Chapter Text
Hermione não costumava viajar sozinha. Era uma dessas coisas que sempre pareceram melhores na teoria do que na prática. Mas ali estava ela, na segunda noite a bordo do Venice Simplon-Orient-Express, sentada à mesa mais afastada do vagão-restaurante, com uma taça de vinho branco intocada e um livro aberto apenas para disfarçar a ausência de companhia.
Do lado de fora, o mundo passava em reflexos borrados: campos, vilarejos adormecidos, luzes tênues perdidas no escuro da Europa. Aquele tipo de silêncio que parecia feito de veludo. Hermione gostava daquilo. Ou achava que gostava. Ainda estava aprendendo a diferenciar solidão da escolha deliberada de passar um tempo sozinha.
Foi só quando ouviu o som leve dos passos se aproximando que ergueu os olhos. A mulher a sua frente atravessava o vagão com uma elegância que não exigia esforço. Cabelos loiros-prateados presos com suavidade, um blazer preto, sobre uma camisa branca com os punhos largos à mostra, rebelando-se contra qualquer expectativa de perfeição. A expressão era atenta, mas não fria. Quando os olhares se cruzaram, algo mudou no ar, e Hermione soube imediatamente quem era.
Fleur Delacour parou ao lado da mesa, a surpresa contida nos profundos olhos azuis quebrou o gelo.
– Granger?
A voz roçava o sussurro. Nos 'erres', persistia um leve sotaque francês, imperceptível a ouvidos que não fossem nativos do inglês. O trem permaneceu, encantado demais para aceitar um volume mais alto.
– Delacour – respondeu Hermione, com um aceno de cabeça que era meio cordial, meio alerta.
Fleur hesitou. Não havia outras mesas vazias. O garçom apareceu atrás dela, sorrindo com formalidade e fazendo um gesto discreto na direção do assento oposto ao de Hermione. A loira a encarou com uma pergunta silenciosa.
Hermione fechou o livro e empurrou-o para o lado, abrindo espaço.
– Claro.
Fleur agradeceu com um sorriso pequeno, apreciando o gesto, mas sem querer se comprometer com ele. Sentou-se com leveza, ajeitou-se à cadeira de madeira lustrosa, olhou em volta.
– Não posso dizer que não estou surpresa... bem, de todos os lugares possíveis para nos esbarrar, um trem rumo a Veneza não seria o meu primeiro palpite.
– Estou de férias. O que, honestamente, é quase tão improvável quanto o resto – respondeu Hermione, pegando a taça sem beber.
Fleur soltou um riso baixo. Um tremor breve, como se também estivesse fora de lugar.
– Recebi o bilhete de presente. Minha avó concluiu que estou deprimida e acredita que viajar ao modo trouxa fará com que eu encontre momentos de paz e reflexão.
– E você acredita?
A loira parou por um segundo, observando a intimidade que se criava. Dividiam uma mesa, então que pudessem conversar sem amarras.
– Talvez. Mas não tanto quanto ela gostaria.
Hermione a observou por alguns segundos. Fleur não era a mesma jovem deslumbrante do Torneio Tribruxo, tampouco a resistência feroz que lutou na Guerra Bruxa. Era ainda mais bonita agora. Mais contida. Havia algo gasto e vivo nela ao mesmo tempo. E Hermione sentiu, com a mesma clareza com que sabia conjurar um patrono, que aquela noite poderia lhe reservar gratas surpresas. Ou, ao menos, uma boa companhia para o jantar. Mesmo que ainda não soubesse nomear a sensação.
– Você está sozinha? – perguntou Fleur, sem afetação.
– Sim. E você?
Fleur assentiu, encarando o vinho intocado de Hermione como se houvesse ali uma resposta melhor que a sua.
– Sempre achei trens românticos – disse por fim. – Mas nunca viajei com ninguém que os tornasse assim.
– Talvez o romance esteja no silêncio – respondeu Hermione, sem pensar.
Fleur ergueu uma sobrancelha. Depois sorriu graciosamente.
– Você gosta de silêncios?
– Só dos confortáveis... Eu não tenho mais paciência para suportar manipulações.
Fleur concordou, levantando discretamente a mão para o garçom. Um homem um pouco mais velho do que elas, posturado em seu uniforme limpo, passado e bem alinhado. Enquanto mantinha os olhos azuis no salão, continuou a falar sem medo de fazer perguntas.
– Desculpe a indelicadeza, mas quantos anos você tem hoje para falar sobre paciência com tanta convicção?
Hermione recostou-se na cadeira, e pela primeira vez desde que se sentara ali, deixou os ombros relaxarem.
– Vinte e três.
– Vinte e cinco.
– Há quase dez anos eu te vi entrar pelas portas de Hogwarts e reclamar da culinária do castelo.
– Você não pode me julgar, eu estava preocupada em caber no meu vestido de baile.
– Pelo que me lembro, você coube muito bem.
Fleur sorriu com a memória, ainda mais pela sutil provocação de Hermione. Então devolveu o elogio.
– Pelo que me lembro, você estava deslumbrante ao lado do Viktor.
– Isso parece ter surpreendido você.
– De maneira alguma. Obviamente ele era desejado por todas as minhas colegas em Beauxbatons, mas nenhuma delas tinha um sorriso tão bonito quanto o seu.
O garçom se aproximou com o cardápio antes que Hermione pudesse acrescentar alguma outra coisa. Sabia que Fleur sustentava flertes com quem quer que achasse interessante. Não que tivesse realmente algum objetivo, parecia mais um movimento automático para ela, um costume. Porém não pode evitar uma fisgada no peito ao pensar que era considerada aos olhos daquela mulher.
– Permita-me? – disse Fleur, despertando Hermione do pequeno devaneio, voltando-se para o atendente com a confiança tranquila de quem já viveu muitas mesas bem postas.
Hermione arqueou as sobrancelhas, mas não protestou. Estava intrigada. E havia algo de curioso naquela pequena interrupção, um corte súbito na rotina de sempre. Ver Fleur falando italiano com o garçom – baixo, claro, preciso – fez com que sua mente desacelerasse, era como escutar música.
– Escolheu por mim? – perguntou, quando o garçom se afastou com os menus fechados.
Fleur virou o rosto na direção dela, os olhos cor de céu sustentando o olhar de Hermione por um instante a mais do que qualquer outra vez em que se encontraram anteriormente.
– Sim. Espero que não se importe. Você parece... exausta da responsabilidade.
Hermione inclinou a cabeça, Fleur era inesperada. E, para sua própria surpresa, agradavelmente inesperada.
– Em um dia comum, eu detestaria. Mas estou de férias... então acho que agradeço.
Fleur sorriu.
– Eu morei em seu país por alguns longos anos. Aprendi que bruxas inglesas não costumam aceitar bem ordens à mesa.
– Não aceitei. Só... cedi, por curiosidade – respondeu Hermione, tocando a taça com os dedos, sem levar aos lábios. – E o que pediu?
– Um risotto com açafrão e cogumelos. E um Pinot Noir de Vosne-Romanée. 1990. Velho o suficiente para ter perdido o medo. Jovem o suficiente para ter algo a dizer.
– Isso soa bem ensaiado.
– Eu gosto de vinhos. Eles me fazem discursar melhor.
Algo dentro de Hermione, não um alarme, mas um sino de vento, soou, discreto, avisando que algo tinha se deslocado no ar.
O maître se aproximou em silêncio, apresentou a garrafa com um leve gesto e serviu um pouco na taça de Fleur. Ela levou o vinho ao nariz, fechou os olhos por um instante, e depois umedeceu os lábios na borda do cristal. Um quase imperceptível aceno de cabeça bastou, a aprovação estava clara. O homem serviu o restante, com precisão, e tão logo saiu de cena.
Hermione observava, sem saber ao certo o que era mais raro: permitir que alguém conduzisse a cena, ou o prazer repentino que isso lhe dava. Tomou um gole.
– É mais leve do que eu esperava.
– Isso te desaponta? – perguntou Fleur, achando ter decepcionado.
– Não, não desaponta. Só me fez prestar mais atenção.
O silêncio que se seguiu não foi desconfortável. Era uma pausa que não exigiu resposta, apenas uma deixa no ar para notar a presença uma da outra. Quando a comida chegou, envolta em um aroma sutil de ervas aquecidas, Hermione sorriu. Estava faminta, e não sabia.
– Você sempre acerta jantares?
– Quase. Quando eu cozinho, posso ou não explodir uma panela.
– Ah, você está sendo modesta. No período em que estive no Chalé das Conchas você se mostrou uma ótima anfitriã.
– É, talvez... Mas quase morrer deve ter feito tudo parecer mais acolhedor... ainda assim, obrigada pelo elogio.
Hermione esboçou um sorriso pequeno, discreto, mas verdadeiro. Estava fazendo isso bastante naquela noite. Lembrar de Fleur cuidando dos seus ferimentos, depois da tortura na Mansão Malfoy, reacendeu um carinho pela francesa que o tempo afastadas quase apagou.
Fleur fingiu não observar. Bebia o vinho com lentidão. Pausava entre um gole e outro, dando a impressão de ponderar algo, prestando atenção aos sons de Hermione.
– E então? – perguntou, ajeitando o guardanapo com elegância. – Ainda apaixonada pelas leis?
Hermione ergueu os olhos.
– Surpreendentemente, sim. Ou... talvez mais pelo que elas podem ser. Fui promovida recentemente. Agora estou assessorando o chefe do Departamento de Execução das Leis Mágicas.
– Isso soa... importante.
– Importante, burocrático, e cheio de gente que acha que a guerra resolveu tudo. Quando, na verdade, só embaralhou.
– E você, claro, está determinada a reorganizá-las.
– Alguém tem que fazer – Hermione bebeu o vinho. – E você? Ainda em Gringotes?
Fleur suspirou. Longo, leve. Como quem já pensou sobre isso mais do que gostaria.
– Por enquanto – girou a taça devagar. – Estou voltando a Paris depois dessa pequena viagem. Há uma vaga interessante no Ministério Francês. Mas... ainda gosto do cheiro dos cofres subterrâneos.
Hermione sorriu.
– Isso é algo que um dragão diria.
– Dragões são mais previsíveis, ma belle.
– Estive mais perto de um do que gostaria de admitir.
– Eu me lembro bem! Foi um verdadeiro pandemônio quando vocês invadiram o banco, não queira saber dos detalhes...
Um instante. As duas beberam ao mesmo tempo. O trem curvou uma esquina invisível nos trilhos, e a luz balançou de um jeito breve. Do lado de fora, o mundo era todo noite e sombra.
– Você e Bill... – começou Hermione, sem saber bem por que havia dito em voz alta.
Fleur não hesitou.
– Acabou. Civilizadamente. Sem escândalo. Sem lágrimas. O tipo de fim que parece bom demais para ser verdade, e por isso mesmo deixa um gosto estranho – Fleur encheu novamente a sua taça, fazendo o mesmo com a de sua companhia. – A guerra nos fez casar muito cedo. E a paz nos mostrou que não sabíamos quem éramos depois dela.
Hermione assentiu, sem comentar. Havia uma compreensão que não precisava ser dita.
– E você? – Fleur perguntou, olhando-a diretamente agora. – Ronald te espera em Veneza?
– Também estou sozinha.
Fleur não rendeu. Apenas deixou o silêncio durar, oferecendo-lhe um lugar à mesa. Hermione, pela primeira vez em muitos meses, aceitou.
O jantar seguiu com temas leves: livros recentes, a política internacional, o novo ministro britânico. Fleur, sempre escutando com atenção, fazia perguntas que não exigiam respostas longas. Hermione retorquia sem se dar conta de que estava relaxando. E depois de duas taças, riu de uma piada boba. Não porque fosse brilhante, mas porque queria rir na presença de alguém.
E Fleur, sem anunciar, percebeu.
A sobremesa veio sem que pedissem: peras ao vinho com lascas de chocolate amargo. A francesa explicou que era cortesia do maître para hóspedes que pediam Pinot Noir sem hesitar. Hermione fingiu acreditar, mas havia um brilho em seus olhos que a entregava. Sabia que Fleur decidiu novamente por ela.
Conversavam sem assunto definido. Divagavam. Sobre a diferença entre memória e saudade. Sobre como o mundo bruxo tratava mulheres veela que não sorriam o suficiente. Sobre o silêncio dos corredores do Ministério quando se trabalha até tarde demais. Fleur mencionou uma vez em que foi confundida com uma estagiária em Gringotes, mesmo já sendo membro da comissão de política monetária do banco. Hermione contou sobre o dia em que confundiram seu nome com "Heloísa", na Suprema Corte dos Bruxos, e ela deixou passar, só para ver até onde iria.
O jantar terminara. As taças estavam vazias. E mesmo assim, nenhuma das duas parecia pronta para se despedir.
– Há um vagão-bar nesse trem? – perguntou Hermione, já sabendo a resposta, mas aparentando dúvida como quem oferece uma saída.
– Há – disse Fleur, com um meio sorriso.
– E ele serve chá?
– Serve jazz – Fleur confirmou, satisfeita. – Uma taça a mais ou uma música a mais?
Hermione simulou pensar, mas seus olhos já haviam respondido.
– Uma música.
As duas se levantaram. Fleur recolheu o blazer com um gesto elegante, e Hermione esperou. Não havia toque. Nem convite. Só o pacto silencioso de continuar a viagem juntas.
O vagão-bar cheirava a lenho encerado e malte. Hermione reconheceu o odor, o mesmo do Caldeirão Furado. Os espelhos nas paredes estavam manchados pelas decadas, e o pianista, um homem com sobrancelhas grisalhas que pareciam fugir da testa, massacrava La Vie en Rose aparentando mau humor.
– Encantador – Fleur mentiu, conduzindo Hermione para se sentar perto da janela.
– Desejam continuar com o vinho? – Um novo garçom chegou sem que percebessem. Hermione ficou pensativa sobre como ele descobriu que as duas beberam vinho no vagão do restaurante. Havia comunicação efetiva entre os funcionários?
A inglesa hesitou. Olhou para Fleur. Depois, para o homem. Tão alinhado quanto qualquer outro funcionário do trem.
– Chá, por favor.
Fleur sorriu com os olhos.
– Tão cedo para voltar a tomar decisões?
– Apenas uma concessão à sobriedade.
– Sensato.
Não falaram muito. Às vezes, as palavras não ditas são as mais eloquentes e elas pareciam entender isso, até Hermione, então, questionar.
– Você sempre fica tão quieta quando está decidindo se gosta de alguém?
Fleur quase engasgou enquanto tomava mais vinho.
– Quieta? Non. Só estava pensando que... é curioso o fato de... pera aí! Você está presumindo que eu estou avaliando você?
– Não está?
– Acredite, eu teria levantado na primeira garfada se você não tivesse me intrigado, chérie.
Fleur reagiu instintivamente, levantando uma sobrancelha. Havia o velho brilho nos olhos azuis que lembrava a adolescente petulante do Torneio Tribruxo.
– E você já decidiu se gosta da minha companhia?
– Intrigante não é o mesmo que agradável, Delacour – os olhos castanhos de Hermione fixaram-se nos de Fleur, desafiadores. – Mas já que estamos avaliando... sim, eu também teria ido embora se você fosse chata.
– Você não respondeu se gosta de mim.
– Você também não.
Elas se encararam. O trem balançou ao ritmo em que avançava, e a luz dourada do vagão projetou sombras sinuosas entre as duas. Fleur quebrou o silêncio primeiro.
– Eu nunca decido essas coisas tão rápido... preciso de mais dados – seus dedos tamborilaram na taça de vinho.
Hermione inclinou a cabeça, captando a sutileza no convite para que continuassem a conversar. O garçom reapareceu nesse momento, interrompendo o diálogo.
– Mais alguma coisa, senhoritas?
Ambas responderam simultaneamente.
– Não, obrigada.
O sincronismo inesperado fez com que Fleur soltasse uma risada baixa, enquanto Hermione disfarçou um sorriso atrás da xícara.
Quando o relógio do trem marcou meia-noite, a inglesa se levantou.
– Preciso descansar. Foi um bom jantar, Fleur.
– Foi – disse, sem acrescentar nada.
Hermione hesitou ao se afastar. Depois virou-se, já alcançando o corredor.
– Você escolheu bem. O vinho. A comida. As palavras. Obrigada por hoje.
Fleur levantou a taça quase vazia, como um brinde tardio.
– Merci de m'avoir laissé le choix.
– Je n'ai pas pu dire non.
Hermione sorriu, um pouco cansada, um pouco entorpecida. Depois foi embora.
Fleur ficou por mais um tempo, ouvindo o piano se desfazer no escuro. Não pediu outra taça. Apenas olhou para a porta onde Hermione desaparecera e refletiu, com uma calma incômoda, um entendimento que não lhe era comum. Conhecia Hermione desde que a garota tinha quinze anos e ela própria, dezessete. Haviam, é claro, trocado várias palavras durante os momentos em que frequentavam os mesmos eventos da família Weasley. Porque aquele encontro inesperado despertava seu repentino interesse, era algo que desejava descobrir.
Notes:
Ma belle
Minha belaChérie
QueridaMerci de m'avoir laissé le choix.
Obrigada por me dar a escolha.Je n'ai pas pu dire non.
Eu não poderia dizer não.
Chapter Text
O sol havia acabado de vencer a neblina quando Hermione entrou no vagão panorâmico. Ainda não eram oito horas, e o silêncio da manhã apresentava-se respeitado como uma tradição. Poucos passageiros estavam ali: um senhor cochilava com um jornal dobrado no colo, duas mulheres falavam baixo em dinamarquês, e uma mãe dividia a mesa com um garotinho de aproximadamente oito anos. O resto era a paisagem dos Alpes emoldurados pelas janelas em estilo Art Déco do Venice Simplon-Orient-Express.
Montanhas azuis, campos úmidos, vilarejos que pareciam miniaturas feitas à mão. Nada ficava aparente tempo o suficiente para olhares mais detalhados, a velocidade do famoso trem que cortava parte da Europa Ocidental era constante e pragmática.
Hermione ergueu uma xícara de café puro, os cabelos presos com uma fivela de prata escurecida, e o casaco marfim dobrado até os cotovelos. Sentou-se bem no meio do vagão, tentando ignorar a própria sensação de... expectativa.
Não havia razão para esperar por ela. A noite passada tinha sido só isso: uma boa conversa. Uma pausa no ruído interno. Uma troca de palavras nada prestigiosa. No futuro, seria menos que uma memória. Mas ainda assim, seus olhos castanhos varreram o corredor com discrição.
Fleur chegou quinze minutos depois.
Entrou como se já soubesse onde sentar. Usava um suéter azul-marinho e cabelos soltos, levemente bagunçados pelo vento que insistia em passar pelas frestas dos vagões. Trazia consigo uma xícara de cappuccino e um croissant embrulhado em um guardanapo de linho.
Ao ver Hermione, hesitou por menos de um segundo. Mas não perguntou nada. Apenas sentou-se do outro lado da mesa.
– Bom dia.
– Bom dia – respondeu Fleur, com um breve aceno.
Apenas o barulho ritmado dos trilhos pairou entre elas, um som antigo repetindo seu próprio destino. A trilha sonora daquela viagem.
– Dormiu bem? – perguntou Hermione, finalmente.
– Não dormi mal.
Fleur assentiu. Deu um gole no cappuccino. A mesa entre elas estava praticamente vazia, exceto por um recipiente de metal com açúcar e outro com canela, dois pires e uma pequena caderneta de couro avermelhado que Hermione deixou ali.
– Você tem um diário?
A inglesa enrubesceu pensando no quanto isso podia soar juvenil. Talvez até imaturo. Mas a expressão de Fleur não era de quem estava julgando.
– Mais ou menos. É um caderno em que anoto pensamentos, frases que captei durante o dia, coisas que eu não gostaria de esquecer.
– Acho romântico. Não no sentido amoroso, veja bem, mas soa como os grandes poetas.
– Não tenho pretensão de escrever grandes poesias, são mais... um segundo cérebro onde eu posso exercer algum controle. Quer dizer, exceto quando estou em um fluxo de consciência imparável.
Fleur riu baixinho.
– Seria atrevido da minha parte perguntar qual foi a última coisa que você escreveu?
– Óbvio que sim, Fleur.
– Então eu vou guardar a pergunta para mim – piscou antes de tomar outro gole do cappuccino. – O que está nos seus planos para hoje?
– Não... não é algo que eu não possa compartilhar – Hermione ignorou a tentativa de mudança de assunto. – Mas se bem me lembro, é ligeiramente constrangedor.
– Assim você não ajuda a conter minha curiosidade.
Hermione bufou.
– Está bem – ela levantou as duas mãos, rendida, antes de abrir a brochura de couro onde um ramo seco de alecrim marcava a última página em que havia escrito. Pigarreou antes de ler. – Coisas que me incomodaram ontem, sem justificativa aparente: pessoas que falam "com licença" sem esperar a licença; café doce demais; a maneira como as portas do trem se fecham sem aviso; lembrar que esqueci de comprar creme para as mãos; a sensação de que o tempo não me consulta antes de passar.
Fleur não riu. Mas mordeu o lábio inferior, pensativa. Quando ergueu o semblante para Hermione, havia algo divertido e gentil em seu olhar.
– Qual creme para as mãos você usa? – perguntou sem demonstrar que ainda gostaria de debater o último item da lista. – Tenho certeza que posso te emprestar o meu.
Hermione a encarou por um segundo, surpresa pela pergunta. Depois, sorriu, daquele jeito contido que só aparece quando alguém foi pega desprevenida e aprovou a sensação.
– Não se preocupe com isso. Mesmo. É apenas uma reclamação mimada.
Fleur estendeu a mão sobre a mesa, a palma voltada para cima.
– Posso?
A britânica refletiu, então esticou os dedos devagar, repousando a própria mão na dela. Fleur deslizou o polegar suavemente sobre o dorso da mão de Hermione, sentindo a textura da pele.
– Está macia o suficiente. Nem parece negligenciada.
– Obrigada?
Um calor subiu pelas bochechas de Hermione, que recolheu a mão com lentidão, incerta se queria mesmo fazê-lo. A ausência do toque parecia mais presente que o toque em si. Por um instante, nenhuma das duas soube onde colocar os olhos.
Fleur foi a primeira a desviar.
– Acho que você subestima o efeito que tem nas pessoas – disse, sem encará-la. – Até quando faz uma lista sobre coisas que te chatearam.
– E você exagera a relevância de observações inúteis – respondeu Hermione, tentando parecer firme.
A loira sorriu. Não insistiu. Não contradisse.
– Então... O que está nos seus planos hoje?
– Admirar paisagens – Hermione olhou para ela por cima da borda da xícara. – Evitar arrependimentos. Não tropeçar quando desembarcarmos em Verona.
– Você está sempre tão no controle assim?
A morena ergueu os olhos, surpresa pelo tom direto. Aflita pela abertura que Fleur encontrou.
– É isso que parece?
– Parece – Fleur sorriu, contido. – Mas não me entenda mal, não considero um defeito.
– Você costuma fazer as pessoas se sentirem lidas desse jeito?
– Por que, Hermione? Você está tentando se esconder?
A inglesa desviou o olhar, mexendo distraída no guardanapo.
– Não sei. Talvez eu esteja.
Mais um silêncio. Fleur partiu o croissant com os dedos, sem cerimônia. E trocou de assunto antes que a conversa fosse por um caminho desconfortável.
– Fiz uma burrada agora há pouco – comentou.
– O quê?
– Fui até a boutique do trem. Vi um livro de poesias numa edição linda. Quase comprei pra você.
– Por que não comprou? – perguntou, parecendo confusa.
– Porque pensei que talvez fosse cedo demais para fazer esse tipo de gesto.
Hermione não respondeu logo. Apenas ergueu a xícara e disse, quase num desafio:
– Talvez seja. Talvez não.
Fleur, encorajada e decidida a pagar para ver, puxou da bolsa um pequeno embrulho em papel cetim azul celeste. Entregou-o a Hermione que parecia não saber muito bem como reagir.
– Abra.
Então Hermione retirou o papel com cuidado, revelando o livro "Les Fleurs du Mal" de Charles Baudelaire.
– Acredita que nunca li nada de Baudelaire? – a inglesa analisou o livro, contemplativa. – Devo procurar algo especial na poesia dele?
– Tem uma de que gosto muito. Página 22.
Hermione abriu o livro escrito inteiramente em francês e, embora dominasse o idioma, graças às inúmeras viagens que fizera ao país com os pais, havia uma legítima nativa à sua frente. Não perderia a oportunidade.
