix se sentiu insignificante, excluído, furioso de uma forma que beirava à loucura.
A taça que apertava estava prestes a se quebrar quando Chris riu alto de alguma coisa que Hyunjin disse. O som da risada dele ecoou pelo pequeno restaurante como um desafio direto. Felix sentiu vontade de se levantar e interromper aquela conversa. Chris era bonito, admitiu com relutância, o tipo de beleza masculina que atrairia Felix em qualquer outra circunstância. Mas, pela forma como ele olhava para Hyunjin, pelos toques sugestivos, pela intimidade... Felix o odiou, porque conseguia ver história não contada ali e podia imaginar muita coisa.
Finalmente, após o que pareceram horas, Hyunjin se despediu de Chris com outro abraço e voltou para a mesa. Seu rosto estava radiante, um raio de sol, como diria Aerin, os olhos brilhando.
— Porra, stalker, que alívio! — Hyunjin disse, sentando-se. — Eu estava com medo que tivessem colocado o Chris no meio de toda aquela merda da boate e... que bom que ele conseguiu se safar dessa e ainda arrumou outro trabalho.
— Você conhecia muito ele? — Felix perguntou, forçando-se a soltar a taça antes que ela realmente quebrasse.
— Ele trabalhava como barman na boate — Hyunjin respondeu. — Eu fiquei muito preocupado com ele, de o acusarem sem ele ter feito nada.
Preocupado. A palavra ecoou na mente de Felix. Hyunjin estava preocupado com Chris, pensava nele, importava-se com ele. Aquele homem morava em seus pensamentos.
— Fico feliz. — Foi tudo o que Felix conseguiu dizer.
Hyunjin continuou falando sobre Chris, que descobriu se chamar Christopher, e sobre como era bom vê-lo de novo, mas Felix mal conseguia processar as palavras. Sua mente estava ocupada demais criando cenários cada vez mais tortuosos.
— Stalker? — Hyunjin o chamou, percebendo que ele estava com o pensamento longe.
— O quê?
— Tá no mundo da lua?
— Estou bem — mentiu, tentando se forçar a comer mais um pouco do macarrão, que agora parecia ter gosto de carne crua e sangue.
O silêncio se estendeu entre eles, mas era diferente do silêncio anterior. Agora, havia uma sombra sobre a cabeça de Felix.
A pergunta que saiu da boca dele era algo que vinha circulando seus pensamentos há minutos.
— Ele também era um cliente?
Hyunjin arregalou os olhos ligeiramente. Por um momento, Felix viu algo passar pelo rosto dele, talvez surpresa ou uma pontada de vergonha.
— Era — respondeu. — Mas não era como todos os outros. Ele era gentil e — deu um sorrisinho de lado — me comia gostoso.
As palavras foram quase como o cortejo de um funeral, cada sílaba enterrando seu peito. Me comia gostoso. A imagem se formou no mesmo instante: Christopher sobre Hyunjin, dentro dele, fazendo-o gemer de uma forma que Felix sequer sabia como, porque nunca tinha ouvido.
Felix apertou os punhos debaixo da mesa, as unhas cravando nas palmas das mãos até quase perfurarem a pele.
— Entendo — conseguiu dizer, a voz controlada. — Está na hora de ir.
— Já? — Hyunjin pareceu surpreso. — E a sobremesa? Achei que você fosse pedir bolo.
— Tem sorvete em casa — Felix cortou, a voz áspera.
Ele não conseguia mais ficar ali, fingir normalidade quando estava prestes a enlouquecer.
Hyunjin franziu levemente cenho, mas não insistiu. Felix pagou a conta em silêncio. Depois, eles se levantaram da mesa.
O caminho de volta foi mais longo do que ele gostaria.
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Mood: A Cera - O Surto
Quando finalmente chegaram ao apartamento, Felix foi direto até a cozinha, ignorando o Senhor Miau, que tentou escalar as suas pernas em busca de carinho. Não tinha um propósito real, ele sequer estava com sede quando tomou aquele copo inteiro de água, mas ele queria evitar olhar para Hyunjin.
— Vai me dizer o que foi ou vai ficar de charme? — Hyunjin perguntou no batente da porta da cozinha.
Felix, que ainda segurava o copo, fechou os olhos e respirou fundo.
— Nada — respondeu. — Só estou com enxaqueca.
— Enxaqueca, é? — O tom de voz de Hyunjin era cético. — E essa enxaqueca começou quando o Chris apareceu no restaurante?
Felix colocou o copo de vidro no balcão com força, o som reverberando pela cozinha pequena. Ele podia sentir o olhar de Hyunjin queimar suas costas, esperando uma resposta.
— Não tem nada a ver com ele.
— Claro que tem — rebateu, cruzando os braços. — Você mal falou comigo depois que voltei pra mesa, ficou que nem aqueles zumbis dos filmes.
Felix se virou, e a raiva que estava cozinhando dentro dele durante todo o caminho de volta para casa começou a entrar em ebulição.
— Por que saiu correndo pra abraçar ele daquele jeito? — Felix disparou.
Hyunjin arqueou as sobrancelhas, um sorriso irônico se formando nos lábios.
— Você ficou assim porque eu fui abraçar o Chris?
— Não foi só o abraço — Felix continuou. — Foi toda aquela cena. Vocês ficaram quase grudados e... — gesticulou com desdém — ficaram conversando perto, ele até passou a mão no seu cabelo, pelo amor de Deus.
— E daí, porra? — Hyunjin rebateu, os olhos brilhando de irritação. — O Chris era legal comigo.
— Então ele era seu amigo?
— Mais ou menos — deu de ombros. — Ele me tratava bem e fazia drinks de morango pra mim. Sempre acertava o açúcar.
— Morango? — Felix juntou as sobrancelhas. — Você disse pra mim que não gostava de morango.
— Eu estava mentindo pra você — Hyunjin balançou a cabeça, como se fosse óbvio.
— Ah, certo — Felix deu um sorriso irônico, assentindo. — Mas para o Chris você não mentia.
— Que porra, stalker — negou com a cabeça, parecendo não acreditar naquela conversa. — O que quer que eu diga?
— Ele era seu cliente — Felix afirmou. — Vocês transavam, então ele não era só um cara que te tratava bem.
— Então é porque eu transava com ele? — Hyunjin perguntou, aproximando-se mais, o tom de voz cada vez mais cheio de sarcasmo. — Tá com ciúmes de mim?
— Não é ciúmes, porra — Felix ralhou, mas a mentira saia fraca até para os próprios ouvidos. — É que você não deveria ter contato com alguém do seu passado desse jeito, na frente de todo mundo. Os investigadores podem descobrir, podem inventar alguma coisa, podem querer te prejudicar...
— Que merda de desculpa esfarrapada é essa? — Hyunjin riu, mas era um riso sem senso de humor. — Investigadores? Que porra de investigadores, stalker? Se conversei com o Chris foi porque eu sei que ele não era envolvido com nada. Eu não sou burro.
— É por não achar que você é burro que eu digo que você devia ter mais cuidado.
— Eu sei bem me cuidar — ele disse, sério. — Mas acho que você tá putinho por causa de outra coisa.
— Ah, é? Que coisa?
Hyunjin chegou mais perto, ficando a centímetros dele. Felix sentiu o mármore do balcão nas suas costas e engoliu em seco.
— Porque ele já me comeu e você não.
Felix abriu a boca para responder, mas as palavras morreram na sua garganta. Que porra ele faria agora?
— Você não sabe do que tá falando — ele disse, defensivo. — Eu não...
— Você não é gay? — Hyunjin debochou. — Você acha que eu não percebi? — Felix ficou em silêncio. — Devia guardar suas fitas em um lugar melhor.
Porra.
Felix respirou fundo. Nem sequer lembrava daquelas fitas escondidas atrás da pilha de livros. Com tudo que estava acontecendo na sua vida, com Hyunjin acontecendo, ele nem mesmo se importava mais com aquelas gravações. Agora, o que lhe dava tesão não eram mais aqueles filmes que ele já tinha visto dezenas de vezes, com os homens musculosos brilhando suados pelo sol, mas sim aqueles olhos melancólicos, aquela pele pálida, aquela boca molhada. Tudo bem na sua frente.
Mas ele não podia admitir tão fácil.
— Eu ser gay não tem nada a ver com isso — Felix respondeu.
— Eu acho que tem, sim — Hyunjin disse com a voz rouca e baixa. — É inveja, stalker? — arqueou a sobrancelha. — Ou raiva porque você não consegue admitir isso?
Felix cerrou os punhos, a mandíbula travada. Ele estava encurralado. Hyunjin estava muito perto.
— Cala a boca, Hyunjin — ele disse instintivamente, defendendo-se.
— Agora você me manda calar a boca? Você acha que manda em mim?
— Não é sobre mandar em você, caralho. Estou tentando te proteger.
— Porque você sempre quis ser o herói, não é, stalker? Sempre querendo me proteger — riu com escárnio, e aquele sorriso não era o sorriso que Felix queria. — Por que não aceitou a rapidinha quando devolveu meu canivete? Era só ter transado comigo lá atrás, matado sua vontade, e nada disso estaria acontecendo.
— Não fala o que você não sabe, porra — Felix murmurou, a voz quase não saindo.
Hyunjin riu de novo, mas havia veneno naquele som.
— Sei muito bem — retrucou.
Felix ergueu o dedo indicador, deixando-o entre o seu rosto e o de Hyunjin.
— Você não faz ideia do que está falando — repetiu, mais sério, com mais raiva.
— Faço, sim — rebateu, e segurou firme no dedo que Felix apontava, tirando-o do seu rosto.
— Hyunjin...
— O que foi? — Hyunjin deu mais um passo, agora, colando os corpos. — Vai fazer o quê? Me proibir de falar com todos os caras com quem eu já transei nessa cidade? Não que eu faça muita questão, mas não acha isso esquisito? Qual o próximo passo? Colocar uma coleira no meu pescoço? Vai me chamar de bom garoto e me deixar amarrado quando eu te desobedecer?
— Para com isso, caralho.
— Você vai fazer carinho na minha cabeça, me dar beijinhos de boa noite, mas vai me bater quando eu sair da minha casinha, stalker? — fez um biquinho, tanto deboche e tanta defesa que Felix estava sufocado. — É pra isso que você me quer? Pra ser o seu cachorrinho?
Felix sentiu o sangue ferver. As palavras de Hyunjin eram como farpas sendo cravadas, uma a uma, na sua pele fina.
— Você só fala merda — ele disse entre os dentes, mas Hyunjin apenas deu aquele sorriso cruel e sedutor ao mesmo tempo.
— Você gosta quando falo assim — inclinou a cabeça, os olhos brilhando com uma mistura de desafio e irritação. — Você gosta e eu sei que gosta.
— Hyunjin — avisou mais uma vez, mas, antes que pudesse dizer qualquer coisa, ele o cortou.
— Me diz, então — sussurrou, colando os lábios no ouvido de Felix, a voz quente. — Você fica pensando em mim quando assiste aos seus filminhos? — Felix apertou as mãos em um punho. — Ou você pensa em mim quando tá no chuveiro, batendo punheta?
— Cala essa boca — Felix rosnou.
— Você não me manda calar a boca — Hyunjin respondeu, os lábios roçando de leve no pescoço de Felix. — Você pode fantasiar o quanto quiser comigo, pode ficar horas naquele chuveiro quente, apertando o seu pau enquanto pensa que está me fodendo, mas eu sei que é só um covarde que não tem coragem nem de me tocar.
Felix abriu os olhos de uma vez, algo se partindo dentro dele.
Covarde?
Ele era policial.
Covarde?
Ele decidiu investigar um esquema criminoso sem nenhuma pista.
Covarde?
Ele fez aquilo sozinho.
Covarde?
Ele matou um homem.
— Covarde? — Felix repetiu, a voz perigosamente baixa.
— É — Hyunjin provocou, sorrindo mais largo. — Um policialzinho covarde que fica babando por mim, mas que não tem coragem nem pra falar que é gay. Pelo menos, o Chris era homem o bastante pra me curvar no banco do carro e me foder a noite toda. Ah, e como ele me fodia bem, stalker. Ele era bom e era gostoso e eu mal podia esperar pra transar com ele. Eu até faria de graça pra ele se pudesse. E sabe o que eu fazia quando ele conseguia escapar do bar? Eu mamava o pau dele bem gostoso no banheiro porque ele sabia o que queria, diferente de você. Ele sabia que me queria.
Aquilo foi a última gota d'água de um copo transbordando.
Em um movimento rápido, Felix agarrou Hyunjin pelo pescoço com uma das mãos, com força o bastante para fazê-lo entender que não era o único com voz ali.
Os olhos de Hyunjin se arregalaram de surpresa, mas havia algo mais ali — raiva.
— Você não sabe quando parar, né? — Felix disse, a voz rouca e carregada de uma autoridade que Hyunjin só tinha ouvido no dia em que ele matou Seunghyun.
Hyunjin tentou falar, mas Felix apertou os dedos levemente ao redor da sua garganta. Com a mão livre, pressionou firme o ombro de Hyunjin, empurrando-o para baixo.
Hyunjin hesitou por um segundo, seus olhos encontrando os de Felix. Havia um claro desafio ali. Lentamente, mantendo os olhos fixos em Felix, ele se deixou guiar, dobrando os joelhos até ficar na posição que Felix queria.
A cozinha foi preenchida por um silêncio denso, o som das respirações pesadas preenchendo o ambiente apertado. Felix ainda segurava o pescoço de Hyunjin com uma mão, o polegar roçando de leve na pele pálida.
Hyunjin estava de joelhos diante dele, finalmente quieto, mas seus olhos continuavam desafiadores e enraivecidos.
Felix podia sentir o próprio coração batendo rápido, descompassado, a realidade o atingindo em cheio. Hyunjin estava submisso a ele e, pela primeira vez desde que se conheceram, Felix sentiu que tinha controle total da situação.
A mão que estava no pescoço de Hyunjin foi parar nos cabelos da nuca, no mesmo momento em que a outra mão de Felix começou a desabotoar sua calça jeans. Ele não esperou nada que dissesse que devia fazer aquilo, que Hyunjin queria, mas Felix conseguia ver nos olhos brilhantes, na boca entreaberta, no som da respiração quente, que ele ansiava aquilo tanto quanto ele. Tinha certeza que sim.
Felix abaixou a calça apenas o bastante para conseguir tirar o pau para fora. Estava duro, molhado e pulsando quando ele o tocou. Felix mordeu os lábios, os olhos se revirando nas órbitas, quase uma expressão de desespero.
Mal conseguiu se preparar para o calor molhado da boca de Hyunjin o engolindo. Ele não o provocou, não disse nada, não o preparou para aquilo. Tudo o que ele fez foi engolir seu pau até o fundo quando Felix empurrou para dentro, até que seu nariz estivesse batendo contra os pelos escuros, até que Felix pudesse sentir o fundo macio da garganta dele.
Felix apertou com força os fios da nuca de Hyunjin, finalmente sentindo a textura que ele queria sentir, finalmente confirmando que seus dedos deslizavam fácil por eles. Porra, mesmo curtos, os cabelos de Hyunjin ainda eram lindos, e Felix sentia que ele poderia ficar careca e nada mudaria. A boca dele era apertada, quente, e a língua rodeava sua glande várias vezes. Depois, ele descia até o fundo de novo, subia, chupava a cabeça, olhava para Felix com aqueles olhos cínicos e dissimulados.
O estômago de Felix doía, revirava-se, suas entranhas se enroscando. Ele tinha sonhado tanto com a boca de Hyunjin, com a pele dele, com aqueles cabelos, com aquele corpo inteiro... Hyunjin estava de joelhos para ele, com a boca no seu pau, mamando tão gostoso como ninguém nunca tinha feito. De repente, sentiu-se poderoso, como se nada nem ninguém pudesse atingi-lo.
Felix não queria mais nada. Ele poderia morrer dali a alguns segundos, quando gozasse, porque era tudo o que importava.
Hyunjin começou a chupar com mais força, as mãos agarrando a parte de trás das coxas de Felix, indo e voltando rápido. Felix apertou com mais força do que o necessário os fios dos cabelos escuros, forçando-o a ficar com a cabeça parada.
Felix empurrou os quadris algumas vezes, fodendo a boca dele, gemendo grave enquanto sentia o calor confortável e a maciez da língua no seu pau. Olhou para baixo e viu aquela cena diabólica: os olhos intensos brilhando, cheios de lágrimas, cheios de...
Não conseguiu terminar o que pensava. Gozou tudo dentro da boca dele, sem avisar, porque veio de repente. Felix tremeu, apertou a cabeça de Hyunjin com as duas mãos e gemeu, jogando o pescoço para trás.
Hyunjin ia engolir sua porra, seu orgulho, ia engolir, também, trágica e inevitavelmente, a sua dignidade.
Mas Felix, ainda arfando e com o pau para fora, não esperou o que veio em seguida.
Hyunjin se levantou, os lábios cerrados, tudo que Felix tinha derramado ainda dentro da boca. Ele se aproximou, colocou as mãos no balcão no qual Felix estava encostado e quase colou seus rostos. Deu um sorrisinho de lado em contraste com duas lágrimas grossas que escorreram cada uma de um olho. Felix não soube desvendar a antítese nas expressões dele, zonzo demais para pensar em qualquer coisa.
Então, Hyunjin cuspiu uma mistura gosmenta de porra e saliva no seu rosto, deixando-o cego por alguns instantes.
— Vai se foder — Hyunjin disse, e Felix apenas conseguiu ouvir os passos dele deixando a cozinha.
Notes:
alô felix? tá podendo falar ou tá levando cuspida de porra na cara?
até sexta <3
tt: felixsaturnn
tag: #bemjin
Chapter 9: Olhos de Farol
Notes:
Oii! Eu amei a interação no capítulo anterior. <3
Nesse capítulo, vamos ver as consequências do que aconteceu naquela cozinha. Ai, ai.
(See the end of the chapter for more notes.)
Chapter Text
Mood: Maluco Beleza - Raul Seixas
Jisung encheu seu copo de cerveja pelo que Felix acreditou ser a sétima vez.
Eles estavam sentados em um bar, música dos anos sessenta tocando, algumas pessoas dançando, e a cabeça de Felix, explodindo. Segurava um cigarro entre os dedos, a mesma mão na testa, olhos fechados e uma vontade imensa de mergulhar em uma piscina de ácido sulfúrico.
Merda.
Ele estava um lixo.
— Achei que as coisas estavam boas — Jisung disse, sempre cumprindo o seu papel de bom amigo. Bom o bastante para deixar Minho em casa e ir conversar com Felix em um bar no meio da noite.
— Estavam — Felix disse, tomando a cerveja enquanto o cigarro se desfazia em cinzas. — Mas eu fodi tudo.
— Você disse isso quando me ligou, mas ainda não contou o que aconteceu.
— Eu... Ah, porra, eu nem sei por onde começar.
Jisung deu dois tapinhas no ombro de Felix e chamou o barman com o indicador. Sussurrou algo para ele, que se afastou em seguida.
— Você vai conseguir falar melhor com algo mais forte do que cerveja — ele disse.
— Com certeza — concordou, tragando o cigarro. — Só com muito álcool no rabo pra conseguir dizer tudo.
Dois minutos depois, o barman voltou com uma garrafa de uísque e os copos apropriados. Jisung encheu os dois, mesmo que não tivesse a verdadeira intenção de se embebedar. Feix puxou o próprio copo pelo balcão e virou a bebida de uma só vez, fazendo uma careta.
— Então vai — disse Jisung. — Fala.
Felix soprou uma risada amarga e negou com a cabeça. O que ele diria, afinal? Que estava obcecado por Hyunjin? Que não conseguia parar de pensar nele? Que tinham discutido na noite anterior e que a discussão tinha terminado com um boquete na cozinha e uma chuva de cuspe e porra na sua cara? Era humilhante.
Mas ele precisava colocar para fora aquele bolo espesso de amargura e vergonha que estava entalado em sua garganta, e se alguém fosse ouvir toda sua confissão sórdida e doente, esse alguém tinha que ser Jisung.
— É o Hyunjin — ele disse, simples.
— Claro que é o Hyunjin — Jisung suspirou, virando para o melhor amigo. — O que ele fez?
— Ele... — tragou o cigarro, tomando coragem. — Ele está me deixando pirado.
— Como assim?
— É tudo... Ele... Porra — abaixou a cabeça, até que sua testa estivesse em contato com a madeira do balcão. O cigarro continuou queimando entre os dedos, a fumaça indo na direção de Jisung, que abanou com uma mão. — Ele não fala comigo.
Felix ergueu os olhos para encarar Jisung. Ele estava sério, sem esboçar nenhuma reação que fosse além de um leve arquear de sobrancelhas.
— Ele só... não fala comigo — repetiu, murmurando contra a madeira novamente. — Desde ontem à noite. Ele não saiu do quarto nem pra comer, pra nada. É como se eu não existisse.
Jisung franziu a testa, servindo mais uísque no copo de Felix.
— E o que exatamente aconteceu ontem à noite pra ele ter mudado assim?
Felix ergueu a cabeça, os olhos vermelhos fixos no líquido dourado e alcoólico que já queimava em sua garganta. Tomou outro gole longo, sentindo o álcool descer rasgando, como uma penitência que ele merecia.
— Nós discutimos — Felix disse. — Foi por causa de um cara que apareceu no restaurante em que fomos jantar. Um cara que... porra, que transava com ele antes.
— E?
— E eu agi como a porra de um doente de merda — Felix riu amargo, as cinzas do cigarro caindo sobre o balcão. — Comecei a brigar com ele, a interrogá-lo como se eu fosse... o dono dele. E ele me provocou até eu perder a cabeça — terminou de virar o líquido, batendo o copo na madeira em um baque alto.
Jisung aguardou em silêncio, parecendo reconhecer que Felix precisava de algum tempo até encontrar as palavras certas, ou talvez as palavras erradas, levando em conta o jeito como ele se remexia no banco.
— Ele me chamou de covarde — Felix continuou, a mandíbula rígida. — Disse que eu era um policialzinho medroso, que não tinha coragem nem pra assumir que eu era gay e eu... eu fiquei maluco.
— Felix...
— Eu empurrei ele — disse, rápido, como se quisesse se livrar daquelas palavras. — Não foi pra machucá-lo, eu só... segurei o pescoço dele e o coloquei de joelhos.
O silêncio que veio em seguida foi pesado como chumbo derretido. Felix tragou o cigarro até queimar os dedos, a dor física sendo até bem-vinda comparada ao nó que ia ficando cada vez mais apertado no peito.
— Merda, Felix — Jisung sussurrou.
— Ele me chupou — admitiu com um sorriso amargo, olhos fechados e a cabeça balançando em um gesto que dizia que nem ele mesmo acreditava no que tinha feito. — Na cozinha, comigo encostado no balcão. Eu queria tanto, porra, eu queria tanto que nem consegui pensar direito. Foi... melhor do que qualquer merda que eu já senti na minha vida.
Felix mesmo encheu o seu copo novamente, as mãos tremendo.
— Mas depois, ele cuspiu na minha cara — disse, deixando os pudores de lado. — Literalmente. Ele cuspiu... porra na minha cara e saiu.
Jisung fechou os olhos, processando a informação.
— E depois disso ele não falou mais com você — Jisung disse após um suspiro.
— É, como se ele tivesse desaparecido — confirmou, a voz quebrada. — Ele está lá e eu sei que ele está, mas é como se eu fosse invisível pra ele agora.
O barman passou perto deles, limpando os copos. A música antiga continuava tocando, as pessoas rindo, conversando e se divertindo ao redor, alheias ao furacão que devastava o peito de Felix. Ele se sentia um alienígena, observando a vida humana através de um vidro embaçado.
— Eu tratei ele como todo mundo sempre tratou: como uma puta — disse, chegando ao cerne do problema. — Tudo isso momentos depois de dizer pra ele que ele não precisava mais trabalhar com aquilo, que estava seguro comigo. Eu falei todo esse discursinho de merda e depois tratei ele como todos os outros caras que pagavam pra ele ficar de joelhos.
— Felix...
— Não, Jisung — Felix disse mais alto. — Não tenta me consolar, porque eu sei que fodi tudo. Eu me comportei como um animal.
— Tá, mas então você precisa se desculpar — Jisung disse, gesticulando. Na realidade, ele não sabia sequer o que dizer diante daquela situação.
— Me desculpar? Ele nem me olha. Como eu vou me desculpar se ele age como se eu fosse um fantasma morando na mesma casa que ele?
— Então você vai ter que insistir. Bate na porta até ele abrir, sei lá.
— E se eu piorar tudo?
— As coisas já estão uma merda, Felix — Jisung respondeu, colocando mais uísque em ambos os copos. — Não acho que tenha como piorar.
Felix virou o copo novamente, sentindo o álcool começar a anestesiar as bordas da culpa. Mas, mesmo com os primeiros sinais de embriaguez, mesmo tentando se afundar no esquecimento provocado pelo etílico, ele não conseguia e não queria parar de pensar em Hyunjin.
Na verdade, parecia ainda pior. Quanto mais ele bebia, mais vívidas as lembranças ficavam. A textura dos cabelos dele em seus dedos, o calor da boca molhada, os olhos desafiadores mesmo de joelhos, como ele tinha deixado sua porra dançando na boca, misturando-se à saliva. Pegou-se pensando que queria que Hyunjin tivesse engolido pelo menos um pouco, assim, ele teria uma parte de Felix ainda dentro dele.
— Não consigo pensar em mais nada — Felix confessou, a língua solta pelo álcool. — Eu não consigo dormir, não consigo pensar no trabalho que está voltando... Ele está na minha cabeça o tempo todo, como aqueles jingles irritantes de natal que passam na TV. Não sai. Eu estou... porra... eu estou obcecado por ele.
— Isso é foda — Jisung disse, observando o amigo se destruir gole a gole.
Felix balançou a cabeça, perdido.
— Eu não sei se ele vai me desculpar.
— Você não vai saber se não tentar.
O cigarro havia se tornado apenas o gosto da nicotina na boca, e Felix desejou ter mais um entre os lábios.
— E se ele me mandar tomar no cu? E se ele decidir que vai embora, que vai voltar pra rua, voltar pros clientes, pras drogas, pro... Caralho, eu vou pirar.
— Felix, calma — Jisung tocou no braço dele, chamando a atenção do policial. — Eu estou evitando jogar um monte de coisa na sua cara por compaixão, mas não tira minha paciência.
— Tá — Felix assentiu, respirando fundo.
Ele pensou que, quando confessasse o que tinha acontecido para Jisung, ganharia meia hora de um discurso falando sobre os perigos daquilo, mas tudo o que Jisung estava fazendo era ouví-lo, e ele agradeceu imensamente por isso.
— Se você não tentar — Jisung começou — vai ficar se martirizando até não aguentar mais. Fala com ele.
Felix olhou para o fundo do copo vazio, vendo seu próprio reflexo distorcido. Ele continuava com as olheiras fundas e uma expressão de quem havia perdido uma guerra consigo mesmo.
— E fala, também, o que você quer — Jisung continuou.
— O que eu quero... — Felix murmurou. — Eu sei o que eu quero.
— E o que é?
— Quero brigar com ele — deu um riso ébrio. — Quero foder com ele, quero que ele seja só meu, quero que ele não olhe pra mais nenhum homem nesta porra de cidade, quero que ele... que ele viva comigo, quero que ele me viva. É isso que eu quero.
O álcool tinha derrubado todas as suas defesas, deixando-o nu para si mesmo, vulnerável como uma ferida aberta e desprotegida.
— Talvez você tenha que dizer isso pra ele — Jisung sugeriu.
— É, talvez — murmurou, servindo-se mais uma vez. — Talvez.
E continuou bebendo.
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Mood: Poema - Ney Matogrosso
Felix bateu o ombro na quina da parede duas vezes antes de conseguir encontrar o corredor do apartamento. O mundo estava girando devagar, embaçado, como se estivesse mergulhado, ao invés de em uma piscina de ácido, em um aquário repleto de uísque.
Jisung o tinha deixado em casa depois de Felix quase secar a garrafa, e agora ele cambaleava pela própria casa como um fantasma bêbado.
Tropeçou no sapato que havia deixado jogado perto da porta da entrada. Xingou um palavrão alto o suficiente para assustar o pobrezinho do Senhor Miau, que dormia no sofá.
Cuidado aí, cara!
O apartamento estava tomado pela escuridão e pelo silêncio, apenas os ruídos distantes da rua sendo filtrados pelas janelas.
Felix parou de frente para a porta do seu quarto, que agora não era mais seu, mas de Hyunjin. Ele respirou fundo, o álcool fazendo sua cabeça latejar, e girou a maçaneta devagar. Não estava trancado.
O quarto estava imerso na penumbra, banhado pelas luzes amarelas e azuis dos postes da rua, lançando lampejos no cômodo. As sombras dançavam nas paredes, etéreas e melancólicas.
Hyunjin estava na cama, deitado de costas para a porta, o corpo meio encolhido e sem o lençol no corpo. Felix podia ver a curva dos ombros dele, os cabelos contra o travesseiro, a cintura fina grudando na camiseta larga que usava para dormir... Ele sequer se mexeu quando a porta se abriu, mas Felix sentia que ele estava acordado.
Felix se aproximou da cama com passos bêbados, vacilantes, como se estivesse caminhando sobre uma camada fina de gelo em um lago congelado. Quando chegou perto o suficiente da cama, caiu de joelhos no chão, os braços se apoiando no colchão para manter o equilíbrio.
— Hyunjin — ele sussurrou, a voz pastosa e rouca. — Eu sei... eu sei que você tá acordado.
Não houve resposta, nem sequer um movimento sobre o colchão. Hyunjin continuou em silêncio, dormindo ou fingindo dormir, como se Felix fosse apenas um pesadelo que poderia desaparecer caso fosse ignorado por tempo o bastante.
Felix esticou a mão trêmula, pelo álcool e pelo nervosismo, até Hyunjin, tocando os cabelos dele. Os dedos deslizaram pelos fios macios e teve que inclinar o corpo mais para frente para sentir o cheiro que vinha deles. Fechou os olhos, o perfume inebriando seus sentidos e sua sanidade. Sentiu o corpo de Hyunjin tensionar sob seu toque, mas, ainda assim, ele não se virou.
— Eu fodi tudo — Felix murmurou, a testa contra o colchão. — Eu... Eu sou a porra de um babaca do caralho, não sou? — deu uma risada amarga. — Não devia ter sido daquele jeito.
Os dedos de Felix continuaram brincando com os cabelos de Hyunjin, movimentos lentos e hesitantes, vez ou outra escorrendo para a nuca arrepiada.
— É que você não sai da minha cabeça — confessou para o silêncio e para as sombras. — Desde que eu te vi naquela delegacia, vi seus saltos, sua maquiagem borrada, a porra sua calcinha por baixo daquela merda de saia... Você não sai. Nem quando eu durmo, nem quando eu trabalho, nem quando eu tento pensar em outras coisas. Caralho, é só você que vem na minha cabeça.
A luz azul do poste da rua piscou, e o balançar do lampejo escuro fez sombras fantasmagóricas serem projetadas no rosto de Felix.
— Eu te tratei como merda — Felix continuou, a culpa vazando através das palavras embriagadas. — Eu só queria sentir você um pouco.
Felix subiu na cama, ficando praticamente deitado atrás de Hyunjin. Ele tocou nos braços descobertos, a ponta dos dedos fazendo um carinho quase imaginário na pele pálida. Sua boca encheu de saliva e ele quis afundar o rosto na curva do pescoço cheiroso, mas se conteve. Chegou mais perto, a boca perto do ouvido dele.
— Eu quero que você seja só meu — as palavras saíram cruas e honestas, destiladas pelo álcool. — Não quero mais ninguém tocando em você, te olhando do jeito que eu olho.
A mente de Felix estava turva, cheia de imagens que ele não sabia se eram reais ou não.
— Me fala o que você quer pra ficar comigo — Felix implorou, apertando os dedos das mãos para evitar abraçá-lo. — Me fala o que eu tenho que fazer pra você sorrir pra mim do jeito que você sorriu pra aquele cara.
Hyunjin se mexeu. Felix ouviu o estalar da língua dele dentro da boca e a respiração ganhando um novo ritmo. Ele estava acordado e estava ouvindo tudo.
— Eu tenho que deixar de ser tão careta? — Felix se aproximou mais, agora, colando seu corpo ao de Hyunjin. — Eu tenho que parar de fumar tanto e começar a limpar melhor o meu apartamento? Porra, eu tenho que... — deixou um beijo debaixo da orelha de Hyunjin, próximo à mandíbula.
Ele arrepiou sob seu toque, arfando baixinho. Sentiu forças para continuar.
— Eu tenho que conseguir mais dinheiro?
Hyunjin tencionou.
— É o que você quer? — seguiu, a voz de saindo bêbada, grogue, quase um sussurro profano. — Quer que eu te pague? Eu pago...
Mais um beijo atrás da orelha de Hyunjin, em seguida, a sua língua envolveu o lóbulo pequeno. Então, colado ao ouvir arrepiado, Felix disse:
— Me deixa te foder e eu pago o que você quiser.
Hyunjin se virou.
Rápido, moveu-se na cama até ficar de frente para Felix. Seus olhos brilharam no escuro, reflexos da luz que vinha da rua criando pequenos pontos nas iris tomadas por alguma coisa que a mente bêbada de Felix não conseguia saber o que era. Não era perdão, estava longe disso, talvez nem raiva. Era um vazio cansado, exausto, acostumado.
Eles se encararam por longos segundos, Felix com a boca entreaberta, o peito subindo e descendo, o hálito tomado pelo uísque batendo contra o rosto de Hyunjin.
— Sai — ele disse, simples e cortante.
A palavra atingiu Felix como um soco. Ele piscou algumas vezes, tentando processar, tentando encontrar algum traço de hesitação ou piedade no rosto de Hyunjin, mas não encontrou nada.
Felix riu. Primeiro, foi um som abafado, único, que saiu rasgando a garganta. Depois, vieram outros, amargos e sem humor. O som da risada era estranho, como vidro sendo pisoteado, mas Hyunjin sequer se moveu.
Ficou onde estava por alguns instantes, até que assentiu e, finalmente, levantou-se da cama. Ele cambaleou até a porta, com a mão apoiada na parede para manter o equilíbrio. Quando chegou ao batente, virou-se uma última vez para olhar para a cama. Hyunjin tinha se virado novamente para a parede, o corpo mais encolhido do que antes.
Felix saiu do quarto e fechou a porta. Ficou parado no corredor, as costas apoiadas na porta fechada. Depois, caminhou até a sala e se jogou no sofá. O sono não veio fácil, mesmo com todo o álcool que tinha bebido. Em vez de dormir, ele ficou encarando o teto, as palavras de Hyunjin ecoando em sua mente.
Sai.
Sai.
Sai.
E Felix saiu.
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O som da faca na tábua de madeira ecoou pela cozinha silenciosa. O apartamento estava silencioso há três dias, e Felix, honestamente, não aguentava mais.
