Chapter 1: Prólogo
Chapter Text
A tempestade começou de repente.
O mar estivera tão calmo antes que fora possível cochilar, as ondas batendo no casco do barco embalavam alguns e enjoavam outros. Não havia nada de anormal acontecendo até um estrondoso trovão acordá-los com um susto. A tripulação sentiu os nervos à flor da pele, e quando tornou-se impossível ficar de pé sem apoiar-se para não tombar, um deles decidiu subir ao convés e entrar na cabine do comandante para entender o que estava acontecendo.
O capitão jazia com a cabeça caída no painel de controle. Afligido, sem saber o que estava fazendo, o passageiro assumiu a direção e deixou o desespero guiá-lo. Sua visão não passava de um borrão, e a água doce da chuva juntava-se ao mar salino para invadir o interior do navio, o que só aumentava ainda mais o pânico da tripulação. A urgência de encontrar terra firme, porém, foi o suficiente para fazer o passageiro persistir.
As pessoas a bordo passaram por agonizantes e aterrorizantes momentos, em que chegaram a temer por suas vidas. Entretanto, para surpresa de todos, eles foram capazes de eventualmente chegar à costa: estavam nos Estados Unidos. O pior já passou, pensaram, enquanto desciam da embarcação, tontos.
───────•••───────
Horas depois, cinco brasileiros exaustos, com mochilas nas costas e as roupas ainda úmidas, compravam passagens de ônibus para atravessar alguns estados, rumo ao destino final deles:
— Hatchetfield, Michigan.
Chapter Text
“Em um plano fora da realidade, em algum lugar nas encruzilhadas da imaginação e dos pesadelos, existe um lugar, uma pequena cidade no centro-oeste, onde as forças do mal e do caos puxam o tecido da realidade. Bem-vindo a Hatchetfield.”
Havia uma infame cidadezinha ilhada no lago Michigan. Os rumores diziam que coisas estranhas aconteciam por lá e que quem se atrevia a ir ver por si mesmo acabava, muitas vezes, nunca mais voltando. Sua única conexão ao continente era pela ponte Nantucket, asfaltada de um lado e com trilhos de trem abandonados do outro. Em uma pacata tarde no final de abril, um único ônibus quase vazio cruzou a ponte e entrou na ilha.
A primeira visão ao atravessar a fronteira da cidade era uma grande placa de madeira branca com as palavras “Bem-vindo a Hatchetfield” acompanhando o desenho de uma mão erguida segurando um machado, com árvores e o céu azul ao fundo. Dentro do recém-chegado ônibus, os únicos passageiros, cinco turistas vindos juntos de muito longe, ansiavam pelo fim da viagem, e o mais novo e única criança desse grupo, suspirou impacientemente.
— A gente já chegou? — ele perguntou pela trigésima vez, colocando-se de pé no banco e virando-se de lado para encarar todos os adultos que o acompanhavam. Ele vestia uma camiseta da seleção brasileira e seu cabelo black power cobria parte dos olhos.
— Acabamos de passar pela placa da cidade — disse um dos adultos, coçando os cabelos pretos por baixo do seu capuz azul, incerto — Então a gente deve ter chegado. Certo?
— Sim — respondeu outro deles, mirando-os com seus olhos azuis — É aqui. Logo mais a gente para.
A criança, Richarlyson, sentou-se de novo, inquieto. Então, tirou do bolso do shorts um anúncio de Hatchetfield e seus pontos turísticos em um panfleto que ele dobrara, transformando-o em um aviãozinho de papel, agora muito amassado. Deixando-o de lado, desinteressado, e procurando algo para se ocupar, ele ajustou a palmilha elevada em seu tênis do pé direito e segurou firme sua mochilinha, pronto para sair de uma vez. Sua ansiedade era absolutamente justificável, depois de tanto tempo viajando sem parar, e os outros estavam tão cansados quanto ele.
O moço nervoso de cabelos pretos que sempre usava seu moletom azul com capuz era Pac; estava cansado demais para remoer o estresse pelo qual passara para que acabasse naquela situação, e precisava se segurar para não perguntar se já haviam chegado tantas vezes quanto Richarlyson fazia.
No banco ao seu lado, com cabelos castanhos bagunçados e grandes olhos verde-escuro por trás de seus óculos remendados, Mike olhava com indiferença para a paisagem através da janela. Aquela não era nem de longe a pior situação na qual já se enfiara, e não temia pelo futuro incerto que lhe aguardava ali porque confiava em sua ótima capacidade para improvisar e se virar.
Sentado com Richarlyson, Felps, de cabelo preto cacheado e tatuagens tribais pelo corpo, só pensava em como estava com fome; tinha esperança de encontrar logo naquela cidade algum restaurante que servisse um bom macarrão. Ele pegou o aviãozinho de papel que Richarlyson largara e o guardou em seu próprio bolso para não deixar lixo para trás quando descessem do ônibus.