– Você pode ler para mim?
– Claro – concordou com um sorriso ao tomar o exemplar das mãos macias de sua companhia.
"O Encontro
Lá, tudo é calma e beleza,
Luxo, silêncio e prazer.
Vês sobre os canais dormir os navios
Cujo desejo é vagar pelo mundo.
E esse desejo flutua entre nós –
Mas, amor, fica.
Vamos fundar um lar
Onde tudo será
Calma e beleza,
Luxo, silêncio e prazer."
Fleur terminou a leitura sem pressa, a voz grave e baixa, com a cadência de quem conhece o peso de cada palavra em seu idioma original. Não havia encenação. Só entrega. O silêncio que se seguiu não pediu resposta outra vez. Acostumou-se a ser entre elas.
Hermione ainda segurava a xícara, mas não bebeu. Olhava para Fleur, vendo algo novo. Aquele poema revelou mais da mulher à sua frente do que todas as conversas da noite anterior.
– É bonito – disse, por fim. – E controverso.
– Por quê?
– Porque surge como um convite... mas também como uma promessa que nunca se cumpre.
Fleur recostou-se na cadeira, os dedos agora repousando sobre o livro fechado.
– Talvez seja assim que os poetas amam.
O trem desacelerou devagar. Primeiro foi um rangido sutil nos trilhos, depois o silêncio do motor se alongando, e por fim, a imobilidade inesperada. Do lado de fora, um campo aberto, cercado por árvores pálidas e um vilarejo distante que parecia um diorama. Nada que estivesse no itinerário.
– Isso não parece planejado – comentou Hermione.
– Pane nos trilhos, talvez. Troncos em alguma curva. Ou um trem que resolveu nos dar mais algum tempo para decidirmos se gostamos da companhia uma da outra.
Hermione soltou um riso curto, lembrando-se do debate da noite anterior.
– Você deveria ser poeta.
– Não caçoe de mim, Hermione.
A pausa se estendeu. Nenhum anúncio foi feito. As outras pessoas no vagão começaram a murmurar entre si, mas sem pânico. Era um trem de luxo. Os imprevistos vinham acompanhados de chá e biscoitos.
Fleur se levantou e apontou com a cabeça para uma porta lateral envidraçada.
– Quer esticar as pernas?
Hermione assentiu. Seguiram juntas para uma área aberta entre os vagões, onde o ar frio cortava com delicadeza. Dali, era possível ver os trilhos se perdendo na paisagem. A luz da manhã as banhava com um brilho indeciso.
Ficaram sem trocar palavras, perguntas e desafios por um tempo, lado a lado.
– Sabe... – começou Hermione, com os dedos nos bolsos do casaco – nunca cheguei a te pedir desculpas.
Fleur virou o rosto, surpresa, mas não disse nada.
– Pelo que pensei e principalmente por como eu te tratei. Na época do Torneio, depois, n'A Toca... Eu tinha uma imagem errada de você.
– Errada como?
As bochechas de Hermione ruborizaram denunciando a vergonha que sentia, o constrangimento que aquele assunto provocava, e a vontade de resolver essa pequena injustiça do passado.
– Eu te via como alguém fútil demais. Bonita demais. Vaidosa demais. Eu... eu era jovem. Estava com ciúmes, na verdade. Do Ron, claro, mas também... da forma como todos te olhavam e eu parecia desaparecer.
Fleur sustentou o olhar dela por um instante. Depois desviou para os trilhos. Detestava reconhecer que o tratamento que recebeu da família do ex-marido a afetava. E Hermione, inegavelmente, fez parte disso.
– Eu sabia...
– Sabia?
– Não exatamente dos motivos. Mas sentia. O revirar de olhos. O julgamento. Sei do apelido... – a francesa fez uma pausa. – Não vou dizer que nunca me incomodou. Mas eu estava mais preocupada com outras coisas para ter que lidar com as implicâncias de Molly ou Gina. Ou com as suas também.
Hermione assentiu. A brisa sacudiu os cabelos em seu rosto. Sentia-se encolhida, perversa. Mas desejava, intimamente, que pudesse compensar.
– Eu nunca pensei em como aquilo poderia ter te machucado. Foi cruel, reconheço. Eu só... me sentia pequena quando você estava perto.
Fleur riu. Não em escárnio, mas com a tranquilidade de quem pode finalmente rir de algo que um dia doeu.
– Engraçado. Porque eu sempre te achei imensa. Inteligente demais. Talentosa demais. E bonita de um jeito que assusta os homens. Inclusive o seu.
Hermione arregalou os olhos, duvidosos, mas não rebateu.
– Eu desconfiava que você e Ronald não durariam – continuou Fleur. – Ele parecia sempre dois passos atrás. Você vive mais rápido. Vê mais coisas. E... exige mais.
– Você fala como se isso fosse algo extraordinário.
– Não, não é. Só intimida quem não consegue acompanhar.
O silêncio entre elas mudou de forma. Já não era o vazio do trem parado, mas um intervalo cheio de coisas que se perdiam na tradução.
Do lado de dentro, uma sirene breve indicou que o motor voltara a funcionar. Os passageiros começaram a se acomodar outra vez. A viagem retomaria seu curso em pouco tempo.
– Deveríamos voltar – disse Hermione, sem muita convicção.
– Ou podemos fingir que o trem quebrou de vez e desembarcar aqui mesmo.
Hermione a fitou por um momento. Depois, o sorriso veio, pequeno, em reflexo.
– Você é profunda, Fleur Delacour.
– Eu me entedio com facilidade.
– Tenho o seu perdão? – pediu, voltando ao que importava.
Fleur demorou. Os olhos azuis detalharam o rosto de Hermione, considerando a pergunta com honestidade. Buscaram algum resquício de dúvida. Tentaram entender o que aquilo realmente significava.
– Tem.
Hermione sentiu o peso do próprio peito aliviar um pouco, mas junto veio outra coisa, mais difícil de ignorar. O jeito como o olhar de Fleur decifrou o dela, o modo como o ar ficou denso e quente, próximo demais.
Fleur estendeu a mão, pousou no braço de Hermione, um toque distraído até, mas que parecia acender alguma coisa no espaço entre as duas.
Hermione não se mexeu.
– Obrigada – agradeceu, baixo, e ouviu a própria voz soar diferente.
Os olhos da francesa caíram por um instante nos lábios de Hermione, e aquilo estava mais claro do que qualquer palavra que pudesse ser dita. O tempo pareceu se alongar, a madeira, o ferro e os outros metais do trem respiraram junto com elas.
Hermione sentiu o impulso, breve e perigoso, de se inclinar só um pouco mais. Porém Fleur também não se moveu.
– O trem vai partir – murmurou, um aviso para si mesma.
– É melhor voltarmos.
Notes:
Me deixa saber o que você achou desse capítulo? O que essa versão da Fleur e da Hermione estão te fazendo sentir?
Chapter Text
O trem parou em Verona por pouco mais de uma hora. Era uma daquelas paradas que constavam no itinerário como um "intervalo para contemplação e abastecimento", o que, na prática, significava que os passageiros podiam explorar a cidade antiga, tirar fotos diante de estátuas e talvez comprar algo que não caberia na mala.
Hermione desceu com o pequeno caderno de couro na mão, o mesmo onde fazia anotações soltas desde que embarcou. Pensava em encontrar um banco de pedra, talvez tomar um café rápido sozinha, enquanto as ruas ainda estavam vazias demais para turistas.
Fleur apareceu ao seu lado como se não tivesse decidido antes, buscando um feliz acaso. Usava um lenço azul claro no pescoço e óculos escuros que lhe tapavam boa parte do belo rosto.
– Julieta morava aqui – comentou, casual.
– Você gosta de Shakespeare?
A francesa sorriu, sem pressa para responder. Tirou os óculos e os pendurou no decote do vestido floral longo e solto. Os olhos azuis combinavam escrupulosamente com aquele céu.
– Gosto das personagens que dizem sim, mesmo que o mundo diga não.
– É uma tragédia, Fleur. Todos morrem... – Hermione sorriu exasperada.
– Oui. Mas antes disso... eles vivem.
A britânica baixou a atenção para o chão de pedra irregular. Era sempre um espetáculo à parte conversar com Fleur. Havia tanta diferença nos interesses comuns, que se pegou culpada por não ter oferecido anteriormente a devida atenção que ela merecia.
– Nunca me decidi se era amor o que sentiam. Romeu e Julieta.
– Você já amou, Hermione?
Hermione foi pega de surpresa. A pergunta era direta, invasiva e indelicada demais. Claro que amou. Sabia essa resposta.
– Amei, Fleur.
– Isso pode te dar um direcionamento sobre Romeu e Julieta.
Hermione soltou um leve suspiro, mas não se afastou. Saiu da defensiva, Fleur não estava duvidando. Estava curiosa. E se podia fazer perguntas íntimas sem se questionar se deveria, Hermione definitivamente também podia.
– E você? Já amou?
Fleur deixou a pergunta repousar no ar. Cruzou os braços, depois os descruzou. Olhou em volta, procurando um cenário para esconder uma resposta.
– Uma vez.
O não dito entre elas se alongou, preenchido apenas pelo som das xícaras sendo arrumadas num café próximo e o burburinho de pessoas preferindo tirar fotografias a observar aquele lugar com calma.
– Então estamos empatadas – disse Hermione, por fim.
Fleur virou o rosto, agora mais sério.
– Não estamos competindo, chérie.
Hermione encarou Fleur por vários segundos, os olhos acompanhando cada micromovimento que os azuis cerúleos traziam. Ou queriam dizer.
– Posso te pagar um café?
– Eu adoraria. Mas me acompanha em uma caminhada antes disso? – propôs Fleur. – Os turistas aqui estão me enervando e Verona é mais bonita quando ninguém está tentando guardá-la em um álbum.
Hermione assentiu. Fleur demonstrava ter opiniões sobre todas as coisas e isso despertava certa curiosidade na mais nova, uma imensa vontade de trazer uma lista de temas aleatórios para que ela comentasse com sua aparente falta de paciência.
Andaram juntas pelas ruas estreitas, onde as janelas equilibravam flores e os sinos das igrejas tocavam anunciando a passagem do tempo. O ar tinha o cheiro morno de pão recém-saído do forno e alecrim amassado sob as solas dos sapatos. A cada esquina, uma nova cor: panos pendiam nas sacadas, fitas que dançavam preguiçosas ao vento. O mercado surgiu sem querer, encaixado numa praça menor, como se a cidade o guardasse para os que se perdiam de propósito.
As barracas eram improvisadas, madeira gasta, toldos manchados pelo sol e pela chuva. O murmúrio dos vendedores misturava italiano, dialetos, e aquele tom universal de quem tenta convencer alguém de um bom negócio.
Uma senhora de cabelos presos num coque grisalho, vendia frutas em cestinhas trançadas, cada uma mais delicada que a outra. Os figos tinham a pele rachada pelo calor, as laranjas ainda carregavam folhas nos galhos finos, as uvas brilhavam convidativas em cachos robustos. O cesto maior, no chão, guardava ramos de lavanda entrelaçados com barbante, exalando um perfume que se confundia com o do sabão artesanal de uma barraca vizinha.
Fleur parou. Hermione continuou alguns passos antes de perceber. Quando voltou, encontrou a francesa examinando ameixas com a precisão de quem estava prestes a decifrar um tomo escrito em runas antigas.
– Sabe escolher frutas? – perguntou Hermione, em tom risonho.
– Algumas, sim. Especialmente as que amadurecem rápido. As ameixas, por exemplo... Você precisa sentir o peso na mão. As melhores sempre parecem conter mais do que mostram. E a casca... deve ceder só um pouco ao toque, olhe. É onde está o equilíbrio entre o doce e o amargo.
– Definitivamente, anotado – sorriu, encantada.
Fleur comprou uma pequena caixa, pagou com moedas trouxas que tilintaram secamente, e então, estendeu uma ameixa escura para Hermione. Ainda estava fresca, com gotas minúsculas de água na casca.
– Você parece alguém que aprecia a doçura.
Hermione aceitou a fruta, surpresa. A frase ficou pairando entre as duas.
– Só não costumo dizer em voz alta – respondeu, depois de um tempo.
A grifinória mordeu a ameixa. O sabor a pegou desprevenida – intenso, quase vinho, com uma acidez suave que queimava nos lábios. Fechou os olhos por um momento, e quando abriu, Fleur estava encarando atentamente.
– Bom?
– Uma delícia.
Passaram por uma livraria escondida, por um grupo de crianças uniformizadas fazendo fila, por uma ponte antiga onde pombos pareciam esperar por alguém que os alimentassem. O sol estava mais forte agora. A tarde tinha cheiro de pedra quente.
Hermione diminuiu o passo diante da vitrine abarrotada de livros. As capas gastas, as lombadas desalinhadas, o cartaz amarelado anunciando "volumi antichi e moderni". Entrou quase sem pensar, atraída pelo cheiro de papel envelhecido e tinta.
Lá dentro, as estantes eram estreitas demais para a quantidade de livros. A luz chegava tímida pelas janelas altas, deixando partículas de poeira dançando no ar.
A inglesa perdeu alguns minutos naquele labirinto de histórias antes de passar os dedos por um exemplar de "Le Lettere di Giulietta", uma edição simples que reunia cartas deixadas na casa de Julieta ao longo dos anos. Pensou que havia algo doce naquele tipo de esperança: palavras escritas para quem nunca responderia, mas que, ainda assim, precisavam ser ditas. Pagou pelo livro e o recebeu embrulhado em um papel pardo simples. Voltou à porta, onde Fleur esperava do lado de fora, distraída com o movimento da rua.
– Para você – disse, estendendo o livro, sem cerimônia.
Fleur franziu o cenho, surpresa.
– Pourquoi?
– Porque achei que você gostaria. E porque quando eu recebo um livro de presente, na minha cabeça, preciso devolver a delicadeza.
Fleur aceitou, rasgou o papel e folheou as primeiras páginas com cuidado.
– Escolha curiosa. Romeu e Julieta não foi só uma tragédia?
– Acho que estou me esforçando para corresponder à expectativa de ser "alguém que aprecia a doçura".
A loira fechou o livro delicadamente, os olhos ainda na capa, ganhando um segundo a mais.
– Então você está indo muito bem, chérie – disse, quase num sussurro, antes de seguir adiante pela rua, deixando Hermione por um instante parada, rindo sozinha da própria confissão.
Quando voltaram ao trem, a inglesa foi para sua cabine e guardou o caroço da ameixa que comeu dentro de um saquinho de veludo. Uma lembrança absurda. Mas era isso o que aquela viagem estava se tornando: uma coleção de pequenos absurdos.
A tarde seguiu com sua rotina polida. Jantar servido com flores frescas sobre a mesa, talheres que reluziam sofisticados, e um sol pálido escorrendo pelas janelas. Hermione comeu sozinha. Não por evitar Fleur, apenas não se encontraram dessa vez.
Ela retornou à cabine no início da noite, sentou-se à mesa com o caderno aberto diante de si e a ameixa ainda na lembrança. Tentou escrever, mas não foi muito além.
" Você parece alguém que aprecia a doçura. "
E sublinhou.
Havia algo diferente naquele dia. Um nó pequeno, apertado, que se formava entre as costelas. A ausência de barulho externo tornava tudo mais audível por dentro. Era sempre assim quando ela se distraía com alguém. Ou melhor, com alguma presença. Porque Fleur não era só pessoa. Era aura. Existia num volume próprio, numa frequência que forçava Hermione a sair do modo automático.
Levantou-se. Precisava andar. Respirar. Ver qualquer coisa que não fosse papel em branco.
O vagão coletivo estava quase vazio quando ela entrou. Os estofados azuis, a madeira escura das estantes com livros catalogados em francês, inglês, italiano, alguns em latim. Cheiro de café e verniz antigo.
Fleur estava sentada na janela, pernas cruzadas, o livro que ganhou apoiado no colo. Olhou assim que Hermione entrou, como se já soubesse. Sorriu. Um gesto simples, pequeno, mas que foi direto ao peito de Hermione, um pouco mais do que um cumprimento educado.
– Estava pensando em você – disse Fleur, sem floreios. – Me perguntei se você moraria para sempre em um vilarejo na Itália, plantando verduras.
Hermione se aproximou, mas não se sentou de imediato. Parou diante da estante e passou os dedos por um livro de capa gasta, depois por outro. A falta de ruído era densa como o ar de véspera de tempestade.
– E qual foi a sua conclusão? – quis saber.
Fleur desviou o olhar, arrependendo-se do comentário. Não era educado presumir as coisas sobre as pessoas. Sua mãe sempre lhe dizia isso.
– Que você jamais escolheria viver dessa forma.
– É? E por que pensa isso?
Hermione sentou-se defronte, sem tirar os olhos da francesa.
– Percebi que não gosta muito de se expor ao sol.
– Você tem mesmo esse hábito de reparar nas pessoas.
– Tenho. É incorrigível, peço que me perdoe.
Uma pausa. Um copo de vinho rosé sobre a mesinha não tinha sido tocado. Fleur empurrou em direção a Hermione.
– Prove.
Hermione hesitou. Pegou o copo. Bebeu um gole. Era menos intenso que o da noite anterior. Mais leve. Mais doce. Uma escolha calculada.
– Você sempre oferece vinho quando quer conversar?
– Boba – Fleur sorriu bebendo um gole também. – Você já sabe que gosto de vinhos e que eles me fazem eloquente.
O vagão estava mais escuro. O sol fugiu completamente pelas laterais do mundo, e o trem, ainda em movimento, fazia com que as sombras dançassem devagar pelos livros fechados. A lamparina acesa ao lado da janela lançava uma luz âmbar sobre a mesa, onde agora, uma segunda taça de vinho também estava pela metade.
Fleur fechou o livro que mal conseguiu ler. Hermione ainda segurava o dela, mas com as páginas abertas em um ponto que não acompanhava mais.
– Não quero dormir – disse Hermione, sem erguer os olhos.
Fleur a observou, indiscreta.
– Tem medo de quê?
– De fechar os olhos e perder tempo.
– Explique-se, ma belle.
– Isso – murmurou exasperada. – Não quero deixar que fuja a sensação de que estou... inteira. E, ao mesmo tempo, fora de mim.
Fleur bebeu o vinho com cuidado. O silêncio entre elas era uma espécie de idioma. Um respiro onde as entrelinhas se formavam. Definitivamente confortável.
– Isso soa abstrato e pouco como você. Quer tentar de novo?
– Já tentei, mas não posso nomear. Está além de mim.
– Às vezes a gente não nomeia pra não ter que assumir que é real.
Hermione assentiu devagar. Depois, virou-se um pouco mais na direção de Fleur.
– Você... sente isso também?
A francesa encarou por um instante. Depois desviou os olhos para a janela escura. Lá fora, nada além do reflexo delas mesmas, distorcido pelo vidro.
– Eu sinto algo. Mas não sei se é o mesmo que você – a garganta de Fleur se moveu indicando que engolia em seco. – Talvez seja só o mesmo trem.
Hermione sorriu, e havia ali um cansaço bonito. Uma exaustão de quem baixou a guarda sem se dar conta.
– Obrigada por hoje. Pelo perdão. Pela ameixa. Pelos silêncios.
– E pela minha irritação com turistas?
– Principalmente por isso.
Fleur inclinou delicadamente a cabeça, desejando confessar algo a mais, mas decidiu que ainda não. Hermione levou a teça aos lábios uma última vez. Depois, se levantou.
– Boa noite, Fleur.
– Bonne nuit, Hermione.
O vagão permaneceu quieto depois que a mais nova se foi. Fleur foi deixada sozinha novamente, os olhos perdidos no borrão escuro da janela, até que o reflexo do próprio rosto pareceu uma estranha. O restante do vinho na taça foi esquecido. A noite lá fora engoliu a paisagem, e tudo virou espelho.
Hermione caminhou pelo corredor até a cabine, os passos ecoando no ritmo das batidas do coração. Ao passar por uma porta de vidro, parou. Uma vontade inexplicável de voltar. Mas não voltou. Encostou na parede fria, tentando controlar a respiração, sentindo o gosto do vinho ainda preso nos lábios.
Na cabine, deitou-se sem apagar as luzes. O teto de madeira parecia mais baixo do que era. Pegou o caderno, escreveu uma linha, depois a riscou com força. Fechou os olhos só por um instante e o rosto de Fleur surgiu como uma memória que ainda não existia.
Fleur, no vagão, pegou o livro, abriu na página marcada, mas as palavras fugiam. Deixou o volume cair no colo, apoiou o cotovelo no parapeito e ficou, até que a luz da lamparina começasse a vacilar. A viagem seguiria, mas o instante ficava para trás, desfeito na fumaça daquela locomotiva a vapor.
Notes:
Chérie
QueridaOui
SimVolumi antichi e moderni
Volumes antigos e modernosLe Lettere di Giulietta
Cartas de JulietaPourquoi
Por quê?Ma belle
Minha belaBonne nuit
Boa noite
Chapter Text
A última noite antes da estação final se espalhava pelo Venice Simplon-Orient-Express como vinho derramado, tingindo o ar com um calor preguiçoso e cúmplice. O vagão-bar estava cheio, mas havia um silêncio elegante entre os sons: o tilintar suave de copos, risos abafados, o sussurro das conversas despretensiosas. As luzes baixas deixavam tudo envolto em uma penumbra dourada, absorvida pelo veludo das cortinas e refletida nos pequenos detalhes de metal que pareciam brilhar só para quem prestasse atenção.
O pianista do trem se ausentou por instantes, e o vagão-bar perdeu o fio: as conversas desinteressantes cresceram, ocupando o espaço que a música deixara vazio. Tudo seguia calmo, mas um rumor corria entre os funcionários bem vestidos: alguém se oferecera para tocar.
Hermione chegou depois de todos. Procurava apenas um lugar quieto. Apressou o passo ao reconhecer Fleur sentada ao piano de cauda, como se pertencesse àquele cenário desde sempre. O vestido que usava era preto de alças finas, o cabelo preso num coque despretensioso, a postura elegante, sem esforço.
Não era só uma mulher: era um acontecimento.
O vagão inteiro silenciou quando os primeiros acordes de "Verão" de Vivaldi se derramaram pelas teclas. Não havia partitura. Fleur tocava de memória, com uma entrega que ia além da técnica. A peça era um incêndio. Ela não a executava: a desafiava.
Hermione parou junto ao balcão do bar. Pediu uma taça de vinho branco por costume. Não tirava os olhos da pianista. Só notou que estava prendendo a respiração quando o ar lhe faltou por um segundo.
Quando a música chegou ao auge, os relâmpagos, os trovões, o calor sufocante, um garçom se aproximou discretamente do piano com uma taça alta de um coquetel cor de romã. Entregou com um bilhete.
Fleur olhou o papel, leu com os olhos apenas, e sorriu. Um sorriso diferente, blasé, que não chegava a lugar nenhum. Levantou a taça, sem se dar ao trabalho de procurar o remetente, e voltou ao piano, tocando agora só com a mão direita. O salão, porém, já murmurava. Um casal elegante, no fundo, cochichava baixo. Ele, com um lenço bordado no bolso do paletó. Ela, de cabelo curto e ousado, com um ar de quem se acostumou a ter o que quer. Ambos sorriam na direção da francesa, reconhecendo o próprio reflexo em algo admirável.
Hermione mordeu o lábio. Não por raiva. Por um incômodo quente, ácido, estranho. Um lugar entre o desagrado e o espanto. O vinho perdeu o gosto na boca antes mesmo de descer pela garganta.
Ela sabia, claro, que Fleur era linda. Que chamava atenção. Mas ver acontecer era outra coisa. Ver o mundo se curvar por ela era... espinhoso. Porque Fleur estava tocando para todos. Mas Hermione queria que fosse só para ela.
Fleur encerrou a peça com um acorde limpo, indecente de tão elegante. Foi aplaudida com entusiasmo, mas não fez reverência. Apenas se levantou e andou até o bar, onde Hermione a esperava com o peito mais apertado do que teria coragem de admitir.
– Uma apresentação e um admirador. Impressionante – disse a mais nova, num tom seco.
Fleur notou.
– Não pedi o bilhete – respondeu, tranquila. – Nem a bebida. Mas aceito elogios bem misturados.
– Era um convite?
– Não importa – Fleur bebeu quase todo o vinho branco de Hermione, sem pedir, abandonando o drink anterior. – Você gostou da peça?
Hermione suspirou. Depois assentiu.