Hyunjin não saiu do quarto. Quando Felix tinha que usar o banheiro, ele ia para a sala, e voltava assim que Felix retornava. Não olhava nos seus olhos, não dizia oi, não o chamava de stalker e sequer reclamava da pilha de copos e tigelas que Felix deixou pela casa de propósito para chamar sua atenção. Estava insuportável.
Felix queria gritar, queria esmurrar a porta daquele quarto, queria se ajoelhar aos pés dele e pedir desculpas. Desculpas.
Por ser um merda
por te tratar como um merda
por só fazer merda
merda
merda
A faca raspou na pele fina do polegar. Felix grunhiu, levando o dedo à boca.
— Merda!
Sentiu o gosto ferroso do sangue na língua e sugou com força para estancar o pequeno sangramento, mas teve que recorrer à pia. Enquanto a água corrente passava por seu dedo, levando embora o sangue que escorria dos finos capilares, prensou a testa nos azulejos da parede.
Quando pegou aqueles legumes meio passados e colocou água para ferver, pensou em fazer uma sopa ou algo que o alimentasse além de macarrão instantâneo. Era Hyunjin que cozinhava e, desde aquela noite maldita, ele sequer tinha pegado nas panelas. Estava começando a ficar preocupado com a saúde dele, sustentada por biscoitos e um pacote de salgadinhos que Felix deu falta no armário. Provavelmente, Hyunjin tinha andado nas pontas dos pés durante a madrugada, quando Felix estava desmaiado no sofá sob o efeito de uma cartela inteira de aspirinas.
Ele devia estar com faminto, até o Senhor Miau estava comendo melhor do que ele, sempre com aquela ração premium que Felix comprava porque sabia que ele gostava. Riu amargo, desligando a torneira. Chutou a portinha do armário que ficava debaixo da pia e resmungou quando seus dedos doeram.
Merda.
Ao se virar, tomou um susto ao ver a silhueta parada na entrada da cozinha. Hyunjin estava parado, encostado no batente. Ele vestia uma calça moletom e uma camiseta, basicamente o seu traje de sempre. Felix já começava a esquecer as saias, as meias arrastão, a calcinha vermelha aparecendo quando ele estava sentado. Agora, aquela versão de Hyunjin, que se armava com canivetes e giletes e tinha batom borrado no rosto parecia uma lembrança muito distante, nublada e quase se apagando. No lugar dela, aqueles olhos melancólicos e as olheiras arroxeadas debaixo deles, expressões pastosas que quase derretiam quando encaravam o policial.
Felix engoliu em seco, as pernas virando gelatina de repente.
Esperou que ele dissesse algo, que se mexesse, que o socasse, que o mandasse tomar no cu enquanto mostrava o dedo do meio. Porra, Felix queria que ele fizesse isso, que o xingasse, que gritasse o quanto ele foi um imbecil de merda por tê-lo colocado de joelhos e por ter dito tanta merda enquanto estava bêbado. Mas Hyunjin não disse nada. Ficou parado ali, olhando para Felix, como se também esperasse que ele dissesse alguma coisa.
— Eu estou fazendo...
No momento em que Felix começou a falar, Hyunjin respirou fundo e entrou na cozinha. Ele foi até o fogão e desligou a boca sobre a qual a panela com água estava borbulhando. Encarou Felix de perto. Quando olhou para baixo, viu sua mão de estendida ao lado do corpo, o polegar pingando um filete de sangue no piso. Lentamente, os olhos de farol subiram até encarar o rosto de Felix, que estava convertido em uma expressão de desconforto penosa.
Hyunjin tocou no pulso de Felix e ergueu sua mão, até que conseguisse ver o dedo ferido. Felix sentiu o sangue borbulhar assim como água que supostamente deveria ser para a sopa, e que agora repousava dentro da panela. Era o toque de Hyunjin, o cheiro dele perto do seu nariz, a respiração batendo contra a pele sensível da própria mão. Felix conseguia sentir aquelas lufadas de ar ritmadas, que ele puxava para dentro e, dois segundos depois, soltava direto contra o polegar. A pele feria ardia com o calor da respiração dele, mas mais do que sua pele, seu coração ardia.
Hyunjin soltou o pulso de Felix e foi até o armário. Ele ficou na ponta dos pés e alcançou a caixinha de primeiros socorros. Felix olhou para baixo, desacreditado, e riu sem humor, negando com a cabeça. Quando voltou, Hyunjin deixou a caixinha branca em cima da pia e vasculhou em busca de antisséptico e um band-aid. Encontrou o frasquinho e a caixinha de curativos e voltou a puxar, com força, o braço de Felix. Ligou a torneira e colocou a mão de Felix embaixo da água novamente, pressionando o pequeno corte. Ficaram imóveis durante três minutos, até que não houvesse mais sangue caindo na pia e água estivesse passando translúcida pelo dedo.
Felix fez uma careta quando Hyunjin espirrou antisséptico no local. Logo em seguida, sem nem mesmo dar importância para seus resmungos, colocou o band-aid com cuidado. Olhou para Felix fixamente, pálpebras piscando uma, duas, três vezes, até ele virar o rosto para o lado e fechar a caixinha.
— Hyunjin — Felix chamou em um fio de voz.
Ele não respondeu. Foi até o armário, guardou a caixa, pegou um pacote de biscoitos, uma garrafa com água na geladeira e cruzou a cozinha.
— Hyunjin — tentou novamente, mas ele já estava longe. — Hyunjin, porra.
Levou as mãos aos cabelos, girando em seu próprio eixo.
Felix não sabia mais o que fazer, como fazer, se devia fazer. Olhou para o teto e viu algumas teias de aranha por ali. Por um instante, desejou ser um inseto, já se sentia insignificante como um, então não haveria diferença.
Respirou fundo, voltou a ligar o fogo para a água e foi até a mesa para continuar cortando cebolas.
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Felix acordou na noite seguinte com o Senhor Miau miando perto do sofá.
A televisão estava ligada no volume mínimo, um filme de ação lançando sombras no seu rosto enquanto ele estava jogado no estofado. O gato continuava miando em direção a porta e, de repente, Felix ouviu o barulho de chaves caindo no chão. Assustado, levou em um ímpeto, tirando as cobertas do corpo.
Ao olhar para a porta de entrada, encontrou Hyunjin dentro de um casaco grosso, o pescoço tombando para trás e uma cara de quem não queria ser pego.
— Aonde... — Felix começou, mas sua cabeça latejou como o inferno e teve que parar para dar um gemido de dor. — Aonde você vai?
Hyunjin olhou para ele e deu de ombros. Desceu os olhos para o Senhor Miau, que havia subido no colo de Felix, quase um aviso felino para ele fazer alguma coisa.
— Sair.
— Sair? Como... como sair? — Felix colocou o Senhor Miau no sofá e, cambaleando pelo despertar repentino e pela dor de cabeça (sua enxaqueca estava o matando há quatro malditos dias), foi até a porta.
— Sair, stalker — ele disse, como se fosse óbvio. — Vou dar uma volta.
— Uma volta? — Felix deu uma risada abafada. — Pra onde? Com quem?
Hyunjin apenas arqueou as sobrancelhas, uma indagação muda, mas que Felix entendeu.
— Digo... Está tarde e, merda, está frio — tentou argumentar, mas cada palavra que saia da sua boca parecia mais ridícula.
— Estou usando casaco — Hyunjin rebateu, girando a maçaneta, mas Felix foi mais rápido e empurrou a porta de volta. — Larga do meu pé, porra.
— Hyunjin, você não vai sair sozinho.
— Por quê?
— Porque... porque é perigoso.
— Todo lugar é perigoso.
— Não aqui — negou, ainda segurando a maçaneta.
— Não quero ficar aqui agora.
— O quê?
— Eu preciso sair — tentou puxar a porta novamente, mas Felix continuou prendendo. — Eu vou te dar um soco.
— Não, Hyunjin, espera — Felix fechou os olhos, puxando o ar para dentro dos pulmões. — Aonde você quer ir?
— Não é da sua conta.
— Aonde — disse alto, ainda prensando as pálpebras — você quer ir?
Hyunjin empurrou a língua na bochecha, um dos pés batendo no assoalho.
— Valeu, seu traidor — Hyunjin resmungou, olhando para o Senhor Miau.
De nada, seu mané, ele diria, orgulhoso.
— Eu quero caminhar, só isso — respondeu, enfim.
— Caminhar na rua?
— Não, na porra do oceano.
— Tá, tá, eu entendi. Eu.. Eu vou pegar meu casaco e... espera... espera só um minuto, tá bem? Eu já volto. Não sai daí. Eu já... eu já volto.
Hyunjin bateu com a testa na porta enquanto Felix cambaleava por entre os copos e tigelas no chão em busca do seu casaco. A peça provavelmente estava embaixo da pilha de roupas na poltrona, fazendo-o escavar a quantidade enorme de roupas vindas da lavanderia que precisavam ser guardadas, passadas e dobradas. Mas Felix sequer tinha energia o suficiente para isso.
Mood: Codinome Beija-Flor - Cazuza
Quando retornou ao lado de Hyunjin, Felix vestiu o casaco sob o olhar flamejante dele. Tentou decifrar o que aqueles olhos queriam dizer, mas não conseguiu. Ele estava provavelmente irritado, mas havia algo mais ali dentro, por entre o brilho quase radioativo que emergia das íris intensas.
Saíram do prédio com o silêncio cortante entre eles. O primeiro passo na calçada foi regado pelo vento frio da noite. Não era tão tarde, mas já passava das 22h e começava a esfriar. Hyunjin colocou as mãos nos bolsos do casaco, os coturnos batendo no concreto da rua vazia. Felix respirou fundo, também encolhendo-se e sentindo um arrepio adentrar o tecido grosso.
Estavam caminhando lado a lado, os braços cobertos pelos casacos se roçando vez ou outra, e mesmo que não estivesse sentindo a pele dele, o calor que emanava da tez sempre morna, quase febril, Felix sentia o coração martelar o peito. O vento batia no rosto de Hyunjin, levava os fios pretos da testa para trás, expondo ainda mais o rosto bonito, meio abatido pelos dias de privação de comida, mas ainda indiscutivelmente lindo.
Quando Felix se perdeu daquele jeito? Quando ele teve seu coração esmagado por aquelas mãos ossudas? Quando aquele garoto que representava tudo que ele não gostava começou a mexer tanto com tudo que existia debaixo da sua pele, ossos e sangue? Quando Felix começou a achar que salvar alguém perdido era tão importante? Quando ele achou que sujar as mãos de sangue, tirar a vida de alguém, por mais suja que ela fosse, era aceitável? Quando?
Quando?
Quando ele começou a se sentir tão nervoso só por caminhar ao lado de alguém?
Quando?
Hyunjin saberia responder?
— Posso assistir a Um Sonho de Liberdade? — Hyunjin perguntou de repente, logo após chutar uma pedrinha na calçada.
— O quê? — Felix arqueou as sobrancelhas, saindo do seu estado de transe.
— Nada.
— Não, fala.
Hyunjin respirou fundo e mordeu o lábio inferior, voltando seu olhar para um ponto fixo na rua deserta.
— Um Sonho de Liberdade — ele repetiu. — Você tem a fita. Eu vi uma vez.
— O filme com o Morgan Freeman — Felix assentiu, lembrando do que se tratava. — Você quer assistir?
— Quero — respondeu, dando de ombros.
— Quando você encontrou essa fita?
— No mesmo dia que encontrei sua coleção nojenta de pornô.
— Ah — Felix soprou uma risada. — Vou jogar aquilo fora.
— Por quê?
Porque não importa quantos filmes pornôs eu veja, nada mais me dá tesão a não ser você.
— Não sei — balançou os ombros. — Estão velhos.
Hyunjin ficou em silêncio. Não havia o que responder. Na verdade, Felix duvidava que ele sequer quisesse estar caminhando ao seu lado naquele momento.
— Por que não pediu pra ver o filme antes? — Felix indagou, tentando fazer o assunto sobreviver à parede invisível que Hyunjin havia construído entre eles.
— Só deu vontade de ver agora — respondeu, simples.
— Certo — assentiu, o lábio inferior entre os dentes. — Você pode ver quando quiser.
— Tá.
Eles cruzaram a rua, o som dos passos sendo quase a única trilha sonora. Os postes da rua iluminavam seus rostos, cachorros latiam de vez em quando, um vizinho tossia dentro de casa, tão alto que ecoava pela janela.
Antes, Felix achava que uma rua vazia às 22h era sinônimo de paz. Agora, ele sabia que silêncio nenhum era medidor de paz, principalmente em uma cidade que deixou de ser notícia pela baixa criminalidade para virar notícia pela sujeira escondida debaixo dos panos.
Dez minutos depois, eles estavam em outra rua, sem tantos apartamentos. Hyunjin caminhou poucos passos na frente de Felix, até que parou de frente para uma praça. No fim da tarde, os pais das crianças de Jinhae iam até ali para que seus filhos pudessem brincar nos balanços, gangorras, escorregas e tomarem sorvete no carrinho que ficava rondando aquele lugar. Àquela hora, o parque parecia um cenário macabro de filme de terror, e Felix se pegou rezando para que nenhum balanço se mexesse sozinho.
Seguiu Hyunjin, que começou a caminhar por entre os brinquedos, arrastando a areia e a grama sob os pés. Felix o seguia porque parecia certo.
Pôde ver, mesmo de lado, porque não tirava seus olhos do rosto dele nem por um instante, um sorriso se abrir nos lábios vermelhos. Ele estava olhando para o balanço, e não demorou para caminhar até um deles. Tocou nas cordas, olhando o brinquedo como uma criança olharia, ansiando sentar e balançar, esticando as pernas, abrindo os olhos e gritando "olha, mamãe, eu estou voando!". Quantas vezes Hyunjin teve a oportunidade, quando criança, de brincar em um balanço? Quantas vezes, já adulto, ele não quis sentar em um e... voar?
Felix foi até ele e, sem dizer nada, sentou no balanço ao lado. Hyunjin olhou para ele, meio assustado, meio confuso, as sobrancelhas franzidas como se Felix tivesse feito a coisa mais estranha do mundo.
— O que você tá fazendo? — perguntou, a voz baixa cortando o silêncio da praça deserta.
Felix segurou nas cordas do balanço para testar seu próprio peso.
— Senta — disse, fazendo um gesto com a cabeça em direção ao balanço vazio o qual Hyunjin encarava instantes atrás. — Vai, não tem ninguém olhando.
Hyunjin hesitou por alguns segundos, olhando ao redor. Os postes criavam poças amarelas no chão, e o vento fazia as árvores dançarem, cujas sombras se moviam pelas grades dos brinquedos. No meio da noite, em um parquinho infantil, dois homens adultos sentados em um balanço.
— Isso é ridículo — resmungou, já sentado.
— É — Felix concordou, começando a se balançar devagar, empurrando as pontas dos pés.
Hyunjin o imitou, movimentos hesitantes no início, com medo de que, talvez, o balanço, projetado para suportar o peso de uma criança, quebrasse sob seu peso. No entanto, ele pareceu encontrar um ritmo e começou a balançar assim como Felix, os coturnos raspando na areia sempre que ia para frente.
— Há quanto tempo você não faz isso? — Felix indagou, ganhando um pouco mais de altura.
— Nunca fiz — respondeu, e Felix sentiu algo apertar no peito. — Digo, talvez quando eu era bem pequeno, mas eu não lembro.
Eles continuaram balançando, o ranger das cordas criando uma melodia estranha. Felix olhou para o lado e viu Hyunjin com os olhos fechados, o rosto relaxado pelo que deveria ser a primeira vez em dias. Assim, ele parecia mais jovem, quase como se o seu eu criança tivesse entrado pela sua pele e possuído a carranca arrebatadora como uma ressaca que eram suas expressões nos últimos dias.
— Quer ver quem consegue ir mais alto? — Felix sugeriu, e Hyunjin abriu os olhos, uma centelha divertida passando por eles.
— Mesmo?
— Por que não?
Hyunjin deu um sorriso torto, o primeiro sorriso real que Felix viu desde aquela noite que começou com um prato de macarrão e terminou com ele lavando porra do rosto na pia da cozinha.
— É uma péssima ideia, stalker — Hyunjin disse, e começou a se impulsionar com mais força.
— Ah, é? E por quê?
— Porque você vai perder.
Felix riu, fazendo o mesmo que ele, e logo os dois estavam balançando cada vez mais alto, as cordas rangendo, os balanços ganhando altura até que os pés deles saíssem completamente do chão. O vento batia em ambos os rostos, e Felix podia ouvir a respiração acelerada de Hyunjin misturada com as risadas baixas que escapavam dos lábios dele.
— Porra! — Hyunjin gritou quando chegou ao ponto mais alto, a cabeça jogada para trás, os cabelos voando com o vento. — Eu tô voando. Felix! Olha só! Eu tô voando.
Felix riu alto, um calor subindo pelo estômago, lágrimas se acumulando no canto dos olhos devido ao vento... só ao vento? Ele não sabia. Continuou balançando, o ar carregando Felix até seus ouvidos, as duas sílabas se entranhando em seu cérebro. Nunca foi tão bom ouvir seu próprio nome.
Por alguns minutos, Felix se esqueceu de tudo: da discussão, do silêncio punitivo, da culpa que o corroía. Ali, eram só ele e Hyunjin, voando sob as luzes do postes, como se o mundo além daquele parquinho não existisse. Como se eles não existissem fora dali.
Mas, pouco tempo depois, eles começaram a diminuir o ritmo. Os balanços perderam altura até que estavam apenas balançando devagar novamente, os pés tornando a tocar na areia.
O silêncio voltou, mas era diferente agora. Não era gelado como o silêncio dos últimos dias, frio, congelante, era algo mais pesado e quente.
Felix olhou para Hyunjin, que havia parado completamente de balançar e olhava fixamente para o chão, as mãos apertando as cordas do balanço.
— Hyunjin...
— Você lembra daquela música que cantamos no seu carro? — Hyunjin o interrompeu, ainda sem olhar para ele. — Living on a Prayer?
— Bon Jovi — Felix assentiu. — O que tem ela?
— Eu gosto — Hyunjin disse. — Você tem outras fitas dele?
— Tenho algumas. Led Zeppelin também, Rolling Stones... Jisung odeia todas elas.
— Legal — Hyunjin murmurou, voltando a olhar para o chão. — Eu quero ouvir.
— VHS de um filme famoso, fitas de rock — Felix deu uma risada soprada, negando com a cabeça. — Isso é algum código que eu não estou entendendo? Tipo código morse? Você quer me dizer alguma coisa?
— Eu não sei o que é código morse — Hyunjin respondeu.
— Certo — Felix respirou fundo. — Certo, você pode ouvir as fitas.
Então, o silêncio voltou, e Felix sentiu a atmosfera mudando novamente, densa e carregada. Hyunjin se levantou do balanço. Por um momento, Felix achou que ele iria embora, que a trégua havia acabado e que ele colocaria de volta todos os tijolos derrubados um a um naqueles poucos instantes. Em vez disso, Hyunjin caminhou somente dois passos até ficar na frente do balanço de Felix. Agachou-se, as mãos apoiadas nos joelhos do policial, os olhos na altura do seu rosto.
O coração disparou. Hyunjin estava tão perto que sentia, de novo, o cheiro dele, via cada detalhe do rosto cansado, os olhos de farol que o estudavam com uma profundidade que fazia Felix se sentir nu.
— O que você está fazendo? — Felix engoliu em seco, e a voz saiu rouca.
— Te olhando.
— Por quê?
Hyunjin inclinou a cabeça para o lado, como se estivesse analisando uma coisa muito complicada. Era aquele olhar que as crianças faziam quando estavam curiosas sobre algo, mas não conseguiam encaixar os significados até elaborarem algo nas mentes confusas que fizesse algum sentido.
— Porque eu quero saber o que você quer — ele disse.
Felix abriu a boca para falar, mas o que ele diria? Queria tantas coisas que nem sabia por onde começar.
— Eu... — começou, mas a voz pereceu na garganta.
— Você o quê?
As mãos de Hyunjin começaram a se mover devagar, deslizando de onde estavam, nos joelhos de Felix, até subirem pelas coxas. Felix sentia cada centímetro daquele toque queimar através do tecido grosso dos jeans, como se as mãos de Hyunjin fossem feitas de ferro em brasa. Sua respiração ficou ofegante de repente. Não. Estava ofegante desde que Hyunjin levantou do balanço e ele viu, por um segundo, a ideia de ele fugir como uma possibilidade.
— O que vai fazer? — Felix perguntou, sem perceber que sequer havia respondido à pergunta de Hyunjin.
Hyunjin não disse nada, apenas continuou aquela lenta jornada, pressionando os dedos na musculatura tensa das pernas de Felix.
Felix tremeu. Nos olhos de Hyunjin — por que insistia em compará-los a faróis? — ele conseguia ver uma indagação muito clara. "Você quer que eu pare?". E não. Porra, não. Felix não queria que ele parasse e odiava isso. Odiava que Hyunjin soubesse exatamente o que ele queria e o que não queria, odiava o controle que ele tinha sobre suas reações e sobre os batimentos do seu coração.
— Eu vou te dar uma coisa — Hyunjin disse.
Felix engoliu em seco.
— O quê? — ele perguntou, ansioso.
— Um beijo.
Felix se sentiu cego novamente, como ficou naquela cozinha. A diferença, agora, era que ele não tinha saliva e esperma nublando sua visão, mas somente o olhar tortuoso de Hyunjin, espiando-o através da pele, vendo seu sangue, vísceras e ossos.
— Você quer? — Hyunjin perguntou. Então, as mãos pararam no meio das coxas de Felix, os polegares fazendo pequenos círculos sobre o jeans.
Sim, Felix queria. Queria tanto que doía fisicamente, um buraco aberto no peito que só poderia ser preenchido pela boca de Hyunjin na sua. Mas ele não conseguia dizer aquilo em voz alta.
Hyunjin esperou alguns segundos, estudando, analisando, julgando as expressões pegajosas de Felix. Depois, sem dizer nada, nem mesmo um murmúrio cansado ou que dissesse alguma merda, pegou uma das mãos trêmulas e geladas de Felix e a levou até próximo ao rosto.
O toque foi assombroso. Felix sentiu como se tivesse mergulhado em uma banheira com um ferro de passar ligado dentro dela, choques perpassando sua coluna vertebral. Hyunjin pressionou os lábios contra a palma da sua mão, mas não parou ali. Os lábios roçaram nas linhas da vida, da morte, de qualquer porra que os ciganos costumavam usar para ler seu destino e que, no final, não queria dizer nada além de "você vai se foder se fizer as escolhas erradas". Ele subiu pelos dedos curtos, beijando cada um deles, a língua saltando da boca, molhada e vermelha, para fazer um carinho úmido nas pontas.
Pensou, por um instante ébrio, que gostaria de derramar pó de carbono na língua de Hyunjin. Se o fizesse, veria, impregnadas sob a esponjosidade macia, as suas digitais. Ele conseguiria ver aquilo, que era seu e de mais ninguém, marcado em Hyunjin.
— Hyunjin — Felix disse baixo quando ele levou seu dedo médio à boca e o chupou devagar, os olhos fixos nele.
Era obsceno, mas também era íntimo. Felix estava hipnotizado pela sensação, pela língua brincando com a pele sensível, pelos pequenos sons que escapavam, molhados e estalados, que ele fazia ao chupar.
Hyunjin mudou para o dedo indicador, depois para o anelar, como se estivesse saboreando aquela sobremesa que Felix o negou quatro noites atrás, quando achou que tinha algum poder sobre ele.
Felix estava errado.
Não tinha nenhum poder sobre Hyunjin.
Em contrapartida, ele tinha todo o poder do mundo sobre Felix.
Felix sentiu a saliva molhando seus dedos, escorrendo, e teve que apertar as pernas para controlar a onda de calor disparada direto para sua virilha.
Quando Hyunjin finalmente soltou seus dedos após o beijo, Felix estava ofegando como se tivesse corrido por sua vida novamente, como fizeram naquela ruela no dia em que matou Seunghyun. Sem pensar, sem conseguir se controlar nem mesmo um pouco, ele agarrou o pulso de Hyunjin com a mão livre, um dos que estavam apoiados em sua coxa, e o levou até o nariz.
Sentiu o pulso disparado, a pele morna e macia colada ao seu rosto, pálida, perfumada. Ele pressionou o nariz contra a veia que pulsava ali, sentindo o sangue escorrer. Nele, uma necessidade primitiva de mordê-lo, de se fundir a Hyunjin, de arrancar o cheiro pastoso daquela pele quase cintilante e injetá-lo como heroína na dobra do braço.
— Felix — Hyunjin sussurrou novamente seu nome.
Felix.
Felix.
Felix
apertou o pulso dele e cheirou com força. Em seguida, lambeu o mesmo lugar, fechando os lábios contra a pele delicada. Hyunjin arfou, e Felix sentiu uma satisfação visceral ao perceber que ele também estava mexido.
— Felix — ele repetiu.
Seu nome, saindo da boca dele, parecia quase uma declaração crua, que saia de um lugar profundo demais. Felix conhecia bem aquele lugar, pois era onde vivia aquela coisa que ele nutria por Hyunjin, a necessidade de tê-lo, de senti-lo, de vivê-lo.
Hyunjin o olhou, os faróis brilhando de uma forma que Felix tentava, mas não conseguia decifrar.
Sem que Felix esperasse, ele puxou o pulso de volta e voltou a apoiar as mãos nas pernas de Felix. Àquela altura, os próprios joelhos dele estavam contra a areia, manchando a calça de barro.
Quando se viu sem sua droga, melhor do que cigarro ou cocaína, ou mesmo a maconha que fumou no ensino médio, ficou perdido. Seus olhos ficaram bêbados, a boca entreaberta, o pau latejando na calça e uma vontade instintiva de vomitar todos aqueles sentimentos que percorriam sua pele como formigas ou insetos maiores e mais destrutivos.
— Transa comigo — Hyunjin disse de repente, como uma bala saindo do cano de um revólver.
— O quê?
— Me fode — Como se não pudesse piorar, ele foi ainda mais direto. — É o que você quer de mim, não é?
— Hyunjin.
— Eu te dou o que você quer e você... para de fazer isso — mordeu o lábio inferior, o queixo tremendo.
— Paro de fazer o quê?
— De ser bom pra mim.
Não
não
não
não
você para de ser bom pra mim
Então era isso? Deixá-lo ver filmes e ouvir suas fitas de rock era ser bom para ele? Dar um teto e comida e o mínimo de dignidade
cujo resto roubei naquela noite quando gozei na boca dele
era o que Hyunjin via como bondade?
— Não precisa me pagar — Hyunjin continuou diante da mudez dolorosa de Felix. — Você me fode e eu vou embora da sua casa. Não precisa mais se preocupar comigo, dormir no sofá e comprar comida pro meu gato. Você... não precisa mais fazer nada disso.
— Você não sabe...
— Eu sei — Hyunjin disse, baixo, ainda ajoelhado. — E eu não me importo.
Ele se importava. Os faróis não mentiam.
— Você já fez muito por mim — Hyunjin voltou a falar. — Você... — ele deu uma risada e negou com a cabeça, encarando a areia. Quando ergueu novamente os olhos para Felix, eles estavam cheios de lágrimas. — Você matou uma pessoa por minha causa.
E Felix mataria mais uma
mais duas
mais tantas
por ele
Hyunjin ergueu o tronco, as mãos indo até os ombros de Felix. O hálito quente bateu no seu rosto.
— Você perguntou pra mim na outra noite. Perguntou o que você tinha que fazer.
Hyunjin se inclinou para frente, os lábios roçando na sua bochecha, deixando um selo molhado ali. Depois, outro, perto da mandíbula.
— Não precisa fazer nada — sussurrou contra a pele arrepiada. — Me fode. É só isso que você precisa.
Felix sentiu seu mundo cair sobre os ombros, uma anedota trágica das suas próprias emoções. As palavras que Hyunjin dizia eram uma tortura, os beijos, uma faca em suas costelas fracas. Ele continuou espalhando beijos pelo seu rosto, pequenos selinhos molhados que queimaram como ácido.
— Por favor — Hyunjin murmurou, os lábios se aproximando perigosamente da boca de Felix. — Transa comigo e eu vou embora. Você não vai mais ter que me aguentar.
— Para — Felix conseguiu sussurrar, mas Hyunjin não parou.
Uma das mãos desceu pelo peito de Felix, deslizando pela barriga até chegar no cós da calça jeans. Felix sentiu os dedos de Hyunjin pressionarem contra sua ereção por cima do tecido, e um arrepio involuntário correu por sua nuca.
— Você quer — Hyunjin disse, a voz quebrada. — Seu pau tá duro.
— Para, Hyunjin — repetiu, mas sua voz saiu mais como um pedido do que uma ordem.
Hyunjin apertou ainda mais, a mão se movendo devagar, e Felix que teve que fechar os olhos.
— É só isso — Hyunjin continuou, os lábios quase tocando os de Felix. — É a sua recompensa pelo que fez por mim. Não precisa me obrigar, eu faço.
Foi então que algo dentro de Felix, já rachado, quebrou-se, não de desejo, mas de dor. Uma dor tão profunda que doeu mais do que o tiro que levou no braço; era uma bala atravessando a sua garganta.
— Não — ele disse, firme, olhando diretamente para os faróis molhados pela chuva do mar. — Eu não vou fazer isso.
Hyunjin engasgou, choroso.
— Você disse que me queria.
— Eu sei o que eu disse e eu te quero — Felix falou, a honestidade da declaração surpreendendo-o. Ele prendeu os pulsos de Hyunjin com as mãos, evitando que ele o tocasse. — Quero você, caralho, como se você estivesse entranhado na minha pele.
— Então por que você não faz nada?
— Porque eu não quero que seja assim — Felix se contradisse, soltando os pulsos de Hyunjin para segurar em seu rosto. — Não como se você fosse só uma... coisa pra foder.
— Mas é isso que eu sou — Hyunjin sussurrou. — É tudo que sei ser.
— Não — negou com veemência. — Você é mais do que isso, Hyunjin.
— Não sou.
— É sim, porra! — gritou, e sua voz, no meio da praça e da rua desertas, fez um eco. — Você... cozinha melhor do que qualquer pessoa que eu conheço, cuida do Senhor Miau como se ele fosse seu filho, você, caralho... você limpou minha casa inteira sem eu pedir, porque você odeia bagunça. Você — a voz de Felix engasgou na garganta — me faz rir... Você gosta de filmes, de rock clássico, da droga daquele Pica-Pau e também... é corajoso.
Lágrimas, agora, escorriam pelo rosto de Hyunjin, molhando os dedos de Felix.
— Você não entende — Hyunjin disse. — Eu não sei como ser outra coisa.
— Você sempre foi outra coisa — Felix afirmou. — Não foi porque aquele canalha te tratou como um nada que você...
Então, Felix parou.
Aquele canalha?
Quem era aquele canalha?
Juyeon?
Ou
Seunghyun?
Lee Felix, talvez, que o colocou de joelhos no chão da cozinha após achar que tinha algum direito de meter o pau na boca dele.
Jo Insung?
Ou
Lee Felix, que o tocou naquele quarto escuro, que o ofereceu dinheiro, do mesmo jeito que ele estava oferecendo o que tinha?
Todos os outros que deitaram com ele?
Ou
Lee Felix, que afirmou com suas ações, mais de uma vez, o que Hyunjin estava pensando naquele momento: que ele não sabia ser e não era nada mais do que uma... coisa para foder.
Felix soltou o rosto de Hyunjin como se a pele dele pudesse queimá-lo.
— Eu... — disse, mas não conseguiu continuar.
Como explicar que ele havia feito o mesmo? Como poderia pedir desculpas por algo que ele nem sabia se merecia perdão?
Hyunjin limpou o rosto com as costas das mãos, os olhos ainda vermelhos e vazios. Aquela esperança que Felix viu por um momento desapareceu, substituída pela expressão indecifrável que conhecia tão bem.
— Esquece, stalker — Hyunjin murmurou, levantando-se da areia. As marcas dos joelhos no chão ficaram para trás como uma evidência fantasmagórica do que aconteceu ali. — Esquece essa merda.
— Não, Hyunjin, espera — Felix se levantou assim como ele, as pernas bambas, uma ereção vergonhosa ainda marcando na calça. — Eu preciso... eu preciso me desculpar pelo que aconteceu naquelas duas noites — engoliu em seco, um bolo duro e cortante descendo pela garganta. — Na cozinha e depois no quarto, eu...
— Para — Hyunjin disse, abraçando o próprio corpo devido ao frio.
— Não, não, me escuta — Felix negou. — Eu fui um merda com você, eu fui um canalha, assim como todos os outros que te fizeram mal. Eu te tratei como se você fosse....
— Como se eu fosse o que eu sou — Hyunjin o interrompeu, finalmente se virando. — Você me tratou como o que eu sou, Felix. Uma puta. Não tem porra nenhuma pra se desculpar.
— Tem, sim — Felix insistiu, apertando os pulsos. — Tem tudo. Eu não deveria...
— Deveria — Hyunjin deu de ombros. — Era o que eu esperava mesmo. Eu ofereci quando você me entregou o canivete na delegacia.
Aquelas palavras eram piores do que raiva, do que gritos. Elas eram pura resignação, conformidade. Era Hyunjin aceitando que era o que ele merecia.
— Eu não sabia como... — Felix sussurrou.
— Ninguém sabe, e tá tudo bem. Estou bem com isso, eu... Não é culpa sua não saber lidar com alguém como eu.
— Alguém como você?
— Alguém fodido como eu — Hyunjin explicou, como se fosse óbvio. — É por isso que você deveria aceitar e me deixar ir. Quando você transar comigo e matar isso que você tá sentindo, pronto — balançou os ombros —, vai acabar. Então, você vai poder voltar pra sua vida e eu vou voltar pra minha.
Felix queria gritar, chacoalhar Hyunjin pelos ombros até ele entender que estava errado, que não era só uma vontade louca de transar, que era muito mais do que aquilo. Mas ele sabia que não adiantaria, porque as palavras haviam sido ditas, e as ações, terrivelmente concretizadas.
Depois de um minuto em silêncio, Felix suspirou.
— Posso te fazer uma pergunta? — ele disse, finalmente.
Hyunjin não disse nada.
— Você me odeia?
Hyunjin ficou em silêncio por tanto tempo que Felix achou que ele não iria responder. Quando finalmente falou, sua voz estava estranhamente calma.
— Não.
— Então não vai embora — Felix tremeu a voz. — Fica.
Fica.
Fica.
Fica.
Hyunjin hesitou por um momento, como se fosse questionar onde ele deveria ficar. Na casa de Felix? Na vida dele? No coração? Na cabeça? Em tudo?
Com cuidado, Felix se aproximou dele. Percebendo o tremelicar contínuo do queixo, as bochechas vermelhas e os lábios quase roxos, Felix tirou o casaco que usava e, como quem faz carinho em um cachorro machucado, cobriu os ombros de Hyunjin.