Um pouco mais no fundo estava Cellbit, de cabelos louro-escuros, barba curta, olhos azuis e as maiores olheiras dentre todos daquele grupo exausto. Sentiu-se acordando de um transe ao reparar, olhando pela janela do ônibus, na paisagem abarrotada de cartazes, panfletos e outdoors, sempre brancos com letras pretas, exibindo dizeres como “Enjoy the island”, “Felicidade é nossa prioridade número um”, e “Esqueça quem era antes: você está agora em Hatchetfield”, todos seguidos pelo mesmo logo de um sorrisinho. Franzindo a testa e levantando um pouco as costas do banco, ele olhou para os companheiros e sentiu que o efeito de transe que dele parecia ter-se apoderado antes ainda pairava sobre eles, por mais que não tivesse certeza do que significava aquela sensação, do por quê a tinha, nem das implicações daquilo. Antes que pudesse organizar os próprios pensamentos para tentar dizer algo, o ônibus estacionou na rodoviária.
Assim que todos saíram e seus pés oficialmente tocaram o solo de Hatchetfield, os cinco perceberam que não havia nenhum outro veículo ou pessoa na rodoviária. Não se demoraram no local, portanto; logo seguiram caminho, pensando, com as bagagens na mão, no que fazer a seguir. Mal haviam saído quando escutaram o motor do ônibus atrás deles, e viraram a tempo de vê-lo se afastando rapidamente. O motorista — ele passara a viagem toda daquele jeito? — parecia ter algo estranho em seu rosto, cobrindo-o. Porém, antes que fosse possível observar melhor, ele já estava longe.
Cellbit deu tapinhas no próprio rosto, tentando acordar. Nada parecia real. Como foram parar lá mesmo…?
— Richarlyson! — chamou Felps quando a criança soltou sua mão e saiu correndo, sozinho. Ele largou as malas para correr atrás do mais novo, clamando por ajuda, e Cellbit decidiu seguí-los, pedindo para que Pac e Mike cuidassem das malas e correndo antes de ter tempo de ouvir protestos.
O lugar que chamou a atenção de Richarlyson tinha vitrines de vidro com manequins e bichinhos de pelúcia, e ele não perdeu tempo antes de entrar, com os dois adultos em seu encalço. O interior confirmava qualquer dúvida possível: era uma loja de souvenirs para turistas. Camisetas, brinquedos, canecas, chaveiros e muito mais, preenchiam as prateleiras e cabides do lugar. Quando abriram a porta para entrar, um sininho em cima dela ecoou seu tilintar por todo o estabelecimento.
— Richarlyson! — Felps repreendeu-o ao alcançá-lo, arfando — Não faz isso, cara! Sair correndo assim num lugar que você não conhece, e se você se perde?
— Olá, bem-vindos ao Starkid Gift Shop! — disse em inglês uma voz grossa desconhecida, vinda de trás deles, exibindo um leve sotaque de quem falava em sua segunda língua — Precisam de ajuda?
Os brasileiros se viraram e encontraram o vendedor da loja: jovem e bonito, usando uma roupa vermelha com detalhes amarelos e uma headband na cabeça, ele tinha sobrancelhas grossas e os cabelos jogados de lado eram castanho-escuros como seus olhos.
— Estamos bem, obrigado — Cellbit rapidamente trocou para o inglês e respondeu — Ele só se empolgou com a loja.
— Oh, entendo. Vocês parecem ser turistas, estou certo?
— Isso mesmo.
— Então bem-vindos a Hatchetfield! Sintam-se à vontade para darem uma olhada nos nossos produtos, e caso precisem de algo, meu nome é Roier.
— Eu preciso de algo, sim — Richarlyson se apressou a dizer em inglês, segurando um bichinho de pelúcia da loja — Eu quero comprar essa capivara!
— Desde quando você fala inglês?! — indagou Felps, surpreso.
— Tem muitas coisas sobre mim que vocês não sabem — Richarlyson respondeu em tom misterioso e em seguida virou-se novamente para o vendedor e trocou de idioma como se não fosse nada demais — Como eu ia dizendo…
— Eu entendo um pouco do que vocês estavam falando. Português brasileiro, né? — Roier perguntou, apontando para a camiseta de Richarlyson da seleção — Eu falo espanhol, é um pouco parecido, mas não muito.
— Exatamente! — Richarlyson respondeu.
— Então, vão querer que eu embrulhe o presente?
— Não, não vamos comprar nada! — Cellbit falou — Aliás, precisamos sair dessa loja e fazer check-in no nosso hotel, tivemos uma longa viagem.