– Você tocou... como se quisesse carbonizar o vagão.
Fleur sorriu. E agora o olhar pousou mais demorado sobre ela.
– Posso te contar um segredo? – Aproximou a boca da orelha de Hermione. – Às vezes eu não posso evitar.
A inglesa sentiu um arrepio percorrer por toda sua coluna. Transformou-se em um ímpeto, uma raiva, uma provocação. Queria que Fleur respondesse por aquilo que tinha despertado nela.
Mas Hermione permanecia ali, corpo imóvel e mente em ebulição. O vinho não ajudava. O ar veio mais quente. O vestido que usava começou a incomodar. A própria pele dava impressão de roupa emprestada.
Fleur sentou-se ao lado dela, com a elegância habitual. A bebida oferecida pelo admirador, quem quer que fosse, repousava esquecida sobre o balcão. Ela agora sinalizava para o garçom.
Hermione tentava parecer normal. Boa postura, respiração contida, mãos sobre o colo.
Fleur não forçou conversa. Apenas ficou ali, presente, respeitando o silêncio como quem sabe que ele é, muitas vezes, tão necessário quanto as perguntas.
Hermione não aguentou tanto.
– Você queria ser notada – não era uma acusação, mas quase.
Fleur virou o rosto na direção dela, os olhos gentis e atentos.
– Você acha que eu toquei para chamar atenção?
– Eu... sinceramente...
– Eu toquei porque gosto. Porque conheço piano desde que tinha oito anos. Porque o pianista desse vagão erra mais notas do que posso contar.
Hermione desviou o olhar. Havia um embrulho preso na garganta. Não doía. Só prendia. Vencida, não evitou sorrir. Era uma boba, sabia disso.
– Eu me senti ridícula. Senti ciúmes – admitiu, baixando a voz até quase sumir.
Fleur não se surpreendeu. Apenas se inclinou um pouco para a frente, apoiando o cotovelo no balcão, os olhos brilhantes ainda fixos na outra.
– E por que isso te fez sentir ridícula?
Hermione não soube responder. Ou não quis.
– Não gosto de... sentir esse tipo de coisa – disse por fim.
– Então talvez seja isso o que você está aprendendo esta noite. A sentir ciúmes por alguém que... não espera nada de você.
A garota ergueu os olhos.
– Como assim você não espera nada de mim?
Fleur demorou. Respirou fundo. Depois falou, com uma calma irritante:
– Não me interprete de outra maneira, Hermione. A única coisa que eu peço é que você continue sendo exatamente quem é. Mesmo quando isso te desorganiza.
A resposta pegou Hermione desprevenida. Não havia julgamento ali. Só um amplo caminho de compreensão, um convite para que sentisse todas as coisas, feias ou imaturas, sem se preocupar com como Fleur reagiria. A francesa queria, antes de qualquer outra coisa, transparência.
Elas ficaram se olhando por minutos inteiros. Nenhum gesto fora de lugar. Nenhum toque. Mas deram juntas um passo invisível, um reconhecimento auspicioso.
A segunda taça de vinho branco de Hermione já estava quase vazia quando o homem do bilhete finalmente se aproximou. Era o tipo de pessoa que parecia ter nascido sabendo a medida exata dos próprios passos: nem apressado, nem lento demais. O cabelo bem penteado e a barba feita não soavam casuais.
Fleur notou a aproximação antes que ele dissesse qualquer coisa. Hermione também. O incômodo voltou, quente, mas agora com um toque de curiosidade.
– Mademoiselle, sua música foi... inesquecível – a voz grave tinha aquele tom untuoso de quem elogia para se ouvir elogiando.
A loira virou-se devagar, o sorriso polido, mas distante. Hermione já sabia diferenciar.
– Merci.
– Permita que eu ao menos pague a próxima rolha.
Fleur pousou a taça vazia no balcão e, por um instante, a inglesa pensou que ela fosse aceitar. Mas a loira inclinou levemente a cabeça, aquele gesto elegante que dizia não sem precisar usar a palavra.
– Foi um presente suficiente ouvir o senhor dizer isso. Bonne nuit.
O homem hesitou, confuso entre a gentileza e a recusa. Deu um meio sorriso e se afastou. Fleur voltou o olhar para Hermione, que segurava o riso.
– Você foi implacável.
– Não. Fui justa – Fleur chamou o garçom e pediu mais vinho. – E agora é você quem vai brindar comigo.
As taças se tocaram, um breve tilintar. O primeiro gole desceu como deveria: mais doce, mais fácil. A terceira taça desapareceu rápida, a quarta ainda mais. O salão esvaziava aos poucos, mas o bar seguia aceso, dourado, cúmplice daquelas duas que não pareciam dispostas a deixar a noite terminar.
Hermione riu mais uma vez ao lembrar do pretendente.
– Isso acontece muito com você?
Fleur deu de ombros.
– O quê? Ser perseguida por homens que acham que um lenço no bolso resolve tudo?
– Ser notada. Desse jeito.
A loira virou-se mais para ela, apoiando as mãos no colo, o rosto já mais próximo, o álcool desenhando outra suavidade nos traços.
– Sempre aconteceu. Bill detestava.
Hermione ergueu uma sobrancelha, atenta à naturalidade da confissão.
– Detestava?
– Muito mais do que admitia – Fleur ocupou as mãos novamente, girando a taça devagar entre os dedos. – Todos os homens com quem estive... e as mulheres também... Todos achavam que estavam preparados. Até perceberem que não era só confiar no que eu dizia ou fazia. Era lidar também com o que os outros viam e queriam de mim. O que projetavam. Isso os enlouquecia.
Hermione refletiu quieta, sentindo o vinho subir à cabeça, o calor invadir as bochechas.
– Você fala como se não soubesse o porquê.
Fleur riu, baixo.
– E você fala como se soubesse.
– Você é uma veela.
– Permita-me corrigi-la. Eu sou parte veela. Meu fascínio não é tão forte quanto o de minha mãe e nem se compara ao poder de minha avó.
Hermione bebeu um gole maior. O olhar se perdeu por um momento nas sombras do salão antes de voltar para a francesa.
– Eu não sei se você já se olhou no espelho, Fleur. Mas tudo o que eu consigo ver... é uma versão terrena de Afrodite.
Fleur ficou quieta por um instante. Não riu. Não agradeceu. Só deixou a frase pairar, saboreando o que aquilo significava, tal qual um vinho raro, antes de engolir.
– Ma belle... você está mais bêbada do que eu.
Hermione sorriu, já não se importava mais em parecer sóbria.
– Pode ser. Mas estou certa.
O garçom trouxe mais um refil. Nenhuma das duas pediu. Era como se a noite, o piano e o próprio vagão dissessem: mais um pouco.
A conversa mudou de cor, mais solta, quando falaram sobre as músicas que Fleur sabia tocar. Dos lugares que Hermione viu e não quis deixar. De gente que passou pelas vidas delas e deixou só um nome na memória, nada mais.
– Vem. Vou te levar em casa – disse Fleur, com aquele sorriso que misturava cuidado e diversão.
Hermione riu baixo, o vinho ainda perfumando sua boca.
– Parece que eu bebi um pouco mais do que deveria.
– Nunca se arrependa da quantidade de vinho tomado, ma belle.
– Você diz isso antes da ressaca.
– Exatamente. Vem.
Saíram do vagão-bar devagar, o corredor das suítes oscilando sob os pés. O barulho dos trilhos era o único som que acompanhava as duas. Hermione caminhava um pouco à frente, depois desacelerava para esperar Fleur, porque o ritmo certo estava quando andavam juntas.
Na cabine 87, ela parou. O trem balançava suave, e o mundo lá fora era só escuridão e reflexo. Fleur se encostou na parede ao lado da porta, as mãos nos bolsos do vestido, o corpo ainda entorpecido pelo calor da noite.
Hermione demorou para virar a maçaneta. O olhar preso no azul profundo de Fleur, ainda havia alguma pergunta por fazer.
– Você quer entrar? – a voz saiu mais baixa do que planejou.
Fleur tirou as mãos dos bolsos, se aproximou um passo, só o suficiente para o rosto ficar perto demais.
– Ma belle... não hoje – ela era doce e decidida.
Mas antes que Hermione pudesse baixar o rosto, envergonhada do próprio impulso, Fleur levantou a mão e tocou o queixo dela com os dedos. O polegar traçou um caminho sinuoso na linha da mandíbula, reconhecendo um território. E então a beijou.
Não foi um beijo apressado, nem um roubo. Foi um beijo que dizia eu sei, que pedia guarde isso, que dava só o necessário para que não restassem dúvidas. O gosto do vinho, da noite, do não-dito.
Quando Hermione tentou aprofundar, quando o corpo quis mais, Fleur se afastou para olhar de novo nos olhos dela.
– Você merece lembrar. Lembrar com clareza.
O trem oscilou. O silêncio entre as duas era mais barulhento do que qualquer ruído dos trilhos. Fleur passou a mão no braço dela, um último toque, selando um acordo que nenhuma das duas pronunciou.
– Bonne nuit, Hermione.
Virou-se, tirou as sandálias prateadas para melhorar o equilíbrio e caminhou devagar pelo corredor. O vestido negro desapareceu aos poucos na penumbra.
Hermione ficou por um momento, encostada no portal, o coração batendo mais rápido do que estava acostumada. Passou os dedos nos próprios lábios, tentando prender o instante no corpo antes que ele escapasse. Depois entrou, trancou a porta, e sorriu sozinha no escuro.
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Notes:
Mademoiselle
SenhoritaMerci
ObrigadaBonne nuit
Boa noiteMa belle
Minha bela / linda
Chapter 5: Parte V - Brioches e coisas mal disfarçadas
Chapter Text
O vagão-restaurante já estava quase cheio quando Hermione entrou. Os passageiros pareciam mais animados naquele início de manhã: falavam sobre a chegada iminente a Veneza, combinavam horários, comentavam sobre a previsão do tempo e a programação das gôndolas.
Ela só queria café. E um certo silêncio bem específico.
Vestia um suéter azul claro por cima de uma blusa branca com botões, o cabelo ainda úmido do banho. Dormira mal. O corpo cansado, a cabeça cheia de metáforas e comparações. Fleur ao piano voltava em flashes: o vestido escuro, os dedos nas teclas, o beijo breve demais para ser suficiente.
Aquele beijo. Um toque de lábios, mas muito mais do que isso. Registrou-se na memória com a intensidade de um raio. Só de pensar, veio a sensação de vertigem. A racionalidade, sua companheira constante, dissolveu-se no ar, substituída por uma corrente elétrica que percorria seu corpo. Perguntava-se o que Fleur esperava dela, o que elas eram. Seria apenas uma despedida bonita? Ou havia algo profundo, algo que Hermione, em sua cautela habitual, ainda não conseguia decifrar?
O que sentia começava a se esboçar em rascunho. Era o eco de algo que se acendeu e se recusava a apagar. Um cintilar novo e interno. Um lugar que foi ocupado só para segurar a porta aberta, exposta, vulnerável.
Fleur já estava sentada. Mesa para dois. Jornal dobrado ao lado, um cesto de brioches no centro, uma jarra de suco de laranja pela metade e uma prensa francesa com café fresco. O tilintar suave dos talheres e o burburinho abafado das conversas dos outros passageiros criavam uma sinfonia matinal, mas para Hermione, o som mais proeminente era o ritmo constante dos trilhos sob o vagão, uma batida que ecoava em seu próprio peito. A luz da manhã, filtrada pelas janelas, banhava a cena em um tom amarelo, destacando os fios soltos do cabelo de Fleur e o brilho em seus olhos. Quando viu Hermione, apenas apontou com um gesto discreto para a cadeira oposta.
– Bonjour – disse com suavidade.
– Bom dia – respondeu Hermione, sentando-se.
Pausa. Fleur serviu café para ela sem perguntar. Uma ação automática, mas íntima.
– Dormiu bem? – arriscou.
– Não muito. E você?
– Também não. Culpa minha?
Hermione desviou o olhar por um segundo, focando-se nos adornos da xícara que recebeu.
– Culpa... não. Mas incentivo, sim.
Fleur partiu o brioche com os dedos, sem levantar os olhos.
– Pensei em voltar – confessou. – Depois que te deixei na cabine.
– Eu pensei em ir atrás de você.
– E por que não foi?
– Porque você sabe ser bem racional – Hermione suspirou antes de adoçar o café. – E, ok. Fiquei pensando no que você disse no vagão-bar... Cheguei à conclusão de que não sei o que fazer com alguém que não me cobra nada. Que só... permanece.
A frase dita por Fleur ressoava na mente de Hermione, uma melodia que tocava desde a noite anterior. Era um conceito tão alienígena para ela, acostumada a relacionamentos onde as expectativas eram pesadas, as cobranças explícitas ou implícitas, e o desempenho, uma constante. Com Ronald, havia sempre a sombra das expectativas de sua família, a pressão para ser a "esposa doméstica", a necessidade de esconder seu valor. Com Fleur, não havia nada disso. Apenas uma presença calma, um espaço aberto para que Hermione fosse quem quisesse ser, sem julgamentos ou exigências. Era libertador e, ao mesmo tempo, assustador. A novidade dessa ausência de pressão era quase inebriante, mas também a deixava desorientada. O que se faz quando não há um roteiro, quando a única regra é a autenticidade?
– Isso é uma coisa bonita de se admitir.
Hermione a encarou. Fleur parecia mais leve naquela manhã. Menos protegida. Os olhos sem sombra, as mãos relaxadas ao redor do copo.
– Você é diferente do que eu imaginava – disse Hermione, enfim.
– Pensei que você já tivesse chegado a essa conclusão. Bem, convenhamos, a garota do Tribruxo não era amigável mesmo...
– Não era isso. Eu... sempre te achei um tipo de mulher que só existe à distância. Bonita, elegante, inalcançável. Como uma pintura em galeria. Faz sentido?
Fleur sorriu, havia algo sincero ali. Mas por trás do sorriso, o brilho em seus olhos oscilou.
– Pintura em galeria... – repetiu, mexendo no copo. – Sabe o que é curioso?
Hermione manteve o olhar atento.
– Todo mundo admira uma pintura. Mas quase ninguém se pergunta verdadeiramente o que ela quer dizer.
A frase ficou no ar como um eco, e Hermione, pressentindo que viria mais, apenas aguardou.
– Desde muito nova, me acostumei a ser olhada – continuou Fleur, o tom ainda calmo, mas com uma densidade diferente. – Admirada. Observada. Desejada. Classificada. E isso tem um preço.
– Qual? – perguntou Hermione, num sussurro quase involuntário.
– O de ter que lembrar os outros, o tempo inteiro, que eu não sou um pedaço de lona com camadas de tinta e uma moldura em volta.
Hermione quis responder, mas se conteve. Fleur não parecia zangada. Só... exausta de uma batalha antiga. Deveria se desculpar? Pensou, aflita.
– Você me olha diferente – disse a loira, por fim. – Mas às vezes, mesmo assim, eu sinto que estou sendo lida pela capa.
– Eu não quero fazer isso com você – Hermione disse, com sinceridade imediata.
– Eu sei. Por isso ainda estou aqui – Fleur deu um pequeno gole no suco, depois completou: – Mas eu não sou uma "versão terrena de Afrodite", mon ange.
Hermione hesitou. Não queria parecer condescendente. Nem afoita.
– Estou vendo. Afrodite não comeria o último pedaço de brioche sem avisar.
Fleur olhou para o cesto vazio com uma expressão teatral de culpa.
– Oh, meu Merlin, fui desmascarada!
Hermione riu, balançando a cabeça. Fleur mordeu o último pedaço de brioche com fingida inocência. Do lado de fora, os canais começavam a surgir no horizonte. Veneza estava próxima. O fim da viagem se anunciava com a sutileza impiedosa das coisas bonitas que não duram o suficiente.
A chegada foi tão efêmera quanto a saída. O trem diminuiu o ritmo ao se aproximar da estação Santa Lucia, cruzando as últimas pontes como se flutuasse sobre espelhos. Era fim de manhã. O sol refletia nos canais, e a cidade surgia magnífica. Os edifícios antigos, com suas fachadas coloridas e janelas adornadas, emergiam da névoa matinal, como uma pintura renascentista ganhando vida. O cheiro de água salgada e mofo, característico de Veneza, misturava-se ao aroma adocicado das flores que adornavam os canteiros. O murmúrio de vozes em italiano completavam a imersão, criando uma atmosfera de sonho. Hermione sentiu uma pontada de melancolia ao perceber que a jornada no trem estava chegando ao fim, mas a beleza da cidade que se revelava à sua frente prometia novas descobertas.
Os passageiros se agitaram. Malas, casacos, acenos. Hermione guardou o caderno na bolsa com cuidado. Fleur dobrava o lenço do pescoço com calma, agindo como se o trem ainda tivesse quilômetros pela frente.
Desceram juntas.
A plataforma de desembarque era feita de pedra clara. Pessoas iam e vinham com passos decididos. Fleur carregava uma pequena mala prateada com rodas, elegantemente simples. Hermione, apenas uma bolsa, certamente ampliada por um complexo feitiço de extensão. Nenhuma das duas parecia saber para onde ir.
– Onde você vai ficar? – perguntou a inglesa.
– Um hotel perto da Ponte dell'Accademia. E você?
– Em um flat alugado por trouxas. Vista para um canal pequeno – Hermione olhou ao redor para se localizar. – Você quer... companhia para o caminho?
Fleur a olhou com cuidado, medindo o que estava sendo dito; e o que não estava.
– Quero.
O caminho até o hotel foi contemplativo. Passaram por ruelas estreitas, pontes de pedra, pequenas lojas que vendiam máscaras douradas e artigos de couro. Em certo ponto, uma senhora lhes ofereceu uma flor. Fleur comprou uma rosa, vermelha, e a entregou a Hermione sem dizer porquê.
Hermione aceitou a rosa, sentindo a delicadeza das pétalas aveludadas contra seus dedos. Era um gesto tão simples, mas tão inerente à Fleur... Não se lembrava se algum dia Ronald lhe entregou alguma flor. Qualquer flor. Ela segurou o adorno com cuidado, protegendo um tesouro frágil, e um pequeno sorriso se formou em seus lábios.
Quando chegaram à porta do hotel, pararam.
O momento se esticou. Era agora. A parte onde uma pergunta precisava ser feita, ou a chance escorreria para dentro de um vaporeto qualquer.
– Vai ficar quanto tempo? – perguntou Hermione, sem fingir naturalidade.
– Três dias. Depois... talvez Paris.
– E se eu ainda estiver aqui?
Fleur não respondeu logo. Apenas olhou para o rosto da sua companhia, tentando desvendá-la.
– Então me encontre aqui, na terça. Às dez da manhã.
– Por quê?
– Porque, se você vier, eu não vou embora.
Hermione assentiu. Havia cor nas bochechas dela. E alguma coisa nos olhos que parecia princípio de riso ou de choro.
O convite de Fleur pairava no ar, em desafio e promessa. Era um ultimato gentil, uma aposta na sua própria coragem. A incerteza dançava em seus olhos, mas também uma faísca de excitação. O que aconteceria se ela fosse? O que aconteceria se ela não fosse? A decisão era dela, e a liberdade dessa escolha era assustadora. O olhar de Fleur, franco e atento, penetrava em sua alma, lendo seus pensamentos mais íntimos. Era um momento crucial, um divisor de águas, e Hermione sabia que a resposta a essa pergunta moldaria os próximos dias, talvez até mesmo o futuro.
– Você não vai me enviar um convite?
– Não. Quero que você venha porque quer.
Um último olhar. Depois Fleur entrou.
Hermione passou o resto do dia andando. Sem mapa, sem pressa. Os canais a puxavam como um feitiço convocatório. Cada imagem, cada som, cada cheiro parecia amplificar a sensação de que Veneza era um lugar onde as palavras eram desnecessárias, onde as emoções eram sentidas e compreendidas em um nível mais profundo. Era uma ironia, pensou Hermione, estar em uma cidade tão romântica e sentir-se tão à flor da pele, tão à mercê de possibilidades que ela mal cogitara antes.
Sentou-se em frente a uma livraria que flutuava, os livros empilhados como barcos. Passou os dedos pelas lombadas úmidas, mas não levou nenhum. Já tinha palavras demais dentro de si. E havia ainda a poesia de Baudelaire.
Parou para almoçar e, quando o garçom sorriu, seu primeiro impulso foi perguntar se ele conhecia alguém chamada Fleur. Riu sozinha. Era o tipo de pensamento que antes ela teria vergonha de manifestar.
Agora, só registrava.
No meio da tarde, encostou-se à balaustrada da Ponte Rialto e ficou observando os barqueiros. Pensava que era bom estar sozinha. Que precisava disso. Que queria isso.
Mas toda vez que o dourado tocava a água, lembrava dos cabelos de Fleur pela manhã. Toda vez que ouvia francês, mesmo num sussurro de turista, alguma parte de sua atenção se voltava. E quando fechava os olhos por mais de dois segundos, a única melodia que lhe vinha à cabeça era Vivaldi.
Ainda na ponte, o sol se punha, pintando o céu de tons rosados que recoloriam também as águas do Grande Canal. Hermione observava as silhuetas escuras contra o entardecer, e sentia uma estranha paz.
Era isso, então? A saudade. A vontade. A energia. Sorriu, porque deu-se conta de que já havia amado antes, sim, mas nunca havia se apaixonado.
Ela me vê. Foi isso que pensou. Não apenas olhava. Via. Hermione, com todas as suas durezas, rigores, camadas. E não tentava fugir.
A inglesa procurava lembrar de alguma outra vez em que se sentira assim. Não exatamente segura. Mas... aceita. Sem esforço. Sem desempenho. Não conseguiu.
Na segunda noite em Veneza, escreveu em seu caderno com letra apressada:
"Ela não esperava nada de mim. E, por isso, me deu espaço para tudo."
A caneta deslizava sobre o papel, as palavras fluindo de sua mente para a página, um testemunho de uma revelação profunda. Hermione reescreveu a última frase mais algumas vezes, querendo gravá-la de verdade em sua alma. Era a essência do que a atraía em Fleur.
A rosa vermelha, agora um pouco murcha, repousava sobre a escrivaninha, um lembrete de que não estava sonhando.
Na manhã seguinte, ao acordar, a cidade estaria mais viva. Não porque era Veneza. Mas porque ela estava ali, em algum lugar. Fleur.
E amanhã era terça-feira.
Chapter Text
O relógio marcava 9h47 quando Hermione virou a esquina da rua estreita que levava ao hotel de Fleur. Usava uma regata branca e, por cima, uma blusa leve de linho, uma bolsa transpassada no ombro e o cabelo solto, confiante de que não precisava prendê-lo. Não correu. Andou com firmeza, mas o coração batia contra as costelas com alguma violência.
A francesa já estava na porta. Sentada em uma das cadeiras de vime do pequeno café ao lado, com uma xícara nas mãos e os olhos fixos no canal. Quando viu Hermione se aproximando, não sorriu. Esperou. Quis ter certeza.
– Você veio.
– Vim.
– Posso... posso perguntar porquê? – Fleur e seus questionamentos perspicazes.
Hermione engoliu seco. Mirou os próprios pés por um segundo. Depois, ergueu os olhos.
– Porque... desde que desci daquele trem, tudo me parece um pouco mais cinza. Exceto a ideia de te ver de novo.
Fleur deixou a xícara sobre o pires. Devagar. Depois se levantou, agora sim com um sorriso solar, beijou Hermione no rosto, demorou-se um segundo a mais sentindo o perfume que emanava do pescoço dela, e fez sinal para que se sentassem juntas no café.
– Eu também preciso te fazer uma pergunta – disse Hermione, quando já estavam frente a frente. – E preciso que seja honesta. Mesmo que você suponha o que eu quero ouvir.
A francesa assentiu, brincando com um sachê de açúcar que estava sobre a mesa. Preparada para qualquer feitiço, menos a sensação de que pudesse, com uma resposta errada, magoar Hermione.
– O que você sente por mim?
A pergunta caiu entre elas com precisão e Fleur não respondeu logo. Desviou os olhos do sachê. O canal, os pombos, os barcos, as sombras. Depois, voltou-se para a inglesa.
– Ainda não tenho nome pra isso. Não sei se é desejo, fuga ou reencontro. Mas o que eu sei... é que... quero um segundo beijo.
Hermione fechou os olhos por um instante. Estava resistindo demais para não deixar o gesto soar errado.
– Eu precisava saber se era só coisa da minha cabeça – murmurou.