Ainda perto dele, ouviu o leve bater dos dentes através dos lábios cerrados.
Felix, um barco perdido em um mar agitado, viu os faróis na sua direção, molhados, mas brilhantes. Teve receio de que eles se apagassem de repente. Como encontraria o caminho para casa?
— Vamos — ele disse.
Caminharam pelo silêncio da rua vazia, os passos ecoando pelo asfalto frio. Felix não tentou chegar mais perto, deixando-o caminhar alguns passos à frente, as mãos enterradas nos bolsos do casaco e o corpo encolhido nas camadas de roupa, o corpo curvado contra o vento.
Não havia mais o que dizer. Pelo menos, não naquela noite.
Quando chegaram ao prédio, subiram pelo elevador sem que seus olhos se cruzassem. Felix abriu a porta do apartamento e a segurou para Hyunjin passar, logo em seguida, desapareceu em direção ao quarto.
Felix ficou parado na sala, ouvindo o som da porta se fechando. O Senhor Miau apareceu, miando baixinho, e se esfregou nas suas pernas como se soubesse que alguma coisa tinha mudado. Não era a marca da sua ração.
Ele se jogou no sofá, onde outrora dormia, e pegou o gato no colo. Ficou encarando o teto enquanto acariciava o pelo dele, um desconforto quente no peito. Não sabia se havia melhorado ou piorado as coisas. Não sabia se ele iria embora ou se continuaria fingindo que Felix não existia.
O que sabia, e sabia há mais tempo do que gostaria de admitir, era uma única verdade, cristalina e aterrorizante: tinha se obcecado por Hyunjin.
Notes:
E então? O que acharam?
Os capítulos da próxima semana são babadeiros...... aguardem!
Vamos interagir no tt sobre os dois capítulos dessa semana, debater se o oficial lee merece a guilhotina ou não!
tt: felixsaturnn
tag: #bemjin
Chapter 10: Alma Cativa
Notes:
Olá! Mais uma semana com Bemjin. Os capítulos da semana passada foram bem intensos e adorei ver a reação de vocês acerca deles.
Hoje e sexta são capítulos extremamente importantes para a descoberta e consumação dos sentimentos que estão deixando esses dois malucos da silva.
Ah! E chegamos à metade da fic... Sim, temos 20 capítulos + epílogo. Inclusive, eu terminei de escrever o capítulo 20 ontem e eu estou MTO MAL (não num mau sentido).
Espero muito que vocês gostem <3
(See the end of the chapter for more notes.)
Chapter Text
Hyunjin devorou quase todo o estoque de comida nos armários e geladeira de Felix.
Depois da sua pequena greve de fome — baseada em não comer nada além de biscoitos e salgadinhos por quatro dias inteiros —, fez questão de comer tanto quanto podia, enchendo as bochechas de macarrão, legumes e das poucas frutas um tanto passadas que ainda restavam na gaveta da geladeira.
Quando ele terminou de comer tudo, olhou para Felix com um olhar culpado, a boca suja de molho de tomate, e levantou a camiseta para que ele pudesse ver sua barriga.
— Não parece maior? — perguntou, virando de lado.
Felix cobriu o nariz e a boca com a mão, sufocando uma risada.
— Não, você está magro como sempre.
— É? — Hyunjin olhou para a barriga levemente estufada pela quantidade de comida que havia ingerido de uma vez. — É como se tivesse um bebê aqui dentro — cutucou debaixo do umbigo.
— Seria bem interessante.
Não era como se ele tivesse esquecido tudo. Na verdade, Felix achava que ele mesmo nunca esqueceria aqueles dias sufocantes no apartamento cinzento. No entanto, para o seu alívio, Hyunjin voltou a falar com ele, a comer, a sair do quarto e a ver desenhos na televisão enquanto Felix revisava papéis da delegacia como um preparativo nauseante para voltar ao trabalho.
Trabalho.
Em dois dias, ele teria que voltar à delegacia, performar o papel de policial cego novamente, muito embora todos soubessem que ele enxergou muito mais do que todos os outros naquela cidade. Felix teria que voltar a passar uma madrugada por semana bebendo café requentado e fumando cigarros que estavam o matando lentamente, ouvindo os risos tímidos de Hayun e fingindo que a insinuação quase descarada dela não o irritava. Mas era o seu trabalho. Era o que o sustentava e o que o permitia viver a mediocridade da sua vida.
— Jisung ligou — Felix disse, sentando ao lado de Hyunjin no sofá.
Ele estava com os pés no estofado, olhando para a TV. O Senhor Miau estava preso no abraço dele, miando vez ou outra, e começou a miar ainda mais alto quando Felix se aproximou.
Ei, mané, ele está me espremendo aqui!
— Ah, é? — Hyunjin respondeu, sem desviar os olhos.
— Ele disse que Aerin nos convidou para um café — Felix continuou. — Na casa dela.
— Não tô afim.
— Ele disse que ela vai fazer panquecas — disse despreocupadamente, mas olhando-o de lado, pois sabia que chamaria sua atenção. — E que ela comprou um pote de melado novo e...
— Tá — Hyunjin falou, apertando mais o Senhor Miau contra o peito.
Eu te ajudo a voltar a falar com ele e você nem pra me salvar de uma morte por sufocamento, seu frouxo.
Felix prensou os lábios em um sorriso inevitável e assentiu, levantando-se do sofá.
— Saímos em meia hora, caso queira se trocar.
— Aham — balançou a cabeça, gargalhando em seguida.
Alívio. Felix estava sentindo um alívio quente no peito, mesmo que ainda existisse muita coisa a ser dita e feita, mas, ainda assim, metade era melhor do que nada, que era o que ele teve nos últimos dias.
✧
A casa de Aerin continuava bonita e fresca como Hyunjin lembrava. As paredes com cores de empresas de fast food pareciam muito diferentes das tintas incolores impregnadas no apartamento de Felix. Mesmo habituado à quase mortandade daquela casa, lugares coloridos sempre enchiam seus olhos.
— Olhe quem veio encher o meu dia de luz! — Aerin bateu uma palma perto do peito quando abriu a porta, o sorriso largo, encantado e maternal lançado na direção de Hyunjin. — Você está fresco, raio de sol, como uma bala de menta.
Hyunjin olhou para o lado, prendendo uma risada.
— Olá pra você também, Aerin — Felix, ao seu lado e com as mãos nos bolsos da jaqueta parda, disse.
— Não pense que esqueci de você, querido — ela tocou nas bochechas de Felix.
Aerin os puxou para dentro, tagarelando sobre como o pobrezinho do Seungmin, que Hyunjin havia entendido ser o auxiliar dela no mercadinho, estava ficando louco com as mudanças dos preços das mercadorias. Na cozinha, Jisung e Minho estavam sentados muito perto, colados quase, como se fossem duas partes de um velcro.
Hyunjin sentiu um calor estranho no estômago e olhou para Felix. Foi um pensamento repentino e, tão rápido, veio e sumiu. Como um espelho, conseguiu ver ele e Felix naquelas cadeiras, sorrindo, grudados, de mãos dadas e bochechas coradas, vivendo uma cena nojenta de filme de comédia romântica.
Era como Hyunjin via aqueles dois: um amor jovem que ele nunca teve, nem com Juyeon, que tirou sua virgindade chapado e o deixou para ser pego e revistado pela polícia quando ainda era um menino bobo, muito menos com Seunghyun, que não fazia questão sequer de olhar em seus olhos. Mas por que então sua mente o fez visualizar a si mesmo junto a Felix como os protagonistas daquela cena? Como se Hyunjin merecesse sorrir. Como se merecesse sentar à mesa com alguém que o ama. Amor. Ele sequer sabia o que era aquilo.
Minho e Jisung pareceram animados em vê-los. Hyunjin ignorava qualquer lampejo de desconfiança que seu cérebro enviava sobre aquelas pessoas, afinal, se não confiasse nelas, confiaria em quem mais naquela porra de mundo?
Hyunjin percebeu que Felix estava sorrindo quando Aerin serviu as panquecas e o café e quando Minho brincou sobre ele ter que voltar a procurar anões de jardim desaparecidos.
O sorriso dele era bonito, as sardas, encantadoras. O rosto de Felix era quase puro, era quase inocente. Aquilo doía em Hyunjin. Doía porque ele sabia que havia tanta pureza e inocência em um homem quanto anjos no inferno.
— Então, querido — Aerin disse, olhando para Felix enquanto servia mais café na xícara dele. — Quando você volta ao trabalho?
Felix sentiu uma azia instantânea, fosse pela cafeína ou pela pergunta de Aerin.
— Na segunda — ele disse, erguendo a mão para mostrar a ela que já havia café o bastante na xícara. — Um mês e meio já foi o bastante, segundo eles.
— Isso é injusto pra cacete — Jisung falou, negando com a cabeça. — Digo, ele levou um tiro.
— Mas já está curado — Minho concluiu, afagando os ombros do namorado. — Não queria que seu melhor amigo ainda estivesse com um braço na tipoia, não é?
— Claro que não, mas é que... Urg! Odeio aquelas pessoas da delegacia.
— Você odeia muita gente — Minho riu, como se as palavras de Jisung fossem habituais. — O Felix sabe como lidar com eles.
— Sabe, sabe, fingindo que não é gay.
Hyunjin, que mexia em um resto de panqueca no seu prato, segurou uma risada. Quando todos olharam para ele, arqueou as sobrancelhas e deu de ombros.
— Não é mais um segredo — Hyunjin disse. — O stalker não é muito discreto, meio-metro. Você sabia que ele tem uma coleção de...
— Tudo bem, tudo bem, minha sexualidade não precisa ser colocada em pauta agora — Felix abanou as mãos, passando-as pelos cabelos logo em seguida.
— Exatamente, querido — Aerin incentivou. — Somos uma família de mente aberta e receptiva.
— Coloca mente aberta nisso, mamãe — Minho concordou, acostumado ao jeito dela.
— E como você está se sentindo sobre isso? — Aerin perguntou, ainda interessada no assunto.
— Ansioso — Felix admitiu. — Faz tempo que não vejo todos eles e... não sei como vai ser.
— Vai dar certo, cara — Minho comentou. — Você só vai precisar de um tempo pra se readaptar.
— Vou precisar de muito antiácido pra voltar a encarar o Changbin — ele disse.
— Ah, é? — Jisung arqueou as sobrancelhas. — Achei que ele fosse seu amigo.
— Me desentendi com ele outro dia — comentou, e Aerin crispou os lábios, relembrando da cena protagonizada pelos dois policiais. — Mandei ele ir à merda na frente da mulher dele.
— E você não tinha me contado isso ainda por quê? — Jisung indagou, colocando as mãos na mesa. — Que traidor!
— Jisung, eu só não quis tocar no assunto e...
— Por que discutiu com ele? — Hyunjin perguntou de repente, o queixo apoiado na mão.
— Porque... — Felix engoliu em seco. — Porque ele...
Como é mesmo o nome dele? Hyunjin? Ele é só mais uma bicha como todas as outras. Ele provavelmente sabia de tudo que estava acontecendo e ficou quietinho até as coisas darem errado pra ele.
Felix sentiu as palavras morrerem na garganta. Ele mandou Changbin à merda porque ele tocou no nome de Hyunjin, e reagiu daquele jeito, quase como uma criança ofendida ao ser chamada de filha da puta, porque ele não tinha sequer o direito de pensar em Hyunjin.
— Ele falou muita merda — disse, enfim.
— Não me arrependo de ter jogado meu sapato nele — Hyunjin deu um sorrisinho de canto. — Filho da puta. Eu devia ter enfiado o salto no rabo dele, isso sim.
— Puxa — Minho gargalhou, cobrindo a mão, as palavras chulas parecendo engraçadas para alguém que não convivia com Hyunjin.
Felix, no entanto, apenas soprou o ar pelo nariz.
— E você, raio de sol? — Aerin perguntou para Hyunjin, buscando a mão dele em cima da mesa. O toque dela era quente e acolhedor, quase como uma xícara de chá em uma noite insone. — O que você vai fazer enquanto nosso policial está trabalhando?
Hyunjin ficou quieto, pensando por um instante. O que ele faria? Passaria o dia inteiro vendo TV e enchendo a paciência do Senhor Miau?
Deu de ombros antes de responder.
— Não sei. Ficar em casa, eu acho.
— Bobagem — Aerin balançou a mão, como se estivesse espantando uma mosca.
Felix, olhando para ela de canto de olho, quase conseguiu ver uma lâmpada se acender em cima da cabeça de cabelos de fogo. As expressões dela se iluminaram, repletas de entusiasmo, e ele soube que estava certo quando ela falou.
— Você pode trabalhar comigo na mercearia.
Hyunjin ergueu as sobrancelhas, surpreso pela sugestão tão repentina. Era a primeira vez, em toda a sua curta vida, que alguém o oferecia um trabalho normal. Quer dizer, o porco do pai dele vivia o mandando virar homem e trabalhar, mas aquilo não contava.
— O quê? — Hyunjin desviou os olhos para todas as quatro pessoas sentadas à mesinha redonda. — Trabalhar na mercearia?
— O menino Seungmin está precisando de ajuda, e eu também — Aerin explicou, ainda apertando a mão dele. — Eu estou velha, cansada, e Seungmin não pode ficar o dia todo lá porque estuda para entrar na faculdade. Não posso pagar muito, mas seria um recomeço honesto, você não acha?
Felix estava mudo. Jisung e Minho, surpresos. Hyunjin olhava para todos os cantos daquela cozinha, para os pratos vazios sujos de melado, para as xícaras de porcelana falsa, para as paredes vibrantes que, de repente, começaram a arder seus olhos, para os cabelos vermelhos de Aerin e para a expectativa alegre nas expressões dela.
— Eu não sei nada sobre trabalhar em uma mercearia — ele admitiu, mas havia algo nos olhos de faróis, Felix logo notou, uma centelha de interesse que não conseguia esconder completamente.
— Posso te ensinar — Aerin sorriu com aquela paciência infinita. — É simples, só organizar prateleiras, atender os clientes, cuidar do caixa. Coisas básicas que qualquer um pode aprender.
Felix sentiu algo se contrair no estômago, quase uma indigestão instantânea. A ideia de Hyunjin trabalhando na mercearia, onde qualquer um poderia vê-lo, onde Changbin poderia reconhecê-lo, julgá-lo, onde outros homens podiam olhar para ele do jeito que Felix olhava e o quererem como Felix queria.
— Não sei se é uma boa ideia — disse, tentando soar casual, mas falhando miseravelmente.
— Por que não? — Jisung perguntou e, pelo tom na voz dele, havia algo que ele gostaria muito de dizer.
— É que... — Felix procurou as palavras certas, mesmo que não houvesse nenhuma. — As pessoas vão reconhecê-lo.
— E daí se reconhecerem? — Aerin deu de ombros com a naturalidade de quem já havia vivido muito na vida, acolhido e ajudado muita gente. — Todos merecem uma segunda chance, querido. Uma terceira também, e quantas forem necessárias.
— Não é tão simples assim, Aerin — Felix insistiu, uma urgência na voz que ele não conseguia controlar. — Tem gente que pode... não sei, causar problemas.
Hyunjin o olhou com uma expressão que Felix não conseguiu saber se era irritada ou triste, mas não era agradável. Havia algo gelado ali, uma frieza que cortava como uma lâmina afiada.
— Que tipo de problemas, stalker? — ele perguntou.
— Só... pessoas falando e fazendo merda — Felix gesticulou vagamente, como se pudesse materializar a explicação no ar. — Gente maldosa.
— Pessoas sempre falam e fazem merda comigo — Hyunjin com uma conformidade brutal. — Desde que me entendo por gente, então não seria novidade.
— Mas você não precisa se expor desse jeito — as palavras escorreram da voz de Felix sem que ele pudesse contê-las.
— Me expor? — Hyunjin inclinou a cabeça lentamente, e Felix sabia que havia algo perigoso naquele movimento sorrateiro. — Como assim, me expor? Você acha que eu não combino com uma mercearia em que famílias vão comprar sorvete?
— Não foi isso que eu quis dizer, é que...
— Felix — Jisung o interrompeu, novamente aquele tom de aviso na voz, como quem via o melhor amigo cair de um precipício. — O Hyunjin é adulto. Deixa ele trabalhar.
— Eu só acho que, talvez, seja cedo demais pra...
— Pra quê? — Hyunjin perguntou, irritação definitiva na voz, uma raiva que fez o ambiente da cozinha ficar mais pesado. — Pra eu fazer alguma coisa de útil na minha vida além de varrer o seu chão?
— Deus, não — Felix apoiou os cotovelos na mesa e afundou o rosto nas mãos. — Não é isso, Hyunjin.
— Então o que é? — Hyunjin se inclinou para frente. — O que exatamente você acha que vai acontecer se eu sair daquele apartamento?
Felix abriu a boca. Pensou em falar muitas coisas, mas nada faria sentido e seria menos ridículo do que confessar que tinha ciúmes.
— Raio de sol — Aerin disse suavemente, colocando uma mão no braço de Hyunjin antes que a situação explodisse. — Que tal a gente ir até o meu quarto e conversar um pouco? Posso te mostrar umas coisas legais.
Hyunjin hesitou, ainda olhando para Felix com aquela expressão que ele conhecia bem, como um animal encurralado que não sabia se mordia ou fugia.
— Vamos — Aerin insistiu, levantando-se com cuidado, quase desarmando uma bomba.
Depois de um longo momento, Hyunjin também se pôs de pé, a cadeira rangendo quando ele se afastou da mesa.
— Tá — disse, mas não tirou os olhos de Felix até sair da cozinha.
O silêncio que ficou pesou nos ombros de Felix. Jisung esperou até ouvir a porta do quarto da sogra se fechando para se virar para Felix com uma expressão exasperada de piedade e revolta.
— Você é burro? — A pergunta era quase uma afirmação.
— Eu só estou tentando protegê-lo — Felix murmurou.
— Protegê-lo de quê, Felix? De ter uma vida normal?
— Não vem você também, é só que... — Felix bagunçou os cabelos, olhando para o teto. — Você não entende.
— Entendo muito bem — Jisung retrucou —, principalmente depois do que conversamos no bar. Você está com medo de dividi-lo com o mundo, Felix. Você quer mantê-lo escondido no seu apartamento como se ele fosse, sei lá, seu bicho de estimação.
— Não é verdade.
— Olha, Felix... — Minho se intrometeu pela primeira vez, a voz calma, mas incisiva. — É exatamente o que parece. Acho que até minha mãe entendeu isso.
Felix não disse nada, o som da própria respiração parecendo mais alto na cozinha quieta.
— Ele gostou da proposta da Aerin, Felix — Jisung continuou, mais calmo. — Ele parece querer fazer alguma coisa com a vida dele. Você não pode impedir isso só porque você tem ciúmes dele.
— Não é ciúmes — mentiu descaradamente.
— Claro que é — Jisung riu sem humor. — Você está, sei lá, obcecado por ele, então tem essa coisa de mantê-lo só pra você. A questão é que isso pode foder ainda mais com a vida dele.
Felix abriu a boca para negar, mas que ridículo soaria mentir novamente quando estava óbvio? Talvez Jisung estivesse certo. Talvez ele realmente estivesse tentando manter Hyunjin só para ele, longe de olhares curiosos e julgamentos indiscretos, mas também longe da possibilidade de descobrir que existia um mundo inteiro esperando por ele além daquele apartamento claustrofóbico.
— Caralho — murmurou, batendo com a testa na madeira da mesa, um som seco ecoando pela cozinha.
— É — Jisung concordou, aninhando-se nos braços do namorado. — Caralho pra caralho.
✧
Sentado na cama de lençóis floridos, sentindo a brisa entrar pela janela escancarada quando Aerin afastou as cortinas, Hyunjin sentiu alívio.
Ouviu os passos dela voltarem até onde ele estava e o colchão afundar ao seu lado quando ela sentou. Aerin segurou suas mãos juntas, colocando-as sobre o próprio colo coberto por um vestido cor-de-rosa. O sorriso que veio em seguida era bem diferente da carranca que Hyunjin carregava no rosto.
— Você quer trabalhar, não quer, raio de sol? — Aerin indagou.
Hyunjin não olhou nos olhos dela. Desviou os seus para a janela aberta, olhando para o pequeno jardim no corredor entre a casa dela e a do vizinho. Deu de ombros.
— Pode conversar comigo — ela continuou. — Sou boa em ouvir.
— Não quero falar.
— Certo — assentiu. — Mas posso te perguntar algumas coisas?
— Depende.
— Hm — Aerin murmurou, olhando para cima enquanto pensava. — Você terminou a escola?
— Não — Hyunjin. — Só fiz até o primeiro ano do ensino médio e depois larguei.
— Você não gostava de estudar?
— Gostava mais de fumar maconha e transar com meu namorado.
— Ah, isso é... — ela riu, cobrindo a boca com a mão que não segurava as de Hyunjin. — É algo bem comum, na verdade. Bem, mas, você nunca trabalhou em algo diferente do que trabalhava até um tempo atrás, certo?
— É — balançou a cabeça brevemente. — Não sei fazer mais nada além de trepar, então melhor esquecer isso e...
— Ei, claro que não — balançou a cabeça, assustada com as palavras cruas. — Perguntei só para ter certeza e saber o que vou precisar te ensinar.
Hyunjin a olhou de canto. O rosto de Aerin era cansado, mas, ao mesmo tempo, transparecia uma confiança e um conforto que ele encontrou em poucas pessoas durante sua vida. Ela não o olhava como todas as outras velhas senhoras de Jinhae que, beatas, chacoteavam da sua cara como se ele fosse menos do que elas porque dava para os maridos infiéis que elas tanto prezavam.
Aerin era boa e parecia querer ajudá-lo. Felix também era bom e parecia querer ajudá-lo, mas acabou o colocando de joelhos para chupar seu pau. No entanto, estranhamente, Hyunjin seguia confiando nele, porque, mesmo depois de cuspir porra no rosto sardento, ainda gostava dele.
Hyunjin arrancou uma de suas mãos do aperto de Aerin para levar o dedo mindinho à boca.
— Não sou bom nessas coisas.
Aerin juntou as sobrancelhas, uma ruga mais proeminente na testa.
— Que coisas? Organizar prateleiras?
— Mexer com dinheiro e ser... sabe, simpático com as pessoas.
— Não sei do que está falando — ela riu, balançando a cabeça. — Você é muito simpático.
— Até encherem minha paciência.
— O quão mal você reage?
— Mal o bastante para mandar muita gente ir tomar no... — ele prendeu o palavrão na garganta. — Ir para o inferno.
— Todos somos assim, raio de sol — Aerin abandonou a mão, como se não fosse tão importante. — Ninguém deveria aguentar outras pessoas zombando de nós.
— É, mas não sei se vou aguentar os olhares, as palavras, o jeito que vão me tratar — respirou fundo, uma dormência nos dedos dos pés, como se formigas tivessem entrado no coturno.
— Isso você só vai descobrir tentando.
Hyunjin negou e prendeu o lábio entre dentes, virando novamente a cabeça.
— Eu não sei. Talvez Felix esteja certo e...
— Você não me parece o tipo de pessoa que deixa os outros mandarem na sua vida — Aerin interrompeu.
Bem, Hyunjin deixou os outros — na verdade, uma pessoa — mandarem na sua vida por muito tempo. Sete anos.
— Não agora, pelo menos — ela concluiu diante do silêncio. — Você é livre, raio de sol, e não um escravo de qualquer coisa que seja. Você já passou um mês e meio naquele apartamento, preso como um passarinho na gaiola. Agora, estou te dando a oportunidade de cantarolar em um jardim novo, cheio de flores, como tulipas e orquídeas, mas também com alguns besouros chatos que podem te incomodar. A questão — respirou fundo e tocou no rosto de Hyunjin para que ele a encarasse — é que ninguém deixa de visitar um jardim bonito só porque existem carrapatos na grama.
Hyunjin engoliu saliva espessa pela garganta. Aerin não era como sua mãe. Chaeyoung nunca o olhou com tanto carinho, mesmo que ele tivesse saído das entranhadas dela e mamado nos peitos que hoje deveriam ser murchos. Ela nunca disse que ele era bonito como um raio de sol ou que deveria cantarolar em um jardim. Mesmo que, às vezes, sentisse falta dela, chegava a pensar que não eram, de fato, saudades de Chaeyoung, mas da figura de uma mãe. Uma mãe com olhos de mãe, com sorriso de mãe, com afeto de mãe.
Minho tinha sorte, Hyunjin pensou, de ter uma mãe como Aerin.
— Tá — ele disse, piscando lentamente. — Tá bom, eu... posso pensar.
— Pense com carinho — Aerin afagou sua bochecha, ainda com a mão no rosto meio pálido. — Aposto que você e o menino Seungmin vão se dar bem.
— Ele não é um daqueles que odeiam bichas, não é?
Aerin riu, aquela risada alegre e radiante.
— Acha mesmo que eu contrataria um homofóbico para trabalhar comigo? — negou várias vezes. — Seungmin é um menino doce e querido. Ele ainda é muito jovem, mas é inteligente e esforçado e, com certeza, não odeia pessoas como você e aqueles três turrões na cozinha.
— Isso é bom — Hyunjin assentiu. — Ou então eu chutaria as bolas dele.
— Tenho certeza disso.
Hyunjin olhou para os cabelos vermelhos, cujos fios sedosos ainda revelavam alguns resquícios do branco coberto pela tinta. Por trás do ombro dela, conseguia ver uma penteadeira antiga, mas bonita, de madeira. Havia um banco baixo, provavelmente para que, quando sentada, ela conseguisse ficar da altura perfeita do espelho grudado à parede. Sob a penteadeira, pincéis, batons, pó de arroz e rouge para as bochechas. Os olhos de Hyunjin brilharam, saudosos, para aquela coleção feminina e bonita de uma mulher vaidosa.
Aerin pareceu notar o olhar, ao mesmo tempo, curioso e melancólico de Hyunjin para sua penteadeira. Um sorriso discreto brotou nos lábios dela.
— Você gostou?
Hyunjin piscou várias vezes, balançando a cabeça. Ele tomou de volta as próprias mãos e as esfregou na calça, meio suadas.
— É legal.
— Posso estar velha, mas ainda gosto de me arrumar. Você quer ver o que eu tenho?
— Acho que o Felix já vai querer ir embora e...
— Ele pode esperar — Aerin disse, já se levantando da cama e pegando no braço de Hyunjin para que ele a seguisse.
Pararam de frente para a penteadeira. Antes que Hyunjin pudesse dizer alguma coisa, Aerin o empurrou para sentar no banco.
De frente para o espelho, naquele quarto iluminado pela luz bonita do dia, com paredes pintadas de alegria e com cheiro de produtos de limpeza florais, Hyunjin conseguiu, depois de muito tempo, enxergar como ele realmente estava. Seus olhos estavam meio baixos, olheiras não tão fundas quanto as de Felix debaixo deles, mas ainda ali. As bochechas estavam pálidas, os lábios vermelhos, mas que sempre estavam molhados de saliva para evitar o ressecamento. Mesmo que tivesse ganhado um ou dois quilos depois que foi morar com Felix, julgou tê-los perdido depois dos dias que passou fingindo que ele estava morto. Empenhar-se-ia em comer mais a partir dali para que as laterais do rosto voltassem a ser maçãs vermelhas e viçosas ao invés de dois caroços de lichia.
— Tenho muitos batons bonitos aqui — Aerin apontou para a penteadeira.
Hyunjin conseguiu ver muitos tubinhos de batom. Alguns eram vermelhos, outros em tons mais terrosos, alguns cor-de-rosa. Engoliu em seco e sua mão pairou no ar, ansiosa, para tocar em algum deles. Aerin percebeu a hesitação quando ele recolheu a mão de volta para o colo. Esticou ela mesma o braço e pegou um batom meio cintilante, que não parecia ter uma cor tão forte.
— Experimenta — disse ela, entregando a Hyunjin, que tocou no tubinho como se o plástico pudesse mordê-lo.
— Acho melhor não — negou, o lábio inferior entre dentes.
Hyunjin não entendia como ela sabia que ele gostava de maquiagem. Mesmo que fosse gay, não eram todos que gostavam de se pintar. Tentou imaginar Felix usando um batom vermelho e sentiu vontade de rir. Não porque ele ficaria feio, mas porque não parecia combinar com um policial viciado em café e cigarro. No entanto, do mesmo modo que aquela imagem nebulosa dos dois abraçados na cozinha surgiu na sua mente, a projeção do rosto dele borrado de batom vermelho depois de enfiar a língua na sua boca tomou conta dos seus pensamentos enquanto encarava a bala do batom.
Aerin empurrou o cotovelo dele para cima, incentivando-o a levar o batom até os lábios. Hyunjin engoliu em seco e girou a base até que, em um movimento de espiral, o produto aparecesse, brilhoso e atrativo, aos seus olhos.
— Essa cor combina com você — disse Aerin. — Quero ver como vai ficar.
Hyunjin respirou fundo e tocou o lábio debaixo com o batom. Um arrepio surgiu em sua espinha, uma nostalgia morna que foi tomando conta da pele e dos nervos, que parecia muito distante, mas, ao mesmo tempo, familiar. O batom deslizou contra a pele meio ressecada, marcando de um vermelho-turco aquela almofada macia e nefasta que ele muito usou como ferramenta de trabalho. Depois, pintou o de cima, tão cheio e bonito quanto. Afastou o batom dos lábios e piscou os olhos. Quando os cílios se encontraram, pretos como fuligem e úmidos, duas lágrimas desceram pelas bochechas de lichia. Surpreso com a própria emoção, Hyunjin piscou mais forte, tentando afastar aquela vulnerabilidade inevitável, e passou as costas das mãos pelo rosto.
— Lindo, raio de sol — disse Aerin, afagando os ombros tensionados. — Quer experimentar o resto?
Hyunjin olhou para seu reflexo. O vermelho ficava bem no tom da sua pele, e quase fazia as vezes de um cor saudável na face, a despeito da palidez de todo resto. Por um momento, pensou se Felix o acharia bonito com os lábios pintados, se teria vontade de beijá-lo, se teria vontade de colocá-lo de joelhos de novo.
Tremulou um sorriso meio ébrio, ainda olhando para o seu reflexo no espelho e para Aerin, parada de pé atrás do banco. Assentiu com apenas um movimento, arrancando da velha mulher um sorriso orgulhoso.
Enquanto coloria o rosto de rouge e sombras brilhantes, Hyunjin sentiu uma alegria arrebatar o peito. Acreditou que, pelo que poderia ser a primeira vez desde Juyeon, estava se pintando para se sentir bonito e não para se armar. A maquiagem, agora, não era mais sua máscara de defesa, de poder, de safadeza; era ele. Só ele.
Hyunjin.
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Mood: What Hurts the Most - Rascal Flatts
Felix não saberia dizer, ou saberia, mas não queria, o tipo de emoção que sentiu quando viu Hyunjin retornar do quarto de Aerin com aqueles lábios vermelhos e pó colorido nas pálpebras e bochechas.
Estava sentado no mesmo lugar, com a mesma xícara com café frio na sua frente, conversando aleatoriedades com Jisung e Minho para evitar pensar demais no trabalho que voltaria e em Hyunjin que permaneceria. Ouviu os passos pelo corredor e se armou para pedir desculpas e concordar com o trabalho, embora soubesse que teria que lutar contra si para abdicar daquela coisa rastejante e perigosa que crescia dentro do seu peito quando pensava em Hyunjin longe de suas asas. No entanto, não conseguiu falar, mover-se da cadeira ou pensar em coisas coerentes quando seus olhos encontraram os faróis luminosos nos olhos dele, sombreados de dourado. Nos lábios, puro rubi, e uma mancha rosada esfumada nas bochechas.
Hyunjin não era palatável. Ele era aquela coisa gostosa, mas que travava na garganta antes de deslizar para o estômago. Quando tocava a língua, podia causar estranheza, repulsa para alguns que temiam o esplendor daqueles olhos e a perdição que o envolvia. Mas ele era delicioso, e quando o sabor não permanecia mais na língua, mas no sistema nervoso, enviando ondas para o cérebro que diziam mais mais mais mais mais, pronto. Vício. Obsessão. Uma coisa com T e outra com P, ambas terminadas com ão.
Ele parou de pé na cozinha, os braços para trás do corpo, encolhido e quase com vergonha. Não olhava nos olhos de ninguém, tampouco disse alguma coisa, mas, no fundo, ele queria que Felix estivesse olhando para ele. Não do jeito que olhou quando Hyunjin chegou àquela delegacia na madrugada, dois meses atrás. À época, era um olhar estranho, meio nebuloso.
Mesmo que não estivesse encarando o rosto do policial para tentar decifrar o que estava perpassando a mente dele, torceu para ser coisa boa. Coisa de desejo. Coisa da coisa com P.
Felix estava desconcertado. Pigarreou diante do silêncio na cozinha, levantou da cadeira com pernas moles feito pudim e bateu no bolso da calça, verificando se as chaves do carro estavam ali. Estavam.
— Acho que temos que ir.
Hyunjin crispou os lábios, sentindo a maciez do batom. Olhou, enfim, para Felix, que tinha o peito subindo e descendo superficialmente, porque tentava disfarçar a falta de ar. Piscou os olhos para ele, como se perguntasse "não vai falar nada, porra?". Mas Felix não falaria na frente de todas aquelas pessoas, talvez não falasse sequer de frente para um espelho, encarando o próprio reflexo culpado.
Hyunjin se despediu de Jisung e Minho com um aceno tímido e se virou para Aerin. Quis abraçá-la, mas apenas sorriu.
— Obrigado — ele disse.
Obrigado. Não era sempre que dizia aquela palavra.
Então, cruzaram a sala de paredes bicolores, o jardim, a cerquinha branca feliz e entraram no carro.
Felix sentou no banco do motorista, respirando como se estivesse com dor. Hyunjin esticou a mão para pegar o cinto meio solto, mas parou no meio do caminho quando sentiu duas mãos pequenas agarrarem seu rosto com força.
Felix puxou o rosto de Hyunjin, sentindo o pó de arroz grudar nos dedos suados. Encarou os faróis, o coração martelando o peito, os olhos tremendo de... de... de... alguma coisa.
Hyunjin, pego de surpresa, engoliu muita saliva pela garganta, uma das mãos ainda segurando o cinto.
Felix continuou o encarando, as mãos apertando suas bochechas, o que fez um pequeno bico ser formado na boca brilhosa. Hyunjin agarrou os pulsos dele, apertou com força e arrancou as mãos do seu rosto, que caíram flácidas no colo do policial.
— Eu vou trabalhar — Hyunjin disse.
A nuca de Felix se chocou contra o banco do motorista, olhos fixos no teto do carro. Pela ruazinha, duas senhoras passaram e olharam para dentro do carro através do vidro, torcendo o nariz para um garoto de batom. Hyunjin levantou o dedo do meio para elas, que apressaram o passo.
— Tá, Hyunjin — Felix soprou aquelas palavras, cansado, exausto. — Você pode trabalhar.
— Eu não preciso da sua permissão.