— Mas ela ia se chamar Elisangela…
A conversa foi interrompida quando o sino da porta soou novamente, sinalizando a chegada de mais clientes: eram Pac e Mike, entrando cheios de malas. Roier se aproximou dos dois.
— Olá, bem-vindos ao Starkid Gift Shop! Meu nome é Roier, como posso ajudá-los?
— Eles estão com a gente — Cellbit explicou.
Pac interessou-se pelas bugigangas e foi olhar a loja, arrastando a bagagem consigo. Mike, assim como Felps, foi passando os olhos pela mercadoria distraidamente. Percebendo que não sairiam imediatamente, o vendedor, ao lado de Cellbit, puxou assunto casualmente:
— Vocês todos são brasileiros, é?
— Somos.
— Que legal! Eu nunca fui lá, mas adoro o Brasil. Bom, se você não se incomoda de eu perguntar… Como cinco brasileiros com uma criança vieram parar em Hatchetfield?
A pergunta foi ouvida por todos, parecendo ecoar pelas paredes da lojinha. Eles tiraram a atenção dos produtos e, paralisados em seus lugares, se entreolharam. Em seguida, disseram todos ao mesmo tempo:
— A gente estava passando pela área — disse Mike.
— Gostamos de mistérios — disse Cellbit.
— Vista bonita — disse Felps.
— Por que você quer saber?! — disse Pac.
Roier pareceu confuso, porém deu uma risadinha.
— Certo…
Cellbit apressou-se em dizer:
— Os panfletos que a gente viu faziam propaganda de muitas coisas. A gente achou que teriam mais turistas depois de tudo o que lemos sobre este lugar.
— Normalmente é um lugar meio nicho, sabe? Além disso, não estamos na alta temporada agora, por isso eu não esperava tantos visitantes de tão longe. Mas, já que estão aqui, vocês precisam de alguma lembrancinha para recordar deste lugar! O tecido usado nas roupas é de alta qualidade, as pelúcias são certificadamente laváveis…
— Muito obrigado — interrompeu Felps, educadamente — Mas não estamos com o orçamento muito alto.
— Bom, — Roier direcionou-se até uma prateleira com vários pequenos produtos diversos que não pareciam ter nada em comum um com o outro — nossos óculos de sol, pins e copos com tema de natal estão com desconto.
— Copos de natal? Estamos em abril — Mike observou.
— Sim, mas está com desconto, então…
— Acho que hoje não — Cellbit apressou-se — Mas nós adoraríamos saber para qual lado fica o Egg Carton Hotel.
— Ah, é lá que vocês estão hospedados! Não fica muito longe daqui, na verdade… Eu posso trazer mapas para vocês, se quiserem.
— Seria ótimo, obrigado.
Enquanto Roier ia buscar o mapa no balcão, perto da caixa registradora, Cellbit tirou o sorriso simpático estampado em seu rosto e cochichou, olhando para baixo:
— Devolve a capivara, Richarlyson!
— Nunca! É a última capivara de pelúcia da loja.
— A gente está com o dinheiro contado, lembra?
— Eu… hm.
O garoto olhou para a pelúcia e a colocou de volta na prateleira devagar.
— Não me olha com essa cara — Cellbit resmungou.
Richarlyson parecia prestes a chorar. Ele fazia carinho na cabeça da capivara que não mais estava em suas mãos.
— Vamos fazer assim — Cellbit abaixou-se para conversar com ele cara a cara — Se a gente voltar nessa loja outro dia e a capivara ainda estiver aqui, ela é sua, ok?
Aquilo pareceu alegrá-lo.
— Tá bom, ok!
Felps encarou a cena com uma sobrancelha erguida. Cellbit aproximou-se do ouvido dele e cochichou:
— Me lembre de nunca mais voltar aqui.
Roier aproximou-se deles novamente e entregou um mini mapa para cada um, incluindo um para Richarlyson.
— Gracias, tío! — disse a criança.
— Espanhol também, Richarlyson?! — espantou-se Felps.
— Pero claro que sí, pendejo — o mais novo respondeu fazendo uma pose, claramente muito orgulhoso de si mesmo. Roier riu.
— Ele é filho de algum de vocês? É uma criança muito esperta.
— Eles todos me adotaram — Richarlyson respondeu, surpreendendo a todos; ele até então não havia anunciado em voz alta que aceitara aquela decisão.
— Oh, ok! Isso é alguma coisa poliamorosa ou…
— Não! — Cellbit respondeu imediatamente — Não, nós só… Platonicamente adotamos o Richarlyson.
— Faz sentido. Eu tenho um co-parent platônico para o meu filho, também.
Cellbit inicialmente pensou que Roier estivesse sendo sarcástico, porém sua expressão era completamente séria quando ele acrescentou, dirigindo-se a Richarlyson:
— Você devia conhecer o Bobby algum dia. Ele tem mais ou menos a sua idade, acho que vocês dois se dariam bem.