– Não é. Eu prometo.
Fleur estendeu a mão por cima da mesa. Hermione segurou, sem pestanejar. E naquele instante, entre o som de água batendo nas pedras e um ambulante vendendo limões em uma carroça, elas não se beijaram.
O sol do meio-dia dourava as superfícies quando Fleur, com um gesto corajoso, entrelaçou seus dedos aos de Hermione e a guiou pelas ruelas no entorno. Elas trocaram muitas palavras desimportantes enquanto exploravam Veneza, mas havia algo a mais agora. A cumplicidade dos olhares que lançavam uma à outra dava a impressão de que ambas partilhavam um segredo.
Chegaram ao destino sugerido pela francesa, uma pequena trattoria, um achado infelizmente cheio de turistas, com uma fachada coberta de hera e algumas mesas de madeira dispostas perigosamente perto da beira de um canal menor. O lugar cheirava a alho, manjericão fresco e maresia. Sentaram-se sob um toldo de lona desbotada, e o garçom, um senhor de bigodes brancos, cumprimentou as duas com um aceno educado.
O prato escolhido foi a sugestão do dia, Spaghetti al Nero di Seppia, uma massa escura e intensa, tingida com a tinta da lula, salpicada de salsinha e com o sabor profundo do mar. Quando a carta de vinhos chegou, Fleur a empurrou suavemente na direção de Hermione.
– Sua vez, mon ange. Surpreenda-me – disse a loira, com um brilho desafiador nos olhos azuis.
Hermione, que normalmente se sentiria pressionada pela escolha, foi invadida por uma onda de confiança. Percorreu a lista com o dedo e, lembrando-se de uma recomendação do pai feita há muito, em um jantar anterior, apontou para um Soave Classico.
– Um branco seco da região de Vêneto – explicou ela, lendo as especificações no cardápio que segurava como se soubesse o que tudo aquilo significava.
Fleur sorriu, satisfeita.
– Perfeito. Complementa frutos do mar, sem roubar a cena.
– Não sou uma profunda conhecedora de vinhos, Fleur. Em algum momento, você pode me corrigir se for necessário.
Sem diminuir o sorriso, a francesa buscou os olhos castanhos. Ela poderia escolher várias respostas para o comentário de Hermione, e decidiu por uma que contava um pouco da sua história, com imensa vontade de compartilhar o que era importante saber.
– A minha avó – começou Fleur, depois que o vinho escolhido por Hermione foi servido em duas taças – herdou um vinhedo pequeno em Bourgogne. Passei a minha infância nesse lugar, aprendi a provar vinho em uma idade que você certamente reprovaria.
Intrigada, Hermione franziu o cenho. Em resposta, a francesa levantou as sobrancelhas, indisposta a discutir as questionáveis tradições da família Delacour.
– Compreendi muito cedo sobre o sabor, a entender o tempo, o solo, o cuidado... o respeito pela terra...
– Você sente falta? Digo, de Borgonha?
Fleur assentiu, afastando-se por um instante do presente, imaginando as vinhas em sua mente.
– Mais do que tudo. Grand-mère sempre me dizia que tomar vinho era como ouvir uma história. A gente aprendia a escutar o silêncio, as nuances, as ausências... – sorriu docemente. – Ela era rigorosa, mas fazia tudo com uma paciência que eu ainda tento entender.
Hermione deixou a colher no prato, querendo absorver cada palavra. Fleur estava contando algo importante, não precisou de muito para perceber.
– Eu comecei a andar entre as parreiras, se eu fechar os olhos... – respirou fundo – consigo sentir a textura da terra molhada sob meus pés... – os olhos de Fleur encheram-se de lágrimas, que ela prontamente disfarçou. – Grand-mère me pedia para sentir o cheiro das folhas, para ver se estavam prontas para a colheita...
– Consigo imaginar a pequena Fleur só de fraldas comendo as uvas doces pelo caminho...
– Foi uma infância feliz... – Fleur enrolou o macarrão no garfo. – Gostaria que Gabby pudesse ter crescido assim também. Mas já tínhamos nos mudado para Paris quando ela nasceu.
– E como Gabrielle está?
– Crescida, uma adolescente de dezesseis anos. Estuda em Beauxbatons e pretende se tornar curandeira.
– O tempo realmente passou... Ela era uma linda versão sua em miniatura.
– Ah, não se engane, mon ange. Só temos a aparência em comum.
Hermione então sorriu para Fleur. Estava se acostumando rapidamente com o apelido carinhoso com que a francesa a vinha tratando. Era a óbvia intimidade adquirida. Pensou se deveria inventar um para ela também.
– Em Londres, onde cresci, tudo parecia um pouco mais fechado. Minha casa era adulta demais para uma filha única, e as expectativas pesavam. Havia muita leitura, muitos debates, muito estudo. Mas pouca conversa sobre o que uma criança queria ser, sabe?
Fleur a olhou com atenção, curiosa.
– E você sabia o que queria?
– Não, não exatamente. Eu era muito prática. Pensava que a vida era uma série de tarefas, que o mais importante era cumprir o que esperavam. Mas sempre achei que, em algum lugar, havia algo que me escapava – Hermione respirou fundo –, mesmo em Hogwarts.
A francesa assentiu, devagar, compreendendo. Talvez por ser mulher, talvez por ser mestiça, ou talvez por estar se apaixonando.
– Eu me pergunto quantas vezes a gente se perde nesse meio tempo em que tentamos descobrir o que escapa. Entre o que esperam de nós e o que a gente sente.
– É, com todo respeito, uma grande merda.
– Une grosse merde!
– Gosto quando xinga no seu idioma – comentou Hermione, encantada. – Você deveria fazer isso mais vezes.
– Boba – a loira sorriu para a taça de vinho antes de tomar um gole.
Por um momento, restou um silêncio confortável entre elas, quebrado pelo tilintar dos talheres na medida em que comiam.
– Você fala bastante sobre a sua avó – observou Hermione.
– Grand-mère é uma mulher forte – respondeu Fleur, sem hesitar – Uma mulher que não se deixa vencer pelo que os outros pensam. Há nela uma dignidade... um orgulho... você a respeita só de olhar para ela... E, ainda assim, tem uma ternura... um abraço confortável... onde você pode, sabe, simplesmente contar seus piores medos sem se sentir desamparado.
– Vocês têm aquilo, não é? Aquela... ligação...
– É, nós temos. Gosto de pensar que sou sua neta favorita, embora...
– Ela nunca tenha dito?
– Ela nunca tenha dito.
O almoço terminava com os pratos vazios quando Hermione percebeu, antes que Fleur, que a luz começava a esmaecer. O sol, que há pouco banhava Veneza com aquele dourado intenso, mergulhava no âmbar, espalhando sombras longas pelo cenário.
Elas estavam sentadas, agora lado a lado, compartilhando o toque de suas mãos, absorvendo os sons da cidade como expectadoras, quando uma voz surgiu perto da mesa, suave e inconfundivelmente teatral.
– Buonanotte, ragazze, ecco a voi... Posso interromper? – perguntou, em forte sotaque italiano, uma mulher com um véu preto translúcido cobrindo os cabelos também pretos, olhos brilhantes encantados. – Vejo que estão entrelaçadas com a incerteza e a promessa.
Fleur sorriu, interessada, inclinando-se um pouco para frente para ouvi-la.
– Digam-me, belas almas, querem que eu leia suas mãos? Revelar o que os astros sussurram para vocês?
Hermione ergueu uma sobrancelha, um pouco tensa, mas se esforçando para manter a educação na voz.
– Obrigada, nós não...
Foi interrompida pelo gesto de Fleur estendendo a mão para a mulher, que sorriu.
– Eu aceito – disse a francesa, dispensando ceticismos. – O que você me diz?
A vidente, sem perder a compostura, seus olhos brilhando com mistério, espalmou a mão esquerda sobre a de Fleur. Hermione achou melhor não mencionar suas opiniões sobre Adivinhação naquele momento.
– Ah, minha jovem, a verdade é mais fluida do que imaginamos. Mas só cabe a mim mostrar os caminhos que talvez você não enxergue.
A mulher tocou a mão de Fleur com os dois polegares, os dedos enrugados e finos deslizando pelas linhas da palma. Seus olhos verdes pareciam mergulhar naquele labirinto invisível de possibilidades.
– Sua linha da vida é longa – começou ela, a voz suave como brisa. – Mas não é o comprimento que importa, e sim o que você faz com ele. Vejo que há decisões que moldam o destino como a água molda a pedra. Você é uma alma que se entrega à corrente, mas ainda não sabe quando nadar contra ela.
Fleur inclinou a cabeça, um sorriso pequeno se formando nos lábios. Hermione percebeu a empolgação quase infantil nas reações da francesa. Ela não pode estar acreditando nisso, pode? É a coisa mais genérica que alguém poderia prever, sentenciou internamente.
A vidente então voltou-se para Hermione, pedindo sua mão com a mesma reverência.
– Você tem uma mente que busca certezas, não é? Regras claras, mapas traçados. As linhas em sua palma indicam resistência, uma alma que desafia o que vem do céu e da terra. Seu caminho é tortuoso, cheio de encruzilhadas, mas cada dúvida é um passo que você mesma escolheu dar. Observe quando se entregar ao acaso.
Hermione evitou dar de ombros, um pouco desconfortável, mas sem deixar transparecer.
– E o amor? – perguntou Fleur, encarando-a curiosa.
A vidente sorriu, como se já esperasse a pergunta.
– O amor para vocês é um enigma, uma tempestade antes da calmaria. Vejo que o maior obstáculo não está no mundo aqui fora.
Hermione olhou para a mão que a vidente ainda segurava e depois para Fleur, pensando nas tantas vezes que havia tentado desenhar o futuro em planos rígidos e, ainda assim, sido surpreendida pela vida.
– Vocês duas caminham juntas – disse, emanando certeza. – Precisam descobrir a velocidade dos passos uma da outra e, talvez, nesse entrelaçar, aprender que somos todos poeira cósmica.
A inglesa guardou a carteira com um suspiro discreto após pagar a vidente com uma nota de vinte. Para ela, as palavras ditas pela mulher ainda soavam como um jogo de cena. Fleur ajeitou a bolsa no ombro, tranquila, claramente satisfeita com a experiência.
Levantaram-se juntas, as cadeiras fazendo um leve rangido contra o piso de pedra da trattoria. O céu já mudava de cor outra vez, ganhando tons de púrpura, e elas mal notaram a chegada da noite.
Caminharam sem pressa até a Piazza San Marco. A basílica de mesmo nome se impunha diante delas, com seus mosaicos bizantinos reluzindo sob a luz dos postes. O campanário erguia-se firme, observando a cidade coberta por telhados vermelhos que se espalhavam até onde a vista alcançava.
Fleur virou o rosto para Hermione, com aquele olhar de curiosidade que a acompanhava desde o almoço.
– Você não me parece acreditar em destino...
– Confesso que não sou a maior entusiasta de previsões para o futuro... Aquela mulher... ela certamente diria qualquer coisa por dinheiro.
A loira ficou observando sua companhia por um momento, passou os dedos pela alça da bolsa por não saber o que fazer com as mãos.
– Eu entendo – disse, por fim, com a voz tranquila – mas para mim... o destino não é sobre certezas. É um convite para prestar atenção.
Hermione pôs as mãos nos bolsos de trás dos jeans, o olhar erguido para o céu de poucas estrelas.
– Não posso negar que já tentei acreditar nessas coisas. Mas não deu certo. Na verdade, foi humilhante...
– Compartilha?
– Bom... eu... ok... em Hogwarts... eu me inscrevi para as aulas de Adivinhação, no terceiro ano. Não demorou muito para que eu questionasse alguns métodos da professora Trelawney. Estava me dando nos nervos a quantidade de vezes que ela previa a morte do Harry... sem o menor critério...
– Ela não estava exatamente errada, não é? – Fleur ofereceu um sorriso.
– Certa ou errada – Hermione revirou os olhos –, ela me expôs na frente de todo mundo, disse que eu não tinha "visão" suficiente, que meu ceticismo me cegava para o invisível. Depois disso, larguei a matéria.
– Que jeito duro. Ela não pareceu aberta ao diálogo?
A grifinória balançou a cabeça, um sorriso amargo no canto da boca.
– Absolutamente não. Para ela, questionar era sinônimo de não acreditar. E no mundo dela, a gente tem que acreditar, sem dúvidas.
Fleur suspirou, olhando para a praça onde um vento fresco abrandava o calor do dia.
– Talvez seja esse o ponto. Aceitar que existe algo maior não deveria significar passividade. Faz sentido?
– Não muito – admitiu Hermione, sem se render –, é um abismo enorme... entre ouvir o que o universo tenta dizer e deixar que qualquer pessoa com uma lábia convincente dite o que tenho que fazer.
A inglesa virou o rosto, encarando Fleur que retribuía desafiadora. Afinal, Hermione estava discordando dela como poucos tinham coragem de fazer.
– Provavelmente é só o meu medo de perder o controle falando mais alto... – Continuou. – De entregar demais essa parte minha que gosta de entender, de questionar, de construir respostas sólidas.
Fleur sorriu, gentil, sem pressa.
– Essa vontade de entender também faz parte do destino, não? A gente precisa das dúvidas para caminhar.
Um silêncio se instalou, natural e conhecido, enquanto alguns pombos caminhavam por ali, vasculhando migalhas no chão que pudessem bicar.
– Poeira cósmica – murmurou Hermione, mais para si do que para Fleur –, talvez sejamos isso. Fragmentos soltos procurando sentido.
Fleur enlaçou o braço com o dela, e a inglesa encarou o gesto. Algo intenso, cujo o nome já lhe ocorria, se formou no pouco espaço entre os dois corpos.
Notes:
Me deixe saber o que você está achando? <3
Chapter 7: Parte VII - Absinto
Chapter Text
Era a segunda noite em Veneza desde o reencontro. Elas haviam passado o dia caminhando por becos onde ninguém falava inglês. Escolheram lembranças de viagem em vitrines empoeiradas, compraram figos numa quermesse e riram com vinho barato e guardanapos de papel.
Agora, estavam no quarto de Fleur. A janela dava para um canal estreito, então alguns transeuntes buscavam um lugar para jantar ali por perto. A luz amarela estava baixa, e o mundo foi encolhido até caber naquele cômodo.
– Já bebeu absinto? – perguntou a loira, tirando uma garrafa verde-esmeralda de dentro de uma caixa de madeira. A garrafa tinha o rótulo em italiano e lembrava um tanto as poções mágicas na sala do professor Snape.
Hermione negou com a cabeça, sentando-se no sofá de couro caramelo desgastado. A expressão era de genuíno interesse.
– Só li sobre.
– Definitivamente você não vai entender isso apenas lendo.
Fleur pegou dois copos baixos e colocou-os sobre a mesa de centro feita de madeira. Depois, trouxe uma colher perfurada de metal e um recipiente com cubos de açúcar.
– É alquimia – explicou. – A primeira vez que fiz foi aqui mesmo em Veneza. Formatura em Beauxbatons. Uma viagem com quatro amigas e nenhum plano além de cometer erros.
Hermione sorriu, observando como o sotaque de Fleur, que havia diminuído pelos anos em que morou na Inglaterra, retornava brevemente quando precisava dizer alguma palavra em francês no meio da frase.
Fleur despejou um pouco do líquido verde translúcido no copo. Colocou a colher de metal sobre a borda, apoiou um cubo de açúcar sobre ela e, com uma garrafa menor, derramou água gelada devagar.
O açúcar se dissolveu lentamente, e o líquido começou a mudar diante dos olhos de Hermione. Clareando, turvando, transformando-se num verde leitoso, etéreo.
– Tem gosto parecido com varinhas de alcaçuz – suavizou a francesa, entregando o copo a ela.
Hermione aceitou, cheirou antes de beber. Depois, molhou os lábios, pequeno gole.
– É forte.
– Também é doce.
Hermione bebeu mais um pouco. O calor subiu devagar. Não era como vinho ou outra bebida alcóolica que já havia tomado. Era mais afiado. Mais inquieto. O tipo de substância que entregava respostas sem permissão.
– E naquela sua viagem, a de formatura... você cometeu muitos erros?
Fleur pegou seu próprio copo sorrindo imensamente. Girou o líquido antes de responder.
– Absinto não é o tipo de bebida que se toma sozinha... então...
– Então...?
– Foram quatro erros.
Hermione olhou para ela por um segundo longo demais. Teve a impressão de que estava fazendo perguntas muito pessoais. Porém, se pudesse parar pra pensar com clareza, queria a resposta. Queria todas as respostas da mulher a sua frente.
– Quatro erros, Fleur?
– Brigitte. Claire. Laura. Sophie.
– Meu... Merlin! Suas amigas?
– Oui.
– Espera... Você beijou suas quatro amigas?
Fleur assentiu, de maneira alguma, mostrou-se envergonhada e isso era importante. Afinal, quando aconteceu, ela era jovem, solteira e estava disposta a descobrir pequenas nuances sobre si mesma.
– Por que foram erros? – Hermione tentou soar despretensiosa. Uma nota de ciúme alojou-se no peito.
– Você já sabe, eram minhas amigas.
– É meio... confuso para mim, e não, não estou julgando seus erros porque, ah, a gente nem sabe se foram erros, certo? Mas, para mim... Eu só fiquei com quatro pessoas a vida inteira...
– Eu gosto do seu jeito preocupado em se explicar quando fica um pouquinho alta...
O comentário fez Hermione ruborizar, aliás, reagiu como sempre quando Fleur a elogiava. Nesses dois dias em que passaram juntas, elas não haviam se beijado novamente. Trocaram flertes, histórias e mãos dadas. Mas o primeiro e último beijo ficou em movimento naquele vagão do Venice Simplon-Orient-Express.
– Eu sou um erro na sua viagem? – a pergunta escapou antes que Hermione pudesse contê-la.
– Não diga uma coisa dessas.
– Então é por isso que você não me beija?
– O quê?!
– Eu sou um erro que você quer evitar? – O tom era de desafio, uma provocação, mas Fleur não entendeu assim.
– Merlin, não! Você não é um erro, Hermione!
– Eu estou brincando com você – e Hermione riu da própria espontaneidade. Contudo o rosto perplexo de Fleur fez a grifinória hesitar.
– Eu não... Eu não conhecia esse seu senso de humor.
– Ah, acontece às vezes... quando eu quero provocar francesas bonitas.
– Hermione... – Fleur a encarou, bebeu um gole curto, depois acrescentou. – Você está conseguindo.
Hermione não respondeu. Mas não desviou o olhar do profundo azul de Fleur. O coração batendo a mil por hora. Naquele instante, com os copos ainda pela metade e as palavras pairando no ar, ambas souberam, não era mais apenas o absinto que queimava.
A inglesa deitou-se no sofá, com as pernas dobradas para caber, os pés descalços encostando no braço do móvel. Fleur acomodou-se no chão, sentada com as costas contra a lateral do estofado, próxima o suficiente para sentir o calor da outra sem tocá-la.
Alguns minutos em silêncio foram suficientes para que a francesa dissesse algo que ganharia para sempre o coração de Hermione, mesmo que só ficasse sabendo disso muitos anos depois.
– Eu não te beijei ainda porque estou aproveitando cada parte dessa sensação... da expectativa... da espera. Esse quase que está aqui entre a gente.
– Agora é você que está brincando comigo.
– Não, Hermione. Eu estou me apaixonando com todas as pausas.
– Você está se apaixonando por mim?
– Estou.
– Com todas as pausas?
– É. Lentamente.
– Desculpa se isso soar mal educado, mas... você não me parece o tipo de pessoa que tem tanta paciência assim.
– Não soou mal e você não está errada. Eu fui exatamente essa pessoa impulsiva, volátil, que comete erros e depois lida com as consequências.
– Por que comigo é diferente?
– Porque sou uma mulher adulta agora – Fleur sorriu, mas não foi suficiente para reverter a testa franzida de Hermione. O que era perfeitamente compatível, porque, por mais que a inglesa também estivesse adorando a tensão do "ainda não", não sabia quanto tempo ainda poderia resistir.
A conversa vinha em ondas. Assuntos soltos, memórias antigas, confissões e risos inesperados. Comentaram sobre o Torneio Tribruxo e chegaram à conclusão de que a competição inteira estava enviesada. Desde o sistema de pontos, que não ajudou em nada na terceira tarefa, à organização como um todo, à mídia antiética, à escolha de Gabrielle como refém de Fleur. Um absurdo! Concordaram.
– Eu não lembrava que podia rir assim – disse Hermione, com a voz mais baixa.
– Seu sorriso é um bom som – respondeu Fleur. – Mesmo quando você está rindo de mim.
Hermione virou-se um pouco, apoiando o rosto na almofada.
– Fleur, você tem medo?
A loira virou o corpo e ergueu o rosto para ela. Podiam ouvir a respiração entre as pausas das frases.
– Medo de quê?
Hermione não demorou a responder.
– De qualquer coisa. Não precisa pensar muito sobre isso.
– Filosoficamente, então? – Respirou fundo. – Eu tenho medo de me acostumar com o raso. De aceitar da vida menos do que mereço...
Ela se levantou devagar, ajoelhando-se sobre o chão. Estava diante de Hermione agora, que acompanhou o movimento e sentou-se no sofá de pernas cruzadas. Não havia pressa. Nem urgência. Só o mundo em suspensão e uma decisão tomada.
– Eu não sei o que é isso entre nós. Ainda não. Mas eu sei que você... não é... – Os olhos de Fleur pousaram nos lábios de Hermione.
– Não sou...?
– Rasa.
Hermione piscou. E foi então que Fleur perguntou. Sem floreio. Sem drama. Fixando novamente os olhos castanhos.
– Eu posso te beijar?
A inglesa apenas buscou os lábios de Fleur, rosados e entreabertos. As mãos estavam trêmulas. O coração fora do ritmo, indiscutivelmente presente. Elas estavam tão perto. Fleur ainda não se mexera. Hermione tampouco. Mas havia um tipo de movimento no ar, o tipo que antecede os gestos.
A luz amarelada do abajur cortava o quarto, uma colcha morna. O som da cidade lá fora, água contra a pedra, parecia pertencer a outro mundo. Aquele espaço era outro tempo.
Hermione encostou a testa na de Fleur. Os olhos de ambas fechados, tentando se ver por dentro. E veio o beijo.
Primeiro, o mais leve dos toques. Um roçar hesitante de boca com boca. Testando se o terreno era seguro, se era mesmo permitido. Hermione não se afastou. Pelo contrário, inclinou-se mais. Fleur a beijou como quem pede desculpas por ter esperado tanto.
As mãos de Hermione foram parar nos ombros da outra, depois subiram lentamente pelo pescoço até o rosto dela, segurando com o objetivo de ignorar a ansiedade que ainda estava ali, mas infinitamente menor do que o desejo de ficar. Fleur a envolveu pelos braços, puxando-a com cuidado para a ponta do sofá, sem invadir, cada centímetro conquistado com carinho. Não precisavam correr, disso a francesa soube desde sempre.
Lábios entreabertos, respiração partilhada, um leve suspiro vindo de Hermione quando as mãos de Fleur tocaram suas coxas para se apoiar, e permanecer de joelhos.
Elas se beijaram como antigos amantes e ao mesmo tempo se reconheciam outra vez. Imaginaram, sem a outra saber, como seria se aquele beijo tivesse sido trocado em Hogwarts, há quase uma década. O que seria diferente antes? Porque hoje era íntimo e conectado. Era só aquilo, e aquilo era tudo.
Quando se afastaram, as testas ainda coladas, Hermione abriu os olhos primeiro.
– Seus lábios são tão macios...
Fleur sorriu. Pequeno, tímido. Mas transparente.
– E você beija do jeito certo.
Hermione riu baixinho.
– Você está querendo dizer que o nosso beijo se encaixa?
– É exatamente o que estou querendo dizer.
Então...
Veneza as engoliu devagar.
Não houve grandes declarações, nem pactos solenes. Apenas o hábito que foi surgindo, dia após dia: Fleur dormindo com a mão esticada sobre Hermione. Hermione acordando antes e esperando alguns segundos só para ver como Fleur se virava no sono. O café servido na temperatura ideal. O brioche dividido sem discussão. O silêncio respeitado, e os sorrisos que nasciam sem precisar de motivo.
Três dias viraram cinco. Depois sete. Depois, ninguém mais perguntou quanto tempo ficariam.