— Certo — assentiu, tentando convencer a si. — Você tem razão. Eu estava com medo de que você... que você pudesse se machucar nesse trabalho.
— Me machuquei muito mais no meu antigo trabalho.
— Eu sei — balançou a cabeça, tornando o olhar para ele.
Que erro infeliz. Felix não conseguia suportar ficar no mesmo lugar que ele sem querer arrancar um pedaço daquela pele macia. Olhou para as mãos, resquícios poeirentos de maquiagem na ponta dos dedos. Quis levá-los aos lábios, esfregá-los na língua, assim teria um pouco da pele de Hyunjin na boca.
Como era covarde de não tomar aqueles lábios, de não tomá-lo inteiro.
E Felix, que costumava renegar com tanta veemência "bichas" que se "vestiam como mulher", pegou-se perdido nos olhos de Hyunjin, pintados de dourado, e na boca dele, de vermelho.
— O que você quer falar? — Hyunjin perguntou, batucando os dedos nas pernas. — Parece que você tá com uma coisa entalada nessa sua garganta.
— Nada — respondeu, olhos fechados, tentando recuperar a calma.
— Nada uma ova. Você quer dizer alguma coisa.
— Nada, Hyunjin.
Ele riu amargo, negando com a cabeça.
Hyunjin esperou Felix dizer alguma coisa, nem que fosse para reclamar dos olhos e boca pintadas, qualquer merda que fosse estava bom. Mas Felix apenas enfiou a chave na ignição daquela banheira velha com uma força desmedida, o motor roncando feito um animal.
O silêncio no carro era sólido, fedorento. Hyunjin podia sentir a rigidez de Felix, o corpo dele quente como uma fogueira. As mãos apertavam o volante com tanta força que os nós dos dedos ficaram brancos e sua respiração saía em rajadas curtas e ofegantes.
— Vai ficar calado que nem um imbecil o caminho todo? — Hyunjin perguntou, olhando pela janelinha.
Felix não respondeu. Seus olhos permaneceram fixos na estrada, mas Hyunjin podia ver alguma coisa acontecendo por trás do tremular das pupilas. Podia ver o jeito como a mandíbula dele estava contraída, como se estivesse mastigando as palavras e as deglutindo para que evitasse falar.
Antes que Hyunjin pudesse forçá-lo a dizer alguma coisa, Felix pisou mais fundo no acelerador para fugir da própria cabeça. As ruas passaram borradas pela janela, mas aquela densidade dentro do carro, sufocante, só aumentava.
Quando finalmente chegaram ao apartamento, Felix saiu do carro como se ele estivesse prestes a explodir em chamas. Não foi de elevador. Mais um lugarzinho claustrofóbico com Hyunjin e ele estaria morto. Subiu as escadas dois degraus por vez, deixando Hyunjin para trás. Quando chegou à sala, antes dele, jogou-se no sofá com uma força que fez as almofadas quase rangerem.
Hyunjin entrou depois, batendo a porta. Observou Felix afundado no sofá, olhos fechados, uma mão na testa, cabeça para trás, quase um moribundo com muita vida pela frente.
Sem dizer nada, Hyunjin foi até o banheiro. Pegou um espelhinho que ficava pendurado perto da banheira e umedeceu um lenço. Voltou para a sala e, de propósito, sentou ao lado de Felix, que sequer se moveu.
— O que você tá fazendo? — Felix perguntou, olhos ainda fechados.
— Tirando essa merda — Hyunjin respondeu, ajeitando o espelho em uma das mãos e levando o lenço aos próprios lábios.
Mood: Olhos de Farol - Ney Matogrosso
O tecido úmido tocou o batom vermelho, e Hyunjin começou a esfregar suavemente, observando a cor se desfazer enquanto manchava o lenço e ao redor da boca.
Lentamente, Felix abriu os olhos. Quando viu Hyunjin esfregando o rosto quase com raiva, algo dentro dele se rompeu.
Ele passava o lenço pela boca, pelas bochechas, pelos olhos, manchando tudo em uma pintura abstrata. Rápido como se seu coração pudesse parar caso não fizesse aquilo, Felix puxou com força o pulso de Hyunjin, fazendo-o cessar os movimentos.
— Me solta — ele disse, puxando o braço de volta.
Felix, estático, observou Hyunjin esfregar o rosto. Não aguentou a pressão no peito. Por que ele estava fazendo aquilo? Por que manchar o que estava tão lindo?
— Para — Felix disse, arrancando, agora, o espelho dele, jogando-o no chão.
O som do vidro quebrando foi proporcional ao engasgo de Hyunjin, que parou com o lenço na bochecha, os olhos tremendo.
— Seu imbecil, filho da puta — Hyunjin começou em um sussurro, negando com a cabeça, mas foi aumentando a voz a cada sílaba. — Você é mesmo um covarde do caralho!
O grito em sua direção foi merecido. Felix ficou quieto, os olhos fixos na bagunça esplendorosa que era o rosto borrado de Hyunjin.
— Por que você não fala nada? Por que, seu merda? — Hyunjin jogou o lenço no peito dele, querendo esbofeteá-lo, empurrá-lo, forçá-lo a dizer o que ele sabia que existia ali. — Por que você não me diz nada?
Felix piscou os olhos duas vezes, e sentiu, quase sob o efeito de uma anestesia, o empurrão que Hyunjin deu no peito, que sequer o afetou. Lembrou daquela cena na cozinha, do jeito como ele também parecia repleto de ira, e enxergou aquele mesmo brilho corrosivo quando olhou nas iris trêmulas.
A palavra "covarde" ainda ecoava em seus ouvidos, trazendo um gosto estranho à boca. Hyunjin o olhava com expectativa de que ele falasse alguma coisa, mas não podia. Não havia palavras, só o desejo cru de fazer uma coisa que, uma vez feita, não haveria como voltar.
Se fizesse o que tinha que ser feito, atestaria a morte iminente, sua conversão à seita dos faróis, a adoração àquele corpo e àquela alma e àquele espírito que um dia se desmaterializaria da Terra, mas que poderia viver misturado ao pó de Felix.
Hyunjin deu uma risada amarga, cortante como os vidros espalhados no assoalho. Planou um dos pés já descalços no chão e tomou impulso para levantar, fugir, voltar a viver a pão e água no quarto até Felix decidir virar homem de verdade, mas a gravidade — ou a mão firme dele — o puxou de volta para o sofá. Quando caiu, caiu muito perto dele, perto o bastante para sentir o cheiro do café que soprava pelo hálito quente de Felix. A boca manchada de batom se comprimiu, arfou, o toque áspero em seu pulso denunciando que ele não o deixaria ir.
Esperou novamente alguma palavra que não veio e não viria.
Felix, perdido, à deriva mesmo com a luz indicando a costa, ficou bêbado com seus próprios sentimentos. Chapado de Hyunjin, aproximou o rosto e lambeu a boca dele.
A língua passou pelo lábio inferior, cutucando a abertura pequena, e subiu. Depois, contornou a mancha de batom até o queixo, onde deixou um beijo dolorido. Afastou a boca apenas alguns milésimos para gemer e arfar com o prazer cru que tomou conta do seu corpo ao sentir a textura daquela boca na ponta da língua.
Hyunjin fechou os olhos, o corpo mole, quente, completamente dele. Felix poderia fazer o que quisesse e ele não moveria um músculo para contrariá-lo.
Felix continuou, tocando a bochecha que outrora estava rosada de rouge, mas que agora estava vermelha devido à fricção do lenço. O aperto em seu pulso se tornou mais firme, mais possessivo, mais gostoso. Hyunjin tremeu. Felix beijou as duas lichias que voltariam em breve a serem maçãs gordas e viçosas, doces como uma sobremesa. Arrastou a língua pela mandíbula até chegar ao pescoço, onde afundou o rosto como um alcoólatra mergulhando em uma piscina de éter. Hyunjin gemeu, e Felix ouviu.
Ele ouviu o gemido dele. Não de dor, não de desespero, mas de algo parecido com prazer.
Lambeu o pescoço quente, maculou uma pele que era dele e de mais ninguém. Afastou-se, zonzo, e olhou novamente para o rosto, agora cheio de saliva em alguns lugares por onde havia deixado seu DNA impregnado. Felix juntou as sobrancelhas, soltou o pulso magro e agarrou o rosto dele como fez no carro. Hyunjin engoliu em seco, olhos fechados e, quase chorando, projetou a voz rouca.
— Covarde — ele repetiu. — Você não tem coragem de...
Felix não o deixou completar. Sabia que, depois, arrepender-se-ia de não ter ouvido o que ele diria, mas não podia deixar a coragem perecer na boca do estômago.
Puxou o rosto de Hyunjin para perto e tomou os lábios que eram seus. Ele todo era de Felix. Nem uma faixa de pele ficaria livre da (p)aix(ão) corrosiva que queimava por dentro e o derreteria inteiro em questão de segundos.
Beijou Hyunjin. A língua quente entrou na boca dele, enroscando-se com aquela que vinha furiosa, quase xingando-o no ósculo. Covarde.
Os dedos entraram nos cabelos pretos, puxaram-nos para mais perto. O beijo aumentou, amorfo, molhado, agressivo. Enquanto os lábios se moviam, deslizando quentes uns contra os outros, Felix sentia a vida sendo trazida de volta ao seu peito. A boca gostosa, lembrando melado e café, era tudo o que Felix pensou e muito mais. Era úmida, habilidosa e cheia de uma raiva crua que parecia querer mastigar sua língua.
Empurrou o corpo de Hyunjin contra o encosto do sofá, sentindo-o agarrar sua camiseta com força, puxando-o para mais perto. Dentes, línguas, baba, a outra coisa com T escorrendo deles. Hyunjin socou o peito de Felix uma vez, gemendo dentro do beijo, quase implorando para ser devorado pedaço por pedaço, em um ato antropofágico que faria ele e Felix se tornarem um só.
Hyunjin empurrou Felix no sentido contrário, até que ele estivesse deitado no sofá. Subiu em cima dele, despudorado, quase assumindo a posição habitual de puta. Mais do que isso: a posição de puta de Felix. Ou de paixão de Felix, quem sabe? Ele não estava pensando.
Permaneceu, beijou-o com tanta força que parecia que sua boca ia ficar dormente qualquer momento desses. Felix o agarrava pela cintura, buscava pele, quentura, qualquer coisa que fosse dele. Sua mente girava, passarinhos flutuando como nos desenhos animados, uma bigorna descendo do céu, pronta para esmagá-los com as consequências futuras. Mas ele não ligava, pelo menos não quando a boca de Felix era tão gostosa.
Felix tentou esticar o braço preso para fora do aperto de Hyunjin, assim poderia mapear melhor o corpo em cima do seu. Como uma piada suja de jornal ou daqueles programas depois das onze, entrando para a lista de pequenos acidentes que ele já tinha sofrido — e que sempre, que curioso, envolviam sua mente nublada por Hyunjin —, a mão caiu para fora do sofá baixo, batendo contra um pedaço pontiagudo do espelho quebrado.
Felix gemeu, mas Hyunjin riu, beijando o rosto, os olhos, o queixo e o pescoço. Felix ergueu a mão, um pouco de sangue escorrendo da palma, no meio da linha da vida. Hyunjin parou por um instante e o olhou.
O que era aquilo, meu Deus?
Só podia ser uma doença incurável.
Hyunjin segurou no pulso dele, levou a mão aos lábios e deixou um filete de sangue na ponta da língua. Felix sentiu seu corpo tremer, a calça molhar, gozando nos jeans sob a pressão da bunda de Hyunjin e da visão imoral dele lambendo seu sangue.
A língua e boca vermelhas — lembrou da madrugada em que não sabia se o rubor manchado no canto nos lábios de Hyunjin era batom ou sangue — atacou as suas novamente. Sentiu o gosto ferroso do próprio sangue, perigoso, Hyunjin era perigoso. Sempre foi.
Com a mão sangrenta, Felix apertou a bochecha dele sem se importa com a pequena pontada de dor.
— Felix — Hyunjin sussurrou no meio do beijo sanguinolento, agarrando seu lábio inferior com os dentes afiados.
Ele se afastou alguns centímetros, cravou os faróis no barco à deriva, lançou sua luz em lampejos que encandeavam os olhos daquele exânime molenga debaixo do corpo, prestes a morrer de tesão, paixão, aflição e de submissão a tudo que Hyunjin era.
Felix viu os lábios molhados se separarem e um sorriso borrado de vermelho nascer na boca macia. Hyunjin se aproximou novamente, deixou um selo estalado na sua boca e, terminando de matá-lo, disse:
— Me vive
Notes:
Finalmente o beijo e o atestado de MALUCOS! É, é, eu sei. Não precisam me dizer.
Agora já foi. Resta saber o que vem depois disso.
Me digam o que acharam, certo?
TT: felixsaturnn
Tag: #bemjin
Chapter 11: Carne dos Meus Versos
Notes:
Oii! Eu amo sextas ><
O primeiro beijo, no capítulo passado, foi realmente intenso. Acho que ninguém estava esperando o Hyun vampirinho, nem o pobre coitado do Felix.
Gostaram do Hyun recebendo a proposta da Aerin de trabalhar na mercearia?
Ah, e o trabalho do Felix tá voltando... Ele naquela delegacia de novo, tenho é pena.
Enfim! Aproveitem o capítulo de hoje e, só avisando, se tiver um recepção legal (porque vocês sabem que eu AMO comentários e amo ver o que vocês têm a dizer da história), quem sabe eu não trago uma surpresinha amanhã ou domingo? hehehe
Aproveitem!
PS: Neurovalen é um medicamento fictício.
(See the end of the chapter for more notes.)
Chapter Text
Mood: Carne dos Meus Versos - As Baías
Já era noite quando Hyunjin abriu a porta do banheiro e encontrou Felix na cama do quarto, terminando de colocar um band aid na palma da mão.
Felix já tinha se machucado muito por Hyunjin.
Primeiro, a queimadura, quando estava pensando em Hyunjin.
Depois, o olho roxo e o tiro, quando estava protegendo Hyunjin.
Em seguida, o golpe da faca, quando estava sofrendo por Hyunjin.
Agora, o corte do vidro, quando estava vivendo Hyunjin.
No entanto, Felix não se importava com sua integridade física, mesmo que doesse e que dor fosse ruim em qualquer circunstância.
Enquanto sentia os dedos grudarem ligeiramente devido à cola do curativo e ouvia o som do chuveiro no banheiro, sorriu de lado, revivendo o que fizeram no sofá. Quando Hyunjin saiu de cima dele, desaparecendo para o interior do quarto, Felix ainda ficou no sofá, o corpo ainda sofrendo espasmos, a mão cortada e sangrando pulsando em sincronia com seu coração. Olhava fixamente para os cacos de vidro espalhados pelo chão, como se pudessem refletir que porra aconteceu ali. O gosto de Hyunjin, da pele, da maquiagem, o gosto do cheiro, ainda persistiam na boca — doce, salgado, um travo metálico no fundo, vindo do próprio sangue misturado na saliva.
Diante dele, Felix não soube como reagir, como olhar para ele, como fingir que sua vida inteira não havia mudado de eixo em questão de minutos.
Hyunjin estava parado na sua frente como uma aparição. Tirou a maquiagem borrada, a pele limpa e brilhante, rosada pelo vapor quente do banho. Vestia apenas uma camiseta branca que colava no corpo ainda úmido e por baixo deveria estar usando uma cueca, mas não sabia. Tudo o que via eram as coxas à mostra. Os cabelos molhados grudaram na testa e na nuca, algumas gotas escorrendo pela clavícula. Hyunjin cheirava a sabonete e a alguma outra coisa doce que Felix não conseguia identificar.
— Oi — ele disse, encostando-se à parede.
Felix se sentiu como se tivesse bebido uma garrafa inteira de uísque. Seguiu cada movimento que ele fez, os olhos fixos na barra da camiseta que subia e descia, revelando mais pele das pernas.
Hyunjin caminhou os poucos passos até a cama. Ficou de pé, ao lado de Felix. Encarou, sério, suas expressões e passou uma perna para o lado, tocando o colchão com o joelho, depois a outra, montando em Felix apenas por um segundo, até cair na cama com uma naturalidade desconcertante. Deitou de lado, apoiando a cabeça na mão, a perna meio dobrada, quadris cobertos pela camiseta, olhando para Felix.
Seus olhos desceram para as pernas de Hyunjin, que se mexiam preguiçosamente. A pele parecia macia, lisa, e Felix teve que apertar a mão ferida para se concentrar na dor em vez de imaginar passar a língua por aquelas coxas.
— Você gozou — Hyunjin disse, fazendo círculos no colchão.
Felix balançou a cabeça.
— Gozei.
Hyunjin sorriu de lado e mordeu o lábio inferior, quase orgulhoso.
— E vai ficar melado na cueca ou vai tomar um banho?
— Certo — Felix assentiu, ainda sem conseguir olhar muito para ele. — Eu já volto.
Felix cambaleou pelo quarto para pegar uma toalha e uma roupa limpa. O banho foi quente e seu pau estava duro de novo. Chegou a massageá-lo um pouco, mas se conteve, como se por dentro nutrisse uma expectativa de que Hyunjin pudesse fazê-lo gozar de novo.
Mas e se não fizesse?
Felix voltaria ao banheiro e gozaria para ele como tantas e tantas e tantas e tantas vezes fez.
Retornou ao quarto devagar, fechando a porta do banheiro. Ele vestiu uma calça moletom e ficou sem camiseta de propósito, não que tivesse muitos músculos para impressionar Hyunjin. Sentou na beirada da cama, encostando-se à cabeceira, as pernas abertas e o seu pau duro e exposto marcando na calça moletom. Ele queria que Hyunjin visse.
Felix estava longe demais para tocar, mas perto demais para ignorar o calor que emanava do corpo úmido de Hyunjin, e aquilo só o deixava com ainda mais vontade.
— Por que não se livrou disso? — Hyunjin apontou para o seu pau, arrastando com ele o olhar de Felix para a ereção marcada.
Hyunjin estava diferente, mais solto, como se o que havia acontecido na sala tivesse liberado alguma coisa nele que vinha segurando há muito tempo. Ele esticou uma das pernas, os dedos do pé cutucando a coxa de Felix. Prendeu a respiração e um bolo de saliva desceu pela garganta.
— Por que não se livra disso pra mim? — Felix perguntou, agarrando o calcanhar de Hyunjin.
Ele riu baixo, um som que saiu rouco da garganta, e Felix sentiu o estômago revirar de ansiedade. O pé dele continuava cutucando sua coxa, os dedos se emaranhando no tecido da calça.
— Por que eu faria isso? — Hyunjin perguntou, a língua correndo pelo lábio inferior.
Felix não disse nada. Mordeu a própria boca, as lembranças do que fizeram naquele sofá ainda muito vivas. Ele apertou o tornozelo de Hyunjin com mais força por um instante, então subiu a mão pela panturrilha macia.
Não havia pelos nas pernas dele. Felix desconfiava que não havia pelos em lugar algum. Como foi chamado de sujo por tanto tempo se Hyunjin sempre estava cheiroso, limpo, macio, quase convidativo ao toque desejoso de um homem. De Felix.
A mão deslizou, conhecendo, tocando, mapeando aquela perna gostosa. Chegou ao joelho e parou, fazendo um carinho perigoso na parte de trás, quase uma cócega. Hyunjin puxou a perna de volta, repelindo seu toque. Mas não era agressivo e raivoso, era quase uma brincadeira suja de sedução, que envolvia Felix em uma redoma de tesão e fazia seu pau latejar.
Hyunjin deitou mais para trás, com as costas contra o colchão. Ele arrastou um pé até que a perna parou flexionada, abrindo-se e revelando o caminho para o céu: a seminudez debaixo da camiseta.
Felix lembrou-se do vislumbre daquele montinho de roupas no seu banheiro na primeira noite em que Hyunjin esteve no apartamento cinzento. Lembrou de ter visto, emaranhada no meio das peças apertadas, uma calcinha delicada, fina, quase minúscula. Igual a que ele estava usando debaixo da blusa.
Sentiu uma fisgada dolorosa no pau, que já estava duro, apontando para cima contra o tecido da calça moletom. Puxou o ar por entre os dentes, chiando com a visão perigosa da calcinha de Hyunjin apertada entre a bunda, cobrindo o pau que ele tanto queria ver. Felix mordeu o lábio, inclinou o corpo e esticou a mão para tocar, mas Hyunjin riu novamente e balançou a cabeça.
— Que foi? — ele perguntou entre um riso safado, esfregando as pernas.
Felix engoliu em seco, a garganta áspera como lixa. Os olhos de Hyunjin brilhavam de malícia, deixando-o zonzo, hipnotizado por ele, que era perigoso e irresistível.
— Hyunjin — Felix sussurrou, a voz grave saindo rouca.
— Hm? — respondeu, esticando os braços acima da cabeça, o que fez a camiseta subir mais alguns centímetros.
A pele do abdômen magro apareceu, lisa e provocante. Logo abaixo, a calcinha vermelha de renda, apertada contra a tez morna, quase pedindo para ser tirada.
As palmas das mãos de Felix estavam suando, a ferida na mão latejando em sincronia com a palpitação desmedida do coração. Ele se inclinou novamente, um metal qualquer sendo puxado pelo nobre ímã que era Hyunjin, mas ele puxou a camiseta para baixo, escondendo o que Felix tanto queria ver.
— Ah, porra...
Hyunjin sorriu, aquele sorriso torto, perverso, quase cruel. Felix queria tocar aquela pele, sentir se ela era macia tanto quanto parecia, mas sentia como se pudesse se queimar caso colocasse a mão nele.
Felix ficou de joelhos e se arrastou até estar de frente para Hyunjin. Enxergava-o de cima, o rosto corado, o peito subindo e descendo, os cabelos esparramados no colchão, as luzes azuis e amarelas dos postes da rua batendo contra o rosto perfeito. Quase desmaiou tamanha beleza diabólica.
Hyunjin, então, rindo do desespero de Felix, abriu novamente as pernas e puxou a camiseta até a metade do tronco. Lá estava ela novamente, a calcinha pequena apertando uma ereção que deveria estar quente e molhada.
Quando, Deus do céu, Felix pensou que estaria quase chorando de tesão por um cara vestindo uma calcinha?
Com as pernas abertas, Hyunjin levantou uma delas, até o pé estar contra o peito de Felix. A mão, suada e trêmula, pegou o pé de Hyunjin, o polegar contra a sola macia. Hyunjin sorriu para ele, o rosto lindo e aquela porra de sorriso acabando com Felix inteiro.
Deixou o pé de Hyunjin apoiado em seu peito e abaixou a cabeça, até a lateral estar tocando sua bochecha. Felix beijou o peito do pé dele delicadamente, sem nunca tirar os olhos dos traços delicados. Depois, deixou beijos em cada um dos dedos, que se moveram como se ele tivesse provocado cócegas.
Hyunjin soltou um suspiro baixo, quase inaudível, quando Felix lambeu seus dedos, a pele limpa com cheiro de sabonete. Passou a língua pelos contornos, e Hyunjin mordeu o próprio lábio. A mão segurava a parte de trás do joelho de Hyunjin, um beijo tão terno que beirava ao religioso. Era como se estivesse adorando um santo sagrado e profano nas mesmas proporções, rezando para um deus cruel que poderia destruí-lo a qualquer momento, mas que também o benzeria com sua graça celestial.
— Deixa eu te tocar — Felix pediu, esfregando a bochecha no pé de Hyunjin.
Hyunjin virou o rosto para o lado da janela e respirou fundo.
— Por quê?
— Porque eu quero — respondeu, simples, e chupou o dedo mindinho de Hyunjin, soltando-o com um estalo molhado. — Deixa?
Hyunjin voltou o olhar para ele. Arrastou a perna pelo peito de Felix novamente, descendo pelo tronco. Quando chegou ao cós da calça moletom, muito perto do pau dentro dela, prendeu o elástico entre o primeiro e segundo dedos, puxando-o apenas para soltá-lo em seguida. Felix mordeu a boca, as mãos coçando, vibrando, choques seguidos carregados de uma eletricidade que queimava cruzando toda sua espinha.
Ainda aguardava a resposta, mas Hyunjin não parecia disposto a respondê-lo. Ao invés de substantivos e verbos e artigos ou apenas sim ou não, Hyunjin esfregou a sola do pé no pau de Felix por cima da calça, fazendo-o curvar o corpo para frente e gemer alto com o prazer que irradiou pelo estômago.
— Ah, caralho — Felix disse, olhos fechados.
O pé de Hyunjin, macio, afoito e travesso, esfregou para cima, para baixo e depois pressionou para frente. Felix quase gozou, os olhos revirando por trás das pálpebras. Estava com tanto tesão, tanta vontade de arrancar aquela calcinha maldita e se meter dentro dele, sem se importar com mais nada no mundo, que não media as reações do próprio corpo, fossem elas vergonhosas ou exageradas. E Hyunjin sabia daquilo, por isso brincava daquele jeito com ele.
— O que você quer? — Hyunjin perguntou, ainda deslizando o pé pelo pau marcado no moletom, a calcinha atraindo o olhar de Felix, que não lembrava nem seu próprio nome. — Hm, Felix? — gemeu o nome dele, e foi aí que lembrou daquelas cinco letras insignificantes.
— O que eu quero? — ofegou, sôfrego, aquelas palavras. — Você sabe o que eu quero.
— Não sei, não — balançou a cabeça e deixou a perna cair no colchão novamente, abrindo-se para Felix.
O chiado chulo cruzou novamente os lábios de Felix. Ele inclinou o corpo, deitou-se de bruços e ficou entre as pernas de Hyunjin. Começou a beijar as panturrilhas, os joelhos, escorrendo a língua pela palidez daquela carne macia. No entanto, quando parou de frente para a fruta que pingava seiva e que enchia sua boca d'água, o som doloroso da voz de Hyunjin o fez parar.
— Não — ele disse.
— Porra, por favor — Felix se esfregou no colchão, buscando o alívio roubado por Hyunjin. — Me deixa pelo menos te chupar.
— Não — negou novamente.
— Por quê?
— Porque não.
— Então me faz gozar. Me chupa, se esfrega em mim, qualquer coisa.
Hyunjin respirou fundo. Felix sabia que ele também queria, ou sua mente perturbada o fazia acreditar que aquele brilho sórdido no rosto dele era tesão. De qualquer forma, ele parecia pensar, olhando pela janela e ponderando se daria alguma coisa a Felix como deu naquele sofá.
— Tá — Hyunjin respondeu, enfim.
— O quê?
Hyunjin revirou os olhos em meio a um sorriso. Sem dizer nada, puxou a camiseta e virou de bruços, expondo a bunda redonda para Felix. Era uma visão que tomava o fôlego, aquela coisa macia, pálida e perfeita bem na frente do seu rosto. Felix queria morder, estapear, enfiar seu pau entre ela e roçar nele até vazar pérolas líquidas, mas não sabia o que Hyunjin permitiria.
— Me fala — Felix disse, bêbado por aquela visão. — O que eu posso fazer?
— Pode se livrar dessa coisa nas suas calças, mas não pode colocar seu pau dentro de mim.
— Nem um pouquinho? — Felix perguntou, esticando a mão para apertar com força um dos lados da bunda dele.
O rosto de Hyunjin surgiu por cima do ombro, o lábio inferior entre os dentes, e ele negou.
— Não.
— Ah, qual é....
— É isso ou voltar pro chuveiro — ele disse. — O que você quer? Bater uma punheta bem gostosa e depois gozar na minha bunda ou olhar pros azulejos enquanto pensa em mim?
Felix soprou o ar, pesado e quente, e não precisou pensar mais em nada. Abaixou o cós da calça e tirou seu pau, tão duro e sensível que ele gemeu alto quando a palma quente entrou em contato com a pele seca. Tentou bombear duas vezes, mas doeu. Ele curvou-se sobre Hyunjin, tomando cuidado para que seu pau não raspasse nele, e estendeu a mão até que ela estivesse perto da boca dele.
— Cospe — ele disse.
Hyunjin segurou no pulso de Felix e cuspiu na palma da mão dele, a que não estava machucada. Felix apertou os olhos, espalhando a saliva espessa, e ficou de joelhos, uma perna de cada lado dos joelhos de Hyunjin. Segurou seu pau e começou, enfim, com os movimentos lentos e firmes, concentrando-se em esfregar a glande com o polegar, tudo mais molhado agora. Hyunjin continuava com a bochecha deitada no colchão, as pernas meio dobradas, o fio dental vermelho atrapalhando a visão de Felix.
— Porra — ele gemeu, jogando a cabeça para trás, olhando a bunda, a curva da cintura e as coxas firmes. Ele todo era durinho, gostoso e perfeito, e Felix queria morar dentro dele, mesmo que sequer soubesse a sensação.
Engoliu em seco quando aquele aperto na boca do estômago apareceu. A mão livre apertou a bunda de Hyunjin várias vezes, deu um tapa, deslizou, adorou. Hyunjin sorriu e, enfim, fez alguma coisa. Ele ergueu os quadris, quase de quatro, a despeito de que estava com o tronco inteiro contra o colchão. A bunda se oferecia para Felix, indecente, o fio enfiado no meio da carne macia. Felix gemeu como se tivesse levado um soco no estômago.
Ele se inclinou, ainda se masturbando, e beijou a bunda dele com devoção e fúria ao mesmo tempo, sentindo o gosto da pele quente na boca. Mordeu, deixou uma marca vermelha de dentes, sugou como se fosse literalmente comê-lo.
Hyunjin riu baixo com o rosto enfiado no colchão.
— Isso é contra as regras — falou, e Felix voltou a erguer o tronco.
Aumentou a velocidade da mão, um gemido arrastado, punhetando-se com mais força. O som molhado da saliva se misturou ao barulho das palmadas que ele dava vez ou outra, e seu corpo inteiro tremia em sincronia com os estalos.
— Eu tô... — Felix arfou, encostando a testa na lombar de Hyunjin. — Eu tô ficando doente de você, Hyunjin. De tanto... caralho... de tanto te querer.
Hyunjin arqueou mais as costas, esfregando a bunda contra a barriga de Felix, provocando-o, deixando que a glande roçasse de leve na pele. Felix quase perdeu o que restava do juízo, o pau latejando de dor e prazer.
— Toma um remedinho — disse, quase frio. — Ou o remédio é isso aqui?
Hyunjin esticou a mão para trás, alcançando o fio da calcinha. Arrastou aquele pedaço indecente de pano para o lado, prendendo-o na bunda. Felix viu tudo: rosado, apetitoso, que se contraía para ele, quase pedindo para ser alargado, destruído, machucado pelo desejo de Felix.
Felix grunhiu, quase um animal, o pau escorrendo na própria mão. Os olhos ficaram escuros de tesão, de paixão, de loucura, de obsessão. De Hyunjin.
Sem conseguir mais conter aquilo que crescia dentro dele, Felix gozou com um gemido arrastado e doloroso. Aproximou-se mais para que sua porra escorresse bem no meio da bunda de Hyunjin, melando-o de branco. Seu coração acelerado e a mente doente e traiçoeira diziam para ele meter, para afundar até o fim dentro de Hyunjin, mas se conteve, caindo sentado na cama.
Hyunjin virou de frente, as pernas ainda abertas. Quando Felix achou que estava livre daquele demônio perverso, Hyunjin tirou a calcinha, deixando-a passar pelas pernas. Enfim, ele viu toda a nudez que ansiava: o pau duro apontando na direção do umbigo, as bolas pesadas, cheias de tesão, e sua porra escorrendo pelo buraco delicioso que um dia ia de tomar com a boca, com os dedos e com pau.
— Olha pra mim — Hyunjin disse quando Felix ameaçou fechar os olhos, cansado. — Olha pro que é seu.
Hyunjin levou os dedos longos até o meio, capturando o esperma de Felix que estava ali. Usou a gosma pegajosa para deslizar a ponta dos dedos pelo buraco sensível, enfiando a ponta, tirando em seguida. Felix viu o pau dele, grosso, pulsar, e um sorriso safado de prazer surgiu nos lábios vermelhos. Hyunjin enfiou mais os dedos, empurrando dois para dentro sem dificuldade, e partiu os lábios quando pareceu tocar na doçura dentro dele.
Felix engoliu saliva pela garganta, vendo Hyunjin se fodendo com aqueles dedos compridos e ossudos, mas que não fariam nada que seu pau não pudesse fazer melhor. Gemeu baixinho, murmurou, revirou os olhos e, antes que Felix pudesse confessar sua adoração desesperada por meio de um novo orgasmo, Hyunjin gozou sem sequer tocar no próprio pau. Ele seguiu encarando Felix, metendo a porra dentro dele, sentindo, vivendo, desejando que fosse Felix ali, enchendo-o até que ele virasse um acúmulo macio de fluidos que saiam dele. Já estava mesmo com o sangue e a saliva de Felix dentro dele, então o que mais restava?
A respiração foi normalizando, o corpo tornou-se mole, grogue, e Felix não conseguiu evitar ficar por cima dele, ambas as mãos apoiadas no colchão. Hyunjin piscou os olhos devagar, recobrando os sentidos, enquanto o juízo de Felix já estava longe.
Olharam-se como se pudessem dizer muito, mas não quisessem dizer nada. Felix passou a língua pelos lábios e, antes que Hyunjin pudesse fugir dele, mandá-lo embora, fazer qualquer coisa que negasse o que havia acontecido ali, tomou os lábios vermelhos e molhados com os seus. O beijo foi quente e doce, o gosto de Hyunjin muito característico na língua. Ainda parecia um sonho, ou um pesadelo, ou um delírio acordado.
Felix o beijou com força, enrolou a língua na dele e sentiu-se arrepiar quando os dedos, ainda meio úmidos, tocaram seu pescoço. Os corpos estavam mornos, arrepiados, o que fez os dois gemer quando Felix deixou seu peso cair em cima de Hyunjin para beijá-lo melhor. Deixou uma perna dele agarrada à cintura descoberta, a outra estirada no colchão. Hyunjin bagunçou os cabelos pretos, mordeu seu lábio inferior e pressionou o peito contra ele.
Porra. Estava maluco. Perdido. Encontrado.
Hyunjin não era antítese, mas paradoxo. Ele era e não era, existia inexistindo, morria vivendo, falava calando, sentia reprimindo, despertava dormindo e enchia se esvaziando. Felix não o entendia, mas o queria, o sentia, o viveria em todas as perspectivas que ele conseguisse projetar em sua vida miserável, porque, àquela altura, podia dizer que já o amava.
— Felix — Hyunjin gemeu quando sentiu os beijos em seu pescoço.
Ele levantou o rosto apenas para encontrar os faróis.
— Fala.
— Eu quero uma coisa.
Hyunjin podia pedir qualquer coisa. Felix já tinha matado um homem por ele. Mataria mais mil, faria uma chacina, apenas para vê-lo sorrir.
— Pode pedir o que quiser — sussurrou.
— O que eu quiser? — sorriu de lado, a língua serpenteando pelos lábios.
Felix curvou o pescoço novamente para voltar a se drogar com o cheiro que vinha da pele dele.