Tinham uma mesa preferida num café próximo. Um lugar onde a garçonete já deixava dois cappuccinos sobre a mesa assim que as via dobrar a esquina.
Fleur levava Hermione por ruelas onde turistas não ousavam passar, e contava histórias que pareciam invenções, mas nunca eram. Hermione anotava frases soltas em seu caderno. Muitas delas não falavam de política, nem de leis, nem do pós-guerra. Falavam de vento, de vinho, de pele, de riso. De Fleur.
Num fim de tarde, foram surpreendidas por uma chuva fina. Fleur abriu um guarda-chuva vermelho com florzinhas minúsculas. Hermione zombou. Fleur a puxou para debaixo dele.
– Ria o quanto quiser – disse ela. – Mas você está seca.
Hermione a beijou ali mesmo. No meio da rua, com pombos levantando voo e uma senhora franzindo o cenho ao passar.
Não era mais descoberta. Era reconhecimento.
A paixão agora morava nos gestos pequenos: nos dedos entrelaçados dentro do bolso do casaco. No modo como Hermione dizia "bonne nuit" com sotaque. Em como Fleur escrevia o nome de Hermione nas margens dos mapas que riscava quando não sabia o que fazer com as mãos.
Numa manhã qualquer, sem aviso, Fleur acordou e disse:
– Eu tenho certeza de que estou apaixonada por você.
Hermione respondeu com um beijo na testa. E, depois, o olhar emocionado que dizia: eu também.
A noite chegou mansa. O céu, escondido por nuvens pesadas, não ameaçava chuva. Elas haviam passado o dia em Murano, admirando o vidro soprado, rindo das formas estranhas, debatendo sobre qual escultura parecia mais consigo mesma. Voltaram cansadas, com as mãos dadas, e uma vontade pulsando embaixo da pele.
No quarto, Fleur acendeu a luz de cabeceira. Hermione tirou o casaco, passou os dedos pelo cabelo, e ficou ali por um instante, parada. Sabia o que estava prestes a acontecer.
Fleur aproximou-se devagar.
– Você está bem?
Hermione assentiu.
– Só... estou tentando lembrar como se respira quando tudo em mim quer te tocar.
Fleur sorriu, e aquilo já era quase um beijo. Mas não foi ainda.
Ela levou as mãos ao rosto de Hermione, com aquela mesma delicadeza de sempre, pedindo permissão mesmo quando já a tem. Os dedos traçaram a linha da mandíbula, o contorno das têmporas, e então desceram para a nuca.
– Eu vou te tocar devagar – sussurrou.
Hermione fechou os olhos.
– Por favor.
O beijo que veio foi um pouco diferente dos outros. Mais profundo, mais lento, mais certo. As mãos se encontraram na altura do peito, e os corpos se encostaram, ensaiados por mil vezes.
Fleur guiou Hermione até a cama sem pressa, beijando entre as palavras, entre os suspiros. Cada peça de roupa retirada era desfeita. Desabotoada, camada por camada, de tudo o que veio antes.
Os corpos se moveram com uma paciência urgente. A francesa percorreu o centro de Hermione com a mão, molhado e pulsante, o corpo sobre ela, movendo-se, e ouviu seu nome escapar entre dentes. E sentiu unhas marcarem suas costas.
– Fleur, eu vou...
– Vem, mon ange.
Hermione puxou os cabelos de Fleur quando o orgasmo veio, e por um segundo o mundo parou. Podia relatar, sem nenhum medo de soar exagerada, que nunca havia sentido nada parecido na vida. Não daquele jeito. Não naquela intensidade.
Depois foi a vez de Fleur deitar, entregue, enquanto Hermione desenhava constelações em seus quadris com os dedos, até que tudo tremesse sob sua língua. Fleur não chorou. Mas quis. E não era por alívio. E sim porque não esperava que alguém fosse tatear sua alma com tanta precisão.
Quando tudo terminou – ou começou, na verdade – estavam abraçadas sob um lençol branco que cheirava a jasmim. Hermione passou os dedos nas costelas de Fleur, contornando um caminho invisível.
– Eu fiz amor com você...
– ... e eu fiz amor com você de volta – sussurrou Fleur, encaixando o rosto na curva do pescoço dela.
Lá fora, a cidade dormia com o sal suspirando. Serena. Era o tipo de silêncio que só existe depois de dois corpos se aceitarem sem reservas.
Fleur acordou antes. Estava deitada de lado, observando Hermione respirar. Os cabelos bagunçados, a boca entreaberta, a mão ainda pousada, meio solta, sobre a curva de sua cintura. A pele dela parecia mais clara naquela luz cinzenta da manhã.
A francesa não a tocou. Ficou apenas assistindo. Só depois de longos minutos, deslizou os dedos devagar por entre os fios de cabelo castanho, afastando uma mecha do rosto. A inglesa se remexeu. Abriu os olhos.
– Já é amanhã? – perguntou, com a voz rouca e doce de quem ainda não voltou inteira do sono.
– É.
Hermione a olhou. Depois riu baixo.
– Achei que talvez fosse sonho.
– Se for, não me acorde.
Silêncio. Depois, um beijo pequeno no ombro. Depois, outro no canto da boca. Depois, Hermione desceu a mão pelo braço de Fleur e entrelaçou seus dedos.
– Você tá bem?
Fleur assentiu.
– E você?
– Assustada.
– Por quê?
Hermione respirou fundo.
– Porque foi... muito. E eu não me reconheço mais.
Fleur se aproximou.
– Então deixa eu te apresentar – fez uma pausa buscando os olhos castanhos. – Você é alguém que treme quando ouve seu nome dito com carinho. Que beija como se quisesse sugar o mundo pela boca. Que me faz rir mesmo quando tô cansada. E que, ontem à noite, foi mais deliciosa do que qualquer mulher que eu já conheci.
Hermione fechou os olhos. Engoliu seco. E se deitou outra vez, colando o corpo ao de Fleur.
– Então me apresenta de novo amanhã.
– E no dia seguinte também.
– Todos os dias, até eu decorar.
Chapter 8: Parte VIII - Quanto tempo
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O bar do hotel mantinha audível o murmurinho descontraído, decorado em dourado fosco e tons de azul escuro. As taças pendiam do teto como promessas de algo que não viria. Era quase oito da noite, e os representantes do alto escalão do mundo bruxo de dezenas de países já haviam se dispersado depois do primeiro dia do congresso. As conversas sobre acordos, tratados e segurança mágica pareciam ter sido deixadas para trás, dissolvidas em goles de bourbon e sorrisos diplomáticos.
Hermione estava sentada no balcão, de costas para a cidade que se erguia através das janelas que iam do chão ao teto. Vestia um blazer escuro, a camisa aberta no colarinho, o cabelo já desfeito caía pelos ombros. Havia uma taça de vinho branco diante dela, quase intocado, e um caderno fechado ao lado. A caneta tinteiro presa entre os dedos. Ela ainda não sabia porque não tinha subido para o quarto.
Do outro lado do bar, Fleur a viu.
Estava entrando depois de uma breve reunião com a delegação alemã, cansada, mas inquieta demais para dormir. Trazia um vestido preto com mangas que cobriam seus ombros, os cabelos presos em um rabo de cavalo baixo. Reconheceu Hermione de costas. Pelo modo como ela segurava a caneta. Pelo jeito de não beber. Pela solidão serena.
A saudade veio antes do passo. Fleur caminhou devagar. Hermione ergueu o semblante. E quando seus olhares se encontraram, algo parou. Não era dor. Nem mágoa. Era uma outra emoção.
A francesa parou ao lado dela. Não disse "oi". Não disse "quanto tempo". Disse:
– Ainda escreve em cadernos?
Hermione sorriu. Triste. Honesto.
– Ainda.
Fleur se sentou sem perguntar se podia. Por um momento, não disseram mais nada, apenas se olharam, repararam nos detalhes, nas mudanças. Quase combinado, há quase uma década, que o silêncio quase seria o idioma do reencontro. O barman veio.
– No que posso ajudá-la? – perguntou a Fleur, em alemão.
– Um old fashioned, por favor – ela respondeu. Depois olhou para Hermione. – Posso te pagar um drink? Ou isso agora exige protocolo internacional?
– Só se vier com cláusulas de cooperação.
Sorriram. Foi fácil demais. Assustadoramente fácil. O drink chegou, algo com uísque, meio amargo, e elas brindaram sem tocar os copos. Os olhos fizeram isso por elas.
– Você está bem? – perguntou Fleur, com cuidado.
– Estou – Hermione bebeu um gole. – Você?
– Vendo você agora... percebo que estive sempre um pouco menos do que poderia.
Hermione respirou fundo, desviou o olhar para o barman adicionando uma cereja em um manhattan. Fleur adorava aquilo, o flerte. Hermione não estava pronta, por isso mudou de assunto.
– Não estou acostumada a te ver bebendo drinks misturados...
O comentário fez a francesa sorrir, mas não porque havia humor. Era triste pensar que Hermione não estava mais acostumada com nada em relação a elas.
– Preciso de algo mais forte depois de encarar um dia inteiro discutindo o acordo de comercialização de magia Veela com os governos das américas. Não sei se saio viva até o fim de semana.
– Tenho dificuldade para entender a pauta, isso não é segredo dos clãs gauleses?
– O texto presume que sim. – A loira acompanhou o olhar de Hermione. – Mas não cabe a mim decidir. A notícia deve sair em todos os noticiários amanhã.
– Espero que seja uma boa decisão.
– Esperamos, mon ange.
Hermione levantou os olhos rapidamente, surpresa com o apelido.
– Não use isso. – O tom não foi duro, mas não havia sorriso.
– Eu esqueço que certas palavras ficaram presas em outro tempo – admitiu Fleur, pousando o copo no balcão. – Desculpe.
– Está desculpada.
Mais uma pausa. Uma batida lenta de tempo. Hermione finalizou sua bebida.
– Você já jantou?
– Não.
– Janta comigo?
Os olhos de Fleur brilharam antes de assentir. Hermione pegou o caderno, apertou com firmeza, e o guardou na bolsa.
– Você conhece algum lugar?
– Achei um wirtshaus aqui perto.
– Wirtshaus? – Hermione testou a palavra na boca.
– Uma espécie de taverna. – Fleur ajeitou a alça da bolsa no ombro. – Mais comida de verdade, menos protocolo.
– Você não poderia ter dito apenas "taverna"?
– E perder a chance de exibir meu alemão?
Hermione revirou os olhos porque se deu conta de que algumas coisas definitivamente não mudam.
– Eu te sigo.
– Como costumava ser – disse Fleur, com um sorriso breve, apoiando sua mão direita na base das costas de Hermione.
Elas saíram juntas do bar, os passos ecoando no mármore do saguão. O restaurante indicado por Fleur era discreto, escondido atrás de uma fachada na rua lateral do hotel. Havia luz baixa, paredes de tijolos, mesas afastadas. Um casal ao fundo. Um homem sozinho tomando uma caneca de cerveja. Alguma delegação cuja equipe falava espanhol. E elas.
O garçom trouxe a carta, mas a opção de pratos era curta.
– O talento para escolher lugares prestes a entrar em falência – disse Hermione, lendo o menu e deixando as palavras escaparem.
– Não negue que é uma experiência única não precisarmos lidar com franquias de comida ruim ou luzes brancas nos cegando como crocodilos.
– Eu não nego.
– Que bom, Hermione.
– Dez anos.
– Nove – Fleur corrigiu, fechou o cardápio, e repousou as mãos sobre a mesa, cruzando os dedos com calma. – Ao mesmo tempo... parece ontem.
Hermione assentiu. Mas havia algo nos olhos dela. Sinceramente não parecia arrependimento. Sim, havia cuidado. Como quem anda sobre o solo em busca de tocas de coelho.
– Você amou depois de mim?
A pergunta veio impetuosa junto a uma fisgada. A inglesa nunca foi muito de rodeios e tampouco pareceu culpada pela curiosidade. Fleur sorriu, mas baixou os olhos.
– Tentei. Algumas vezes. Mas amar como a gente se amou... não. Não aconteceu de novo.
O garçom chegou. Pediu desculpas por interromper. Anotou os pedidos. Serviu. Partiu. As duas ficaram em silêncio por alguns segundos, naquele breve gesto que o mundo trouxe de volta à barreira do tempo.
– E você amou depois de mim? – Fleur demorou a perguntar porque não tinha certeza se queria saber da resposta.
Hermione mexeu na taça de vinho.
– Eu... me envolvi com alguém. Durante um tempo. Quatro anos, na verdade.
– E?
– Ela era gentil. Estável. Gostava de mim – pausou. – Mas ela nunca soube me ver.
Fleur a observou por um instante. Não disse nada. Esperou.
– Eu estava sempre comparando – continuou Hermione – e isso foi injusto. Com os outros... comigo. Chegava num ponto em que... eu sentia que nunca poderia parar de fingir. E isso... era um alívio. E também um abismo.
– Porque eu podia te enxergar?
– Porque você decifrava tudo em mim.
– Você é feliz? – perguntou Fleur, cortando o peixe com precisão.
Foi nesse momento que uma mulher as interrompeu. A francesa não pode negar que ela era elegante em um vestido cinza-ardósia que combinava com a pele clara e os cabelos castanho-claros presos de forma simples, caminhou até o bar antes de perceber Hermione.
– Hermione? – a voz era surpreendentemente calma.
A britânica levantou os olhos. A familiaridade veio em um lampejo de rotina estabelecida.
– Susana. – Um sorriso breve, contido, sem revelar o pequeno tremor que percorreu seu corpo. – Essa é Fleur Delacour. Fleur, essa é Susana Bones, membro da Suprema Corte dos Bruxos do Reino Unido.
– Não precisamos de tantas formalidades depois do dia intenso que tivemos hoje. – Susana sorriu para Fleur e estendeu a mão. – E eu conheço você, Torneio Tribruxo, não é? Faz alguns bons anos, mas você continua belíssima.
– Eu poderia dizer o mesmo – Fleur cumprimentou educadamente, mas pensou "se eu me lembrasse de você".
– Não esperava te encontrar aqui em Viena. – Hermione fez um gesto mínimo, indicando a cadeira livre ao seu lado. – Este é... um jantar improvisado.
Fleur ergueu as sobrancelhas, curiosa, mas manteve silêncio, estudando a mulher com a calma de quem observa uma adega. Susana não parecia notar a francesa, pelo menos sua atenção estava intrínseca à Hermione.
– Posso me sentar? – Susana perguntou, sem esperar muito.
– Claro – disse Hermione, puxando a cadeira com cuidado.
– Pensei que a Assembleia Geral Mágica não incluía comitivas do judiciário – Fleur fez um gesto para o garçom, mas percebeu Hermione respirar fundo.
– Geralmente não há convite. Mas estou aqui como Conselheira Jurídica do Ministério da Magia. O ministro apreciava o trabalho da minha tia na Suprema Corte e acredita que posso seguir os seus passos.
– Susana é sobrinha de Amélia Bones – Hermione tratou de explicar. – Foi heroína de guerra.
– Estou certa de que foi. – Fleur sorriu.
Hermione sentiu o efeito quase imediato: Fleur estava com ciúme. Uma pontada que não era raiva, mas curiosidade instintiva, sobre a história compartilhada, ainda que breve.
O jantar continuou, agora com três vozes entrelaçadas e uma tensão silenciosa, quase musical. A conversa passou a detalhes do congresso, pequenas observações sobre a cidade, lembranças suaves de Hogwarts que não incluíam Fleur.
– Bom, acho que não devo monopolizar você por muito mais tempo – Susana disse, levantando-se depois da última taça. – Tenho reuniões cedo amanhã, e Viena não dorme, principalmente para nós.
Hermione sorriu, sentindo pesar e alívio ao mesmo tempo.
– Foi... bom te ver – disse, simples.
– Igualmente. – Susana fez uma leve reverência, e então se afastou. – Boa noite, Fleur. Vamos nos encontrar para um drink nos próximos dias.
– Definitivamente.
Fleur permaneceu imóvel, observando a retirada da mulher, antes de finalmente confessar:
– Essa... Susana. Tem uma presença que me deixa inquieta.
– Ela sempre teve – disse Hermione, medindo cada palavra. – Mas não é nada. Só uma memória.
– Hum... – Fleur inclinou-se, mordendo o lábio inferior. – Memórias que duraram quatro anos.
Hermione assentiu, sentindo o ciúme de Fleur aumentar, mas também a inevitável tranquilidade de saber que, apesar da presença de Susana, Fleur continuava ali, e aquele reencontro ainda era delas.
– É enlouquecedor pensar que você passou mais tempo com ela do que comigo.
– Não comece.
– Não estou criando um caso, Hermione. Estou sendo honesta.
– Nós podemos... simplesmente... não percorrermos esse caminho? Estou exausta e não quero, não quero mesmo, tratar dos seus ou dos meus arrependimentos esta noite.
Fleur assentiu e Hermione vislumbrou um brilho da antiga e petulante adolescente que conheceu. Sentia que podava a naturalidade da francesa, mas também estava sendo sincera.
– Quando você perguntou se eu sou feliz, bem, antes que Susana chegasse... – Tomou um gole de vinho. – Percebi que não sei responder. Sou funcional. Forte. Respeitada. Mas nada disso tem a ver com felicidade.
– O que falta?
– A pergunta de um milhão de galeões.
– Não se zangue comigo, mas você sempre me pareceu o tipo de pessoa que está em busca de algo que não sabe o que é.
– Você quem dizia que eu vivia rápido demais e não teria disponibilidade para plantar verduras em alguma fazenda do interior da europa.
– Eu estive errada?
– Parcialmente. Eu tenho uma horta no meu jardim, em Londres.
Fleur sorriu imensamente com essa informação.
– O que você produz na sua horta?
– Cenoura, tomate e alface... alguns temperos. Estou arriscando com morangos, mas ainda não peguei o jeito.
– Isso é realmente encantador.
– Obrigada.
As duas sorriram uma para outra em um breve momento feito de passado.
– Desculpe o meu ciúme mais cedo, ainda acho que tenho direito de sentir isso.
– Não se preocupe, Susana sabe sobre nós duas e veio até aqui marcar um território que não é mais dela.
– Tem uma coisa... uma atmosfera diferente. Você me parece bem e isso me faz sentir menos culpa.
– E você? – Hermione mudou de assunto outra vez, não queria e não iria discutir sua curta passagem pela vida de Fleur.
– O que tem eu?
– Você é feliz?
– De um a dez?
– Não precisa quantificar. – Hermione revirou os olhos.
– Eu aprendi a me bastar. A construir algo só meu. – Fleur respirou fundo. – Mas... acho que sempre deixei uma parte da casa vazia. E fingi que era normal ter uma sala onde ninguém entra, com uma estante de livros com espaço vago para os seus.
Elas respiraram em silêncio por alguns minutos. Depois, Hermione falou, num tom leve:
– É estranho pensar que não demos certo juntas.
– E mesmo assim, você ainda é a primeira pessoa que me vem à mente quando algo bom acontece.
Hermione riu. Curto. Quase triste.
– Isso é o pior tipo de lembrança.
– Não diga uma coisa dessas.
O vinho acabou. O prato esvaziou. E ainda havia tanta coisa entre elas que não podia ser dita de uma vez só.
– Você quer vir comigo até meu quarto? – perguntou Fleur, com naturalidade.
Hermione não respondeu logo. Balançou a cabeça, escolhendo com responsabilidade o tempo certo de cada passo.
– Não hoje.
Fleur não se ofendeu. Não recuou. Apenas assentiu, respeitando com uma elegância que só os anos trazem.
– Então me deixa te ver amanhã.
– Sim – disse Hermione. – Amanhã.
Pagaram a conta. Ao sair, caminharam lado a lado, sem se tocar. Viena soprava vento frio, e a noite parecia mais viva com tantas luzes. Antes de entrar no elevador do hotel, Fleur virou-se e disse:
– Você ainda é o tipo de mulher que me dá medo – Fleur deixou escapar um sorriso inseguro.
Hermione sorriu, e não respondeu.
Chapter 9: Parte IX - Viena
Chapter Text
Hermione acordou cedo. Era algo que virou rotina, mesmo aos fins de semana, mesmo em feriados. Às seis da manhã já estava de pé, com o cabelo ainda úmido do banho e o blazer bordô apoiado sobre a poltrona do quarto de hotel.
A Assembleia Geral teria um bloco livre até o fim da manhã. A agenda oficial só começava às onze. Conciliação entre fronteiras, debates sobre tráfico de artefatos encantados, acordos para transporte mágico. Tudo importante, tudo impessoal.
Ela desceu com a bolsa transpassada no peito e um livro pequeno enfiado nela. Não tinha planos. E talvez fosse exatamente disso que precisava porque a noite anterior foi por caminhos que não esperava.
Na recepção, perguntou se havia alguma sugestão de passeio fora do circuito óbvio. O recepcionista, um senhor de bigode antiquado e sorriso pequeno, escreveu algo num papel e entregou sem alarde.
"Café Central. Museu do Relógio. Caminho até o Belvedere. Mas vá devagar."
Hermione agradeceu e saiu a pé.
Viena estava cinza e fria, porém sem chuva. As ruas largas, limpas, com uma ordem quase mágica. O ar era leve. E os passos, conforme orientados pelo funcionário do hotel, não tinham pressa.
No Café Central, pediu um melange e uma fatia de sachertorte. Sentou-se perto da janela. Ao redor, senhores lendo jornais de verdade, casais em silêncio confortável, turistas confabulando como se estivessem em uma catedral.
Ela abriu o livro, mas leu o primeiro parágrafo oito vezes. Pensava em Fleur.
Não com urgência. Havia algo novo entre elas, e ao mesmo tempo, algo que jamais deixou de existir. Hermione conhecia a si mesma. Entendia que não podia entrar naquela casa de novo porque sabia que não cabia lá.
Às nove, caminhava em direção ao Belvedere. Passou por estátuas de mármore, jardins ainda despidos do outono, fontes que apresentavam marcas oxidadas de moedas lançadas com esperança.
E então, ali, sob o céu de chumbo e entre fileiras de árvores secas, viu Fleur.
Sentada num banco de pedra. Contemplando. Hermione apenas parou. As mãos nos bolsos. O coração, alerta.
Fleur levantou o semblante devagar, sentindo. Dessa vez foi a inglesa quem a encontrou. Usava uma capa cor de caramelo sobre a roupa, os cabelos soltos. Havia olheiras sob os olhos, mas elas não diminuíam seus traços graciosos, só a tornavam mais real.
– Como soube que eu viria aqui?
– Não soube. Só... vim – suspirou Hermione. Aproximou-se. E começaram a andar sem que houvesse convite.
O caminho era imenso, margeado por arte, arquitetura e árvores nuas. Não se tocavam. Mas os passos estavam em sincronia, repercutindo o barulho do saibro no chão.
– O que você fez hoje? – perguntou Fleur.
– Tomei café. Pensei em você. Tentei não pensar. Falhei.
Fleur olhou adiante.
– Eu caminhei até o mercado. Comprei rosas. Mandei entregar no seu quarto.
– Eu não vou perguntar o que você fez para descobrir em que quarto estou hospedada.
– Dominação veela.
– É claro que sim. – Suspirou. – De toda forma, obrigada.
A francesa sorriu de verdade agora.
– Vou te contar uma coisa estúpida que acabei de me lembrar. Quando eu era adolescente, achava que Viena ficava na Itália. Eu fui capaz de apostar um galeão com uma prima sobre estar certa. Obviamente eu perdi.
– Não é tão absurdo. – Hermione colocou os punhos dentro dos bolsos do blazer. – O nome soa... mais quente do que realmente é.
– Exato! – Fleur inclinou-se um pouco, animada. – Eu imaginava sol, mar, gente gritando pelas ruas. Não óperas e... ministérios de vidro.
– Acho que quase todo mundo confunde algum lugar do mapa quando é jovem.
– Duvido que você teve alguma ignorância geográfica. – Fleur a provocou. – Teve?
Hermione hesitou um segundo, depois sorriu.
– Achei, durante anos, que a Transilvânia era um país independente. Passei muito tempo acreditando que a comunidade vampírica tinha representantes na ONU Mágica.
A gargalhada de Fleur foi rápida, mas suave, dissolvendo-se antes de chamar atenção.
– E eu aqui, preocupada que a sua cabeça soubesse tudo desde criança.
– Saber e entender são coisas diferentes – Hermione devolveu, séria, mas com os olhos acesos.
O silêncio que seguiu não foi pesado. Era o espaço natural de duas mulheres que se conheciam bem demais para forçar risos. Fleur olhou para as árvores nuas do jardim, o cinza lembrando-a de outro tipo de melancolia.
– Faz nove anos que minha avó morreu.
Hermione virou o rosto para olhá-la.
– Eu lembro.
Fleur chutou uma pedrinha do caminho, distraída.
– Penso nela o tempo todo quando estou no vinhedo.
– Você ainda passa tempo lá?
– Sempre que posso. É... inevitável. O lugar ainda tem o cheiro dela.
– Borgonha nunca te soltou.
– Nem que eu quisesse.
– Eu sei. – Hermione ajeitou o cabelo atrás da orelha, a voz neutra. – Foi por isso que você ficou.
Fleur hesitou.
– Foi por isso que eu te deixei.
O som dos passos no saibro preencheu a distância entre elas por um instante.
– Você decidiu por nós duas – Hermione disse sem suavidade. – E eu passei meses tentando não te odiar por isso.
– Eu imagino.
– Eu teria ficado, se você tivesse pedido.
– E eu teria deixado, se você tivesse insistido – respondeu Fleur, quase num sussurro. – Mas eu já vivi o que é mudar tudo por amor. Já vi o que isso cobra. Eu não podia te deixar perder o que construiu.
– Você não podia me escolher – corrigiu Hermione. – Era mais fácil me perder do que correr o risco de me ter com culpa.
Fleur respirou fundo.
– Eu achei que estava sendo nobre.
– Eu achei que você estava sendo covarde.
Uma breve pausa. A francesa parou de andar, as mãos frias e suadas pendiam ao lado do corpo, o olhar fixo nos olhos castanhos mais bonitos que já viu.
– Você ainda pensa isso de mim?
Hermione também parou.
– Acho que você fez o que sabia fazer. E eu aprendi a entender.
– Mas não a perdoar?
– Já perdoei. – Ela deu de ombros. – Só não esqueci.
Fleur assentiu, o rosto sereno, mas os olhos traindo um sentimento mais profundo. Desviou para o horizonte, onde os telhados de Viena cortavam o céu opaco.
– Nem eu.
– Você cuida sozinha? Do vinhedo, no caso.
– Tenho um administrador. Eu só supervisiono, e vou nas colheitas. O resto do tempo fico no Ministério das Relações Exteriores, chefiando o setor de Cooperação Mágica Internacional.
– Isso sempre combinou com você. – Hermione sorriu de lado. – Diplomacia disfarçada de charme.
– E vinho disfarçado de tradição.
A resposta de Fleur veio acompanhada de um riso curto, mas a expressão nos olhos era de outra ordem – lembrança e ferida.
Hermione percebeu.
– Às vezes penso no que teria sido se você tivesse vendido o vinhedo.
– Eu também. – Fleur baixou o olhar. – Mas então lembro do cheiro da terra depois da chuva, do som das cigarras... e percebo que não seria eu.
– E eu não seria eu se tivesse ficado. – Hermione respondeu, simples, depois continuou. – Talvez seja por isso que estamos aqui agora. Porque o tempo não nos pediu para escolher de novo.
Fleur suspirou.
– Você sempre teve um jeito... brutal de estar certa.
– E você, de se convencer de que sabe o que é melhor para todos.
O comentário veio seco, quase calmo. Fleur apenas arqueou a sobrancelha.
– Ainda estou pagando por isso?
– Não. – Hermione passou a mão no cabelo outra vez, olhando o chão. – Na verdade, eu deveria te agradecer.
– Agradecer?
– Por não ter me dado escolha.
O abismo que veio foi denso.
– Porque se tivesse, eu teria ficado. E me odiado por isso depois. – Hermione levantou o olhar, direto. – Você me poupou de virar uma versão menor de mim.
– Eu nunca quis te ferir, Hermione – disse Fleur, firme, mas com uma fissura no meio. – Eu só não podia ser o motivo de você perder tudo o que te faz inteira.
– E ainda assim foi. – Hermione deu uma risada breve. – Eu perdi você.
Fleur mordeu o lábio inferior, desviando o olhar.
– Talvez eu mereça seu agradecimento, então.
– Por quê?
– Porque se tivesse ficado comigo, talvez nunca descobrisse que o seu caminho te levaria a se tornar Ministra da Magia – confessou Fleur, num tom leve demais para o que dizia.
Hermione franziu o cenho.
– Você está me espionando politicamente agora?
– A França lê o Profeta Diário, chérie. E eu sei que você é chefe do Departamento de Execução de Leis em Magia há três anos.
Hermione inclinou o corpo levemente, num gesto de desafio.
– Quatro.
– Que falha, a minha.
– Estou sendo preparada para disputar o cargo de Ministra daqui a cinco anos.
Fleur piscou, surpresa genuína.
– Então é verdade.
– É. – Hermione apertou a alça da bolsa. – A velha guarda do Ministério está ruindo, e o Conselho precisa de alguém que não pertença a nenhuma família tradicional. Você sabe, para conter certos conflitos. Eu sou o rosto progressista, aparentemente.
– Progressista não é a palavra que eu usaria.
– E qual seria?
– Inevitável.
Hermione soltou um suspiro curto, quase um riso.
– Sabe o que é irônico?
– Diga.
– Quando você terminou comigo, eu achei que nada poderia ser mais humilhante. Agora percebo que aquela raiva me sustentou. Eu queria ser tão boa, tão necessária, que ninguém nunca mais tivesse o poder de decidir por mim.
– Hermione... – Fleur começou, mas ela ergueu a mão.
– Não. É verdade. Você foi a minha derrota e a minha origem ao mesmo tempo.
Fleur apenas a observou, quieta, com aquele olhar que parecia atravessar almas.
– E ainda assim, você está aqui.
– Não sei se isso é recaída ou curiosidade antropológica.
– E se for saudade?
As duas seguiram caminhando, mais devagar agora. Viena parecia observá-las, cúmplice e muda. Nenhuma delas sorriu. O silêncio durou alguns minutos. Depois, Hermione disse:
– Eu sou uma mulher muito diferente daquela que você conheceu.
– Eu espero que sim.
– Isso não te intimida?
Fleur voltou o rosto pra ela.
– O que me assusta é que eu ainda quero descobrir quem você é agora – os olhos se buscaram, vibrantes. – E o que me move... é o fato de que, mesmo assim, você ainda me reconhece.
– Eu não quero te prometer nada – Hermione respirou fundo. – Foram dez anos, Fleur.
– Nove!
– Que seja!
– Eu não estou aqui por promessas – disse Fleur. – Insisto porque eu senti ontem exatamente a mesma coisa que senti há nove anos.
Chegaram ao alto do jardim do palácio. A cidade se estendia ao fundo, em cinza e cobre. Viena era antiga, contida, cheia de histórias enterradas sob a simetria. Como elas.
– Posso te ver de novo amanhã? – perguntou Fleur.
Hermione ponderou. Não por dúvida. Por cuidado.
– Eu não sei.
Fleur assentiu. Não sorriu o seu sorriso leve, sem exigência. Antes de se afastarem, Hermione tirou o caderno da bolsa, escreveu algo e arrancou a página. Entregou a ela.
– É o nome da minha florista preferida, em Londres.
A francesa pegou o papel. Leu. Entendeu. Um futuro não prometido, mas possível. Um convite para um outro tipo de jardim. Ela dobrou a anotação com cuidado, guardando-a no bolso da capa como se fosse algo precioso.
– Combinado.
Se despediram com um toque breve no braço. E foi tudo o que precisavam dizer.
Já passava da meia-noite quando Fleur desceu ao saguão do hotel. Não estava vestida para a noite, nem para ser vista. Usava uma blusa de lã clara, calças de alfaiataria escura e um casaco leve jogado sobre os ombros. Os cabelos soltos, um mínimo desalinhado pela insônia.
O bar estava vazio, exceto por dois barmans atrás do balcão. Um jovem que lia escondido e outro que limpava os mesmos copos pela terceira vez. A francesa hesitou por um momento diante do piano que havia ali, reluzente sob o foco de uma luminária. Era um Steinway antigo, de cauda curta, mais decoração do que instrumento.
Aproximou-se da recepção e, com a gentileza firme de quem sabe o que está pedindo, perguntou em alemão:
– Vocês se importariam se eu tocasse um pouco?
O recepcionista olhou os barmans. Um deles sorriu, surpreso.
– Desde que não quebre o feitiço de isolamento sonoro do salão... sinta-se em casa, senhorita.
Ela agradeceu, sentou-se ao piano e respirou fundo. Não era para impressionar, não havia mais ninguém. Era para soltar o que não sabia mais guardar.
Os primeiros acordes vieram suaves, lentos. E então, sem nada a perder, ela cantou.
Slow down, you crazy child
You're so ambitious for a juvenile...
But then if you're so smart
Tell me why are you still so afraid?
A voz era baixa, melódica, rouca nas margens. Cantava só para ela mesma, mas os barmans pararam para espiar. O salão, vazio e dourado, as garrafas de destilados caros e as mesas de madeira escura, pareciam todos acompanhar também.
Na recepção do hotel, Hermione voltava de um jantar formal, longo e exaustivo, com o Ministro da Magia e a equipe de apoio. Tinha recusado a sobremesa. O vinho fora amargo. A conversa, pesada. Estava cansada.
Entrou no saguão decidida a subir sem falar com ninguém. Mas parou. A música vinha do salão lateral. Familiar. Macia.
You've got your passion, you've got your pride
But don't you know that only fools are satisfied?
Dream on, but don't imagine they'll all come true
Ela soube na hora quem era.
Não foi até lá. Não se impôs. Sentou-se discretamente no bar, sem interromper. Puxou a banqueta com calma. Pediu uma gin tônica, com bastante gelo. O drink que Fleur considerava um absurdo, mas que refrescava.
... When will you realize
Vienna waits for you.
Quando a canção terminou, Fleur não se levantou de imediato. Apenas deixou os dedos repousarem sobre as teclas, ainda escutando a si mesma.
O barman aproximou-se de Hermione com uma taça.
– Um drink para ser enviado?
– Sim. Para a pianista. Diga que é da parte da mulher que um dia acreditou que o mundo era Veneza.
O barman assentiu, curioso, e levou a bebida.
Fleur olhou o copo chegando. Sorriu, antes mesmo de vê-la. E então, lentamente, virou-se. Procurou. Encontrou-a no balcão. Sozinha. Séria. Linda.
Ergueu o copo, em agradecimento silencioso. Hermione respondeu com um breve erguer de taça e um sorriso contido. E foi só isso.
__________
Chapter 10: Parte X - O que restou de nós
Notes:
(See the end of the chapter for notes.)
Chapter Text
Passaram-se trinta e oito horas desde que Fleur e Hermione se viram pela última vez. Era uma quinta-feira livre de compromissos. Uma pausa para que os representantes dos países do mundo todo se preparassem para o encerramento da Assembleia Geral Mágica.
A tarde em questão permaneceu nublada. O céu de Viena tinha aquele cinza teimoso que não prometia chuva, mas ameaçava. O vento arranhava as folhas secas nos calçadões de paralelepípedo, e as estátuas do centro histórico aparentavam ainda dormir.
Fleur saiu do hotel após o desjejum tardio. Estava inquieta. Carregava um copo de café comprado em um quiosque perdido, e andava sem destino pelos arredores do MuseumsQuartier.
Ela não tinha dormido. Ou melhor, havia sonhado acordada novamente. Com notas de piano. Com letras que ecoavam amargas. Com o gesto de Hermione, simples e claro: sempre estive aqui, sua cabeça dura.
Decidiu encarar o mais comum dos passeios turísticos, pagou pela entrada no Leopold Museum. Acumulou quase duas horas analisando as exposições permanentes. Conheceu o realismo atmosférico de Ferdinand Georg Waldmüller. Admirou as intenções de Schiele. Mas o que a encantou mesmo foi um quadro de Gustav Klimt. Gostou tanto da obra que sentou-se defronte a ela e ficou.
Chamava-se "Morte e Vida".
A pintura em questão levou oito anos para ser finalizada. Em vez de se sentirem ameaçados pela figura da morte, os seres humanos, feitos de óleo sobre tela, pareciam desprezá-la. Tinham um quê de expectativa.
Por mero acaso, ou perseguição, Hermione viu quando Fleur entrou na galeria. Acompanhou-a sem que ela notasse. Esperou. Quando não podia mais se conter, sentou-se ao seu lado e olhou para mesma direção.
– Você ficou bem, depois? – perguntou Fleur, virando-se um pouco.
De alguma forma, Hermione sabia exatamente do que seu grande amor estava falando.
– Fiquei viva – ofereceu um sorriso tímido. – Às vezes, feliz. Às vezes, entorpecida. E você?
– Eu fingi bem. Fingi tanto que, em certo ponto, quase acreditei que tinha te esquecido. – Fleur puxou um cigarro e não o acendeu. – Mas te encontrar, repentinamente, em um evento diplomático com uma bateria extensa de reuniões exaustivas... na Áustria... – Respirou. – Meu peito derreteu outra vez. Sem esforço.
Hermione apertou a borda do banco de madeira em que estavam.
– Eu te amei tanto, Fleur.
– Eu sei.
– E acho que, de certo modo, ainda amo... Mas agora é diferente. Menos urgência. Mais... clareza.
– Pelo visto, não temos mais vinte e poucos anos. – Fleur girou o cigarro nos dedos.
Ambas se calaram. O tempo entre elas ainda vibrava. Era só uma camada. Assim como as pinceladas de tinta à frente.
– Você começou a fumar? – Hermione perguntou apontando o cigarro.
– Quê? Ah! – Fleur sorriu sem graça. – Comecei. Parei. Ainda tenho o costume de segurar assim porque me deixa relaxada.
– Não me entenda mal, isso não é um incentivo de maneira alguma – Hermione corou. – Mas você fica atraente com um cigarro nas mãos.
Fleur olhou para ela surpresa com o elogio. O sorriso que ofereceu foi um daqueles que desarmam até a mais controlada das pessoas.
– Você tem algum compromisso hoje?
– Só amanhã. Por quê?
– Porque pensei que a gente podia andar um pouco. Como antes. Mas... sem parecer que estamos voltando a nada. Só caminhando. Descobrindo o que ainda somos quando estamos juntas.
Hermione se levantou. Estendeu a mão.
– Eu aceito.
– O quê?
– A caminhada. A descoberta. E sua companhia.
Então deixaram a morte e a vida para trás. A tinta. A moldura. O cigarro descartado na lixeira mais próxima. Andaram sem pressa pelas ruas largas e limpas do centro de Viena. O chão ainda molhado da madrugada refletia a luz suave dos prédios de pedra clara. Era como estar dentro de um retrato.
Fleur caminhava com as mãos nos bolsos. Hermione ao lado, as mangas do casaco um pouco dobradas, os dedos às vezes tocando o tecido das calças, disfarçando o não saber onde colocá-las.
Elas falavam pouco. E isso era antigo. Antes, também não tinham pressa de dizer, de nomear, de esgotar. Ainda havia espaço para os silêncios.
Pararam diante de uma vitrine de antiguidades e perceberam logo que se tratava de uma loja mágica disfarçada aos olhos trouxas. Objetos encantados há tanto tempo que pareciam ter esquecido a própria função. Um espelho que embaçava diante de uma omissão. Um relógio de areia que virava sozinho quando alguém queria ficar um pouco mais, recomeçando a sua contagem.
– Seria útil – disse Fleur, indicando o relógio.
– A gente passaria a vida vendo ele virar.
– Feitiço esquisito.
Hermione não respondeu. Ficou olhando o espelho por um tempo, até que o vidro anuviou.
– O que você acabou de pensar? – perguntou Fleur.
– Que eu devia ter te segurado mais forte quando você foi embora.
– E você se arrepende?
– Eu me arrependo de não ter tentado.
– Você perderia metade de quem você é se fosse viver em Paris, mon ange. Não temos culpa, por favor, não se culpe.
– Sua avó tinha morrido. Apolline precisava de você. Gabrielle precisava de você. O mínimo que eu poderia ter feito foi o que não fiz: impedi que você me pedisse para ficar. Mas eu poderia ter morado em Paris.
Fleur assentiu. Depois puxou Hermione para seguir.
– Eu não poderia conviver com a sombra de que te afastei de tudo que é familiar para você. Amigos, seus pais, carreira, futuro. Meu Deus – Fleur sorriu, só que era um riso dolorido. – Como eu senti tua falta.
– Essa dor não foi e não é só tua, Fleur. Infelizmente somos duas mulheres sensatas, cautelosas. Somos Orfeu que olhou para trás.
– Eu discordo em um ponto, Hermione. – E a inglesa levantou a sobrancelha intrigada. – Somos Orfeu que ainda caminha, sem saber se Eurídice está seguindo.
Pararam para almoçar em um outro wirtshaus, um lugar rústico com ambiente tradicional e que servia pratos típicos. As duas pediram uma porção de Goulash, o estrogonofe de carne, um clássico do país.
– Nunca aceitei como a gente chegou tão perto... e mesmo assim se perdeu.
– Confundimos intensidade com permanência. – Fleur apoiou o queixo na mão. Como antes, parecia ter uma opinião sobre todas as coisas. – O que seria suficiente?
Hermione olhou para fora. A cidade passava devagar. Um homem vendia castanhas numa carroça. Crianças corriam entre pombos. O mundo era tão comum. Desejou também, por um segundo, uma vida comum. Plantando verduras em algum lugar esquecido da europa.
– Acho que eu só preciso saber que você não vai sumir se eu piscar.
Fleur estendeu a mão, palma para cima, no centro da mesa.
– Eu estou aqui.
Hermione colocou a própria mão sobre a dela. Era a primeira vez que se tocavam. Pele com pele. Fleur não a beijaria ainda. Porque como antes, elas sabiam esperar. E isso era amor também.
– Me conta da sua vida.
– Nove anos é muita coisa.
– Eu tenho tempo.
A grifinória revirou os olhos.
– Fiquei em Londres. Trabalho, claro. Subi rápido. Perdi um pouco de mim nisso, mas... me recuperei. – Respirou. – Morei sozinha. Tive um relacionamento longo, como já contei. Quase nos casamos.
Um aperto de mandíbula, um piscar de olhos mais lento, um momento de quietude antes que Fleur respondesse.
– Por que não se casou com Susana?
– Porque eu nunca tive certeza. Porque fui incapaz de me apaixonar. Porque percebi que estava me tornando pequena para caber na ideia que ela fazia de mim. – Os olhos de Hermione desfocaram. – E você?
– Fiquei em Paris. Morei com meus pais um tempo depois que minha avó morreu. Foi um período bonito e difícil. – Fleur olhou para cima, tentando se lembrar do que importava. – Depois disso... fui para Borgonha e organizei o vinhedo. Lançamos uma safra nova, o Pinot Noir que produzo é bastante honesto.
– Tenho certeza de que sim.
– Vou te enviar algumas garrafas assim que voltar para França.
– Obrigada. Eu gostaria de provar. – Hermione tomou fôlego para voltar ao assunto. – Você... teve algum relacionamento que valesse a pena?
– Tive algumas companhias por um curto período. Mas eu não estava pronta para dividir. Metade de mim ficou contigo, então restou pouco para qualquer um.
– Oh, Fleur...
– Você não faz ideia.
Hermione suspirou. Entendia bem cada palavra dita por Fleur. Detestava romantizar o que viveram em Veneza, mas era inevitável. Impossível. Era a parte mais bonita de si. Quando lembrava, a emoção vinha à superfície. Quis evitar as lágrimas, então trouxe mais perguntas.
– Você viajou?
– Mais do que gostaria, para ser honesta. Como você sabe, aceitei a vaga no Ministério Francês quando retornei a Paris. Segui carreira na diplomacia bruxa, enfim... – Fleur levou à boca uma fração de strudel de maçã, já estavam na sobremesa. – Gabrielle casou. Teve uma filha. Você ainda fala com Harry?
– Falamos menos do que deveríamos, mas sim. Sou madrinha do primeiro filho dele com Gina. James. Ron também é pai. Um ótimo pai, acredita?
– Sempre achei que ele seria. E você? Nunca quis ter filhos?
Hermione não esperava. Sorriu de lado, um pouco desconcertada.
– Quis, às vezes. Quando via meus amigos criando. Quando via o reflexo do que poderia ter sido... Mas nunca senti... que era o momento certo. Nem com a pessoa certa.
– E hoje?
Hermione olhou para o saleiro. Parecia um objeto importante e digno de atenção. O rosto dela oscilava na luz fraca do restaurante.
– Hoje eu sinto que... se fosse com alguém que me amasse por inteiro, sem reservas... talvez sim.
Fleur assentiu. Depois devolveu:
– E você? Acha que eu nunca quis?
– Não sei. Você sempre teve esse ar de liberdade difícil de tocar.
– Eu quis. Muito. Por um tempo. Depois, parei de querer quando vi amigas se perdendo nelas mesmas para caber na ideia da maternidade... Mas... às vezes ainda penso.
A conversa ficou suspensa por um tempo. O garçom trouxe chá. Uma música instrumental começou. Suave.
Hermione segurou a xícara com as duas mãos, aquecendo algo que estava por vir.
– Posso te perguntar uma coisa?
Fleur a olhou nos olhos.
– Claro.
– Posso te beijar? – A voz saiu firme, porém não mais que um sussurro.
A francesa demorou um instante para ter certeza de que ouviu certo. O sorriso que ofereceu era só para ela. Para Hermione.
– Eu achei que você nunca fosse perguntar.
Hermione se inclinou. Fleur foi a seu encontro. Dessa vez, não havia o costume da espera. O beijo foi adulto. Calmo. Profundo. Sem euforia. Sem urgência. Tinha gosto de canela e maçã. Com toda a verdade que coube nos nove anos entre elas. Quando se afastaram, Fleur tocou o rosto de Hermione com a palma da mão.
– Você continua beijando do jeito certo.
– Sua boca é tão macia quanto eu me lembrava.
A noite de Viena parecia ter sido escrita para aquele momento. Fleur e Hermione decidiram juntas que uma orquestra cairia bem naquela temperatura. O auditório Musikverein tinha colunas de mármore, frontões e vitrais coloridos que distorciam a luz em pequenos fragmentos de cor. O programa era denso: Mahler, Schubert e um trecho final de uma compositora bruxa austríaca que havia encantado o mundo trouxa sob pseudônimo.
– Não estamos vestidas apropriadamente para este lugar.
– Podemos usar a desculpa de que somos turistas indelicadas.
Hermione não estava convencida. Também não queria soltar Fleur pelo tempo em que trocariam de roupa antes do espetáculo, por isso concordou em perder aquela batalha. Sentou-se na ponta da fila F, assento 3, da Sala Dourada. O programa dobrado entre os dedos. Os olhos fixos no palco vazio, abarcando o silêncio antes da música.
Fleur sentou-se ao seu lado. De todos os lugares, aquele era o único que parecia certo. De onde estava, podia ver tudo. O maestro. Os violinos, violas, violoncelos e contrabaixos. A orquestra começou. E Fleur não enxergou a música. Ela só tinha olhos para Hermione.
Reparou quando lágrimas iluminaram seu rosto durante o segundo movimento. Viu a forma como apertava o programa contra o peito nas modulações finais. Percebeu a respiração contida, os ombros tensos, o suspiro leve durante o solo da spalla.
Ali, entre os sons e os intervalos, Fleur entendeu.
Mais tarde, do lado de fora do prédio, o ar era frio e o céu, limpo. Finalmente as estrelas e a lua apareceram. Hermione desceu as escadas com os olhos ainda marejados. Fleur segurava sua mão. Não falou logo. O rosto iluminado pelas luzes da rua.
– Você gostou?
– Muito.
Hermione não desviou o olhar. Nem precisava.
– Eu senti você me olhando.
– Você estava linda. Inteira. – Os olhos azuis brilharam. – E eu... soube que não quero mais ver isso de longe.
Hermione ficou em silêncio. Esperava. Porque também sabia. Fleur deu um passo adiante.
– Eu recebi uma proposta para compor a assessoria da Embaixada Mágica Francesa, na Inglaterra. Um cargo em Londres. Estou há semanas enrolando a resposta.
– Por quê?
– Porque algo em mim... precisava saber... se ainda tinha um lugar ao seu lado. Porque só faz sentido se você me escolher. – Fleur buscou o olhar de Hermione. – E essa noite, vendo você viver com o corpo atento, eu entendi que não é sobre voltar para o que fomos. É sobre crescer com o que podemos ser. – Ela piscou para evitar as lágrimas. – Se você disser sim, eu só preciso enviar uma carta amanhã de manhã. E tudo se encaixa.