— O que você quiser.
Sentiu Hyunjin brincando com os fios do seu cabelo, um carinho distraído, familiar, que fazia Felix querer derreter nos braços dele.
— Tem um lugar — Hyunjin disse, a voz calma e manhosa. — É na saída da cidade, um clube.
Felix ergueu a cabeça, encontrando os olhos dele de novo.
— Um clube?
— Um clube de pessoas como eu, como você — piscou os olhos lentamente. — Quero que você me leve lá amanhã à noite.
— Tá — assentiu, os olhos quase se fechando. — Eu te levo.
— Mesmo? — Hyunjin sorriu, puxando-o para um beijo novamente. — Vai mesmo me levar?
— Vai te fazer feliz? — Felix perguntou entre o beijo, mole diante daquele carinho, daquela manipulação consciente e que ele, tão racional quanto, aceitava.
— Muito — respondeu, enroscando as pernas nos quadris de Felix.
— Então sim.
— Hmmm — Hyunjin gemeu, expondo mais seu pescoço para ele, que continua beijando e cheirando e lambendo sua pele. — Vamos dançar, beber, e você vai poder me beijar na frente de todo mundo.
— Te beijar? — Felix abafou as palavras contra a curva do pescoço de Hyunjin.
— É...
— Na frente de todos?
— De todos.
Felix gostava da ideia. Na verdade, mais do que gostava: sentia uma fome crescendo no peito, uma necessidade primitiva de marcar um território que sequer sabia ser inteiramente seu. Queria que todos, em suas próprias palavras, vissem como aquela criatura diabolicamente etérea era sua.
Então, ele gostava da ideia. Da ideia de, ao mesmo tempo em que faria Hyunjin feliz, faria feliz a si mesmo.
Felix tocou a mandíbula de Hyunjin com uma das mãos e esfregou o polegar pelo lábio dele, vendo-o cerrar os olhos.
— Vou te deixar dormir.
— Certo — Hyunjin respondeu. — Você também tem que dormir. Gozou duas vezes como se fosse um garotinho virgem.
Felix olhou para o lado e passou a língua na boca. Como esperar qualquer coisa além de um comentário ácido como aquele?
— Garotinho virgem — apertou mais a mandíbula dele, mas Hyunjin agarrou seu pulso, repelindo o contato. — Eu pareço um garotinho virgem?
— Parece — ele disse. — Agora vai.
— Eu vou.
Ele iria, mas não sem antes lamber a língua de Hyunjin que estava para fora da boca em uma expressão que misturava malícia e deboche. Sentiu mãos em seu peito, empurrando-o para o lado, e caiu no colchão, o pau ainda para fora da calça, estranhando ainda meio duro. Respirou fundo, esfregou o rosto e viu Hyunjin arrancar a camisa do corpo. Por poucos segundos, contemplou aquele corpo nu. Hyunjin usou a camiseta para se limpar e colocou a calcinha de volta. Felix também cobriu a própria vergonha, ficando de pé. Olhou uma última vez para Hyunjin, que agora alcançava um maço de cigarros perdido no colchão.
Queria ficar e fumar com ele, mas era demais. Aquilo tudo já tinha sido demais. Respirou fundo e saiu, desejando que ele dormisse bem.
Felix, com certeza, não dormiria.
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Mood: Poema - Ney Matogrosso
Hyunjin não dormiu bem.
Acordou no meio da noite, no escuro, tomando um gole do ar devido ao coração acelerado. Suor escorria pelas têmporas, lágrimas pelas bochechas, que nem percebeu ter derramado.
A imagem ainda pulsava dura atrás das pálpebras: Felix indo embora, a visão das costas estreitas, os passos distantes que viravam ecos. O abandono cravou-se no peito como aqueles cacos de vidro no chão da sala mais cedo, cortantes e frios, que poderiam abrir o pulso com um simples toque. Era sempre assim nos sonhos, ou pesadelos fúnebres que o acompanhavam a vida inteira.
O medo de ser deixado para trás o corroía. Era amargo, ardia na língua. Hyunjin sentou na cama, olhou para o corpo coberto por uma camisa de flanela quadriculada, que vestiu ao perceber que o cheiro da que usava outrora não o deixaria dormir sem sonhar com Felix. Mesmo assim, sonhou, e não do jeito bom.
O colchão rangeu abaixo dele. Tentou deitar novamente, mas o teto do quarto pesou como laje de concreto. O silêncio o permitia ouvir cada batida desregulada do coração, a respiração difícil. Aquele breu parecia vivo e respirando com ele.
Hyunjin tocou no pescoço, sentindo um leve relevo do que devia ser um chupão deixado por Felix quando ele estava cheirando e beijando aquela pele sensível. Estalou a língua no céu da boca e prensou os olhos.
Se desse o que ele queria, estaria acabado. Foi assim no pesadelo: beijos, saliva, Felix inteiro dentro dele, gozo e suor. Depois, indiferença. Abandono. Dor.
Os pés descalços tocaram o piso. Os passos não fizeram diferença na casa adormecida enquanto caminhava pelo corredor, as mãos roçando a parede para se guiar. O Senhor Miau deveria estar dormindo, então não se preocupou em tropeçar nele.
A sala se revelou banhada pela luz azul da televisão, o telejornal da madrugada murmurando notícias para ninguém.
Felix estava largado no sofá como sempre ficava quando dormia. O corpo prendendo para o lado, um braço quase tocando o chão. Ao redor dele, os vestígios do que ele era e sempre foi: bitucas de cigarro, uma garrafa de cerveja com um dedo de líquido morno no fundo, uma tigela de lámen com os palitos ainda cruzados na borda.
Hyunjin se aproximou devagar. Ajoelhou-se no chão de frente para Felix, sentindo a textura áspera. Ficou observado o peito nu subindo e descendo, o rosto relaxado.
A mão temerosa se estendeu sozinha, os dedos percorrendo o cabelo desalinhado, analisando as sardas no rosto delicado, mas que sempre estava sisudo. Depois, cruzou a linha da mandíbula e o contorno da bochecha.
— Não era assim que o amor se parecia nos filmes.
Hyunjin inclinou-se sobre ele e deixou um beijo nos lábios entreabertos. Foi coisa pouca, quase reverente, mas carregada de urgência.
Felix abriu os olhos devagar, ainda imerso na neblina do sono. A confusão foi desenhada no rosto dele, a pergunta já prestes a fugir dos lábios. Mas Hyunjin foi mais rápido, pressionando um dedo suave contra a boca dele, impedindo-o de falar. Não precisava de perguntas agora.
A mão de Felix encontrou o controle da TV e a desligou, mergulhando a sala em uma penumbra confortável, apenas o clarão fraco da madrugada filtrando pelas cortinas.
Hyunjin subiu para o sofá, mesmo que não houvesse espaço para ele ali. O corpo se acomodou sobre o de Felix, duas peças de quebra-cabeça mordidas pelos dentes de leite de uma criança, mas que ainda se encaixavam. Os braços de Hyunjin procuraram o pescoço de Felix, acalmando seu desespero.
— Pesadelo — murmurou a única palavra, que foi abafada pela pele morna.
Era o bastante. Não precisava explicar mais nada.
Felix não questionou, apenas pousou a mão nas costas dele, os dedos desenhando círculos lentos por cima da camiseta. O sono voltou a puxá-los, mais gentil dessa vez. As respirações ficaram em sincronia, entrando e saindo. Felix o apertou com força e, mesmo que o peso todo do corpo dele estivesse em cima do seu, nem passou por sua cabeça tirá-lo dali.
Colados um ao outro, a noite se tornou suportável. O pesadelo do abandono se dissolveu na realidade sólida.
Pelo escuro das pálpebras fechadas e pelo cheiro de abrigo, Hyunjin viu um infinito sem presente.
Era Felix.
O suspiro saiu longo, os dedos roçando o assoalho e o vento frio cuspindo pela fresta da janela. Com um resmungo de dor na lombar, Felix levantou. A cabeça latejando no que seria um prenúncio de uma crise de enxaqueca.
Olhou para a sala e não encontrou nada da sua bagunça habitual. O chão estava limpo, nada da tigela de macarrão ou da garrafa de cerveja, muito menos as bitucas de cigarro. Sorriu de lado e tocou no próprio peito. Esfregou os dedos ali, buscando o cheiro de Hyunjin, e os levou ao nariz. Ainda estava lá — sabonete e aquele aroma que ele nunca conseguia dizer o que era. Espreguiçou-se, levantou e olhou no relógio colado à parede.
Já era tarde, mas não se importou. Era domingo e, no dia seguinte, ele voltaria ao trabalho. Podia se dar ao luxo de dormir até quase a hora do almoço, principalmente porque a lembrança da promessa impulsiva de levar Hyunjin àquele clube veio à sua cabeça.
Felix cruzou o corredor, ainda se espreguiçando, e chegou ao quarto. Bateu na porta duas vezes, mas não ouviu resposta, então girou a maçaneta.
— Hyunjin? — chamou, colocando a cabeça para dentro do quarto.
A cama estava feita, mas ele não estava ali. Franziu o cenho e entrou. Foi até a porta do banheiro, mas não ouviu o som do chuveiro, da pia ou do vaso sanitário. Engoliu a saliva pela garganta.
— Hyunjin, está no banheiro?
Sem resposta.
Cruzou o quarto e foi até o armário. Abriu as portas e sentiu uma pontada de alívio quando viu as roupas dele ainda ali, onde ele sempre deixava, ao lado das suas. Esfregou as mãos pelos cabelos e saiu, passando pela sala e indo até a cozinha.
Quando chegou lá, nada. Hyunjin não estava ali, apenas o Senhor Miau bebendo água discretamente em sua tigela.
O que rolou, cara? Ele me deu comida antes de sair.
Voltou à sala, puxando o fio do telefone até o sofá. Os números que teclou já estavam gravados na cabeça há alguns meses.
— Porra, atende — resmungou, a perna direita chacoalhando de nervosismo. — Atende, atende... Jisung!
— Oi, o que aconteceu? — Jisung disse do outro lado da linha.
— É domingo — Felix fechou os olhos, puxando o ar para dentro dos pulmões. — Sabia que você e Minho estariam na casa da Aerin.
— Estamos, por quê?
— O Hyunjin está aí?
— O Hyunjin? Não. Por que ele estaria aqui sem você?
Felix deixou as costas baterem contra o estofado e levou uma das mãos à testa.
— Ele... Ele sumiu. Eu... Acordei e ele não estava aqui. Não sei pra onde ele foi.
— Ele não avisou nada?
— Não, porra — Felix se curvou novamente, as pernas balançando. — Isso... Isso é culpa minha, eu devo ter feito alguma merda.
— Felix, calma — Jisung disse, baixo. — Ele deve ter saído pra dar uma volta, sei lá.
— Não, ele não faz isso. Ele me avisaria, ele...
— Ele precisa de permissão pra sair desse apartamento?
— Não, cacete! Não é permissão, é segurança. Ele pode ficar em perigo e eu preciso saber onde ele está.
— Você está se ouvindo? — Jisung continuou, a voz mais firme. — O Hyunjin é adulto. Quantas vezes vou ter que te dizer isso?
— Você não entende — Felix passou a mão livre pelo rosto, a respiração ficando mais rápida. — Ele nunca saiu sozinho depois do que aconteceu. Eu não sei o que ele pode fazer, quem ele pode encontrar, ou...
— Ou ele pode ter saído pra comprar pão.
— Não, Jisung, porra! — Felix se levantou do sofá e andou em círculos. Queria cruzar a sala toda, mas o fio do telefone o impediu. — Se ele saiu sem avisar, é porque tem algo errado.
— Você está surtando, cara — disse Jisung. — Respira fundo e pensa: vocês brigaram ontem?
— Não... Não, não brigamos. Nós... — ele engoliu em seco, lembrando do que aconteceu na noite anterior, do que fizeram na cama, de como ele o buscou no escuro e sussurrou "pesadelo" antes de procurar seus braços. — Não brigamos.
— Então não tem motivo pra ele ter fugido, não é?
— É, eu acho que não, mas... Por que ele sairia sem avisar? — fechou os olhos novamente. — Jisung, e se ele... e se ele decidiu ir embora? E se ele...
— As roupas dele estão aí?
— Sim, e o gato também, mas...
— Então ele vai voltar — afirmou, parecendo ter certeza daquelas palavras. — Ninguém abandonaria as próprias coisas e sumiria assim.
Felix ficou em silêncio por alguns segundos, apenas o som da respiração pesada ecoando pelo telefone.
— Você quer que o Minho me leve até aí? Podemos ficar com você.
— Não, não precisa — Felix esfregou os olhos, negando. — Eu vou só... esperar mais um pouco.
— Tá bom — Jisung disse baixo. — Mas me liga se precisar de alguma coisa, tá?
— Tá.
— E tenta se acalmar, pelo amor de Cher, Felix. Eu tenho certeza de que ele só saiu pra tomar um ar.
Felix assentiu, mesmo que Jisung não pudesse ver. Desligou e jogou o telefone no sofá. Ficou parado por um momento, olhando para o apartamento cinzento e silencioso. Caminhou até o móvel da TV e pegou um maço de cigarros e o esqueiro ao lado dele. Suas mãos tremiam e precisou de três tentativas para conseguir acender o primeiro cigarro.
A primeira tragada foi longa, desesperada, e só não foi prazerosa porque estava uma pilha de nervos. Andou de um lado para o outro, o cigarro queimando entre os dedos. Os pensamentos não pararam de surgir na sua cabeça, violentos, cruéis.
O cigarro virou cinzas em pouco menos de cinco minutos, mas ele sequer percebeu, porque já estava acendendo o segundo. O gosto amargo na boca não importava, só precisava de alguma coisa para se acalmar.
No terceiro cigarro, Felix já estava considerando sair à procura de Hyunjin. Sentou no sofá, correntes elétricas movimentando suas pernas. Podia ligar para alguém, mas quem? O que diria? Talvez Hyunjin tivesse saído para comprar alguma coisa, mas o quê? Com que dinheiro? E se ele saiu para caminhar como quis fazer na outra noite, por que não avisar? Não brigaram, Felix não disse nada que o assustou, então por quê?
Estava apagando a quarta bituca no cinzeiro da mesinha de centro, o tronco inclinado para frente, quando ouviu o barulho inconfundível da maçaneta girando na porta.
Felix congelou, o coração disparando. Por um segundo, chegou a achar que tinha imaginado o som, então ouviu os passos familiares entrando na sala.
— Hyunjin — ele disse, quase saltando do sofá, quando o viu fechar a porta. — Aí, merda — resmungou, sentindo as cinzas quentes tocarem os dedos.
Levantou do sofá e foi até Hyunjin, parando de frente para ele. Queria perguntar onde ele estava, por que ele havia saído, por que não avisou e tantas outras coisas que perturbavam sua cabeça, mas não disse nada.
Hyunjin estava vestindo uma calça jeans larga, frouxa na cintura, uma camiseta branca e, por cima, a mesma flanela quadriculada que ele estava usando para dormir, aberta. Os cabelos pretos estavam meio bagunçados e ele cheirava estranhamente a álcool gel.
Antes que Felix pudesse perguntar alguma coisa, Hyunjin estendeu para ele o que segurava em uma das mãos. Era um envelope de papel pardo, que logo foi aberto pelos dedos ansiosos de Felix.
— O que é isso? — Felix perguntou, engolindo em seco.
— Exames — Hyunjin falou, mordendo a pelinha da boca.
— Exames? Você...
— Eu fui ao hospital — balançou os ombros — fazer exames.
— Exames? — Felix repetiu, arqueando a sobrancelha.
— É, Felix, exames.
Felix passou os olhos por aquelas impressões. Mesmo que estivesse nervoso e as palavras parecessem voar para fora do papel, conseguiu reconhecer alguns termos que eram quase proibidos de serem ditos em voz alta, que pareciam pecaminosos e profanos. HIV, sífilis, clamídia e outras coisas que as beatas enchiam a boca para falar serem coisa de gay e de puta. Hyunjin, que era gay e que um dia foi puta, provavelmente se preocupava com isso.
Seu coração disparou por motivos completamente diferentes agora.
— Por que... por que você...
— Eu sempre fiz isso a cada três meses. Eu te falei quando você tava me perseguindo.
— Eu não estava... te perseguindo — franziu o cenho, ainda lendo o que estava escrito nos exames. — Aqui diz que está tudo bem com você.
— Porque está tudo bem comigo — suspirou, o rosto solene. — Estou limpo de toda essa merda.
Felix ficou quieto por um instante, olhando dos papéis para Hyunjin. Tudo marcava negativo, mesmo com a informação outrora chocante de que Hyunjin, por vezes, transava sem proteção com seus clientes. Talvez ele tivesse dado muita sorte, talvez ele só fosse cuidadoso com o resto. Felix, de repente, sentiu um alívio percorrer seu corpo.
Hyunjin puxou sua outra mão, colocando sobre a palma suada uma sacola plástica verde. Dentro dela, uma caixa de remédios.
— É pra sua cabeça — ele disse.
— Pra minha cabeça?
Hyunjin bufou, revirando os olhos.
— Dá pra parar de repetir tudo que eu digo que nem um disco arranhado? É pra sua dor de cabeça.
— Como você conseguiu isso?
— O doutor me deu. Ele disse que é uma coisa que você tem que tomar todo dia, não só quando tá doendo.
Felix pareceu lembrar da dor que estava sentindo desde que acordou.
— Hyunjin, remédios para enxaqueca são receitados por neurologistas. Por que o doutor te deu isso?
— Porque disse que eu sentia dor de cabeça e que não ia a nenhum outro médico se não fosse ele — deu de ombros. — Então ele me deu.
Felix assentiu para a resposta de Hyunjin e tirou a caixinha da sacola. Neurovalen, ele leu em letras amarelas. Lembraria, depois, de ler a bula.
Sentindo o coração mais tranquilo, Felix ligou para avisar a Jisung que Hyunjin chegou em casa, recebendo um olhar de "você fez mesmo essa merda?" em sua direção. Depois, passou um café enquanto Hyunjin fazia panquecas. Quando a comida estava na mesa, finalmente teve coragem de perguntar o que estava martelando na sua cabeça.
— Por que você saiu sem dizer nada?
— Porque você tava dormindo.
— Podia ter me acordado.
— Não quis te acordar em um domingo. Você tem trabalho amanhã.
— Eu sei, mas...
— Felix, eu já voltei — Hyunjin largou o garfo no prato, olhando para ele. — E não aconteceu nada.
— Certo — Felix respirou fundo. — Eu só fiquei preocupado.
— Você sempre está preocupado, por isso fica com a cabeça explodindo.
Hyunjin tinha razão, mesmo que Felix custasse a entender. Seria um processo longo, ele sabia, principalmente com a decisão que Hyunjin tomou de trabalhar na mercearia. Felix respirou fundo após um gole de café.
— Amanhã, antes de ir para a delegacia, eu vou te deixar na casa da Aerin.
— Por quê?
— Ela precisa conversar com você sobre o trabalho. Acertar valores, horários...
— Ah, tá bom — balançou a cabeça. — Você vai colocar um rastreador em mim quando eu estiver lá?
Felix procurou algum traço de irritabilidade no rosto dele, mas tudo o que encontrou foi o esboço de um sorriso de canto, travesso. Aliviou-se ao perceber o tom de brincadeira e chutou o pé dele debaixo da mesa, rindo com um pedaço de panqueca na boca.
— Sem piadinhas.
— É sério — Hyunjin disse, olhando para ele. — Você tem que desencanar. Eu sei me cuidar.
— Eu sei que sabe — assentiu, piscando lentamente. — Mas depois do que aconteceu, eu... tenho medo.
— E acha que eu não tenho? — arqueou as sobrancelhas. — Mas o que eu posso fazer? Ficar trancado aqui pra sempre?
— Claro que não.
— Então você precisa relaxar e me deixar voar.
— Voar? — Felix riu, balançando a cabeça. — O que você é agora, um passarinho?
— Aerin disse que sim.
— Um pardal, então?
— Um beija-flor — Hyunjin piscou, parecendo esperançoso. — Ela disse que eu não posso deixar de visitar os jardins porque têm insetos na grama. Carrapatos, eu acho.
— Carrapatos não são insetos.
— Não são?
— Eles são aracnídeos, como aranhas e escorpiões.
— Onde aprendeu isso?
— Na escola — Felix deu de ombros, comendo mais panqueca. — Acho que em biologia.
— Ah, eu perdi essa matéria. Larguei a escola.
Felix assentiu, engolindo o último pedaço de panqueca. Hyunjin ficou em silêncio, brincando com o garfo no prato quase vazio, antes de levantar os faróis para ele.
— Felix — chamou, a voz mais baixa. — Lembra do que pedi ontem?
Felix sentiu o estômago dar uma pequena volta. Lembrava, claro que sim. Hyunjin pediu para ir ao clube, e Felix, entorpecido por ele, sequer ponderou negar.
— Lembro.
— E aí? Podemos ir, não é?
A primeira reação de Felix foi dizer não. No dia seguinte, voltaria à rotina de trabalho, e sair para um lugar desconhecido, fora da cidade, não parecia a ideia mais sensata. No entanto, lembrou das palavras de Hyunjin, uma paráfrase do que foi dito pela sabedoria de Aerin, sobre o beija-flor e os jardins e os carrapatos que eram aracnídeos e não insetos.
Não negaria nada a ele. Não suportaria ver aquele brilho esperançoso dar lugar à decepção.
— Sim — disse, surpreendendo a si mesmo. — Nós vamos.
— Sério?
— Sério.
Hyunjin sorriu, mordendo o lábio inferior. Inclinou-se sobre a mesa e, no mesmo instante, Felix sentiu algo tocar sua canela. Era o pé descalço de Hyunjin, esfregando sua perna em um gesto carinhoso e travesso. Felix sorriu de lado, sentindo uma corrente elétrica subir pela perna, não devido ao nervosismo, mas a algo mais doce.
— Vai ser do caralho — Hyunjin disse, ainda com o pé tocando sua perna.
— Você já foi até lá?
Hyunjin assentiu.
— Uma vez, mas já faz muito tempo.
Felix balançou a cabeça e terminou o café.
O resto do dia passou devagar. Eles ficaram na sala vendo televisão, primeiro um filme antigo no canal aberto, e depois um filme da pequena coleção de Felix — não de pornô.
Hyunjin riu durante as partes engraçadas da comédia escolhida, um som que Felix descobriu adorar fazendo ecos pelo apartamento. Por vezes, Hyunjin esticava a mão e tocava o braço de Felix durante uma cena interessante, ou Felix arrastava os quadris para ficar mais perto dele.
Não se beijaram. Não fizeram nada além daqueles toques casuais, mas havia alguma coisa ali, resquício do que aconteceu na noite anterior. Era a paixão, o tesão e mais um aglomerado de sentimentos que eles reprimiram debaixo da pele como se ela fosse um monte de cobertas quentes.
Felix pensou no que poderia acontecer naquele clube. Pensou no que poderia acontecer no dia seguinte na delegacia. Pensou no que poderia acontecer com Hyunjin na mercearia. No fim, ele só pensava e não sabia de nada, porque precisava viver o presente para descobrir o futuro.
Mesmo assim, no meio de toda aquela incerteza, uma coisa se cristalizou em sua mente como verdade absoluta: viver não era preciso. Hyunjin, sim.
Hyunjin era preciso.
Notes:
Vou dizer ALGO: Oficial Lee tu tá é muito fodido.
Esse clube promete... Se fosse vocês, eu gostaria muito da surpresa ><
Me contem o que vocês acharam, tá bem?
TT: felixsaturnn
tag: #bemjin
Chapter 12: No Seu Pescoço
Notes:
OLHA SÓ QUEM APARECEU! Eu tava muito ansiosa por esse capítulo, e vocês já me conhecem hehehe.
Esse capítulo é muito gostoso, tipo DEMAIS! Aproveitem MUITOOOO ele, porque semana que vem...... ficarei quietinha.
(See the end of the chapter for more notes.)
Chapter Text
Hyunjin estava no quarto se vestindo há cerca de uma hora. Felix começava a pensar que ele poderia ter se afogado na pia ou escorregado no box do banheiro e machucado o quadril.
Não tinha condições de alguém demorar tanto.
Ele mesmo já tinha se vestido com uma calça cargo bege, uma camiseta branca básica e uma jaqueta jeans. Nos pés, sapatos um tanto surrados, mas que serviriam. Não sabia que tipo de clube era aquele e se as pessoas costumavam ir arrumadas e extravagantes, mas, de qualquer forma, Felix não gostava de extravagâncias. O básico sempre foi o bonito e bom para ele, o que era uma terrível contradição quando parava para pensar. Hyunjin, que agora vivia em sua mente, que tinha saliva, sangue e esperma de Felix dentro dele, era o conceito mais personificado da extravagância quando o conheceu, e Felix gostava. Adorava. Amava. Porque era dele.
Olhou as horas no relógio no braço, afastando a manga da jaqueta. Já passava das 21h e eles tinham um trajeto de pelo menos quarenta e cinco minutos até a saída da cidade.
Quando estava prestes a se levantar para bater na porta e perguntar por que porra Hyunjin estava demorando tanto, ele surgiu na sala, e Felix morreu.
Não literalmente, mas Felix morreu em sentimento.
Hyunjin usava uma blusa de mangas longas repleta de furos. Por dentro, uma regata de tule transparente o suficiente para Felix conseguir ver os mamilos e a barriga dele por baixo dela. Nos quadris, uma saia curta de couro preto, com babados na ponta, apertada contra a cintura fina. O cinto que a contornava era cheio de correntes prateadas que iam até as coxas pálidas, balançando quando ele caminhava até Felix, batendo contra a pele. Nos pés, botas pretas como o resto da roupa. Os canos subiam firmes pelas panturrilhas como uma segunda pele, uma elegância predatória. O salto era grosso e alto como um pedestal, e o deixava ainda mais alto e imponente.
No rosto esplendoroso, uma maquiagem preta nos olhos e um batom escuro nos lábios, cremoso. Naquele pescoço, uma gargantilha que parecia ser feita do mesmo material da saia. Felix foi subindo o olhar, e quando parou nos cabelos dele, seu corpo já morto apodreceu.
Os cabelos de Hyunjin estavam repicados, espetados para todos os lados, como se ele mesmo tivesse cortado em um momento de fúria de si mesmo. Mas ele estava lindo. Absolutamente encantador, de tirar o fôlego, de roubar a vida.
Felix realmente morreu. Tudo que ele acreditava, gostava e queria antes de Hyunjin morreu. Seus preconceitos, suas preferências, suas atitudes que Jisung odiava e repelia, morreram. Hyunjin fechou o caixão de pinho e jogou sobre tudo pás generosas de terra, como se ele mesmo fosse o anjo da morte.
— O que você fez? — Felix perguntou, parado de pé na frente de Hyunjin.
Felix se sentiu pequeno, minúsculo perto dele. Com aqueles saltos, Hyunjin ficava muito mais alto do que normalmente era. Felix quis se encolher ainda mais.
— Cortei o cabelo — Hyunjin respondeu.
— De novo?
— É.
— Sozinho?
— O fantasma do seu banheiro me ajudou — disse, tocando nos fios repicados.
Santo Deus, Felix estava com as pernas bambas.
Olhou para as coxas descobertas e seu corpo inteiro formigou. Pensou no que poderia ter debaixo da saia, se ele estava usando aquela porra de calcinha de novo ou se não estava usando nada. Qualquer uma das duas opções o deixava zonzo.
Felix permaneceu parado por um instante, os olhos percorrendo o corpo de Hyunjin. Estava desarmado. Sua mente estava em câmera lenta, processando as curvas, a pele cintilante, o brilho metálico das correntes e dos olhos expressivos.
— Vamos ficar em casa — Felix disse de repente, a voz rouca, baixa e excitada.
Era mais do que um pedido, era uma súplica de alguém que sabia que não conseguiria se conter em público vendo Hyunjin daquele jeito. Porra, como ele iria conseguir dividir aquela visão diabolicamente sagrada com outras pessoas? Como permitiria que todos os homens naquela boate — que eram como ele, que gostavam daquilo — olhassem para o que era seu?
Sem esperar nenhuma resposta, Felix fechou a distância de poucos palmos entre eles. Suas mãos encontraram o cinto de correntes na cintura de Hyunjin, os dedos pequenos se enroscando no metal gelado, puxando-o para mais perto. O barulho metálico das correntes ecoou pela sala.
— Felix… — Hyunjin começou, mas a palavra morreu quando ele afundou o rosto na curva perfumada do seu pescoço.
O perfume era inebriante, morno e doce. Felix respirou fundo, permitindo que aquele cheiro o deixasse bêbado. Suas mãos subiram pelas laterais do corpo de Hyunjin, sentindo o contraste entre o couro da saia e a pele quente das coxas.
— Fica em casa comigo — Felix sussurrou, apertando a cintura dele entre os dedos.
— Não — Hyunjin rebateu, tocando nos ombros de Felix para afastá-lo. Olhou nos olhos do policial antes de dizer: — Eu quero dançar.
— Dança aqui — disse em meio a um sorriso. — Podemos colocar Bon Jovi e dançar na sala.
Hyunjin riu, e quando ele fez isso, seus olhos viraram dois risquinhos.
— Ninguém dança ouvindo Bon Jovi.
— Escolhe outra coisa, então.
— Vamos dançar as músicas do clube.
— Então vou levar a minha arma — Felix argumentou.
— Certo — Hyunjin respirou fundo. — Vai ser bom ter uma arma por perto caso você encha minha paciência.
Hyunjin envolveu o corpo com os braços, ainda com aquele sorriso repuxando de lado. Felix estalou a língua no céu da boca e balançou a cabeça. Estendeu a mão para tocar no pulso de Hyunjin e desmanchou a armadura que ele havia feito no peito.
Hyunjin passou a língua pelos lábios, deixando uma linha de saliva brilhante pelo batom. Inclinou-se para frente até estar da altura Felix, a poucos centímetros da boca trêmula. Colocou a ponta da língua para fora novamente, apenas para roçá-la na borda macia de Felix.
— De onde você veio? — Felix perguntou, os olhos quase se fechando. — Do inferno?
Hyunjin se afastou para responder à pergunta que deveria ser retórica, mas que, para ele, era literal.
— Touché.
E sorriu, fechando as portas do cemitério.
✧
Mood: A Cera - O Surto
O carro de Felix cortava aquela estrada escura, fazendo barulhos estranhos, como se carregassem um animal agonizando no motor. Os faróis amarelados iluminavam a vegetação densa que fechava os lados da pista, criando um túnel de luz em meio à escuridão. No rádio baixo, ouviam uma sequência de “Take on me… take on meeeee…” na voz de Morten Harket, enquanto Felix segurava o volante com mais força do que o necessário. Seus dedos estavam suados, brancos nos nós, e ele podia sentir, a despeito do frio através das janelas, uma gota de suor escorrer pela nuca. Cada vez que olhava pelo canto de olho para o banco do passageiro, seu coração vibrava.
Hyunjin estava recostado no banco, uma perna dobrada, a outra, esticada. As correntes do cinto brilhavam sempre que os lampejos dos postes esparsos aclaravam o carro. Ele tamborilava os dedos no próprio joelho nu, acompanhando e cantarolando a música. Felix achava que era de propósito, toda aquela sensualidade.
A perna que estava dobrada ficou do lado da outra. Felix conseguiu ver porque não conseguia focar inteiramente na estrada de mão única, sempre atraído pela presença de Hyunjin, tão perto.
A tensão era grossa, espessa, pegajosa. Felix respirou fundo e se mexeu no banco, o pau duro na calça provavelmente já estava marcando. Ouviu uma risadinha de Hyunjin e, no mesmo instante, olhou para o lado.
Hyunjin abriu as pernas, as costas contra o banco, a boca entreaberta. Felix morreu de novo, e se perguntou quantas vezes morreria naquela noite. As coxas ficaram mais expostas com a separação proposital e provocativa, uma faixa extensa e obscena de pele escapando através do couro falso.
Felix se mexeu de novo no banco, apertou o volante e fixou os olhos na estrada. Não podia ser tão fraco, mesmo que ele soubesse que não era mais forte do que um filhote quando estava ao lado de Hyunjin. Mas a risadinha veio de novo, e ele não resistiu. Felix moveu a cabeça, a criatura mais deliciosa que viu na vida sentada bem ao seu lado, levantando a barra da saia com os dedos longos e ossudos, revelando mais do que ele escondia ali. Engoliu em seco e olhou para a estrada, apenas para garantir que não se chocariam com um caminhão em alta velocidade. Se fosse o caso, morreria pela última vez, mas ele gostaria de morrer mais algumas vezes antes disso.
— Você sabia que eu tenho uma pinta aqui? — Hyunjin perguntou, olhando para a própria coxa, onde uma pinta marrom e pequena morava.
Felix não estava nem aí para aquele sinal, não estava nem aí para nada. Com a mão esquerda, pressionou o volante, apenas para manter o controle, e a direita foi até a coxa exposta de Hyunjin para apertá-la.
Hyunjin sorriu de lado e afastou a mão que levantava a saia. Observou e sentiu como aquela palma suada e trêmula apertava sua carne, esfregando os dedos pela tez morna. Felix sentiu o calor da pele queimando contra a mão, o couro grosso da saia contrastando com a carne viva da coxa. Passou os dedos por baixo do tecido rígido, os olhos se desviando da estrada para Hyunjin, até encontrar as alças finas da calcinha que ele usava. Sentiu seu pau latejar, a boca encheu de saliva e ele apertou o volante com mais força.
Hyunjin suspirou alto quando Felix esfregou seu pau por cima da renda, contornando a dureza presa dentro daquele tecido minúsculo. O gemido começou como um riso provocante, depois morreu em um som sujo, rouco e cheio de lascívia. Hyunjin se arqueou no banco, jogando a cabeça contra o encosto, os fios repicados roçando nas laterais da testa. A boca entreaberta deixou escapar mais um gemido quando Felix apertou, com a ponta dos dedos, a glande molhada, que deixava um círculo úmido na calcinha.
— Caralho — Felix gemeu entre dentes, desviando os olhos por um instante.
O carro oscilou na pista, uma sacudida brusca, e Hyunjin riu, mordendo o lábio inferior, mas o riso se quebrou quando Felix apertou com mais força por baixo da saia.
— Não para — Hyunjin arfou, os quadris já se movendo contra a mão dele, abrindo-se inteiro, oferecendo-se.
Os gemidos eram curtos, rápidos, arranhados. Felix não conseguia decidir se olhava para frente ou para o lado, mas seu olhar grudou no rosto de Hyunjin — boca molhada, batom escuro, olhos semicerrados, cheios de tesão.
— Ah, Felix… — puxou o ar por entre os dentes, chiando de desejo.
Felix sorriu de lado, feliz em vê-lo e ouvi-lo desmanchando-se por sua causa. Deslizou os dedos pela extensão do pau dele, roçou a palma nas bolas, e Hyunjin se abriu ainda mais, para que Felix tivesse acesso à descida perigosa que levava até seu buraco coberto pelo fio da calcinha.