Hermione abaixou os olhos por um instante. Depois os ergueu de novo.
– E o vinhedo?
– Eu vou encontrar um jeito.
– Sua família?
– Não se preocupe.
– Você tem certeza?
– Absoluta.
– E se a gente quebrar?
– Então a gente se reconstroi. – Sorriu.
– E se eu travar justo quando tudo finalmente começar a dar certo? – murmurou Hermione, com a voz quase engolida pelo próprio peito.
Fleur não hesitou.
– Então eu espero.
Hermione a olhou. De verdade. Tentou encontrar ali qualquer sombra de dúvida.
– E se um dia eu disser que não sei mais?
– A gente volta pro começo. Te pago uma bebida, te encontro no parque, e te convido para uma caminhada.
– E se eu não quiser filhos?
– Não teremos filhos...
– E se eu quiser seis?
– Então seremos mães de seis.
Hermione sorriu. Mas era um sorriso úmido, contido, do tipo que só aparece quando o peito aperta e alivia ao mesmo tempo.
– O que você quer, Fleur?
Fleur se aproximou. Tocou o rosto dela. Com calma. Refazendo seu contorno com os dois polegares.
– Eu quero você.
Hermione segurou suas duas mãos com firmeza. Apoiando-se naquele gesto, ela fechou os olhos por um instante, absorveu o calor, a verdade daquelas palavras. Era tudo o que ela tinha esperado ouvir por nove anos. E era exatamente por isso que previu o perigo.
– Não. – A palavra saiu mais dura do que ela pretendia. – Não faça isso.
Fleur recuou, a confusão nublando a certeza que tinha nos olhos momentos antes.
– Não fazer o quê?
– Não me ofereça um final feliz como se fosse simples. – Hermione tremeu, a compostura se quebrando pela primeira vez. – Eu me reconstruí do nada. Pedaço por pedaço. E cada parte foi cimentada com a sua ausência. Se eu te deixar entrar de novo...
– Por favor, me escuta...
– Fleur, você está me oferecendo uma vida. Uma vida que eu nem ousava mais sonhar. – Ela escolheu as palavras com o cuidado de quem desarma um feitiço. – Mas uma carreira na Embaixada em Londres não é o mesmo que liderar o seu departamento em Paris. É um passo para o lado, talvez até para trás. E o vinhedo? Tem a sua família.
Fleur a encarava, percebendo a mudança de tom.
– Sim. Por você, sim.
– Mas é aí que está o problema. – Hermione deu um passo para trás, criando uma distância segura. – Eu não posso ser a razão pela qual você se afasta de suas raízes. Nós já vivemos isso uma vez. Eu não vou deixar você fazer esse sacrifício. Não por mim.
– Então finalmente você entendeu o meu lugar há nove anos! – Fleur argumentou, a frustração crescendo em sua voz.
– É uma escolha feita no meio de um reencontro em Viena, depois de um concerto de Mahler. – Hermione disse cortante. – Precisamos ser adultas sobre isso.
Ela olhou para o relógio, um gesto deliberado para quebrar a magia do momento.
– A Assembleia termina amanhã. Vamos voltar para nossas vidas. E... e eu estou a um passo de me tornar Ministra da Magia. Um cargo que exige tudo de mim. Um cargo que me consumiu por anos e que foi construído sobre a nossa perda. Eu não sei como conciliar essas duas coisas. Eu não sei como ser a sua Hermione em um contexto normal.
A grifinória finalmente virou o rosto para entender onde estava, e o frio que se instalou entre elas ficou palpável.
– Eu preciso de tempo. Preciso entender se... se ainda há espaço para nós na vida que eu construí sem você.
Fleur ficou em silêncio, o rosto uma máscara de dor e compreensão. Ela tinha oferecido seu futuro, mas Hermione estava presa em algum lugar entre Veneza e Viena.
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Gustav Klimt - Death and Life
Notes:
Esse capítulo foi o mais emocionalmente difícil de escrever.
O que você está achando até aqui?
Chapter 11: Parte XI - Chave de Portal
Chapter Text
O encerramento da Assembleia Geral Mágica terminou trinta minutos depois do programado, com o embaixador da África do Sul sendo o último a discursar sobre a urgência da criação de uma frente unificada contra magias das trevas. O ar no grande auditório estava pesado, não apenas com a seriedade dos tópicos, mas com o cansaço coletivo de dias de negociações entre nações.
Da sua bancada, Hermione observava os líderes mundiais e suas equipes técnicas começarem a se dispersar. Papéis eram recolhidos, apertos de mão formais eram trocados, promessas de cooperação futura eram feitas com sorrisos exaustos.
Kingsley Shacklebolt deixou rapidamente o auditório acompanhado por dois aurores de elite e Susana Bones, que lançou um olhar rápido e questionador na direção de Hermione antes de desaparecer pela porta principal. Hermione o ignorou. Seus olhos estavam fixos em uma única figura do outro lado do salão.
Fleur estava em seu elemento. Hermione a reparava, fascinada, como se a visse pela primeira vez. A dor da noite anterior, selada em um compartimento secreto, substituída por uma máscara de profissionalismo impecável. Ela se movia com uma graça líquida entre os delegados. Meros mortais. Terrestres. Desimportantes.
A grifinória sempre soube que Fleur era talentosa, mas vê-la em ação, navegando pela complexa teia da diplomacia internacional com tanta facilidade, era outra coisa. Não era apenas charme. Era competência afiada. Uma inteligência brilhante que ela usava como um instrumento finamente calibrado. A mulher que ela havia reduzido a um sacrifício impulsivo era uma potência por direito próprio. A verdade atingiu Hermione com uma clareza desconfortável.
Fleur percebeu o olhar. Fechou a pasta de couro de dragão, dispensou alguém em francês e aproximou-se, o crachá ainda pendurado sobre o tailleur cinza, ajustado.
– Granger. – O aceno breve, cortês.
– Delacour – Hermione respondeu no mesmo tom.
Por um instante, nada além do barulho de cadeiras sendo arrastadas. Fleur passou o polegar pelo fecho da pasta, um gesto automático.
– Ficou para trás? Acredito que Kingsley saiu antes de você. Vi Susana acompanhando quando passaram por mim.
– Sim. Eles terão uma breve reunião antes do almoço. – Hermione ajeitou os seus papéis, sem necessidade. – Ficou para o encerramento?
– Por respeito ao protocolo. – Fleur deu de ombros.
– Ah.
– Posso te acompanhar até o saguão?
A pergunta saiu com neutralidade, mas tudo que vinha de Fleur era íntimo e próximo.
– Claro.
Saíram lado a lado pelo corredor lateral do auditório, o som dos saltos ecoando no mármore escuro. Os ombros quase se roçaram. Fleur refreou o impulso de apoiar a mão na base das costas de Hermione.
– Quantas línguas você falou hoje? – perguntou a britânica, só para quebrar o silêncio.
– Quatro. Francês, Inglês, Italiano e Alemão.
– Impressionante.
– No total, domino sete idiomas – Fleur adicionou. – Veelandês, por questões óbvias. Consigo entender Grugulês o suficiente pelo tempo em que trabalhei em Gringotes. E, nesses anos que não tivemos contato, aprendi um pouco de Serêiaco.
– Serêiaco?
– Não é muito prática em ambientes secos, mas útil quando sereianos ameaçam retirar apoio logístico do Mediterrâneo.
Hermione soltou um som que podia ser um riso, mas se conteve rápido.
– Eu devia ter imaginado.
– E você? Quantas línguas estão no seu portfólio, Ministra em formação?
– Três e meia. A metade é o alemão, que ainda me odeia.
– Ele odeia quase todo mundo.
Pararam diante do fim do corredor, onde os elevadores mágicos subiam e desciam em intervalos precisos. Fleur apertou o botão, o olhar fixo no marcador de andares à frente.
– Hoje é o seu último dia em Viena? – perguntou Hermione.
– Sim. Pego uma chave de portal amanhã cedo, às sete – Fleur respondeu sem olhar. – E você?
– Ficarei o dia todo amanhã. Ainda tenho alguns compromissos.
O elevador chegou com um som metálico. As portas em bronze se abriram. Hermione fez um gesto de cortesia para que a loira entrasse primeiro.
– Obrigada – disse Fleur. – Pela companhia.
– Era um longo corredor – Hermione respondeu, tentando soar menos tensa.
As portas se fecharam.
Fleur segurava a pasta contra o corpo, o polegar continuava traçando distraidamente a borda do couro. Hermione manteve os olhos no painel, observando os números mágicos flutuarem, trocando de cor conforme subiam.
– Se ainda não tiver planos, poderíamos almoçar hoje.
Hermione desviou o olhar do painel.
– Não posso, estou em cima da hora.
– Sim. – Fleur sorriu, contido, com a mesma serenidade que usava para ocultar qualquer constrangimento. – Então talvez um drink, mais tarde? No bar do hotel. Você gostaria?
– Eu... aceitei um convite da Susana. Vamos jantar – Hermione respondeu, medindo cada palavra.
O som do elevador subindo preencheu o silêncio que se seguiu.
– Très bien. – Fleur encerrou. Não foi ironia, nem desapontamento. Só um registro de algo que ela não esperava ouvir.
O número final brilhou. O elevador desacelerou. As portas se abriram. Hermione sentiu o impulso de quebrar o gelo, dizer algo, qualquer coisa, mas Fleur já se recompunha, a máscara perfeita no lugar.
– Foi bom te ver, Hermione.
– Foi bom te ver também.
Uma pausa. A francesa fez um aceno polido, o tipo de gesto que se dá a alguém importante, não íntimo. Depois caminhou pelo saguão iluminado e se perdeu na multidão de diplomatas, cada passo perfeitamente medido.
E então veio a noite. A cidade respirava em silêncio. Viena parecia mais lenta, como se soubesse. Como se a imponência se curvasse, por um instante, para respeitar o que estava prestes a terminar.
Hermione passou o dia inteiro em compromissos profissionais, com a mente a mil e o corpo ausente. Fleur, por sua vez, esteve a maior parte da tarde no quarto. Arrumou as malas, tomou um banho de banheira. Tinha acabado de se acomodar no sofá com uma taça de vinho. Esperava revisar alguns materiais antes de dormir e levantar para pegar sua chave de portal no dia seguinte.
Ouviu uma batida na porta. Gemeu e deixou a cabeça cair na almofada do encosto. Devia saber que Jean, seu colega de trabalho, não aceitaria bem a dispensa educada que lhe conferiu quando jantavam com a comitiva francesa. Uma noite de despedida e comemoração pelo trabalho bem feito.
Outra batida. Ela se levantou do sofá.
– Sabe, Reno – disse contrariada –, às vezes, 'não estou interessada' realmente quer dizer que não estou interessada...
Mas suas palavras silenciaram quando abriu a porta, pronta para agir como a feminista de carteirinha que era, e encontrou Hermione no corredor. Ela estava sem fôlego, como se tivesse corrido até ali, com os olhos reluzentes e fixos em Fleur.
– Hermione. O que... Você está bem? O que aconteceu?
Hermione cortou a distância sem hesitar, já deslizando as mãos pelos quadris de Fleur. Fechou a porta com o pé e a puxou para mais perto.
– Eu preciso de você – disse antes de beijá-la.
Fleur mal teve tempo de se surpreender ou de pensar antes que seu corpo reagisse. Seus braços envolveram os ombros de Hermione, os dedos afundaram nos cabelos macios que tanto amava.
Estavam com saudade. Saudade de tudo o que viveram antes, e, principalmente, saudade do futuro que haviam imaginado, após deixarem o auditório onde ouviram a orquestra sinfônica de Viena.
Fleur conduziu Hermione, apoiando o corpo dela na porta, encaixando a coxa entre suas pernas. Hermione devorou a boca de Fleur, mordendo o lábio inferior antes de mergulhar a língua. Agarrou a barra da própria blusa e a levantou. Tão logo, o sutiã de renda preto foi arrancado também. Não havia mais nenhuma camada de roupa que impedisse Fleur de admirá-la.
– Você é maravilhosa...
Depois disso, Hermione só conseguiu gemer enquanto Fleur passava os polegares por cima dos mamilos, sentindo. Provocando. Também desabotoou a camisa, e rapidamente metade das roupas das duas estava no chão. Hermione morria de vontade de pôr os mamilos de Fleur na boca, mas a loira mal a deixava se mexer. Prensando-a contra a porta, passando as mãos pela sua cintura e apertando a perna com mais força bem onde Hermione ansiava.
– Que delícia – disse a grifinória enquanto a sensação atravessava a roupa íntima.
Fleur riu de encontro ao ombro dela, soltando-a por um instante. Hermione gemeu em protesto, mas logo Fleur puxou a calça de moletom que usava, soltando o tecido dos pés. Hermione aguardava, já meio tonta quando Fleur retomou a posição.
– Ai, Merlin... – murmurou Fleur, inclinando a cabeça para trás.
Hermione aproveitou a passagem e levou a boca ao pescoço dela, roçando a pele com os dentes. Com uma das mãos, Fleur agarrava o cabelo de Hermione, e com a outra tateava entre suas pernas.
– Nossa – disse Hermione quando Fleur encontrou o que queria, enterrando o rosto em seu ombro.
Esfregou a coxa entre as pernas de Fleur com ainda mais força. Sua amante, por sua vez, remexia os quadris pedindo mais contato.
Estavam quase lá. Hermione gemia quando Fleur apertava o meio da calça dela com a base da mão, movendo a palma para cima e para baixo, acrescentando os dedos à mistura também. Hermione acompanhava cada impulso, e logo as duas eram um emaranhado de sussurros irrefreáveis bem ali, de pé, encostadas à porta.
– Ah, sim, anjo... – disse Fleur, arranhando o ombro de Hermione com a mão livre. – Por favor.
– Por favor, o quê? – murmurou Hermione junto ao ouvido dela.
– Me faz gozar.
Hermione parou o movimento da perna, e Fleur praticamente rugiu de desejo.
– Putain, Hermione, s'il te plaît, fais-moi jouir! Fais-moi jouir maintenant!
– Demandez-le en italien.
– Fammi venire, amore mio.
Hermione lambeu o pescoço de Fleur e empurrou os próprios quadris na mão dela. Fleur sentia o quanto estava molhada, encharcando a calcinha e escorregando na pele de Hermione.
Mordeu o lábio dela quando a sensação aumentou, crescendo desde o baixo ventre e se espalhando para todas as extremidades. Dedos, pés, cabeça.
– Ah, Merlin, isso! – exclamou Fleur, sentindo o orgasmo percorrer seu corpo.
Ela arranhou e puxou o cabelo de Hermione, o que pareceu ser também aquilo de que a outra precisava. A grifinória ficou rígida por um instante, gemendo no pescoço de Fleur enquanto também gozava, empurrando os quadris contra os dedos dela.
Ficaram agarradas por um momento, arquejando com força. Fleur tinha acabado de soltar Hermione, pronta para perguntar o que aquilo significava, quando ela entrelaçou os dedos com os seus e começou a puxá-la em direção ao quarto.
– Eu quero mais – declarou, e isso foi suficiente para deixar Fleur molhada outra vez.
– Aquela demonstração de poder lá na porta não bastou?
Hermione virou para encará-la. Percorreu o rosto de Fleur com o olhar, adotando uma expressão séria.
– Nem chegou perto. Quero fazer isso desde que te vi naquele piano. Eu queria esse tempo todo, mas... não consegui admitir.
Fleur arfou, as palavras "eu também" vibrando como o vento. Fácil. Aquelas duas palavras tão simples eram a mais transparente de todas as verdades. Uma confissão cheia de expectativa.
– Podemos continuar de onde paramos?
– Por favor.
Hermione beijou Fleur de uma vez. E mais uma. Levando-a de costas em direção a cama. A loira agarrou os ombros dela, que praticamente a jogou no colchão.
– Você está com muito tesão, Ministra.
– Cala a boca, Fleur.
– Sim, senhora.
Hermione subiu na cama e escorregou pelo corpo de Fleur, montando nos quadris dela e beijando-a. Pegou os seios. Beliscou-os. Fleur se contorcia por baixo dela.
– Está com roupa demais – disse Fleur, ofegando e desabotoando a calça de Hermione.
– Você também.
– Estou, sem nenhum exagero, só de calcinha.
– Você está provando o meu ponto.
Tiraram depressa o resto das roupas. Hermione se deitou ao lado de Fleur, abraçando sua cintura nua e beijando-a. Ficaram assim por um tempo, apenas sentindo, as mãos vagando por onde podiam tocar. Por fim, a francesa não aguentou mais.
– Nossa, tão molhada.
– Faz uma semana que estou molhada.
Fleu sorriu.
– Eu também.
Arrastou a mão pelas dobras do sexo de Hermione, depois levou os dedos à boca, chupando-os enquanto olhava bem nos olhos castanhos.
– Eu senti tanta falta disso...
– Vou me abster de comentar.
– Nossa... – sussurrou Fleur entre um dedo e outro.
– Com você é tão fácil – Hermione acompanhou o movimento hipnotizada.
A expressão de Fleur ficou suave. Ela se aproximou e beijou Hermione com delicadeza, sentindo sua pele quente.
– Com você é muito fácil.
Hermione sorriu, mas sentiu um pequeno aperto no peito. Deixou-o de lado e se concentrou em sentir o próprio gosto na boca de Fleur.
– Anjo, você consegue ser...
Mal conseguiu pronunciar o que Hermione conseguia ser antes que ela a virasse de costas e montasse por cima das suas coxas.
– Minha nossa, Fleur – disse entre os dentes, arranhando as costas da loira. – Você continua perfeita.
Fleur sorriu para ela, olhando por cima do ombro. Um sorriso que logo se tornou um gemido quando a boca de Hermione a tocou entre as escápulas, descendo devagar. A língua quente e molhada. A francesa não pode deixar de rebolar, empinando o quadril em busca de mais contato.
– Calma – pediu Hermione, enquanto seus lábios chegavam à base das costas de Fleur. – Merlin, seu corpo é uma obra de arte.
Fleur arfou. Hermione afastou as pernas dela, agarrando as coxas para fazê-la ficar de joelhos. Então encaixou o corpo entre os ombros, deixando-a com o rosto apoiado no colchão e o quadril erguido no ar.
– Tudo bem assim?
– Sim, querida! – respondeu Fleur numa voz arfante e carente.
Se pareceu desesperada, não deu a mínima. Nunca havia sentido tanto desejo na vida.
– Você é minha – sentenciou Hermione, e mergulhou a boca no corpo de Fleur.
A língua e os dentes passaram por toda parte, os dedos massageando e abrindo. Quando ela aproximou os lábios do centro de prazer, Fleur não conseguia mais ficar quieta. Ela ofegava, gemia e gritava no travesseiro, agarrando os lençois.
Seu fascínio se manifestou e seus olhos brilharam dourados quando a boca de Hermione encontrou o que queria. A grifinória arrastou a língua para cima pelo meio da bunda de Fleur. Só uma vez, mas bastou para causar uma inundação no sexo dela e arrancar mais injúrias de sua garganta. Depois disso, Hermione se concentrou, a boca sugando, a língua tocando. Girando.
– Putain! – gemeu Fleur, sentindo o segundo orgasmo se anunciar. – Tu me baises tellement bien!
– É?
– É, Hermione, meu Merlin, não para!
– Quer gozar?
– Quero. Quero! – A voz de Fleur era um gemido alto, quase um lamento.
A língua de Hermione voltou ao trabalho, impossível de acompanhar, escorregando para dentro de Fleur, depois para fora, substituída pelos dedos, depois girando antes de beijar todo o sexo. A loira ficou zonza, certa de que estava prestes a desmaiar de verdade se não se aliviasse logo, então pediu numa voz quase irreconhecível para os próprios ouvidos.
Por favor. Isso. Agora, Hermione, por favor.
E Hermione obedeceu. Deslizou dois dedos para dentro de Fleur outra vez, dobrando-os para frente num movimento que a fez bater a mão no colchão. A grifinória acompanhou com a boca, a língua ditando um ritmo diferente em volta, enquanto engolia tudo que Fleur lhe entregava.
– Eu vou... agora... – avisou Fleur, apertando o rosto na cama enquanto gemia ainda mais, onda após onda de prazer subindo e arrebentando, apenas para subir e soltar mais uma vez.
Pareceu levar uma eternidade para voltar a si. Hermione virou-a de frente e beijou seu sexo com delicadeza, depois as coxas e a barriga, antes de Fleur sorrir, o peito arfando em busca de ar.
Hermione não parou. Deitou ao lado de Fleur, agarrou seu pulso e fez com que ela a tocasse por entre as pernas. Com o desejo que sentia, foi guiando o movimento nela mesma, empurrando a mão para seu sexo com mais força.
– Deixa que eu faço isso – sussurrou Fleur, arrastando os dedos e abrindo caminho até chegar no clitóris. – Você continua não gostando de penetração?
– Gosto, em momentos específicos. Mas não preciso – respondeu Hermione, de olhos fechados, mordendo o lábio. – Toca... me toca, Fleur.
– Com prazer.
Hermione levantou os braços acima da cabeça, gemendo quando Fleur se debruçou e fechou a boca em volta de um dos mamilos. Ela chupou enquanto brincava com o sexo de Hermione, mergulhando os dedos nas dobras molhadas, roçando de leve antes de afastá-los.
– Fleur...
– Que foi? Essa tortura é justa – retrucou ela, girando a língua no mamilo de Hermione. – Você não viu o que acabou de fazer comigo?
– Você mereceu.
Fleur sorriu, soprando uma lufada de ar sobre o bico úmido do mamilo.
– O que mais eu mereço?
Hermione sibilou quando Fleur fez círculos em volta do clitóris dela, depois mordeu firme a pele dos seios, até que estava quase choramingando.
– Fleur, por favor, você sabe que eu não sou tão forte assim – reclamou rápido demais.
Fleur sugou o mamilo dela outra vez, usando os dentes e a língua, e finalmente deu a Hermione o que ela queria. Manteve os dedos lá dentro, apertando com a base das mãos, esfregando, até Hermione se retesar e chegar onde queria, jogando os quadris para o alto enquanto o gemido mais sexy saía de sua boca.
A loira esperou até o corpo de Hermione se acalmar, arrastando os dedos preguiçosamente até a respiração dela voltar ao normal. Então, deitou-se ao lado de Hermione, com o braço apoiado na barriga dela.
– Foi bom?
Hermione riu, mas foi só um som aguado, e ela enxugou as bochechas. Fleur se apoiou no cotovelo, olhando seu rosto. Sem dúvidas, havia lágrimas escorrendo daqueles olhos.
– Querida, você está bem?
– Tô. Tô ótima.
– Tem certeza?
– Tenho certeza. Deita aqui.
Fleur acordou devagar, com o corpo tomado por aquela exaustão relaxada. Lá fora, a chuva escorria pela janela, deixando o quarto aconchegante e cinzento.
Ela se virou para olhar Hermione, pronta para vê-la dormir, sem nenhum constrangimento, mas o outro lado da cama estava vazio. Em vez disso, Hermione estava encolhida na poltrona perto da janela, com o caderno de couro vermelho no colo e a caneta percorrendo uma página.
Passou um instante olhando para ela, imaginando o que havia escrito.
– Oi.
Hermione levou um susto.
– Você acordou.
– Desculpa ter dormido tanto.
– Não foi tanto, você ainda tem algum tempo antes da sua chave de portal.
– Hãn?
– São seis da manhã. Você tem algum tempo.
Fleur sentou-se na cama e os lençois caíram do seu dorso. Sem dúvidas, as duas não conversaram na noite anterior, mas, naquele momento, não queria ser lembrada que voltaria à França.
Queria Hermione na cama, nos braços dela. Queria beijá-la ao acordar, quem sabe fazê-la gozar com delicadeza e sem pressa, e depois sentarem juntas para decidirem sobre o futuro.
– O que você está escrevendo?
Hermione fechou o caderno e o largou na poltrona.
– Nada. Só... rabiscando.
Fleur deu um tapinha no lugar vazio ao lado dela.
– Então volta pra cama.
Hermione franziu a testa e não se mexeu. Fleur sentiu um nó na garganta.
– Você está bem?
– Estou, sim.
– Nós... estamos bem?
– Fleur...
– Hermione... por favor...
Fleur, nua, caminhou até a janela. Hermione a olhou. A mão dela apertava o estofado da poltrona. Não queria chorar. Tinha prometido isso a si mesma. Não queria que o último gesto fosse lágrima.
– Isso foi real pra você, não foi?
– Foi o mais real que já me aconteceu desde Veneza.
Pausa.
– Mas mesmo assim, você vai me deixar.
Fleur colocou um roupão. Seria humilhante demais ter essa conversa sem as roupas.
– Você sabe que... ontem à noite...
– Eu sei – interrompeu Hermione.
Um silêncio pesado se instalou. E então, antes de mais alguma coisa, Fleur se inclinou e encostou a testa na de Hermione. Ficaram assim por alguns segundos.
– A resposta não pode ser você abandonar tudo, Fleur... – A voz de Hermione era um fio esticado, prestes a romper. – Você sabe que eu não posso. Não é algo que eu possa simplesmente ignorar.
Fleur levantou e foi para a sala do apartamento sem olhar para trás. Hermione a seguiu, a postura falhando em esconder a tensão nos ombros. Havia um brilho provocador e um pouco triste em seus olhos.
– Eu não pedi sua permissão – Fleur pegou a taça de vinho intocada da noite anterior e virou um longo gole. – Eu pedi que me aceitasse de volta.
– Mas isso significa a mesma coisa para nós.
– Do que você tem medo, Ministra? – Fleur escolheu um tom debochado. – Se falhar, eu seria uma excelente esposa troféu. Eu farei as unhas e os cabelos todos os dias. Prometo me apresentar sempre impecável para você me exibir por aí. E à noite, depois de um dia estressante, você pode me foder contra a porta e dizer que eu pertenço a você. Exatamente como fez há poucas horas!
– Fleur! Isso é sério! – Hermione parou, exasperada, o rosto corando com uma mistura de raiva e afeto.
O humor desapareceu do rosto de Fleur, substituído por uma calma resoluta que era muito mais intimidante.
– Eu sei. E é por isso que eu vou para Londres.
Hermione balançou a cabeça, um gesto de negação automática.
– Você não vai. Você não pode. O vinhedo é o seu legado. Sua carreira... você é brilhante no que faz. Não pode jogar tudo para o alto em nome de...
A voz dela falhou, a frase morrendo em seus lábios. Fleur se inclinou para a frente, a voz perigosamente suave.
– Complete a frase, Hermione. Em nome de quê?
As palavras saíram como um veneno, um sussurro amargo direcionado mais a si mesma do que a Fleur.
– ...em nome de umas férias de verão em Veneza.
O silêncio que se seguiu foi denso, frio. A expressão de Fleur se fechou completamente. Não havia raiva visível, apenas uma dor profunda e ofendida que sugou todo o calor do ambiente.
– Eu vou pedir que você retire o que disse. Agora.
– Fleur, eu não... – Hermione começou, percebendo o erro, o golpe baixo que havia desferido.
– Eu não me importo com o que você 'não quis dizer' – a voz de Fleur tremeu pela primeira vez, mas ainda era firme como aço. – Eu quero que você olhe para mim e retire esse absurdo.
Os olhos de Hermione se encheram de lágrimas. Frustração e arrependimento a consumiram. A barragem que ela segurou por dias, por anos, finalmente se rompeu.
– Retiro! Tudo bem? Eu retiro! – explodiu ela. – Não foram 'férias de verão'! Foi a única vez na minha vida em que eu respirei de verdade! Foi a coisa mais real e apaixonada que já me aconteceu, porque você... você é esta pessoa impossível e maravilhosa que pegou cada sentimento bom que eu tinha e os fez parecerem maiores! Está feliz agora? Eu admito!
Vulnerável após a explosão, Hermione virou de costas, o peito subindo e descendo em soluços silenciosos. Fleur esperou um momento, deixando a confissão assentar no ar, uma verdade há muito tempo devida. Então, respirou fundo e se aproximou dela, a voz agora mais suave.
– Eu vou entregar meu cargo no Ministério francês. Vou ajustar tudo com o meu administrador sobre o vinhedo. A Rede de Flu internacional é cara, mas viável. Talvez a gente passe alguns meses longe uma da outra nas colheitas. Não será fácil, mas... eu quero a dificuldade. Se for com você.
– Eu não quero essa culpa – admitiu Hermione, ainda de costas, a voz abafada. – A culpa de saber que você abandonou sua casa por minha causa.
– Hermione, olhe para mim.
Ela esperou até que Hermione se virasse relutantemente, o rosto manchado pelas lágrimas.
– No passado, eu te deixei ir porque achei que você se sentiria culpada por ficar. Eu tomei a decisão por nós duas. Agora, você está tentando fazer a mesma coisa. Não repita o meu erro. Deixe que esta seja a minha escolha. Eu estou resolvida.
Hermione bufou, um som de pura frustração, e voltou a andar pelo quarto, as mãos nas têmporas. Nenhum de seus argumentos parecia suficiente para fazê-la desistir.
– Eu não vou esperar mais dez anos para te encontrar por acaso em outra cidade que comece com 'V' – disse Fleur, seguindo-a com o olhar. – Varsóvia, Valeta, Versalhes... eu não me importo. Eu cansei de acasos.
– Nove. Foram nove anos – corrigiu Hermione, um reflexo de sua precisão inerente, mesmo em meio ao caos emocional.
Um sorriso mínimo, quase imperceptível, tocou os lábios de Fleur. Pelo menos Hermione ainda estava escutando.
– Eu já ouvi promessas antes, Fleur. Suas promessas. E tudo o que ganhamos foi um imenso vazio. Um espaço oco onde pessoas passaram por nós e se machucaram no processo.
Fleur percebeu que a lógica e os planos não iriam funcionar. Era hora de usar a única verdade que restava, a única arma contra a qual Hermione não tinha defesa.
– Eu amo você, mon ange.
Hermione fechou os olhos com força, como se o som a machucasse fisicamente.
– Não me chame assim.
Fleur deu um passo mais perto, invadindo seu espaço pessoal.
– Eu amo você. Não a memória de você. Não a garota de Veneza. Eu amo a mulher teimosa, ambiciosa e apavorada que está na minha frente agora.
– Sua chave de portal... – Hermione se agarrou ao detalhe prático como um bote salva-vidas em um naufrágio. – Você vai perdê-la.
A voz de Fleur era um sussurro que preencheu cada canto do quarto.
– Eu. Amo. Você.
– Para! – O grito de Hermione foi abafado, desesperado.
– Eu não posso. Porque eu te amo desde o momento em que te vi naquele trem, e nunca, nem por um dia, eu parei.
– Fleur, aquele trem já partiu – disse Hermione, a voz quebrada.
– Mas nós desembarcamos. – Ela estava a centímetros de distância agora, o calor de seu corpo quase tocando o de Hermione. – Eu amo você.
Hermione olhou para o relógio digital sobre o aparador, um gesto desesperado para se ancorar na realidade, no tempo que restava.
– A sua chave de portal. Fleur, pelo amor de Merlin, você vai perder a sua chave de portal.
Com uma calma final e devastadora, Fleur olhou nos olhos dela, um universo de certeza no azul dos seus. Infinito. Corajoso. Apaixonado.
– Eu sei.
Chapter 12: Parte XII - Poeira cósmica
Notes:
(See the end of the chapter for notes.)
Chapter Text
A luz que encontrava uma brecha pelas pesadas cortinas de veludo não era a luz cinzenta e madura de Viena, nem o caramelo descarado de Veneza. Era a luz suave e leitosa de um sábado de primavera em Londres, uma força cadenciada que prometia um dia de descanso, preguiçoso e sem agenda.
A residência oficial do Ministro da Magia não era uma mansão ostensiva, mas uma imponente casa geminada de quatro andares em uma praça tranquila e arborizada em Kensington. Protegida por mais feitiços de segurança do que um cofre de Gringotes. Por fora, sua fachada de tijolos enegrecidos e janelas brancas era indistinguível de suas vizinhas. Por dentro, no entanto, a casa contava a história de suas ocupantes. A elegância esperada de um lar ministerial, os pisos de madeira escura, as sancas ornamentadas, os retratos de ex-ministros no escritório que ocasionalmente resmungavam conselhos (solicitados ou não), estava suavizada, aquecida pela vida que a habitava. Havia pilhas de livros em quase todas as superfícies, um arranhão permanente no chão perto da lareira onde um feitiço involuntário de Claire deu errado anos atrás, e o cheiro fraco, mas persistente, de morangos e café.
No quarto principal, no segundo andar, Fleur acordou devagar, como sempre fazia, sentindo o peso confortável da manta e o calor do corpo ao seu lado. Ela abriu os olhos e a primeira coisa que viu foi Hermione, já acordada, recostada em uma montanha de travesseiros.
Ela usava óculos de leitura de aro fino e segurava a edição matinal do Profeta Diário, a testa franzida. Seu cabelo, agora com mechas de um castanho mais claro por causa do sol das últimas férias na Borgonha, estava solto, caindo sobre os ombros. Fleur esticou o braço, os músculos protestando pela noite anterior, e traçou uma linha na coxa de Hermione com a ponta do dedo.
– Bom dia, Ministra – sussurrou, a voz rouca de sono.
Hermione deu um pequeno pulo, tirada de sua concentração. Ela baixou o jornal, e o sorriso que deu a Fleur foi algo que nenhum fotógrafo jamais capturou: privado, genuíno e um pouco cansado.
– Bom dia, meu bem. Descansou?
– Como um anjo. – Fleur bocejou. – Alguma notícia interessante?
– A repercussão otimista sobre a taxa de juros em Gringotes. Elogios pela inauguração da ala especializada em criaturas mágicas no St. Mungus. E, o de sempre, especulações sobre meu futuro político. Se vou concorrer a um terceiro mandato. Aparentemente, o mundo sobreviveu enquanto dormíamos.
– Que alívio. – Fleur se alongou, o lençol deslizando para revelar seus ombros e a curva de seu pescoço, a pele pálida marcada por uma leve mancha avermelhada logo abaixo da clavícula. Um sorriso satisfeito tocou os lábios da francesa ao notar o olhar de Hermione fixo na marca. – A inauguração ontem foi um sucesso e você estava magnífica. Firmeza e empatia na medida certa.
– Eu estava exausta, sinceramente – corrigiu Hermione, dobrando o jornal. – O que me manteve focada foi a ideia de despir você daquele seu vestido deslumbrante.
– Era meu dever cívico impressionar. – Fleur se aproximou, aninhando-se contra Hermione. – Além disso, eu decidi provocar a minha esposa, já que ela estava trabalhando em nosso aniversário de casamento.
– Deu certo?
– O vestido ou o casamento?
– Ambos.
– A julgar pelas marcas em meu corpo, você me diz.
Hermione corou, o que, depois de tanto tempo, ainda encantava Fleur imensamente.
– Você é impossível.
– É o que Rita Skeeter vem dizendo. – Fleur beijou seu ombro.
– Essa semana, ela escreveu uma coluna inteira sugerindo que você está me pressionando a me aposentar para que possamos nos mudar para a França e cultivar uvas em tempo integral. Ela te descreveu como uma "sereia sedutora com ambições agrícolas".
Fleur riu, um som baixo e aveludado.
– Pelo menos ela acertou a parte "sereia". – Ela mordiscou levemente a orelha de Hermione. – E então? Você vai ceder à minha sedução e se tornar uma humilde agricultora?
Hermione ficou em silêncio por um momento. Ela pegou a mão de Fleur, entrelaçando seus dedos.
– Tenho pensado nisso. Não na parte da agricultura. Na parte de parar.
Fleur ergueu a cabeça para olhá-la nos olhos, a expressão subitamente séria.
– E?
– E isso me apavora – admitiu Hermione, a voz pouco mais que um sussurro. – Eu não sei quem eu sou sem servir, Fleur. Por mais de vinte anos, eu venho cumprindo expectativas. O meu papel na guerra parece ter se tornado a minha identidade... De toda forma, se eu não tivesse me dedicado tanto, alguém teria lutado pelos avanços que implementei? Teriam tomado as decisões que eu tomei?
Fleur a observou, o polegar acariciando os nós dos dedos de Hermione.
– Eu sei quem você é.
– Eu sei que você sabe, mas eu sei?
– Você quer a minha opinião?
– Claro. Sempre.
– Ron esteve na guerra com você e abandonou o cargo no Quartel dos Aurores assim que Cho engravidou. E, não sei se você está lembrada, naquele dia que Harry bebeu uísque de fogo além da conta aqui em casa... ele confessou que poderia ter jogado quadribol profissionalmente, assim como Ginny. Eles também têm e tiveram dúvidas sobre o que herdaram da guerra.
– Eles são diferentes de mim, meu bem. Têm origem mágica... Eles são homens, sobretudo.
– Eles são seus melhores amigos.
Hermione suspirou, um som tristonho que carregava o peso de anos de serviço público. Ela desviou o olhar, focando em um raio de sol que teimava em atravessar a cortina.
– O que faremos hoje? – perguntou, mudando de assunto com uma rapidez que era tanto uma tática de defesa quanto um desejo genuíno por um dia de normalidade.
Fleur entendeu a deixa. Ela se aninhou de volta no ombro de Hermione, aceitando a mudança de rumo.
– Minha única ambição para hoje é não colocar sapatos. E quem sabe terminar o livro que você me recomendou. Com a detetive viciada em café.
– Ela me lembra um pouco você. A parte do vício em café, claro.
– Boba. E você? Quais são os planos da mulher mais poderosa da Grã-Bretanha para seu precioso dia de folga?
– Estava pensando em algo escandalosamente improdutivo. Talvez possamos finalmente assistir àquele filme trouxa que Claire insiste que é um "clássico absoluto" e que "lembra a nossa história".
– Ah, aquele com a atriz que se parece com a auror nova da sua escolta pessoal – Fleur riu. – Aquela que você finge não achar atraente.
– Eu não faço ideia de quem você está falando. – Hermione disse, com uma dignidade exagerada. – Então, está combinado. Um dia de preguiça.
Fleur sorriu, divertida. Levantou da cama, o lençol caindo e revelando algumas outras marcas da noite anterior em suas costas. Ela parou na porta do banheiro da suíte e olhou para trás, por cima do ombro, um sorriso lento e provocador se formando em seus lábios.
– Vou tomar um banho. Nosso chuveiro é grande o suficiente para duas. A não ser que a excelentíssima senhora ministra da magia esteja muito cansada da noite passada para me ajudar a lavar as costas.
O aroma de café forte e pão torrado pairava na cozinha quando Fleur chegou. Ela usava um roupão de seda e fazia um trabalho desleixado na tentativa de secar com a varinha os cabelos prateados. Agora mais curtos, na altura dos ombros. Hermione, vestida com um suéter de lã macio, shorts de moletom e meias, estava concentrada em seu ritual, moendo os grãos com um aparelho trouxa que Fleur achava absurdamente barulhento, mas cujo cheiro resultante ela adorava.
A francesa foi até a fruteira sobre a bancada de mármore e pegou um cacho de uvas escuras, quase pretas. Começou a comê-las uma a uma, lentamente, o suco tingindo sutilmente seus lábios. Hermione parou o que estava fazendo para observá-la, um pequeno sorriso no rosto.
– Sabe, eu nunca vou me acostumar com isso.
– Com o quê? – perguntou Fleur, colocando outra uva na boca.
– Com você comendo uvas. É como ver um pintor comendo a própria tinta. É... canibalismo. Embora o termo esteja incorreto, não encontro outro adjetivo. E, preciso reconhecer, é... muito atraente.
Fleur riu, um som baixo e divertido.
– É apenas uma frutinha inocente, mon ange. E estas não são da Borgonha. Não se preocupe, o negócio da família está seguro.
Ela se aproximou, oferecendo uma uva a Hermione, que a aceitou diretamente de seus dedos. O gosto era doce, intenso.
– Falando em família... – a francesa continuou, um pouco mais séria, enquanto deixava o cacho novamente na fruteira. – Gabrielle me escreveu ontem. Parece que a pequena Claire está irredutível.
Hermione suspirou, apoiando-se de costas na bancada para encarar a conversa. Claire, a segunda filha de Gabrielle, era uma réplica em miniatura da teimosia de Fleur.
– Hogwarts. Eu ainda não consigo acreditar. Uma Delacour na Grifinória. Sua mãe já superou o choque?
– Apolline está fingindo ultraje, mas secretamente adorou a rebeldia. Gabrielle, por outro lado, está convencida de que você fez algum tipo de Feitiço de Confusão na sua afilhada durante o Natal.
– Eu apenas dei a ela "Hogwarts, Uma História". O livro fez o resto. – Hermione sorriu imensamente e sequer disfarçou. – Vai ser bom tê-la por perto.
– Vai. Mas sabe o que vai ser ainda melhor?
Fleur se aproximou, os lábios quase tocando os de Hermione. Provocando. E, em um movimento súbito, virou-a de costas e a abraçou por trás. O queixo em seu ombro. A ministra fechou os olhos e respirou fundo.
– Omelete. E tenho pensado... – A loira beijou o pescoço da esposa antes de ir até a geladeira. – com os morangos do jardim, acho que vou preparar uma leva daquela geleia que você gosta.
Hermione parou, o horror cômico em seu rosto. Um pouco frustrada pela sedução barata de Fleur.
– Por favor, não. Da última vez, a cozinha ficou pegajosa por uma semana.
– Foi um acidente!
– Claro que foi.
– Outrage! Mas tudo bem. Sem geleia. Um dia você vai implorar por ela.
– Você sabe que eu vou.
– Pois saiba que eu não me rendo fácil. – Fleur sorriu, quebrando os ovos em uma tigela.
Elas prepararam o resto do café da manhã em um silêncio confortável, movendo-se pelo espaço com a sincronia de quem dança a mesma música há anos. Sentaram-se à pequena mesa de madeira na baía da janela, que dava para o jardim ensolarado.
Por um tempo, apenas o som de talheres e xícaras preencheu o ar. Foi Hermione quem quebrou o silêncio, voltando ao assunto que pairava sobre ela como uma nuvem.
– Como você soube? – perguntou ela, em voz baixa.
Fleur ergueu o olhar de sua xícara.
– Soube o quê?
– Que era a hora de parar. De deixar a embaixada. Quando você... quando você decidiu focar na produção dos vinhos.
Fleur pousou a xícara, o olhar perdido por um momento na lembrança.
– Eu não soube. Não de verdade. Não foi uma epifania. – Ela suspirou. – Foi uma escolha difícil... Eu amava a diplomacia, a estratégia, o jogo. Mas... – um sorriso lento se espalhou por seu rosto – ...os vinhos começaram a dar certo. A marca Delacour se fortaleceu. E eu percebi que, se colocasse em uma balança, o prazer de criar algo da terra pesava mais do que a política. Sem contar que eu ficava exausta com todas aquelas viagens... Não sei responder bem, mon ange... foi assim.
Ela olhou para Hermione, a expressão complacente.
– E, para ser honesta, às vezes eu ainda tenho dúvidas. Em dias ruins, sinto falta da adrenalina, da dinâmica de poder. Mas então eu chego em casa, e você está aqui, reclamando da cozinha pegajosa de geleia, e eu sei... eu sei que estou em paz com a minha escolha. Seu apoio foi fundamental.
Hermione assentiu, absorvendo as palavras. Era a permissão que ela não sabia que precisava. Para duvidar, para sentir medo, para voltar atrás.
Depois do desjejum, quando a louça foi limpa com um aceno de varinha, Fleur caminhou até o piano de cauda que dominava um canto da sala de estar. O instrumento tinha sido o presente de casamento de Hermione para ela, um reconhecimento de que Fleur precisava de sua própria arte, seu próprio espaço, mesmo dentro da vida que dividiam.
– Sente-se comigo – disse Fleur, já acomodada no banco de couro.
Hermione hesitou.
– Eu não toco bem.
– Não se preocupe. Sente-se na minha frente.
Intrigada, Hermione fez o que ela pediu, apoiando-se de costas no torso de sua esposa.
– Agora, coloque suas mãos sobre as minhas – Fleur instruiu suavemente com Hermione entre suas pernas.
Hermione obedeceu, sentindo o calor das mãos de Fleur sob as suas, sobre as teclas de marfim. E então, Fleur começou a tocar. A melodia era suave, um pouco sentimental, uma canção pop trouxa que elas ouviram no rádio semanas atrás e da qual Fleur havia gostado. Era, para os padrões de Hermione, um pouco cafona.
Mas então ela sentiu. Sentiu a pressão dos dedos de Fleur sob os seus, guiando-os. Sentiu a vibração das notas subindo pelas teclas, através de suas mãos, por seus braços, até ressoar em seu peito. Sentiu o movimento, a composição da música, como se fosse parte dela. A versão da sua esposa era mais lenta do que a música original, mais introspectiva.
Fleur se inclinou um pouco, a boca perto da nuca de Hermione, e começou a cantarolar a melodia, a voz baixa e um pouco rouca. Hermione fechou os olhos. O som em seu ouvido, a vibração em sua pele, o calor das coxas de Fleur tocando as suas... era uma sobrecarga sensorial. Era mais íntimo do que o sexo da noite anterior.
Looks like we made it
Look how far we've come, my baby
We mighta took the long way
We knew we'd get there someday
Ela não era a ministra. Não era a heroína de guerra. Não era a bruxa mais inteligente de sua geração. Não era a voz dos mestiços e nascidos trouxa. Naquele momento, sentada no banco do piano, ela era apenas uma mulher, vivendo a música através das mãos da pessoa que mais amava. E pela primeira vez, a ideia do que viria "depois" não pareceu um vazio assustador. Pareceu uma promessa.
You're still the one I run to
The one that I belong to
You're still the one I want for life
Sim, a canção era melosa. A última nota pairou no ar e depois desapareceu, deixando um silêncio denso e carregado na sala. Hermione manteve os olhos fechados por mais um momento, saboreando a sensação, a vibração fantasma da música em seus dedos. Quando os abriu, virou-se e encontrou o olhar de Fleur, intenso e cheio de uma ternura que ainda a desarmava.
– A música é um pouco popular, eu sei – sussurrou Fleur, um sorriso brincando em seus lábios.
– É perfeita – respondeu Hermione com a voz embargada.
Fleur apertou as mãos dela sobre as teclas.
– Eu sei que você está com medo do futuro, mon ange. Do silêncio. Do vazio que você acha que um título vai deixar. – Ela se aproximou, a testa quase tocando a de Hermione. – Mas eu quero que você saiba de uma coisa. De todas as decisões que eu tomei na minha vida... deixar a diplomacia, expandir o vinhedo, não termos filhos, tentar cultivar uvas em nosso jardim com esse clima cadavérico de Londres... todas elas vêm com um pingo de dúvida. Todas, exceto uma.
Ela esperou até que os olhos castanhos de Hermione estivessem completamente focados nos seus.
– A decisão de perder aquela chave de portal em Viena, há doze anos. De ficar. De escolher você. Essa é a única coisa da qual eu nunca, nem por um segundo, tive dúvidas. Não importa se você é a Ministra da Magia ou a mulher que queima as torradas porque se distraiu lendo um artigo de Transfiguração. Eu estarei aqui. Ao seu lado. Sempre.
A armadura final ao redor do coração de Hermione se desfez. As palavras que ela precisava ouvir não eram um plano, nem uma solução, mas uma promessa de presença incondicional.
– Eu nunca te agradeci por isso – disse Hermione, os olhos brilhantes. – Por não me deixar vencer aquela discussão.
– Eu sei – respondeu Fleur com um pequeno sorriso. – Você é uma péssima perdedora.
Hermione riu em meio às lágrimas que simplesmente transbordaram, um som que era pura catarse. Ela se inclinou e encostou a testa na de Fleur.
– Obrigada – sussurrou. – Obrigada por me salvar de mim mesma.
– Nós nos salvamos uma à outra – corrigiu Fleur. – E continuaremos a fazer isso. É para isso que servem os casamentos, não é?
Sem dizer mais nada, Hermione virou-se no banco do piano, ficando de frente para a esposa, o movimento desajeitado e urgente. Segurou o rosto de Fleur entre as mãos e a beijou. Foi um gesto de gratidão. Um toque de rendição. Um beijo que dizia, finalmente, "eu também não tenho dúvidas".
______________
Notes:
Obrigada por pegarem esse trem comigo até aqui. Por lerem o que não era sobre magia, mas sobre o que resta quando a magia acaba. O amor, o tempo, a escolha. Hermione e Fleur sobreviveram a tudo porque aprenderam a se reconhecer mesmo nas pausas, nos silêncios, no que nunca foi dito.
Que cada uma de vocês encontre o que fica, quando todo o resto muda.

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