Deslizou os dedos até lá, massageando devagar enquanto ouvia os gemidos de Hyunjin. O rosto dele estava doce, quente e safado, os olhos fixos em Felix, pedindo para ele continuar. Felix se perdeu ali, nos contornos dele, no som que Hyunjin fazia. Foi foi quando o carro sacudiu novamente.
As luzes de um automóvel cortaram pelo retrovisor. Felix, com o coração acelerado, puxou o volante com força. O carro derrabou na beira da pista, os pneus cantaram alto e o animal no motor, à beira da morte, engasgou. O peito de Felix quase explodiu com o impacto da adrenalidade. Agora, com ambas as mãos no volante, o carro estava endireitado na linha estreita do asfalto.
Estava ansioso, com tesão, louco. Completamente.
Temendo matar Hyunjin como consequência da sua insanidade, Felix parou o carro no acostamento. Assim que o motor cessou, ele levou as mãos até os cabelos, descendo, depois, para o rosto.
Foram apenas alguns segundos entre o quase acidente e a inércia do carro no meio fio. Ainda trêmulo e com o coração disparado, Felix sequer viu quando Hyunjin saltou do banco do carona, cruzou a marcha e passou uma perna para cada lado do seu colo, deliberadamente.
Felix engoliu em seco, piscou várias vezes, e quase chorou de tesão quando Hyunjin afastou a saia para que sua bunda quase nua ficasse encaixada no pau duro sobre a calça.
Hyunjin roçou sobre ele, costas pressionando o volante, o corpo suave e, ao mesmo tempo, feroz. A saia subiu até quase a cintura, revelando o fio fino da calcinha e a pele lisa e pálida da bunda. Rebolou devagar, esfregando-se em Felix enquanto o encarava com aquele rosto perverso.
— O que você quer? — Felix sussurrou, a voz falhando. As mãos, instintivas, foram para os quadris de Hyunjin, apertando com força para guiar os movimentos. — Se não vai me deixar te comer aqui, então por que tá rebolando no meu pau?
Hyunjin inclinou-se para frente, a boca colada na dele, respirações juntas, quentes, cheirando a menta e a cigarros.
— Porque eu tô com tesão — Hyunjin respondeu e sustentou o olhar no dele.
— É? — arqueou uma das sobrancelhas.
Felix acertou um tapa na bunda de Hyunjin, apertando com força o local atingido. Hyunjin riu, quase gargalhou e, em seguida, gemeu quando começou a ondular os quadris com mais força.
— Você vai me deixar louco, porra — Felix chiou. — Olha como você tá se esfregando em mim. Eu não… — gemeu quando Hyunjin lambeu sua orelha. — Eu não vou aguentar.
Hyunjin sorriu novamente, maldoso, os quadris indo para frente e para trás. O barulho seco do couro da saia roçando na jaqueta de Felix preenchia o carro, e a mão de Hyunjin foi até sua nuca, puxando-o para um beijo.
As línguas se enroscaram úmidas, doces e macias. Hyunjin chupou a língua de Felix, gemeu contra a boca dele, rebolando com mais força na mesma medida que Felix empurrava o quadril para cima, quase como se quisesse se enfiar dentro dele mesmo com a barriga das roupas.
Felix mordeu o queixo de Hyunjin, a voz explodindo em um grunhido desesperado.
— Você quer que eu implore?
Hyunjin, com olhos ébrios, mordeu a própria boca e manteve o olhar nele. Nos olhos grandes, cílios pretos da cor de fuligem, as sardas pintando as bochechas e o nariz. Felix pareciam com amor. Com tesão. Com loucura. Felix era bondade e crueldade nas mesmas proporções, porque só alguém muito cruel poderia deixá-lo daquele jeito, vulnerável, desarmado. Mastigou o lábio de baixo e parou com os movimentos no colo dele. A mão rígida segurou na mandíbula de Felix e trouxe o rosto para mais perto, apenas para que conseguisse deixar um selinho molhados e gostoso naquela carne rosada.
— Não — ele respondeu, enfim. — Eu só gosto de te beijar.
— Hyunjin…
Felix estalou a língua no céu da boca, percebendo que ele fugia do assunto de novo.
— No clube, eu quero um drink de morango — ele disse. — Você compra pra mim?
— Um drink de morango? — Felix perguntou, apertando a bunda dele.
— Sim, com bastante açúcar — rebolou mais uma vez, puxando o ar por entre os dentes. — E aí eu vou ficar bem docinho pra você.
— Caralho, me deixa em paz — Felix jogou a cabeça para trás, o sangue fervendo nas artérias, arrancando uma risada maliciosa de Hyunjin. — Eu compro, porra.
— Você compra? — rebolou mais uma vez, e percebeu como Felix estava muito perto de gozar.
— Tudo — a voz saiu estrangulada. — Tudo o que eu você quiser — confessou mais uma vez, tão pateticamente apaixonado que chegava a sentir raiva de si mesmo.
Felix se odiava por ser tão patético, tão submisso a cada capricho daquele demônio. Hyunjin tinha o controle absoluto sobre ele e os dois sabiam disso.
— Felix — Hyunjin chamou, a voz cortante.
Felix o encarou. Morreu de novo.
— Você vai me deixar? — ele perguntou, firme.
— Te deixar? — piscou os olhos, tentando recuperar o foco. — O que… Não, eu… Não.
— Jura?
— Eu juro — assentiu, envergonhado da própria urgência.
Hyunjin continuou sustentando seu olhar, respirando pesado. Felix quase podia ver as engrenagens funcionando na cabeça dele, planejando a própria tortura. Hyunjin se inclinou e deu mais um beijo molhado, obsceno, antes de sair do colo dele, voltando ao seu assento.
Felix engoliu em seco. Ficou olhando para a estrada vazia e escura por cerca de cinco minutos, enquanto Hyunjin olhava pela janela com aquela expressão solene, indiferente, como se não tivesse acabado de destruir Felix por dentro.
Filho da puta. Felix apertou o volante até sentir doer os dedos. Se fosse seguir seus impulsos, Felix abriria o porta-luvas, pegaria a arma que deixou guardada ali e estouraria seus próprios miolos. Seria infinitamente mais fácil do que lidar com aquela cobra peçonhento do lado dele, venenosa, cruel e que, em um maldito paradoxo (por que ele insistia em ser paradoxal?) era o anjo mais doce que já tinha conhecido.
E Felix o amava. Amava com ódio por amá-lo.
Deu partida no carro novamente, parte dele esperando que outro veículo aparecesse na estrada e se chocasse contra aquela banheira velha.
Pelo menos, não seria só Felix a morrer.
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O estacionamento do clube era como um cemitério de carros velhos como o que Felix dirigia e motos barulhentas. À primeira vista, não era um lugar tão chamativo, mas a música que vinha de dentro, abafada pelas paredes grossas, denunciava o que funcionava ali.
Felix desligou o motor e deixou as mãos ainda agarradas ao volante. Havia uma placa neon que piscava no para-brisa, rosa, azul e verde, cores que pareciam infectá-lo. Paradis tremelicava na entrada, e ele não sabia bem se tinham perdido a letra “e” ou se a palavra estava escrita em francês.
— Vem — Hyunjin disse, saltando do carro.
Felix saiu devagar, o jeans da jaqueta quase colando na pele suada. A música continuava vazando pelas paredes, as bactérias chegando aos seus ouvidos. Homens entravam e saíam, pouquíssimas mulheres. Eles usavam couro, metal, gel no cabelo, maquiagem… Felix nunca tinha visto tantas pessoas como aquelas reunidas em um mesmo lugar.
Nunca tendo saído de Jinhae, ele não conhecia muitos gays. Não assumidos, pelo menos. Nunca ia às baladas que Jisung o convidava, iguais àquela, longe do conservadorismo de uma cidade pequena acobertada por pessoas de má índole. Por anos, seu melhor amigo disse que existiam lugares em que ele poderia ser quem ele era, e Felix negou conhecê-los, mas bastou um pedido orgásmico de Hyunjin embaixo dele que ele disse que faria o que ele quisesse. Ele era patético.
Mesmo assim, era estranho. Na delegacia, ele conviva com héteros convictos, que falavam de buceta, que riam de piadas sobre viados, que tinham tesão pelas vadias quase nuas das revistas. E Felix vivia naquele ambiente, quase se misturando a ele, quase sendo parte daquilo. Mas, agora, ele estava prestes a entrar naquele lugar em que ser gay era o normal e não o motivo pelo qual ele levaria uma cuspida enojada na cara. Que irônico.
— Felix — Hyunjin estava a alguns metros à frente. — Vem logo.
A mudança em Hyunjin era quase obscena. Os olhos dele estavam brilhando com uma fome que Felix não lembrava de ter visto nele antes. Ele andava altivo, confiante, os saltos batendo no concreto da calçada enquanto rebolava entre os carros velhos. Felix engoliu e apressou o passo ao ver uma pequena fila de pessoas esperando para entrar no paraíso.
Ficou ao lado de Hyunjin e olhou para cima para ver seu rosto pintado.
— É muito cheio? — Felix perguntou.
Hyunjin deu uma risadinha e ficou de frente para Felix, parando de repente.
— Você tem medo de gente?
— Depende. Vou precisar usar minha arma em alguém?
— Não, oficial. Ninguém vai morrer hoje.
— É, eu duvido.
Ele mesmo já estava morto há muito tempo.
Continuaram andando. O segurança de Paradis era um homem alto, com algumas cicatrizes no rosto. Ele acenou e deu um sorriso safado para Hyunjin quando entraram, e Felix pensou que ele poderia ganhar mais alguns pontos, talvez naquele pescoço comprido.
Dentro, Felix sentiu um soco de sensações. A música cruzava o ambiente e cortava seus tímpanos, luzes estroboscópicas o cegaram, ar podre de suor, fumaça e colônia barata. Os homens dançavam, esfregavam-se uns nos outros no centro da pista, mãos ansiosas explorando, bocas coladas sem vergonha.
No bar, alguns casais quase transavam e, nos cantos escuros, Felix vias sombras entrelaçadas que não deixavam dúvida alguma de que tinha muita gente trepando por ali.
Seu coração batia como se fosse explodir. Era puro terror misturado com uma excitação quase alcoólica. Era como estar no buraco que soube sempre pertencer, mas que tinha passado a vida toda fugindo.
— Primeira vez aqui, gostoso? — uma voz ébria soou ao lado dele, com uma mão grande envolvendo sua cintura sobre a jaqueta.
Felix virou para o lado e deu de cara com um homem de cabelos tingidos de loiro, forte, alto e sem camisa. Ele parecia ser mais velho e a pele nua brilhava de suor. O sorriso, cheio de segundas, terceiras e quartas intenções dizia a Felix que ele queria uma coisa muito específica e não deixaria a oportunidade passar.
— Eu… — Felix tentou dizer, mas Hyunjin, que estava a apenas alguns passos de distância, apareceu com uma cobra, puxando sua cintura de volta para tirá-lo dos braços daquele loiro.
Hyunjin o colocou atrás do seu corpo, protegendo-o com toda aquela altura e pose imponentes, cheio de uma segurança que Felix jurou que tinha morrido com Seunghyun naquela manhã.
— Ele é meu — Hyunjin disse, as palavras saindo doces pelo veneno da serpente que escorria dos seus lábios. — Cai fora antes que eu te arrebente.
O loiro estendeu as mãos, como se dissesse “eu entendi”, e se mandou com um sorrisinho. Hyunjin bufou e olhou para Felix de cima, olhos nublados de… Meu Deus. Ciúmes.
— Não é como dizem? — ele respirou fundo. — Gays e sua promiscuidade.
— Como ele sabia que eu era…
— Todo mundo aqui é bicha — Hyunjin disse como se fosse óbvio. — Não estamos na heterolândia, stalker, então relaxa.
Relaxa. Ok. Ele iria relaxar.
Felix fechou os olhos por um instante quando sentaram, os dois, no bar. Quando abriu, encontrou Hyunjin olhando para ele com algo que poderia ser pena, caso não fosse algo tão cruel.
— Que cara é essa? — ele perguntou.
— É que eu nunca vim a um lugar assim. Muitos estímulos, eu acho.
— Você não gosta da música?
— Nunca ouvi.
— Nem eu — Hyunjin riu. — Vamos beber um pouco, aí você vai se acostumando.
— Não posso beber. Estou dirigindo.
— Ah, qual é? Larga a mão de ser chato.
— Hyunjin, já quase morremos na vinda até aqui, não vou arriscar fazer o mesmo na volta.
Hyunjin se inclinou até o rosto ficar bem próximo ao de Felix. Ele sorriu de lado, voltando às expressões sedutoras.
— Quase morremos porque você estava me apalpando por baixo da saia, seu safado do caralho — riu, tocando os lábios de Felix com o dedo indicador. — Não precisa se embebedar, só tomar um drink comigo.
Felix, com um suspiro derrotado, cedeu.
— Tá, mas só uma bebida.
— Pode me dar dois drinks de morango? — Hyunjin se debruçou sobre o balcão, falando com o barman, um moleque de cabelo roxo e piercing na sobrancelha. — Bem doces.
— Na verdade — Felix interrompeu —, só um drink de morango. Eu vou querer uma cerveja.
O garoto acenou e começou a preparar as bebidas. Enquanto esperavam, Felix seguia repando em Hyunjin, como fazia todos os dias da sua vida há algum tempo. Ele se acomodava no banco alto, a saia subindo perigosamente pelas coxas pálidas, quase arriscando mostrar a calcinha que ele usava. Porra. Ele cruzou as pernas e passou a língua pelos lábios pintados de batom, os mesmos lábios que beijara há algum tempo, que sussurraram aquela pergunta dolorosa.
Você vai me deixar?
Nunca.
— Então — Hyunjin começou quando as bebidas chegaram, colocando o canudo cor-de-rosa na língua —, como é estar em um lugar em que você não precisa fingir que não gosta de chupar pau?
Felix engasgou com a cerveja.
— Caralho, Hyunjin.
— Que foi? — ele riu. — Aqui você não precisa ser certinho como é na delegacia. Aliás, isso me faz pensar que você já deve ter sentido tesão neles, não é? Em quem? No ciclope ou no outro pateta?
— Em nenhum — Felix disse, bebendo mais cerveja para ter algo para fazer com a boca.
— Mentiroso — Hyunjin se inclinou mais perto, o hálito doce de morango chegando até o nariz de Felix.
— Não minto.
— Ah, não? — arqueou a sobrancelha, quase um desafio.
Ele abriu a boca para perguntar alguma coisa, provavelmente alguma provocação que deixaria Felix maluco, mas parou. Comprimiu os lábios e respirou fundo, afastando-se.
Por alguns momentos, ficaram em silêncio, ouvindo a música pop que Felix não conhecia. Quando já estavam na terceira rodada — tanto do drink de morango quanto da cerveja —, Felix percebeu que a saia de Hyunjin tinha subido mais, dando a ele a confirmação de que ele fazia de propósito.
— Quer experimentar? — Hyunjin perguntou, erguendo o copo rosa.
— O drink?
— É — aquele sorriso perigoso apareceu. — Vem cá, experimenta.
Felix ia estender a mão, inocente demais para prever alguma coisa além da entrega despretensiosa do copo, mas como era idiota de acreditar que algo despretensioso poderia vir de Hyunjin... Ele parou entre as pernas entreabertas de Felix, perto, quente. O perfume doce misturado com a leve camada de suor fez sua cabeça girar.
Hyunjin deixou o copo na bancada e segurou apenas o canudo, pressionando a extremidade de cima para fazer pressão e manter um pouco da bebida dentro. Sorriu de lado e, com a mão livre, arrastou a gola da blusa, expondo as clavículas salientes. Felix assistiu, hipnotizado, enquanto ele derramava o drink pela pele, formando um rastro rosa que desceu até sumir dentro da roupa.
— Lambe — ordenou, a voz rouca.
Felix sentiu todo seu sangue descer de uma vez para o pau. Olhou rapidamente ao redor, preocupado com o que pensariam, mas a realização de que ninguém ligava, de que todos estavam fazendo o mesmo, ou pior, o atingiu. Sem forças para resistir, segurou nos quadris de Hyunjin e se inclinou. Passou a língua pelo pescoço macio, seguindo o rastro doce e pegajoso misturado ao gosto salgado da pele.
Hyunjin gemeu baixinho, os dedos se emaranhando nos cabelos de Felix.
— Porra — Felix respirou contra a pele dele.
— Vamos dançar — Hyunjin disse, afastando-se e deixando Felix ali, ofegante e desesperado.
Felix engoliu em seco, pegou a carteira do bolso e tirou algumas notas amassadas, deixando-as sobre o balcão. Não sabia quanto tinha ali, mas não estava se importante em perder dinheiro quando a alternativa era perder Hyunjin de vista.
— Eu não sei dançar essa merda — Felix disse, chegando perto de Hyunjin na pista.
— Eu não sei fazer muita coisa nessa vida — Hyunjin o puxou pela mão —, e não precisa saber. Deixa rolar.
A pista fervia com o calor dos corpos se esfregando. Hyunjin colocou as mãos nos ombros de Felix, movendo o corpo. Seus olhos se encontraram, brilhantes, resplandecendo o que crescia como um câncer entre eles. Paixão, amor, obsessão, qualquer coisa. Era algo e estava ali.
Hyunjin virou e colou as costas no peito de Felix, rebolando contra ele. Felix podia sentir as curvas do corpo dele, os movimentos, a bunda macia roçando no seu pau duro por cima do jeans.
— Para de pensar — Hyunjin disse, jogando a cabeça para trás no ombro de Felix. — Sente a música. Me sente.
Felix fechou os olhos e deixou as mãos deslizarem pela cintura de Hyunjin, puxando-o para mais perto. A música martelava, os corpos ao redor se moviam como ondas batendo na costa. Felix se sentiu vivo, realizado, feliz, mesmo que, no dia seguinte, tivesse que voltar à monotonia da sua vida. Mas Hyunjin ainda estaria lá quando ele voltasse.
Hyunjin virou de frente para ele, os braços envolvendo o pescoço de Felix. Seus rostos estavam a centímetros de distância, as respirações quentes com um leve cheiro de álcool. A tensão que foi crescendo desde que Hyunjin saiu do quarto estava prestes a explodir.
Foi Hyunjin dessa vez. Ele o puxou e suas bocas se encontraram em um beijo desesperado. Felix sentiu o gosto docinho do drink de morango, misturado com o veneno que ainda vazava pela gengiva. Os dentes de Hyunjin puxaram seu lábio inferior com força, arrancando um gemido abafado pelo som da música.
Mesmo que violento, era necessário. As mãos de Felix se enterraram nos cabelos curtos, repicados de Hyunjin, puxando-o, enquanto as unhas dele arranharam sua nuca. Era como se o mundo fosse acabar, um apocalipse iminente que traria sangue e destruição, mas que se foda. O mundo poderia acabar. Felix não ligava.
Hyunjin abriu os olhos e se afastou. Eles se olharam, mil coisas a serem ditas.
— Hyunjin — Felix disse, zonzo de tanto se embebedar dele. — Hyunjin, eu quero falar uma coisa.
Hyunjin piscou, olhando para um ponto atrás do ombro de Felix.
— Você… — Felix continuou, engolindo em seco para renuir a coragem. — Digo, eu…
Parou quando sentiu o corpo dele endurecer, os músculos tencionando. Felix seguiu o olhar de Hyunjin ao perceber que ele não prestava atenção no que estava dizendo, e olhou para trás.
Foi quando Felix viu dois caras sem camisa, um com o pulso fechado na frente do rosto, manchas de pó branco na pele pálida. Enquanto isso, o outro, na frente dele, esfregava os dedos indicador e médio pelo nariz, amassando a cartilagem.
O rosto de Hyunjin ficou branco, da cor do pó atrativo bem na frente dele.
Felix conhecia aquela expressão. Era o tipo puro de pânico e desespero que vem ao reconhecer um demônio que você achou ter deixado para trás.
— Hyunjin — Felix tentou chamar, tirá-lo daquele estado catatônico.
Os olhos dele estavam fixos naquela cena, e Felix quase podia ver a guerra acontecendo na cabeça dele. A luta, a necessidade, a saudade, o medo, tudo ali, deixando-o quase descolado da realidade.
Porra.
Antes que Felix pudesse reagir, Hyunjin o puxou novamente para um beijo ainda mais violento. Como se estivesse tentando se afogar em Felix para não pensar em mais nada, os dentes cortaram o lábio inferior e a língua invadiu boca adentro. Felix sentiu o gosto ferroso do pequeno machucado misturado ao morango, mas retribuiu.
Que Hyunjin se chapasse da sua saliva, se isso fosse mantê-lo longe do inferno branco servido como um banquete logo ao lado.
Mood: I Think I'm Okay - mgk, YUNGBLUD, Travis Barker
— Me tira daqui — Hyunjin disse quando largou sua boca. Era um tom choroso, manhoso, amedrontado. — Me leva… — puxou o ar para dentro, angustiado. — Me leva pra algum lugar que eu só veja você.
Felix assentiu. Queria levá-lo para casa, trancar-se com ele no quarto e abraçá-lo como se ele tivesse cinco anos de novo e estivesse com medo do escuro.
Com o coração palpitando, ele puxou Hyunjin por entre o mar de pessoas, guiando-se por instinto naquela selva suada e quase fétida. Só se deu conta de onde estavam quando viu um símbolo de um vaso sanitário grudado à porta entreaberta, empurrada para dentro por mãos pequenas e ansiosas.
Luzes azuis, quase neons, banhavam o banheiro. Além da música pop que entrava pelas frestas e rachaduras das paredes, Felix podia ouvir o gotejar de uma infiltração, dentro das cabines ou mesmo debaixo da pia. Ali, ele não conseguia saber.
Estranhamente, o banheiro estava vazio. Felix sentiu o alívio anestesiar seu corpo. Quando Hyunjin soltou sua mão, virou para trás e encontrou a fechadura da porta. Trancou, enfim, longe da tentação.
Hyunjin andava em círculos pelo banheiro, a testa suada, as mãos nos cabelos, saliva arranhando a garganta. Ele parou e olhou para Felix, que estava perto da pia. Sob a luz azul, Hyunjin parecia banhado de pecado, lindo em seu desespero e em sua angústia.
— Doí aqui — Hyunjin esfregou o peito sob a blusa esburacada e a que usava por dentro. — Parece que tem… um bicho querendo sair de dentro de mim e… — engoliu, olhando por toda parte. — E fazer… aquilo que eu não faço há quase dois meses.
— Não tem bicho nenhum dentro de você — Felix falou, caminhando até ele. — Você é gente.
Hyunjin negou duas vezes, olhos ébrios e não pelo álcool dos drinks.
— Não sou.
— É gente que tem vício, pecado, medo e desejo. É assim que é a porra da vida, Hyunjin. É uma luta contra o que vai te foder uma hora ou outra.
— Felix, você não entende. Isso — pressionou o dedo indicador duas vezes, com força, contra o local que outrora esfregava — não é uma coisa que vai me foder uma hora ou outra. Isso já me fodeu. Isso me fode todo dia.
— Eu sei — assentiu. — Eu sei que sim e tudo bem. Você pode foder isso de volta.
— Não posso — negou novamente, desacreditado.
Mas como Hyunjin podia desacreditar de si quando ele era a única certeza que Felix tinha na vida? Ele cria em Hyunjin, adorava-o. Ele era o seu deus pagão, lindo em seus saltos e maquiagem e cabelos que eram longos e depois ficaram curtos e que estavam repicados com a ajuda do fantasma do seu banheiro. Faria qualquer coisa por ele, pensou. Qualquer coisa. Sem ressalvas, sem mas, sem qualquer adversativa que pudesse existir.
— Você pode, sim — Felix assentiu, sério.
O chão do banheiro estava úmido, aquela infiltração irritante ainda gotejando. Fedia a mijo, porra, cerveja barata e a bactérias, se é que elas tinham um cheiro. Mas Felix não ligava para o ambiente em que estava, contanto que Hyunjin estivesse bem. E ele não estava.
Felix chegou mais perto dele, puxou o braço direito, trêmulo, e o girou para que as costas arqueadas encontrassem a borda da pia. A mão que segurava o pulso venerado subiu até estar fechada no pescoço longo, ainda meio pegajoso do drink de morango. Olhos nos olhos, hálitos alcoólicos, medo, desejo e vontade de ser bicho maior do que o que vivia em Hyunjin.
— O que você fazia quando queria cheirar e não tinha coca? — Felix perguntou, pressionando o pescoço dele.
Hyunjin piscou os olhos, como se tentasse lembrar.
— Comia — mordeu os lábios e balançou a cabeça. — Batia punheta, sei lá, fazia qualquer coisa que me desse um pouco de prazer.
Felix assentiu, olhos meio molhados de vontade.
— Eu te dou prazer? — Felix indagou. — Quando eu te toco, você se sente bem?
O silêncio de Hyunjin era uma incógnita. Não sabia se para o bem ou para o mal.
— O que você quer? — Hyunjin indagou.
— Me responde — engrossou mais a voz. — Transar comigo te daria prazer?
— Ah, porra — Hyunjin segurou no seu pulso, arrancando a mão que estava fechada no pescoço dele. — Se você quer me comer, melhor tentar alguma outra hora em que eu não esteja querendo cheirar pó.
Ele tentou empurrar o corpo de Felix para se livrar daquela parede que ele formava na sua frente, mas Felix o prensou com mais força contra a pia.
— Me usa — ele disse, com toda a certeza que tinha em sua loucura.
— Para de falar merda.
— Não tô falando merda — rebateu, ainda com a respiração desregulada. — Você quer prazer? — deslizou a mão que outrora apertava o pescoço até os quadris marcados. — Você quer algo que te faça esquecer disso? Então pega isso de mim.
A respiração de Hyunjin ficou mais pesada, mas ele ainda parecia hesitante.
— Você não sabe nada…
— Eu sei de tudo — interrompeu, prensando o corpo dele ainda mais contra a pia. — Você me disse pra parar de pensar, pra te sentir. Então me sente, Hyunjin.
Felix içou os calcanhares nas poças de água infiltrada para que sua boca alcançasse a orelha de Hyunjin. Mordeu o lóbulo, ouvindo-o arfar e engolir a saliva.
— Quando você sentir vontade dessa merda, vem pra mim. Quando você quiser se destruir, me destrói no lugar — deslizou as mãos por baixo da saia, encontrando a carne quente e macia. — Usa minha boca, usa meu pau, usa tudo que eu tenho, porra. Eu sou seu.
— Felix… — Hyunjin tentou falar, as mãos contra a borda da pia, trêmulas e suadas.
— Se vicia em mim — Felix continuou, levantando, agora, a saia inteira, deixando-o exposto para ele. — No meu cheiro, no meu gosto, no jeito que eu reajo quando você me toca. Ah, caralho… — gemeu quando agarrou a bunda de Hyunjin com as duas mãos, apertando-as para o lado sob a ponta afoita dos dedos.
Hyunjin, que estava de olhos fechados até então, olhou para Felix como se o estivesse vendo pela primeira vez. Havia descontrole ali, não pela coca, mas por ele.
— Isso — pressionou o peito de Felix, fazendo-o ficar com os pés colados ao chão novamente — vai me matar do mesmo jeito.
— Vai — Felix assentiu. — Mas eu vou morrer junto.
Hyunjin mordeu os lábios, olhos fixos nos de Felix, tão expressivos e sinceros. Ele assentiu uma única vez, a saia levantada, a calcinha aparecendo, o jeito como Felix o olhava... Era aquela porra de amor.
Maldito, maldito amor, maldito.
Felix apertou mais seus quadris, trazendo-o para frente. Hyunjin puxou o ar por entre os dentes e quase revirou os olhos quando ele o empurrou contra a pia de novo, fazendo-o sentar. Hyunjin partiu os lábios devido ao gelo das gotas de água acumuladas no mármore preto, mas sequer se importou.
Os polegares de Felix, um de cada lado da calcinha, arrastaram-na pelas pernas até os calcanhares, onde ficou sustentada pelas botas pretas. Felix se ajoelhou nas poças d’água, molhou os joelhos e abriu as pernas de Hyunjin.
A boca conheceu a doçura venenosa do pau dele, afundando até o nariz encontrar a maciez lisa da pele cheirosa. O pau dele era grande, batia no fundo, grosso, fazia as bordas arderem, delicioso, fazia-o querer gozar. Felix se afogou naquele pau, apertou aquelas coxas, deleitou-se com aqueles gemidos angustiados e safados na mesma intensidade.
Era como um sonho, chupar o pau de Hyunjin. Sem exageros, era realizar algo que vinha sonhado há semanas. As coxas esquentavam suas orelhas, a glande batia no fundo da garganta, a ânsia subia pelo pescoço, tudo virando um aglomerado profano de prazer humano.
As mãos ansiosas de Hyunjin seguraram seus cabelos, a outra tirou a calcinha dos tornozelos, jogando-a no chão. Felix levantou mais a saia, gemeu com o pau dele na boca, mamou como se estivesse com muita fome e a porra de Hyunjin pudesse alimentá-lo. Apalpou-se por cima do jeans e gemeu com a boca cheia, ouvindo os chiados de prazer de Hyunjin.
Sentiu um puxão forte nos seus cabelos, que quase os arrancaram. Hyunjin levantou sua cabeça até que estivesse olhando para ele, lascívia escorrendo como orvalho por aqueles olhos nebulosos.
— Você parece mesmo um garoto virgem — Hyunjin disse, sorrindo de lado. — Mas chupa muito gostoso.
Felix sentiu o orgulho crescer dentro do peito e sorriu, o queixo sujo de saliva. Não devia sentir orgulho de Hyunjin o chamando de garoto virgem, mas focou na segunda parte.
Hyunjin saltou da pia e caiu de pé sobre os saltos das botas. Encarou Felix, olhando para baixo, e levou uma das mãos ao pescoço dele ao inclinar o corpo. Felix ainda estava de joelhos, como se rezasse para ele.
— Levanta — ele disse.
Felix obedeceu. Ficou de pé de frente para ele, tão mole que parecia um boneco de pano. Hyunjin notou e segurou na sua cintura sobre a jaqueta jeans, colando seus corpos.
— Eu usava muita coca — Hyunjin disse —, então vou ter que te usar muito agora.
— Usa — Felix disse, inebriado. — Usa pra caralho.
— Pra caralho? — repetiu, puxando os lábios. — Pra caralho, seu doente? — estalou um tapa na bochecha de Felix, fazendo-o virar o rosto para o lado.
Felix deslizou os dedos pela leve ardência na bochecha e sorriu, a língua deslizando nos lábios e a cabeça balançando em um sinal positivo.
Hyunjin o encarou, ardendo por dentro, quase ameaçando engoli-lo. O sorriso de canto ainda estava ali, denunciando o vício que latejava sob sua pele.
Ele segurou o rosto de Felix com força, os dedos cravando no maxilar, e o puxou para um beijo sujo. As línguas se enroscaram, dentes raspando, saliva escorrendo pelo canto da boca até o queixo. Hyunjin gemeu contra a boca de Felix e o virou, até que as costas dele batessem contra a pia onde outrora estava sentado.
— Pra caralho — Hyunjin repetiu, a voz arrastada, colada à boca de Felix. A mão deslizou pela cintura dele, pela barra da camiseta, até alcançar a calça jeans. Apertou por cima, sentiu o volume pulsando, e riu baixo, quase sádico. — Se eu te apertar um pouquinho, você vai gozar pra caralho?
— Não — Felix respondeu, arfando e pressionando o quadril contra a mão de Hyunjin.
— Mesmo? — mordeu o lábio inferior, esfregando-o por cima da roupa.
— Mesmo, mesmo — Felix assentiu várias vezes, tomado pelo desespero.
Hyunjin deu um beijo molhado na sua boca antes de começar a desabotoar sua calça. Os jeans desceram junto à cueca, parando nos joelhos. As mãos grandes seguraram com força na cintura e o giraram com força. Felix sentiu uma pressão quase dolorosa quando seu estômago foi pressionado contra a borda da pia, as mãos agarrando o mármore para se sustentar. Hyunjin bateu com a ponta da bota nos seus calcanhares para ele abrir as pernas, os tênis escorrendo nas poças de água, mas ele sequer tentou resistir. Arfando, o coração batia no pescoço.
A borda da pia molhou sua camiseta branca, fria e dura, mas esqueceu o gelo trazido pela água quando Hyunjin se encostou atrás dele, quente, violento, a respiração irregular batendo em sua nuca.
— Você já deixou alguém te comer? — Hyunjin perguntou, apertando a carne macia de Felix. — Hein? Ou você é machão demais pra dar essa bunda?
— J-Já — Felix respondeu, tentando olhar para ele, mas ganhou apenas uma dor no pescoço.
— Ah, é? — Hyunjin riu de novo. Ele estava mesmo se divertindo. — E quem te comeu era gostoso igual a mim?
Felix negou. Não existia, na porra do mundo, ninguém gostoso como ele.
Hyunjin lambeu sua nuca, sua orelha, seu pescoço, deixando um chupão doloroso bem ali. No dia seguinte, estaria roxo, vergonhoso e dolorido.
Felix não conseguia olhá-lo, mesmo que quisesse encarar os faróis nos olhos dele. O espelho da pia, no quase breu, deixava-o ver muito pouco do rosto dele. Mesmo assim, ouviu o som da boca gostosa puxando saliva, que pingou espessa na mão dele duas vezes. Felix ouviu o farfalhar do couro da saia, o arrastar dos saltos na cerâmica encardida do chão. Ouviu, como uma tortura, o som molhado da saliva deslizando pelo pau dele.
Apertou os dentes quando sentiu a ponta do pau deslizar no meio da sua bunda, um gemido rouco escapando, antecipando o que viria.
Pelo espelho, Felix mal conseguiu vê-lo olhando para baixo, para onde seu pau deslizava. Hyunjin segurou nos seus quadris com força, dedos cravados. Empurrou para dentro de uma vez. O corpo de Felix se abriu em um choque cruel, a ardência queimando por dentro, como se estivesse sendo rasgado. Um grito ecoou pelo banheiro vazio, abafado pela música distante.
Doía. Porra, doía pra caralho, mas era gostoso nas mesmas proporções.
Hyunjin pressionou o corpo contra ele, enfiando tudo, a voz colada à sua orelha.
— Você aguenta, eu sei que aguenta — Hyunjin disse, aquecendo-se.
Felix gemeu alto, o corpo inclinado até que a bochecha encostou no espelho manchado sobre a pia. Os olhos se fecharam, as lágrimas ardendo no canto dos olhos, querendo escorrer quente até a boca aberta. Ele sentiu Hyunjin latejando dentro dele, um prazer que arranhava, que sangrava — e poderia sangrar.
Eles dois já eram sangue um do outro mesmo.
Hyunjin começou a se mover, os estalos de pele batendo ecoando contra o mármore. As estocadas eram secas, duras, os saltos rangendo no piso. Felix se curvou, quase desmoronando sobre a pia, mas Hyunjin o segurou de pé, uma das mãos agarrando seus cabelos e puxando a cabeça para trás.
— Olha pro espelho — Hyunjin ordenou, a voz cheia de tesão. — Olha pra você.
Felix obedeceu, o rosto se afastando do vidro. Encarou seu reflexo borrado: olhos vermelhos, boca aberta soltando sons que mal pareciam humanos, a dor se misturando ao prazer bruto, cada investida arrancando gemidos mais desesperados. No espelho, manchas de água, saliva e algo que parecia ser sêmen seco.
Hyunjin riu, puxando os quadris de Felix para trás para enfiar mais fundo e ouvi-lo gemer.
Firmou ainda mais os cabelos entre os dedos, o pescoço de Felix pendendo para trás em uma curva dolorosa. Hyunjin colou a boca ao ouvido dele e, com uma voz suja como aquele banheiro, sussurrou:
— Quem parece uma puta agora, Oficial Lee?
Felix tentou responder, mas tudo que saiu da sua garganta foi uma voz embolada. Seus dentes morderam o próprio lábio já machucado. Hyunjin não parava. O pau de Felix queimava de tesão, ansioso por qualquer alívio. Por isso, tentou levar uma das mãos até a dureza entre as pernas, sentindo os pelos se emaranharem entre os dedos até atingir a glande molhada. Gemeu ainda mais forte quando começou a se masturbar, muito embora seu ritmo fosse bem diferente de como Hyunjin metia.
Hyunjin rosnou contra sua orelha, puxando seu cabelo com força, obrigando-o a olhar o para o reflexo de novo. Tudo que Felix conseguia ver era a si mesmo, como se o reflexo de Hyunjin fugisse daquele espelho cinzento.
— Se toca, vai — Hyunjin murmurou, a voz suja de prazer. — Goza sentindo meu pau te fodendo.
Felix arfou, sem ter outra escolha. Mesmo se tivesse, não optaria por ela. A mão subia, descia, desesperada e trêmula. O corpo arqueava quando Hyunjin empurrava. O som, imundo, denunciava pele com pele batendo, respiração falha, saliva e gemidos se misturando. O banheiro, que antes cheirava a mijo, agora cheirava a tesão e a pecado.
— Olha pra mim — Hyunjin virou o rosto de Felix para o espelho de novo.
Mas olhar para ele como? Felix só via seu próprio reflexo.
— Não consigo… — Felix gorgolejou um gemido. — Não consigo te ver.
— Consegue, sim — Hyunjin apertou com mais força sua cintura e deixou outro chupão no seu pescoço. — Olha.
Felix olhou novamente. Sob a névoa do reflexo e do vapor da respiração batendo contra o vidro, ele viu seu próprio rosto, contorcido de prazer. Piscou e, quando abriu os olhos, viu Hyunjin.
Hyunjin gemendo daquele jeito, apertando a pia, empinando-se para ele, que metia fundo lá dentro. Felix se viu atrás, empurrando, apertando, xingando. Depois, era ele de volta ao mesmo lugar, apenas para, no segundo seguinte, ser de novo ele metendo em Hyunjin.
Não soube quantas vezes sua mente girou, voltou ao início, foi para o final, perdeu-se no caminho. Felix não sabia se era ele, se era Hyunjin, se era ele em Hyunjin, se era Hyunjin nele.
No fim, eram e não eram — aquele maldito paradoxo de novo.
Felix gritou, abafado. Gozou na mão, a porra pingando na água do chão, ao mesmo tempo que Hyunjin desaguou nele.
O corpo pesou sobre seus quadris, os movimentos parando pouco a pouco, ainda arrastados, ainda moles, ainda doendo. Hyunjin puxou o pau para fora, arrastando junto semen e sangue, e apoiou as mãos na pia. Os beijos no pescoço de Felix começaram lentos e permaneceram meio ébrios, carinhosos.
Agora, sim, Felix conseguia vê-lo no espelho. Conseguia ver os dois.
Mood: Metamorfose Ambulante - Ver. Ney Matogrosso
— Foi mal — Hyunjin disse, apoiando a testa no ombro tensionado.
— Pelo quê? — Felix indagou.
— Por… sei lá — balançou a cabeça, as palavras fugindo.
Foi mal não era a primeira coisa que Felix desejava ouvir depois de transar com Hyunjin. No entanto, ele mesmo sequer sabia o que dizer depois daquilo.
Ainda sentia ele escorrendo de dentro, melando as pernas. Tirou a jaqueta e a virou do avesso. Limpou-se como pôde, sob o olhar desconfiado de Hyunjin, que, após lavar as mãos, enfiou o dedo mindinho entre os dentes. Felix subiu a cueca e as calças e arrumou a camiseta.
A calcinha de Hyunjin estava ensopada na poça de água suja. Ele não voltaria a usá-la, mas ainda estava de saia. Ao perceber que, agora, ele ficaria sem nada por baixo daquele tecido obsceno, Felix virou a jaqueta para o lado certo e foi até ele, amarrando-a na cintura fina.
— O que é isso? — Hyunjin perguntou, olhando para as mãos de Felix fazendo um nó em sua cintura com as mangas da jaqueta.
— Você não vai voltar pra lá sem calcinha e com essa saia minúscula.
— Ah, certo — Hyunjin arqueou as sobrancelhas. — Que tal mijar em mim? Assim você marca território.
— Cala a boca.
Hyunjin tocou no queixo dele, fazendo-o erguer os olhos para encará-lo.
— Não me manda mais calar a boca, eu já falei.
Felix olhou para ele, ainda processando o que tinha acontecido. Mesmo proferindo aquelas palavras duras, que impunham uma autossuficiência que Felix achou que ele tinha perdido, Hyunjin parecia mais calmo, algo novo nos olhos dele, uma intensidade e uma chama que nada tinha a ver com aquela coisa branca impregnada nas costas da mão daquele cara.
— Desculpa — Felix murmurou, passando a mão pelos cabelos desarrumados.
— Não precisa — Hyunjin permaneceu na frente dele, mãos se esticando para arrumar os cabelos pretos que Felix não tinha conseguido colocar no lugar. — Você conseguiu me fazer esquecer.
Felix fechou os olhos quando sentiu os dedos longos de Hyunjin nos seus cabelos, um carinho inocente depois de toda aquela sujeira. Eles deveriam estar destruídos, principalmente Felix: cheio de chupões, mordidas no ombro, como se tivesse sobrevivido a uma guerra.
Paradis continuava fervilhando quando voltaram. A música ainda tocava alta, os corpos ainda se esfregavam na pista, mas Felix via tudo diferente. Não parecia mais assustador. Depois do que viveu naquele banheiro, nada mais parecia.
Eles sentaram no bar de novo. Hyunjin pediu outro drink de morango, que Felix comprou sob a promessa de que seria o último da noite. O barman os olhou com um sorriso cúmplice. Ele já viu muita gente voltando do banheiro naquele mesmo estado, com aquelas mesmas marcas, mas poucos com aquele mesmo olhar.
— Tem um cigarro? — Hyunjin perguntou, arrastando o banco para ficar mais perto de Felix.
— Tenho — Felix assentiu, pegando o maço amassado do bolso da calça.
Ele tirou dois cigarros e colocou um deles entre os dedos, estendendo o maço para Hyunjin. A chama vermelha do isqueiro fez uma sombra nos rostos logo em seguida.
Felix tragou com força, e a nicotina anunciou seus sentidos por apenas alguns segundos. Hyunjin sugou a fumaça para dentro, as bochechas encolhendo e os olhos se revirando por um instante.
Hyunjin tinha gostado? Felix pensou. Tinha sentido tanto prazer quanto ele sentiu?
— Não sabia que gostava de fazer assim — Felix comentou, girando o cigarro entre os dedos.
— Assim? — Hyunjin indagou, engolindo. — Você diz foder?
Felix balançou a cabeça, lábios meio crispados.
— É bom — respondeu, com as pernas abertas protegidas pela jaqueta de Felix, mas ele ainda não conseguia esquecer de que, por baixo daquela saia, ele estava sem calcinha. — Vem cá, quero te dizer uma coisa.
Felix olhou ao redor, desconfiado. Deu mais uma tragada e prensou o cigarro em um cinzeiro de metal próximo ao copo vazio de Hyunjin. Caminhou dois passos até ele, trilhando o mesmo caminho que ele fez quando o provocou com aquele drink de morango. Parou entre as pernas abertas, encarando-o.
Hyunjin olhou para baixo e mordeu a boca. A mão dele, que não segurava o cigarro, meteu-se entre eles e apertou o pau de Felix por cima da calça. Felix arregalou os olhos, segurando no pulso dele, tentando ver se alguém tinha visto. Hyunjin riu de lado e beijou seu queixo, novamente querendo dizer que ninguém ligava para nada ali.
— Você é maluco? — Felix perguntou, ainda segurando no braço dele. Hyunjin não tirou a mão de onde estava, fazendo um leve carinho sobre o jeans.
— Eu ia te dizer… — Hyunjin começou, tragando mais uma vez e soltando a fumaça no rosto de Felix. — Que mesmo depois de te foder, o que eu mais quero é sentar nesse seu pau gostoso.
O cigarro quase escorregou dos dedos de Felix. Ele tossiu, engolindo a própria saliva, desconcertado com a naturalidade excitante daquela confissão.
— Você quer? — Felix perguntou, mas a voz saiu mais rouca e abafada do que ele queria.
Hyunjin não desviou o olhar, pálpebras baixas, pupilas carregadas de uma calma suja, lasciva. A ponta do cigarro queimava entre seus dedos, mas a outra mão deixou o pau de Felix. Segurou no pulso dele, levando-o até sua língua esticada para fora da boca. A saliva quase ácida melou os dedos de Felix, enquanto todos dançavam, beijavam-se e viviam suas próprias vidas ao redor deles. Que se foda, Felix pensou. Se virem, é ainda melhor. Assim, saberão que ele é meu.
A mão de Felix se enfiou dentro da saia, as pernas de Hyunjin abertas o suficiente para ele encontrar o lugar certo. Os dedos levemente úmidos tocaram-no bem no meio da bunda, e Hyunjin partiu os lábios, rindo pela perversidade do que faziam na frente de todos.
— Não tem ninguém vendo? — Felix perguntou, mordendo o lábio e empurrando o pulso para frente, para forçar as pontas dos dedos para dentro.
— Todo mundo tá vendo — Hyunjin respondeu, solene. — Você vai me comer tanto, tanto, tanto — gemeu, envolvendo o pescoço de Felix com as mãos.
— Vou, eu vou sim — assentiu, sentindo o calor envolver seu dedo. — Hoje?
Hyunjin riu, quase gargalhou. Balançou a cabeça.
— Não, hoje não.
— Por quê?
— Porque são três da manhã — ele disse, remexendo-se na cadeira, ainda com aquela expressão safada de quem estava louco para transar de novo. — E daqui a pouco você tem que voltar a fingir que gosta de comer buceta e que não deu pra mim no banheiro sujo de uma boate de bichas.
Hyunjin deu uma última tragada no cigarro e o desmanchou no cinzeiro. Felix estalou a língua no céu da boca, respirou fundo e se afastou, tirando a mão de dentro da saia dele e o dedo de dentro dele.
Eles caminharam juntos para fora do paraíso, desviando de corpos suados, de bocas coladas, do cheiro de bebida derramada no chão. O ar da madrugada bateu frio quando saíram, e o caminho até o carro pareceu mais longo do que realmente era.
No caminho de volta, ficaram em silêncio. Ligaram o rádio, sorriam um para o outro, Hyunjin fazendo carinho na orelha de Felix. Carinho.
Quando Felix olhava para Hyunjin, via um rosto sardento e lábios de coração. Quando Hyunjin olhava para Felix, via cabelos repicados e olhos dissimulados. Era o que acontecia quando as fronteiras se dissolviam, quando um habitava a pele do outro, quando Felix era Hyunjin e Hyunjin era Felix.
Não sabiam mais onde terminava um e começava o outro.
Talvez aquele não fosse o conceito normal de sei-lá-o-que que sentiam.
Talvez humanos não amassem daquele jeito. Talvez fossem bichos, desesperados e loucos.
Ou talvez fossem só reflexos, reconhecendo-se naquele espelho manchado de suas vidas, que refletia, cinzenta, a intimidade crua da paixão.
Notes:
E chegou o momento que todos esperavam: Oficial Lee fodido do jeito q ele merece ><
Até quarta-feira com o capítulo 13!
tt: felixsaturnn
tag: #bemjin
Chapter 13: Sereia
Notes:
(See the end of the chapter for notes.)
Chapter Text
Felix acordou como quem acorda de um sono bom, que descansa, que manda embora as olheiras e a indisposição. Acordou com a sensação quase inédita no peito de que estava tudo bem acordar, que a vida não lhe espancaria naquele dia, que seria melhor.
Acordou com dedos se enroscando no seu cabelo. Estava confortável, mesmo jogado no sofá duro. Quando abriu os olhos, inevitavelmente, sorriu. Hyunjin estava sentado no chão, à beira do sofá, a bochecha sobre uma das mãos, o rosto na horizontal enquanto o olhava dormir e se distraia brincando com os fios embolados. Olhos e rosto serenos como os de uma criança, inocente, doce, amável. Amável. Felix o amava.
Quando chegaram de madrugada, Hyunjin cumpriu o "hoje não".
Foi para o quarto, lavou a cara e tirou as roupas. Voltou à sala vestindo calças e camiseta de Felix, como se retribuísse a confissão ébria que recebeu no clube: sou seu. Era a resposta dele. Era o escancaramento mais sincero de seus sentimentos.
Certo. Também sou seu.
Ele disse que não estava com sono, que iria para o quarto depois, e pediu para ficar sentado no chão olhando revistas sob a luz que vinha da janela. Felix deixou.
Mas Hyunjin não ficou olhando revistas, não ficou fazendo nada além de velar o sono tranquilo de Felix, que em breve teria que acordar para a interpretação de policial novamente.
Horas depois, Hyunjin continuou no mesmo lugar. Não dormiu. Ficou olhando para Felix, para o aglomerado de sardas, para os lábios ressecados, para o peito que subia e descia, para as mãos jogadas para o alto, para o ronco eventual que cortava a boca entreaberta. Ficou lá, obcecando-se por ele.
— Oi — Felix disse, esperando um sorriso de dentes meio amarelos, as rugas nos olhos e as bochechas saltadas. — Você acordou muito cedo.
Hyunjin piscou os olhos devagar, o dedo indicador ainda fazendo espirais no seu cabelo, puxando com pouca força.
— Acordei — mentiu, ainda do mesmo jeito. — Você sonhou?
— Sonhei — Felix bocejou, espreguiçando-se. — Sonhei que era perseguido por uma carpa Koi laranja.
— Uma carpa Koi? — Hyunjin fez um bico. — O que é isso?
— É um peixe japonês.
— Um peixe não tem patas. Como poderia te perseguir?
— Com as nadadeiras, eu acho — Felix respondeu em meio a outro bocejo. — Ah, que merda.
— O quê?
— Tenho que levantar.
— Hm.
— O quê?
— Nada.
— Não quer que eu levante? — Felix arqueou uma das sobrancelhas, enfiando os dedos nos cabelos dele.
— Não quero, não.
— Mas eu preciso.
Hyunjin puxou o ar, inclinou o corpo e deitou a cabeça no peito de Felix, braços estirados para baixo. Felix riu, meio surpreso, pego desprevenido.
— Tenho que trabalhar — Felix disse. — Você sabe, fingir que gosto de buceta e que não dei pra você ontem.
Hyunjin deveria rir. Felix disse aquilo não porque achava engraçado, mas porque Hyunjin achava. Mas ele não riu, apesar disso. Continuou com o rosto no seu peito, um bico nos lábios e olhos fixos no seu rosto.
— Não quero — ele disse.
— Não quer o quê?
— Que você vá.
— Mas, Hyunjin, eu...
— Sei que precisa, mas não quero.
Felix piscou e engoliu o gosto amargo do sono pela garganta.
— Por quê?
— Não quero ficar sozinho.
— Você vai ficar com a Aerin. Vai aprender o que precisa sobre seu novo trabalho.
— Não quero ficar longe de você.
Aquelas palavras tocaram muito fundo em Felix. A nuca arqueada caiu no travesseiro novamente. Olhou para o teto e, por um instante, quis ver através dele. Mesmo que fosse enxergar a casa do vizinho de cima, fingiria que poderia ver o céu, talvez lá tivesse alguma resposta para aquela coisa que surgiu dentro do seu peito.
Já tinha assumido: amava Hyunjin, mas aquilo era amor? Aquela náusea vertiginosa ao ouvir que Hyunjin não queria ficar longe dele?
— Também não quero ficar longe de você.
Hyunjin baixou os olhos, as pálpebras quase translúcidas, algumas veias azuis dançando por ali. Ele se moveu, arrastou os pés descalços pelo chão para tomar um pequeno impulso e selou os lábios de Felix. A boca não foi para o lado, não foi aberta, a língua não se meteu — não era assunto dela. Hyunjin colou nele e ficou. Não vai, não, não vai, não, aquele beijo dizia.
Felix também não queria ir. Queria ficar na claustrofobia daquele apartamento, antes tão odiada. Queria ficar o dia todo vendo Hyunjin rindo do Pica-Pau, olhando revistas que ele já tinha lido mil vezes, cozinhando e xingando a lavanderia.
Felix queria uma vida com ele, mas não podia abdicar da sua vida ainda. Talvez um dia, mas ainda não.
— Vou fazer café — Hyunjin disse, esfregando o nariz no rosto de Felix quando deixou de beijá-lo. — O que você quer comer?
— É pra ser sincero? — sufocou uma risada.
— Não estou no cardápio.
— Nesse caso, o que você quiser cozinhar.
Hyunjin assentiu. Esqueceram aquilo, o desgosto de Hyunjin por ficar só e o de Felix por deixá-lo.
Felix voltou à sala vestindo o uniforme azul que já não causava orgulho ou coisa alguma. Comeram juntos, em silêncio. Depois, Hyunjin tomou banho e voltou pronto para sair. Usava suas roupas de novo.
Também sou seu.
Ele cheirava a vida nova, Felix pensou. Uma vida longe de tudo o que ele conheceu, que passou, que suportou.
No caminho até a casa de Aerin, ouviram no rádio uma das fitas de rock que Hyunjin gostava. Ele foi cantarolando o caminho todo, cutucando a bochecha de Felix várias vezes.
— Você sabe essa letra — ele disse, empurrando o rosto de Felix.
— Não sei. O astro do rock aqui é você.
E ele continuava cantando, como se não tivesse quase choramingado no seu peito uma hora atrás.
Pararam de frente à cerquinha branca. Aerin estava esperando à porta, vestida em um roupão cor-de-rosa, acenando para eles.
— Eu te busco às 17h, quando sair da delegacia — Felix disse.
Hyunjin, virando para a janelinha, assentiu.
— E se eu quiser ir pra casa?
— Ir pra casa?
— Se eu... — Hyunjin engoliu e fechou os olhos. — Se eu não conseguir?
— Você vai.
— Responde.
— Pede pra Aerin ligar, ela tem o número do telefone da minha mesa — respondeu, sentindo que Hyunjin precisava daquela segurança. — Eu venho te pegar.
— Tá — respirou fundo, colocando a mão na porta para abrir.
Felix não soube por que esperou um beijo de despedida, mas ele não veio. Hyunjin olhou para ele e sorriu.
Ele sorriu. Lindo, doce, Hyunjin.
Como aquele rosto limpo, viçoso, fresco, era o mesmo da noite passada? Como aquele sorriso terno era o mesmo sorriso que o desafiava? Como aquelas mãos que sumiam dentro da camisa branca de flanela eram as mesmas que enfiaram a mão de Felix debaixo da sua saia? Como aquele corpo frágil que saía porta afora era o mesmo que o dobrou sobre a pia e o fodeu?
Felix bateu a testa na buzina, fazendo ecoar o barulho de um bicho se afogando. Precisava trocar de carro. Talvez no próximo ano. Hyunjin se assustou com o barulho e olhou para trás, já atravessando o portão. Felix abanou a mão, dizendo que não tinha nada para ele ver e girou a chave na ignição.
Com o animal engasgando depois do afogamento, partiu em direção à delegacia, onde tudo começou.
Seria um dia longo.
✧
Estar de frente para aquela delegacia era mais amargo do que nostálgico.
Não fazia tanto tempo, mas o frescor de seis anos atrás, quando era um recruta, realizando um desejo alheio — dos pais, do povo todo — já não existia.
Perdeu o tesão, alguns diriam. Acomodou-se, sua mãe diria. Hyunjin, Felix diria.
Cruzou a porta, o cheiro de desinfetante de limão invadindo seu nariz. Que ótimo. Sequer o cheiro havia mudado.
Aquele aroma cítrico e nauseante foi cortado pelo cheiro de um perfume caro. Felix imaginava o preço porque nunca tinha sentido na vida, e ele já estava quase gabaritando as colônias baratas do mercado.
Era cheiro de riqueza, Felix pensou. Cheiro de importância, de moral, de bons costumes, de Deus, família e hipocrisia.
Seguido do perfume, uma tosse seca, carregada de um ranço nojento. Felix parou. Olhou para frente, o rosto do prefeito Jo a centímetros do seu. Estava perto o bastante para que ele estendesse o pulso e acertasse um soco de nocaute naquele nariz empinado e naqueles olhos canalhas que um dia tiveram coragem de olhar para Hyunjin.
O prefeito. A autoridade máxima daquela porra de cidade fodida.
Felix apertou os punhos, as narinas dilatadas, os olhos trêmulos, o corpo ardendo de raiva repentina que surgiu como uma bomba disparada direto em suas entranhas.
— Felix — disse Changbin, ao lado do prefeito.
Felix sequer olhou para o policial. Sustentou o olhar em Insung, que tossiu de novo em um lenço branco. Quando ele afastou o tecido reluzente de cetim da boca escura e seca e destruída por qualquer merda que crescia dentro dele, Felix conseguiu ver, escarlate, pegajoso, seboso como ele mesmo era, o sangue que veio rasgando a garganta.
— Felix? — Changbin disse de novo, a voz funda soando como um eco na entrada da delegacia.
Quase podia imaginar que os olhos daquele que havia sido mandado à merda por Felix na frente da própria mulher estavam indagativos. Por que porra esse desgraçado não cumprimenta o prefeito?
Por que Felix cumprimentaria o demônio de terno e gravata que fez Hyunjin perecer naquela estrada fria, vomitar o pouco que tinha no estômago, apanhar na cara, chorar como um condenado à morte? Por que Felix estenderia a mão para outra coisa senão matá-lo se ele tinha tocado em Hyunjin? Se ele tinha xingado, se ele tinha o tratado como um vírus sujo e doentio, daqueles que viviam dentro dele, que o faziam tossir sangue e cheirar como um defunto a despeito do perfume caro?
Mas Changbin não entenderia. O que Felix sentia ninguém entenderia.
— Oficial Lee — a voz do demônio soou, pastosa. — É um pra... — tossiu no lenço, mais sangue doente cuspido. — É um prazer vê-lo. Soube que hoje é seu retorno após a licença.
Silêncio.
— Felix, cara — Changbin riu meio nervoso, indo até Felix para tocar em seus ombros em um abraço desajeitado. — Ele deve estar...
— O que faz aqui? — Felix perguntou, duro e inexpressivo.
Jo Insung endireitou os ombros. Dobrou o lenço, guardou no bolso do paletó e empinou o nariz.
Ele sabia quem Felix era. Sabia que aquele policialzinho intrometido à sua frente era o responsável pela chuva de repórteres e policiais em Jinhae depois que estourou o coração de um infeliz que ajudava a manter a cidade em ordem.
Oferta, demanda, silêncio, dinheiro, prazer, contas pagas, cidadãos felizes que gozavam o estresse nas vagabundas de Seunghyun. Era uma engrenagem antiga, bem lubrificada, que rodava sem problemas até o fatídico dia.
Tudo estava muito bem antes de Felix se obcecar por aquela puta.
Tudo estava indo muito, muito bem antes de Hyunjin olhar para o seu pau e decidir que era gente. Antes de chorar as pitangas de um coração machucado para um policial que achava saber de alguma coisa sobre Jinhae.
Que ele estivesse fazendo bom proveito daquela puta maldita, Insung pensou, porque o conto de fadas viraria história de terror muito em breve.
— Vim verificar alguns relatórios — disse Insung, solene.
Felix arqueou as sobrancelhas, rugas de preocupação marcando na testa.
— Relatórios?
— Estatísticas que mudaram após algumas investigações.
Uma gota de suor escorreu da testa de Insung. Náuseas surgiram de repente, aquele rebuliço no estômago, a raiva piorando seu estado.
Felix ia abrir a boca para falar, mas Insung ergueu o dedo indicador no mesmo instante em que pegou o lenço de volta, tossindo forte contra ele. Inclinou o corpo, uma das mãos no joelho, a outra segurando o pano que já deveria estar encharcado de sangue.
Changbin piscou e foi até ele, sustentando o corpo curvado.
Felix torceu o nariz, o cheiro do perfume sumindo, dando lugar ao cheiro de morte que vinha dele.
— Prefeito Jo, o senhor precisa de alguma coisa? — Changbin perguntou, quase abaixando as calças de Insung e pagando um babão bem dado para ele.
— Não — ele disse, afastando as mãos do policial do seu corpo. — Estou bem — puxou o ar para dentro, recuperando-se.
Insung endireitou o corpo devagar, o peito subindo e descendo em movimentos irregulares. Aquilo estava vencendo, ele já sabia há um tempo. Os médicos da capital disseram muitas coisas. Tratamento tardio, retrovirais que não reagiam contra o vírus, efeitos colaterais agressivos e mortíferos. Cada manhã era amarga, cada respiração doía, e a doença ia crescendo dentro dele; quatro letras malditas, que combinavam com quem a trouxera àquele mundo.
Mas aquele policial parado ali, com os punhos fechados e pensando que podia fazer alguma coisa com ele, como fez com Seunghyun, não precisava saber. Ninguém precisava saber que o homem mais poderoso de Jinhae estava apodrecendo de AIDS.
— Bem — Insung disse, a voz rouca —, já terminei aqui.
Ele passou por Felix e foi até a porta, os passos quase ensaiados para não demonstrar fraqueza. Felix não se moveu nem um centímetro, uma estátua de ódio puro e visceral plantada no chão da entrada da delegacia.
Na calçada, o motorista já havia saído do carro preto que Felix sequer notou estar estacionado, e segurou a porta traseira aberta. Insung parou no limiar da delegacia e olhou para trás, encontrando os olhos de Felix mais uma vez.
— Oficial Lee — ele disse, um sorriso que mais parecia uma cicatriz rasgando o rosto —, melhor usar um cachecol.
Felix levou a mão direita ao pescoço exposto, finalmente lembrando das marcas de tesão que Hyunjin deixou na sua pele. Engoliu a saliva e observou o prefeito entrar no carro, o motorista fechando a porta.
Só quando o carro desapareceu na esquina foi que Felix se virou novamente para Changbin.
— Relatórios meu caralho. O que ele queria?
Changbin passou as mãos pelos cabelos, evitando o olhar de Felix.
— Ele queria olhar alguns arquivos com a Hayun.
— Que arquivos?
— Eu não sei — Changbin respondeu. — Eles ficaram na sala dos arquivos por uns vinte minutos, sei lá. Você sabe como é. O prefeito vem e a gente faz.
Felix estreitou os olhos. Arquivos.
— Ele conseguiu ver esses arquivos?
— Felix, porra, eu não sei — Changbin suspirou. — Ele é o prefeito, pode vir quando quiser. Não é a minha nem a sua função questionar. Além disso, é seu primeiro dia depois de dois meses, então dá pra não encher o saco por enquanto?
Um silêncio tenso pairou entre eles. Changbin mexia os pés, claramente desconfortável. Felix mantinha o olhar duro.
— E cadê o garoto? — Changbin perguntou, mudando de assunto. — Hyunjin, sei lá. Por onde ele anda?
Felix junto as sobrancelhas e soltou uma risada sem humor. O que ele tinha a ver com Hyunjin?
— Em um lugar seguro.
— Ah, claro — Changbin fechou os braços no peito largo. — Proteção à testemunha?
— Não posso falar sobre isso, principalmente quando sei que você não é o presidente do fã clube do Hyunjin.
Changbin assentiu, parecendo aceitar as palavras de Felix.
— Felix, aquilo na mercearia...
Felix já estava caminhando em direção ao interior da delegacia, sem sequer dar a ele a chance de completar o que diria. Passou direto, como se Changbin fosse uma pedra no meio do seu caminho. As passadas ecoaram pelo corredor, firmes.
Algumas coisas simplesmente não mereciam explicação.
O interior da delegacia estava quieto como sempre, apenas o som irritante do teclado de Hayun ecoando na recepção.
— Oficial Lee!
A voz aguda e animada de Hayun cortou o silêncio. Antes que ele pudesse reagir, já estava sendo envolvido por braços finos em um abraço apertado.
— Que saudade! — gritou como se fossem melhores amigos de infância, e não apenas cordiais colegas de trabalho. — Fiquei muito preocupada quando soube de tudo o que aconteceu, digo... nossa, um tiro!
Enquanto falava sem parar sobre todo o caos que aconteceu na delegacia enquanto Felix estava de licença, os olhos dela se fixaram no seu pescoço, nas marcas roxas que sequer lembrava estarem ali. Hayun piscou, sorrindo torto, procurando algo para dizer.
Felix puxou a gola da camisa para cima, cobrindo os chupões em um movimento casual.
— O senhor parece diferente — ela comentou, parecendo querer ignorar os roxos chamativos.
— Diferente? Diferente como?
— Ah — ela sorriu, um pouco constrangida. — Mais descansado, eu acho.
Descansado. Era de rir. Felix sequer dormiu quatro horas.
Ele forçou um sorriso. Hayun sempre foi gentil demais para o próprio bem, o tipo de pessoa que tentava encontrar o lado positivo em qualquer situação. Era, também, exatamente o tipo de pessoa que grandes homens fodidos e miseráveis como Jo Insung sabiam manipular.
— Hayun — Felix disse quando já estavam em suas mesas de trabalho. — Ouvi dizer que você teve uma visita importante hoje.
Ela corou, como sempre fazia quando Felix direcionada sua atenção totalmente a ela.
— Ah, o prefeito? Sim, ele esteve aqui agora a pouco.
— Deve ter sido importante pra ele vir pessoalmente — Felix disse, mantendo o tom casual, quase íntimo. — O que ele queria?
Hayun hesitou, mordendo o lábio inferior. Olhou ao redor, mesmo que soubesse que Changbin e Jeongin estavam na rua.
— Eu... eu não deveria falar sobre isso, oficial.
— Claro que não — ele concordou, inclinando-se mais um pouco. — Mas, só entre nós... Foi algo sério?
O perfume dela se misturou ao desinfetante. Felix podia ver como ela ponderava através das expressões. Os olhos castanhos procuravam algo nas expressões do policial que dessem segurança, e ele ofereceu. Sorriu sem dentes, olhos se apertando, um sorriso tão doce e meigo que só podia mesmo ser mentiroso.
— Ele... — ela colocou uma mecha para trás da orelha, olhando para baixo, corada. — Ele queria ver uns arquivos de 90 e 91.
— Arquivos, é? — Felix respirou fundo, querendo desmanchar aquele rosto agradável, mas sabia que precisava sustentá-lo. — Sobre o que, exatamente?
— Era sobre um garoto. Um arruaceiro viciado, foi como ele chamou — riu, mesmo que aquelas palavras fossem pesadas demais para serem ditas por alguém que tentava ser tão gentil.
— Lembra o nome dele?
— Ah, minha memória é péssima — balançou a cabeça. — Era algo com Lee... Lee Jiwong? Não, não — continuou concentrada, puxando pela memória e mordendo a pelinha do lábio. — Lembrei! — ela estalou os dedos, apontando para Felix.
Agonia.
Ele precisava saber.
— O nome, Hayun — disse entredentes, ansioso, quase socando a madeira da mesa para assustá-la e fazê-la cuspir o maldito nome. — Qual o nome dele?
Ela riu e assentiu.
— Ah, sim, sim. Lee Juyeon. É, é esse o nome, com certeza. Juyeon.
✧
Felix não conseguiu se concentrar pelas próximas horas.
O telefone tocava com a burocracia administrativa que ele sequer suportava depois de tantos anos. Conversou aleatoriedades com Hayun para tentar distrair a cabeça daquele nome maldito: Lee Juyeon, mas nada funcionava. Continuava em uma espiral de preocupações, sua cabeça esquentando cada vez mais.
Na hora do almoço, comeu qualquer coisa pela copa, enquanto Hayun insistia sobre ele levar alguma comida mais saudável para suas refeições.
Felix não estava ligando para nada além do cheiro pungente de perigo que flutuava entre o nariz e os lábios, impregnando-se no seu cérebro.
As horas se arrastaram como melado quente. Felix tentou se concentrar nos relatórios espalhados sobre a mesa, mas as palavras pareciam dançar diante dos olhos. Lee Juyeon. O nome ecoava na sua cabeça como uma sirene irritante, impossível de ser ignorada.
Às duas da tarde, quando Hayun comentou algo sobre o tempo nublado, Felix percebeu que não tinha ouvido uma palavra sequer do monólogo que veio antes. Apenas assentiu, fingindo interesse, enquanto seus dedos tamborilavam, nervosos, contra a madeira da mesa.
Às três, começou a roer a cutícula do polegar até sangrar.
Às quatro, já havia reorganizado todos os papéis da mesa três vezes e checado o telefone umas cinco, esperando por nada em particular (talvez aquela ligação de Aerin dizendo que Hyunjin queria ir para casa).
— Oficial Lee? — A voz de Hayun cortou novamente seus pensamentos. — O senhor está bem? Parece agitado.
Felix forçou um sorriso falso.
— Estou bem, só estou... cansado. Primeiro dia de volta.
Mas Felix sabia que não era cansaço, era aquela ansiedade roendo seus nervos, uma preocupação crescendo como uma infecção. Por que Jo Insung estava procurando por Lee Juyeon? Por que ele tinha que se meter no passado de Hyunjin? Por que ele tinha que lembrar que Hyunjin existia?
Felix olhou para o relógio. Quatro e vinte. Ainda faltavam quarenta minutos para o fim do expediente e para que ele, finalmente, pudesse buscar Hyunjin, mas a inquietação estava o consumindo. Precisava ouvir a voz dele, precisava saber como estavam indo as coisas, se aquela informação descoberta por Felix não tinha, por algum jogo do destino, chegado até ele.
— Hayun — disse, já levantando da cadeira. — Já volto.
Felix pegou o telefone da mesa, enrolando o fio sob o olhar indagativo de Hayun. Ela acenou e voltou ao seu teclado barulhento.
Cruzou a delegacia com o telefone na mão até a sala dos arquivos e jogou o telefone em cima da mesa empoeirada. Discou os números da casa de Aerin, o coração batendo forte.
Trim... trim... trim...
Ninguém atendeu.
Tentou novamente.
Trim... trim... trim...
Nada.
A ansiedade se transformou em algo próximo ao pânico. Felix sentiu o suor frio escorrer pela nuca, enquanto batia com o telefone na mesa sem força. Lembrou que eles poderiam estar na mercearia. Os dedos dele tremeram enquanto discava.
Trim...
— Como eu te falei.
— Tá, tá. É... Mercea- droga, tenho mesmo que fazer essa voz?
— Tem, sim.
— Mercearia da Aerin, boa tarde.
Felix quase desabou de alívio quando reconheceu a voz de Hyunjin e a de Seungmin no telefone. Ele estava bem. Hyunjin estava bem, atendendo o telefone do seu novo trabalho.
— Hyunjin — ele disse, e percebeu que sua voz saiu quase chorosa. — Como você está?
— Felix? — Havia um tom quase feliz ao dizer o seu nome. — Oi, eu... eu estou bem. Você vem me buscar daqui a pouco?
— Vou, vou sim — assentiu, olhos fechados. — Eu liguei porque...
Porque senti sua falta.
Porque estou preocupado.
Porque, hoje, quase matei outra pessoa por sua causa.
Porque te amo.
— Porque... — Hyunjin incentivou.
— Porque queria saber como estava indo no trabalho.
— É meio chato ser simpático com todo mundo, mas acho que tô indo bem— ele disse após um suspiro. — Aerin me deixou com esse garoto e foi comprar umas coisas.
— Seungmin — ele disse no fundo.
— É, com o Seungmin — Hyunjin repetiu. — Ele quer ser médico, acredita nisso?
— Eu sei bem — Felix riu, o coração batendo na velocidade normal agora.
— Você parece meio nervoso — Hyunjin notou. — Aconteceu alguma coisa na delegacia?
— Não, não, não. Está tudo ótimo, eu só quis ligar.
— Então, tá. Você quer jantar ensopado hoje?
— Seria ótimo.
— Certo. Vou voltar ao trabalho. Seungmin quer me ensinar onde fica cada estoque.
— Tudo bem, espero que corra tudo bem.
— Eu também.
E desligou. O alívio que sentiu ao ouvir a voz de Hyunjin havia sido tão intenso que chegava a assustar. Quando foi que aquele garoto se tornou tão importante? Quando foi que sua segurança se tornou mais urgente do que o próprio trabalho?
Felix puxou a cadeira da pequena mesa e sentou. Afundou o rosto nas mãos, aliviado, mas ainda com algo remexendo dentro do peito. Ele não precisava se preocupar com isso agora, precisava? Tentou pensar racionalmente: podia ser outra pessoa. Podia ser coincidência. Afinal, quantos Lee Juyeon não existiam por aí?
Mas Felix sabia da índole de Jo Insung o suficiente para saber que o prefeito não fazia visitas casuais à delegacia e não procurava arquivos antigos por curiosidade. Tudo o que aquele homem fazia tinha uma razão, e se aquela razão tivesse alguma conexão com Hyunjin e o que aconteceu entre eles...
Felix abriu os olhos de repente e encarou o relógio no pulso. Ele deveria voltar, terminar o expediente, agir como se nada tivesse acontecido, mas a inquietação continuava lá, corroendo por dentro como ácido.
A verdade nua e crua era simples: se Jo Insung representasse qualquer ameaça para Hyunjin, Felix não hesitaria. Já havia cruzado linhas que não tinha direito de cruzar há muito tempo, já havia feito coisas que um policial não deveria fazer desde que conheceu Hwang Hyunjin. Se precisasse fazer de novo — se precisasse matar não mais um, mas dois homens para manter Hyunjin seguro —, ele faria.
A intensidade daquele pensamento deveria assustá-lo, fazê-lo questionar sua sanidade, sua moral, mas tudo o que Felix sentia era uma certeza fria: moral alguma era mais importante que Hyunjin.
✧
Um trajeto de quinze minutos entre a delegacia e a mercearia de Aerin se transformou em um caminho de quarenta, devido a algo que Felix deveria saber, mas, com toda a confusão da sua vida, não lembraria nem em um milhão de anos.
As ruas estavam sendo fechadas desde as 17h — justo o horário em que Felix saia da delegacia — para o desfile da banda municipal. Era um evento que dava abertura à festa de comemoração ao aniversário da cidade. Mas que porra. Ele nem ligava para quantas voltas ao redor do sol aquela cidade hipócrita já tinha dado, mas não podia passar por cima dos guardinhas de rua que espalhavam fitas amarelas e cones laranjas por ali, mesmo que atrapalhassem seu caminho.
Ficou parado cerca de seis vezes no caminho. Em uma delas, de frente para uma farmácia. Pensou em algo interessante. Desceu do carro e, cinco minutos depois, estava de volta com uma sacolinha.
Quando, finalmente, estacionou próximo à calçada da mercearia, viu Hyunjin sentado no banquinho do ponto de ônibus que ficava logo ao lado, remexendo nos dedos cobertos pela camisa e balançando os pés. O coração de Felix se encheu de algo que ele já sabia o nome. Abriu o vidro para que ele conseguisse vê-lo — mesmo que pudesse reconhecer o carro velho — e buzinou.
Hyunjin ergueu os olhos e abriu um... santo Deus, abriu um lindo sorriso ao ver Felix esperando por ele no carro. Caminhou os passos do banco até o carro com olhos brilhando e se enfiou no banco do carona como quem estava esperando por aquilo há muito tempo.
— Oi, como foi o...
As palavras de Felix foram engolidas pelos lábios de Hyunjin. O beijo foi como aquele pela manhã, um selo forte e apaixonado, mas sem muita profundidade, porque não era necessário. Felix soltou o volante e acariciou a nuca de Hyunjin, desmanchando contra os lábios dele, contra o cheiro fresco e gostoso que ele tinha mesmo após um dia inteiro. Tentou mover a boca, mas Hyunjin riu e se encostou no banco.
— Está atrasado — ele disse, assim que Felix deu partida no carro.
— Como pode saber?
— O ônibus das cinco passou já faz um tempo, e o das cinco e meia também. Está atrasado.
— Você tem razão, mas isso não vai acontecer sempre — Felix suspirou. — Tudo bem, só quando precisar passar pra pegar meu pagamento, mas hoje estão fechando as ruas para o desfile da banda.
— O desfile é hoje?!
— É, sim.
— Não brinca! Eu adoro isso!
Felix desviou os olhos da estrada apenas por um instante.
— Sério?
— Sim, eu sempre pedia pro Seunghyun me deixar ver, mas às vezes não dava.
A menção àquele homem fez Felix apertar os dedos no volante. Choi Seunghyun o remetia a Jo Insung, e Jo Insung o remetia a Lee Juyeon, a malditíssima trindade da vida de Hyunjin.
— Podemos ver da janela do seu quarto — Felix disse. — A vista de lá é boa.
Hyunjin assentiu com um sorriso, o frescor de um dia tranquilo parecendo vivo em seu rosto.
Durante o caminho, Hyunjin contou sobre como foi o seu dia. Na casa de Aerin, ela disse que ele ganharia vinte mil wons por semana, o que não era muito, mas já era algo. Hyunjin comentou, meio mórbido, que era o que ele cobrava por um programa, mas que, pelo menos, ele veria aquele dinheiro e não teria que entregá-lo a ninguém. Além disso, ele trabalharia de segunda a sexta, no horário comercial. Felix ficou tranquilo ao saber que ele tinha gostado de Seungmin e que ele foi gentil, ensinando-o a como atender o telefone, anotar entregas e a mexer na caixa registradora. Hyunjin parecia contente, satisfeito, e Felix, definitivamente, não contaria do seu encontro com Jo Insung, muito menos sobre Lee Juyeon.
A vida dele estava começando, como um bebê que dava seus primeiros passos, e Felix nunca conseguiria destruir aquilo.
Perto do apartamento, Hyunjin notou, enfim, a sacolinha jogada perto do porta-luvas.
— Isso é chocolate? — pegou a sacola, abrindo para ver o que tinha dentro.
Felix ia falar que não era chocolate, mas Hyunjin foi mais rápido.
— Uh lá lá — ele riu, balançando o tubinho de lubrificante que havia tirado da sacola. — Pra que comprou isso? Cansou de se masturbar com cuspe?
— Você é sempre tão desagradável — Felix comentou, segurando um risinho. — Não pretendo usar isso sozinho.
— Ah, não? — arqueou uma das sobrancelhas. — Está saindo com alguém e não me avisou?
— Hyunjin...
Ele riu, abrindo o tubinho para sentir o cheiro do produto.
— Eu gosto desse — ele disse. — Fica quentinho, sabia?
Felix sentiu um arrepio cruzar sua coluna.
— Fica?
— Sim, e desliza bem gostoso quando vai metendo.
Hyunjin colocou o dedo na tampa aberta e apertou o tubo, colocando um pouco do lubrificante no dedo.
— Hyunjin, para, por que você tá... Ah, droga. — Hyunjin sujou sua bochecha com um pouco de lubrificante que tinha colocado no dedo. Felix balançou a cabeça, ganhando uma gargalhada em resposta a sua careta. — Ótimo, agora eu estou cheirando a sexo — murmurou, limpando a bochecha com as costas da mão enquanto tentava esconder o sorriso.
Quando chegaram em casa, a tensão do dia pareceu, finalmente, deixar os ombros de Felix. O apartamento estava exatamente como tinham deixado pela manhã, o cheiro familiar de lar impregnado nas paredes, o Senhor Miau os recebendo com aqueles miadinhos de quem diz
Cadê minha ração, cara? Não faço grave de fome como você.
Hyunjin fez carinho no pelo dele, falou com uma vozinha boba que estava com saudades e, depois de alimentá-lo, foi direto para a cozinha, já puxando os ingredientes do ensopado que havia prometido. Felix o observou por um momento, encostado no batente da porta, vendo como parecia que Hyunjin já pertencia àquele lugar.
— Vai ficar me olhando feito um bocó ou vai me ajudar? — Hyunjin perguntou sem se virar, mas Felix podia ver o sorriso na sua voz.
— Estou supervisionando — respondeu, aproximando-se. — Preciso ter certeza de que você não vai envenenar minha comida.
— Você confia tanto em mim — Hyunjin zombou, picando uma cebola. — Depois de tudo que passei hoje aprendendo a ser o futuro funcionário do mês, você ainda duvida de mim?
Felix se posicionou atrás dele, apoiando as mãos na bancada, uma de cada lado do corpo de Hyunjin, envolvendo-o sem realmente tocá-lo.
— Como foi mesmo?
— Eu já te contei.
— Me conta de novo.
E Hyunjin contou, porque Felix gostava de ouvi-lo falar.
O ensopado ficou pronto quando o sol já havia se posto. Eles jantaram no chão da sala, com a janela aberta, deixando o som dos passarinhos entrarem. Hyunjin comeu bem, contando histórias sobre os primeiros clientes que atendeu na mercearia. Felix apenas ouvia, sentindo uma paz que, durante a tarde, achou ter perdido.
Era isso. Era aquela simplicidade da sua vida com Hyunjin que queria proteger, o sorriso no rosto dele, enquanto saboreavam um ensopado no chão daquela sala pequena.
Felix faria qualquer coisa para preservar a normalidade que Hyunjin, finalmente, parecia ter encontrado.
✧
Mood: A Banda - Chico Buarque
Já era noite quando o som distante da banda começou a ecoar pela rua. Felix estava sentado à mesa da cozinha, organizando alguns papéis que deveria levar para o trabalho no dia seguinte, quando ouviu Hyunjin gritar do quarto.
— Felix! Vem, vem rápido! Já começou!
Largou os papéis na mesa e foi encontrar Hyunjin. Quando chegou ao quarto, encontrou-o ajoelhado na cama, com as mãos apoiadas no parapeito da janela. Hyunjin havia aberto as duas folhas de vidro, deixando a brisa da noite entrar no quarto.
— Olha só — Hyunjin apontou para a rua, olhos brilhando, encantado.
Felix se aproximou e sentou na beira da cama, ao lado dele. Lá embaixo, a banda municipal marchava, com o uniforme azul-marinho e dourado que reluzia sob a luz dos postes. À frente, vinham as balizas postando varas compridas, seguidas pelos músicos com instrumentos de sopro e, por último, a bateria marcando o ritmo da música.
— Que lindo — Hyunjin murmurou, apoiando o queixo nas mãos.
Atrás da banda, vinha um grupo de crianças da escola municipal. A maioria estava fantasiada, outras apenas segurando as mãos de suas mães enquanto acompanhavam a caminhada. Dezenas de pessoas saíram de suas casas para ver a banda, uma festividade que acontecia apenas uma vez por ano, sempre tão aguardada.
Quando as crianças passaram em frente ao prédio, Hyunjin pareceu tomado de uma euforia incontrolável. Ele arregalou os olhos, sorriu e gritou, colocando metade do corpo para fora da janela enquanto acenava para elas.
— Oi! Oi, crianças!
Algumas das crianças olharam para cima, mesmo a voz dele soando abafada em meio ao som dos instrumentos, e acenaram de volta. O sorriso delas era como o dele: puro. Uma menina pequena, com cabelos muito escorridos e com uma franja bem penteada, chegou a parar e acenar com as duas mãos, fazendo Hyunjin rir e balançar o corpo ainda mais animado.
— Hyunjin, volta aqui — Felix disse, preocupado, estendendo as mãos para segurá-lo pela cintura. — Você vai cair.
— Não vou, não — riu, mas permitiu que Felix o puxasse de volta para dentro. — Viu só? Elas me viram.
Felix o envolveu nos braços, abraçando-o por trás, o queixo apoiado no ombro dele. Ficaram observado o desfile, a música ecoando pelas paredes do quarto em uma melodia familiar, doce, que combinava com aquela alegria nos olhos de Hyunjin.
— Depois da banda vem o quê? — Hyunjin perguntou, encostando-se mais no peito de Felix. — Eu nunca conseguia ver tudo.
— Normalmente, uns carros alegóricos e apresentações de dança. Nada muito elaborado.
— E no final de semana? Sempre tem uma festa grande, lembro que Seunghyun trazia pipoca.
Felix respirou fundo. Já era segunda vez no dia que ele mencionava aquele homem.
— É o festival no sábado. Eles montam um parque de diversões na praça central. Roda-gigante, uma montanha-russa pequena, aqueles carrinhos de bate-bate e gente fantasiada de animais enormes. No final, tem um show de fogos de artifício.
— Sério? — Hyunjin se virou um pouco nos braços de Felix para olhá-lo. — E tem música?
— Tem, apenas bandas locais, mas é divertido. A cidade inteira vai.
— Podemos ir?
Felix hesitou por um instante. Ainda estava assustado, preocupado, mas não podia deixar aquele sentimento agre dominá-lo.
— Claro — respondeu, beijando o ombro dele. — Vou te levar.
Hyunjin ficou quieto, observando as últimas pessoas do desfile passarem lá embaixo, pequenas como formiguinhas.
— Você não tem medo de ser visto comigo aqui na cidade? — A pergunta saiu baixa, um sussurro que temia a resposta.
Felix deixou mais um beijo no mesmo lugar de todos os outros. O silêncio se estendeu enquanto os últimos ecos da banda se perdiam pela rua, e Felix continuou segurando Hyunjin, respirando o cheiro do cabelo dele, protegendo-o em seus braços como se ele fosse a coisa mais frágil do mundo. Talvez fosse.
— Não — ele respondeu, enfim, e Hyunjin sorriu.
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Mood: Olhos de Farol - Ney Matogrosso
A televisão estava ligada no telejornal, mas Felix, jogado no sofá, não prestava atenção nas notícias.
Já passava da hora em que deveria dormir para acordar cedo no dia seguinte, mas seus olhos estavam fixos na gravata do âncora do programa, que balbuciava sobre algum crime de alguma cidade que expunha os podres que a cercavam, e não os encobria, como faziam em Jinhae.
Respirou fundo no mesmo instante em que tragou o cigarro. Ele tinha que deixar de fumar. A pele áspera e o semblante cansado não eram apenas devido às preocupações e à enxaqueca que, depois do Neurovalen, estava um pouco melhor. O fumo o deixava mais velho, com uma aparência derretida e quase deprimida. Se quisesse amar Hyunjin por muitos anos, tinha que abandonar o cigarro, mas agora não.
A casa estava um breu confortável, Felix já se acostumara a ele. Surpreendeu-se quando o rangido da porta do quarto que não era mais seu ecoou pela sala. Moveu os olhos da TV, o cigarro quase todo consumido entre os dedos, e encontrou, no limiar da porta, Hyunjin.
Parado, ele encostou no batente, meio de lado, meio de frente. Um dos pés descalços se sobrepôs ao outro, os dedos se remexendo no assoalho frio. No corpo esguio, uma camisa branca e larga, de Felix, que sempre comprava roupas muito maiores do que o necessário. Aquela peça cobria tudo, mas Felix teve a sensação de que, ao mesmo tempo, ela não cobria coisa alguma.
Havia muita pele para olhar, das coxas, das panturrilhas, do peito e das clavículas saltadas. Engoliu o seco pela garganta, sob o olhar duro e sensual e perversamente delicioso de Hyunjin. Os faróis atravessaram a sala, chamando o barco perdido para a costa, para onde deveria atracar. Felix sentiu a fumaça flutuar ao redor do rosto, nublando seus olhos por um instante.
Hyunjin sorriu de lado, o pescoço inclinado para trás, expondo-se para ele, como se dissesse "vem provar". Felix sentiu o ar faltar nos pulmões quando uma das mãos delicadas tocou a coxa pálida e macia, subindo, sem nunca deixar de encará-lo, a camisa branca. Ele arrastou o tecido para cima, ainda com expressões quase líquidas, pingando desejo no olhar.
Imaginou como ele deveria estar por baixo, toda a maciez em seu cheiro e pele, todo o sabor do pecado que ele carregava.
Felix entendeu aquilo como um convite. Hyunjin não apareceria para ele daquele jeito se não fosse. Ou talvez ele só estivesse brincando novamente, querendo testá-lo, querendo que ele ficasse louco. Mesmo assim, Felix tinha que saber.
Hyunjin soltou a camisa, ainda sustentando o sorriso profano, e virou as costas. Ele queria que Felix fosse atrás dele, que o seguisse. Felix saltou do sofá, tropeçando nos próprios pés. Deu uma última tragada no cigarro e esticou o corpo para espremer o que restou no cinzeiro da mesinha de centro. Quase caiu quando atravessou o tapete, mas conseguiu forçar as pernas bambas até o quarto.
Quando cruzou a porta, Hyunjin estava na cama, deitado de costas, encarando o teto.
Da janela, a mesma luz de mais cedo, mais acentuada agora. Se espremesse bem os olhos, Felix conseguiria ver uma auréola flutuando sobre os cabelos de Hyunjin, tamanha santidade daquela cena. Engoliu a covardia para dentro da garganta e foi até a cama.
Hyunjin não se moveu quando Felix afundou o colchão, nem quando começou a engatinhar até ele. Felix parou quando ficou de frente para as pernas compridas. Curvou o tronco e deixou um beijo no joelho rosado, subindo pela coxa arrepiada. Com as mãos, uma de cada lado do corpo de Hyunjin, foi arrastando com elas a camisa que tinha o seu e o cheiro dele misturados. A textura do tecido não era mais macia que a pele de Hyunjin, que se arrepiou com o toque de suas mãos.
Felix olhou para ele, que também o olhava. Havia luz irradiando das iris escuras, as pupilas dilatadas pelo escuro e por Felix. Hyunjin lambeu os lábios e moveu as mãos em um gesto que dizia "vem". Felix foi. Felix sempre iria se ele chamasse.
Ficou por cima dele, as pernas de Hyunjin abertas ao lado dos seus quadris. Felix puxou ambas as coxas, envolvendo-as na sua cintura. Hyunjin não vestia nada por baixo, estava nu para ele, não só no corpo.
O beijo veio em seguida, saliva se espalhando dentro da boca à medida que as línguas se enrolavam sem ritmo. Felix arfou contra ele, esfregou-se, puxou-o mais para cima. O corpo de Hyunjin virava argila fresca nas mãos de um oleiro apaixonado, arqueando-se para ele, deixando ser beijado e tocado. Felix mordeu o lábio inferior de Hyunjin, que se esticou, rosa e macio, até que soltou em um estalo molhado.
Ele estava com os olhos fechados, a boca entreaberta, o peito subindo e descendo com força. Felix não via nada falso nas expressões desejosas, nada mentiroso, nada manipulador. Hyunjin estava entregue, exposto, estava deixando Felix vivê-lo.
— Hyunjin — Felix sussurrou.
Não abriu os olhos, apenas murmurou.
— Hm?
— Você é a coisa mais linda que eu já vi na minha vida — ele disse.
Um sorriso sem dentes apareceu na boca de Hyunjin. Não era um sorriso safado, era um sorriso feliz. Felix o beijou novamente, arrastando o corpo sobre o dele. Hyunjin raspava as panturrilhas nas costas de Felix, nas coxas, e as mãos, de repente, agoniaram-se para tirar as roupas que o impediam de sentir a pele quente na sua.
A camiseta preta ficou largada no chão. Hyunjin arrastou a calça moletom que ele usava para baixo, com a cueca samba-canção indo junto. Gemeu, expondo o pescoço para os beijos molhados quando sentiu o pau de Felix contra o seu, deslizando, áspero, pela extensão.
— Felix... — Hyunjin gemeu, e aquele som o fez puxar os braços dele para cima, deixando-os em cima da cabeça, no travesseiro. — Felix, Felix...
Ele repetia seu nome enquanto movia os quadris para cima, friccionando nele, pedindo por mais, pedindo por ele. Felix revirou os olhos de prazer, o corpo tremendo por sentir Hyunjin debaixo dele, cheiroso, macio e quase desmanchando-se na ponta da língua.
Felix sequer reparou no vidrinho de lubrificante que tinha comprado mais cedo jogado ao lado do travesseiro, também não imaginou, quando levou os dedos até o meio das pernas de Hyunjin, que o encontraria molhado e quente. Apertou os pulsos dele com uma mão e, com a outra, enfiou dois dedos para dentro, apenas para engolir o chiado que ele soltou contra sua boca.
— Você se abriu pra mim — Felix constatou.
Hyunjin abriu os olhos para encará-lo, sobrancelhas franzidas em uma expressão pura de prazer humano. Mesmo sem palavras, Felix soube que era verdade.
Começou a empurrar, deslizando fácil mais para o fundo, a quentura queimando sua pele, irradiando tesão e amor nas mesmas proporções para o seu pau. Queria beijar Hyunjin inteiro, chupar o pau dele, mergulhar entre a bunda, apertá-lo entre os dedos, mas teria tempo. Ele sabia que teria, como uma certeza de morte. Mesmo duvidando de muita coisa na vida, de Hyunjin ele tinha certeza.
Hyunjin separou mais as pernas, uma delas caindo no colchão, a outra parando com o calcanhar na base das costas de Felix. Os dedos curtos fodiam lento e forte, massageando-o por dentro. Felix mordia a orelha dele, lambia o pescoço, raspava os dentes pela mandíbula, louco de tesão.
— Você vai me deixar te foder hoje, não vai? — Felix perguntou, enfiando mais um dedo nele. — Diz que vai me deixar colocar meu pau bem gostoso em você, diz?
Hyunjin, risonho, beijou a boca de Felix várias vezes, lambendo o lábio inferior, o superior e arrastando a língua pela ponta do nariz.
— Vai, por favor — Felix implorou sob o arrastar molhado em seu rosto. — Deixa eu colocar tudo, tudinho...
A resposta de Hyunjin não foi verbal. Ele esticou a mão, pegou o vidrinho de lubrificante e espremeu um punhado na própria mão. Felix tensionou, um arrepio cruzando sua nuca quando viu a mão de Hyunjin deslizar entre eles e agarrar seu pau, tão duro que doeu quando foi tocado.
Felix gemeu, a boca partida, um som quase mudo cortando a garganta. Hyunjin espalhou o lubrificante, apertando a base, suas bolas e massageando a fenda sensível da glande. Ele sorriu de lado e puxou o pulso de Felix que empurrava os dedos para dentro dele. A saliva espessa, afiada como arames, desceu arranhando sua garganta.
— Eu quero você me comendo — Hyunjin disse com a voz rouca. — Me come até eu desmaiar, até eu não saber nem o meu nome, até eu ficar tão fodido amanhã que todo mundo vai saber que eu tenho um homem em casa que mete em mim bem gostoso.
As palavras sujas e manhosas atingiram Felix em um ponto de loucura que ele sequer reconheceu. Seus olhos ficaram pretos, os lábios tremeram, as mãos deslizaram suadas e pegajosas e ele jurou que um bicho estava rasgando seu peito em busca de liberdade.
Içou ambas as pernas de Hyunjin, prendendo-as mais para cima ao redor do seu tronco. Recebeu um som de surpresa e uma risadinha em seguida. A mão direita, a que menos tremia, guiou seu pau já molhado e quente — o lubrificante realmente ficava quentinho — até o buraco dilatado de Hyunjin. Quando esfregou a ponta, Hyunjin gemeu no seu ouvido.
— Vai, me fode — ele disse. — Pode meter tudo, eu quero você em mim.
Felix empurrou. O calor e o aperto de Hyunjin pioraram seu estado. Seu coração foi se fragmentando, todos os pelos do corpo arrepiados. Hyunjin estava gemendo manhoso em seu ouvido, quase um choramingo de dor e prazer.
O primeiro movimento arrancou um gemido alto de Hyunjin, mas ele veio acompanhado de olhos brilhantes e expressões satisfeitas. Somente em sonhos Felix ouviu aquele barulho deleitoso, o canto daquela sereia debaixo dele, tão apaixonante, tão destrutiva, tão perfeita.
Felix meteu outra vez, e mais uma, a cama rangendo sempre que se mexia. Ele empurrou fundo para dentro, o quadril batendo na bunda de Hyunjin, as pernas dele se remexendo em suas costas.
— Felix — Hyunjin gemeu. — Felix...
O beijo impediu que ele continuasse. Línguas bagunçadas, saliva escorrendo pelo queixo, tudo se misturava em uma bagunça doce e angustiante. Felix mordeu a mandíbula dele e começou a fodê-lo mais forte, com força, descontando toda a paixão e todo o tesão que vinha azeitando dentro do seu peito.
— Caralho, Hyunjin... Eu sou maluco por você — grunhiu, esfregando o nariz pelo pescoço perfumado.
Estar dentro de Hyunjin era sublime, puro êxtase. Era apertado, macio e quente, e queria cumprir tudo aquilo que ele disse. Queria fodê-lo até cansar, até que seus joelhos ficassem feridos pela fricção no lençol, até que Hyunjin revisasse os olhos de cansaço e dor e filetes de sangue escorressem dele, apenas para limpá-los, em meio ao seu gozo, com a língua inquieta.
— Olha pra mim — Hyunjin disse. — Olha pra mim, pro meu olho.
— Eu tô olhando — Felix disse entredentes.
— O que você tá vendo?
Felix via muita coisa.
— Você — engoliu a saliva, aumentando a força. — Eu.
— Você se vê em mim?
— Vejo.
— Sabe por quê? Porra — revirou os olhos, o corpo balançando debaixo de Felix. — Sabe por que você se vê em mim?
Felix não teve forças para responder à pergunta ébria, apenas apertou com força a coxa de Hyunjin e continuou empurrando para dentro dele.
— Porque eu sou você — Hyunjin disse. — E você sou eu.
Sim, eles eram um do outro e também o outro.
Ter Hyunjin debaixo do seu corpo, quente, chamando por ele, era como viver dentro de um sonho. Ele gemeu e respirou pesado, as mãos escorrendo pelo corpo úmido, como se quisesse gravar nos dedos as curvas de Hyunjin.
Hyunjin abriu mais as pernas e, quando Felix empurrou fundo, arqueou as costas até que a boca dele estivesse contra seu peito, oferecendo seu coração para que ele o devorasse.
Felix o agarrou pela cintura e ficou mais lento, porque queria fazer durar. Ele pensou que poderia morrer naquele instante e que morreria feliz, como todas as outras vezes em que teve Hyunjin para ele. Seus lábios desceram pelo peito, empurrando a camisa meio aberta com o nariz e chupando a pele até marcar. O suor salgado adormeceu a língua, e Hyunjin puxou seu cabelo, quase implorando para ele não parar.
Quando Felix percebeu que estava prestes a perder o controle, puxou as pernas de Hyunjin para cima, dobrando-as contra o peito dele. A posição deixou tudo mais fundo, e Felix se remexia no estômago dele.
Hyunjin gritou seu nome, a voz embargada, as unhas arranhando suas costas, mas Felix só queria saber de dominá-lo. Queria vê-lo de todos os ângulos, com as costas arqueadas, aquela bunda gostosa empinada para ele, as coxas tremendo, o pau dele gozando. Então, tirou de dentro devagar, um choramingo tremendo na voz de Hyunjin. Puxou-o pela cintura, virando-o de bruços. A bunda dele ficou alta, e Felix se encaixou por trás. As mãos apertaram os quadris finos, empurrando, ouvindo os gemidos abafados contra o travesseiro.
O movimento e o som o enlouqueceram: o quadril batendo na bunda perfeita, o corpo de Hyunjin tremendo, suado, curvando-se para trás. Felix se inclinou, colou o peito às costas cobertas pela camisa e lambeu a orelha arrepiada. Sussurrou no ouvido dele:
— Você é meu.
Hyunjin virou o rosto para que Felix pudesse beijá-lo de lado, torto, desesperado.
— Fala que você é meu.
A respiração entrecortada precedeu a resposta.
— Eu sou. Eu sou seu, só seu.
Felix jogou a cabeça para trás, as palavras quase o fazendo gozar.
Depois, Felix empurrou a base das costas de Hyunjin para baixo, deixando a pélvis colada no colchão. Ele apertou a cintura, estapeando a carne macia, o pau indo cada vez mais fundo. Felix gemeu enquanto mordia a própria boca, os suspiros desesperados saindo de seus pulmões.
Hyunjin pareceu cansar de ficar vulnerável daquele jeito. Ele arqueou as costas, tomou impulso nas mãos e joelhos e saiu de onde estava. O pau de Felix pairou duro sem coisa alguma para foder por um instante, até que Hyunjin ficou de joelhos, assim como ele, e o encarou.
Desceu devagar, deslizando no colchão até ficar de bruços. A mão quente segurou o pau de Felix pela base e levou à boca. Felix curvou o corpo para frente, quase caindo no colchão.
— Caralho, puta merda — Felix gemeu enquanto apertava o cabelo de Hyunjin.
Hyunjin o olhava de baixo, ia até o fundo, girava a língua, deixava cuspe pingar pelo queixo. Felix mordeu o lábio com força, sufocando o grito que queria rasgar a garganta. Sentiu vontade de sufocá-lo, de deitá-lo no colchão e meter na garganta dele, mas também queria voltar ao aperto macio de outrora.
— Tira — sufocou o pedido, batendo no rosto de Hyunjin. — Tira, eu quero gozar dentro de você.
Hyunjin arrancou o pau da boca com um estalo. Ele esfregou a glande na bochecha, nos lábios, na língua e bateu duas vezes na bochecha antes de se erguer de joelhos, assim como Felix.
— Senta — ele disse, olhos cheios de todas as fogueiras do mundo.
Felix sentou no colchão, as mãos deslizando pelo lençol. Deixou as pernas abertas, o pau grosso e molhado apontando para cima.
— Posso te contar um segredo? — Hyunjin sussurrou, ao mesmo tempo em que passava as pernas pelo colo de Felix. Segurou o pau dele e o encaixou na bunda novamente, descendo até que estivesse sentado com ele inteiro dentro.
— Pode — Felix assentiu várias vezes.
Hyunjin apertou a sua mandíbula com força, impedindo-o de falar. O riso dele era irônico, mas sincero, assim como a língua que se arrastou pelo seu queixo.
— Eu quis tirar minha calcinha pra você desde que eu te vi naquela delegacia.
O chiado na voz de Felix foi instantâneo. Ele gemeu, Hyunjin sentando no seu pau, movendo os quadris e rebolando.
— Imagina só — Hyunjin riu. — Eu estava algemado, revoltado, mas, ainda assim, eu olhei pro seu pau naquele uniforme e quis ficar de joelhos pra você, engolir tudo e sentir sua porra na minha língua.
— Caralho, você...
— Eu — Hyunjin afirmou. — E por que eu quis fazer isso?
— Por quê? — Felix sussurrou, empurrando os quadris para cima.
— Porque você é um gostoso do caralho e eu sou uma puta — ele respondeu.
— Não, você não é.
— Eu sou — Hyunjin assentiu, o lábio debaixo entre os dentes. — Mas sou só sua puta agora. Você quer que eu seja?
Cada mudança no tom de voz de Hyunjin era um espasmo de prazer que cortava o estômago de Felix. Ele se sentia honrado, o homem mais sortudo do mundo, por ser aquele a quem Hyunjin escolheu.
— Quero. — A voz de Felix saiu trêmula, mas carregada de certeza.
Felix jogou a cabeça para trás, o orgasmo ardendo na base da espinha, prestes a transbordar.
— Então eu sou — Hyunjin desceu no seu pau com mais força, os olhos revirando, o corpo todo tremendo. — Eu sou sua puta, Felix, só sua, de mais ninguém... Porra... porra... eu... eu quero você todo dia.
O gemido rouco de Felix se assemelhou a um grunhido.
— Todo dia?
— Todo dia — esfregou-se mais, a voz quebrando de tesão. — Quero te chupar no banho, engasgar com você na cozinha, no seu carro, eu quero... Que você venha e me coma sempre que você quiser, a qualquer hora, porque eu sou seu. Pode fazer o que quiser comigo, me destruir, me deixar fodido. Eu quero você, Felix. Quero beber você, viver você, porque...
Felix o jogou de costas na cama de novo com força, metendo fundo de uma vez, arrancando um grito do peito de Hyunjin. Segurou o rosto dele entre as mãos, fodendo com força, sentindo o calor e o aperto o devorarem enquanto Hyunjin delirava de prazer, suado, aberto, pedindo mais, mesmo Felix dando tudo.
— Porque... Hmmm — puxou os cabelos de Felix com força o bastante para quase arrancá-los.
Os quadris subiam e desciam, batendo ao encontro do pau que o abria cada vez mais.
Hyunjin colou as testas, suor salgado escorrendo entre eles. Arregalou os olhos, obrigou Felix a encarar os faróis cheios de fúria e desejo no instante em que o sentiu gozar.
Então, Hyunjin explodiu em porra e em loucura quando confessou:
— Porque eu te amo pra caralho.
Notes:
Então, lembram o que disse sobre quem seria o grande vilão da fanfic? Jo Insung, Lee Juyeon? Ambos? Mais algum?
Na verdade, existe um grande vilão?
Vamos saber.
O capítulo de sexta (14) marca o fim do arco 2 e também é um dos meus preferidos (daqui pra frente, todos são meus preferidos hehehe). Até lá!
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