— Roier — Pac chamou, aproximando-se com seu mapa da cidade em mãos — Então a gente tem que virar à direita, né? Ou eu entendi errado?
— Acho que você tá segurando o mapa de cabeça pra baixo. Aqui, deixa eu te ajudar.
Enquanto o funcionário da loja explicava o caminho apontando para as ruas pelo mapa, Cellbit reparou que estava olhando demais para ele e se forçou a desviar o olhar. Com isso, acabou flagrando Richarlyson, do outro lado do estabelecimento, disfarçadamente enfiando algo em sua mochila e fechando o zíper, tentando fazer o mínimo possível de barulho. Garoto malandro.
— Ohh, ok! Acho que eu entendi agora — Pac exclamou.
— Se vocês tiverem algum problema, podem voltar aqui e eu tento ajudar.
Os turistas dirigiram-se até a porta.
— Obrigado — Cellbit disse antes de sair da loja — Te vejo por aí.
— Até mais!
A caminhada até o hotel, que envolvia subir muitas ladeiras, não era tão curta quanto parecia no mapa. O lado positivo era que, passando a pé, prestavam mais atenção nos lugares, incluindo possíveis bons pontos de referência. O negativo era que, apesar dos estabelecimentos diversos, o aspecto mais memorável sobre o cenário acabava sendo o mais constante e repetitivo: os cartazes brancos com o slogan do sorriso. Isso não impediu que o nome de um local ou outro ficasse na memória deles — havia uma cafeteria chamada Beanie’s, o restaurante mexicano Taqueria El Tripon, uma placa indicava a direção do shippong Lakeside Mall, e viram até mesmo um tal de Las Casualonas Nightclub, o qual Pac fez de tudo para não permitir que Richarlyson botasse reparo, distraindo-o até que o local tivesse ficado completamente para trás. Pouco depois, avistaram a ferrovia ativa que o mapa indicava, a qual definitivamente ajudaria na locomoção deles futuramente, mas a qual já não valia mais a pena tomar àquela altura do caminho.
Já estavam exaustos quando se depararam com o hotel, um prédio cinza com detalhes brancos, poucos andares e, em seu topo, aparentemente havia um terraço. Passaram pelo caminho de pedra cercado com madeira em direção à entrada, e na grama das laterais havia uma árvore de cada lado e algumas flores. No interior, a recepção era minimalista, e mais além de um sofá velho, estava o balcão para check-ins, atrás do qual o dono do hotel se acomodava. Cellbit mal pôde acreditar quando viu aquela figura encapuzada e de óculos lançar-lhes um sorriso cordial que, para ele, já era familiar.
— Bem-vindos ao Egg Carton! Vocês têm uma reserva?
Cellbit deu mais alguns passos em direção a ele.
— Bad Boy Halo?!
O homem o olhou por alguns segundos com a testa franzida antes de sair de trás do balcão e, incerto, perguntar:
— Cellbit…?
Ele assentiu e ofereceu um aperto de mão, o qual Bad usou para puxá-lo em um abraço. Foi estranho retribuí-lo e perceber que havia crescido e que estava, após tantos anos, envolvido novamente naqueles braços.
— Quanto tempo! Onde você esteve? — Bad perguntou ao soltá-lo.
— Eu voltei pro Brasil.
— Uau, eu realmente não esperava te ver! Esses são seus amigos? Foram vocês que ligaram, tipo, ontem para fazer uma reserva?
— Exatamente!
— De onde vocês se conhecem? — indagou Felps, em português, e recebeu a resposta na mesma língua.
— De antes da… aham, antes de eu conhecer vocês, entendem?
Era surreal se ver novamente reunido a Bad, uma figura que fazia parte de algumas de suas memórias mais antigas e mais sombrias. Não que o conhecesse desde muito pequeno: apenas tinha muitos rombos em sua memória, principalmente quando se tratava de acontecimentos anteriores à primeira vez que conheceu Bad. E Cellbit sabia que era provavelmente mais fácil viver sem aquelas lembranças, de todo modo.
— Então isso significa que a gente vai receber desconto? — Mike perguntou.
───────•••───────
Com o grupo já separado entre dois quartos, enquanto os outros desfaziam as malas e descansavam, Cellbit voltou ao lobby para conversar com seu velho amigo. Não se viam havia aproximadamente dez anos e tinham perdido completamente o contato um com o outro. Bad trazia a Cellbit ao mesmo tempo o sentimento de conforto e nervosismo, por causa de tudo o que passaram juntos, mas já era um alívio em si o fato de as situações terem mudado — e eles também.
Ele descobriu que Bad se mudara para Hatchetfield pouco tempo depois de sair de lá, do lugar em que os dois se conheceram, e que ele era pai solteiro de uma criança da mesma idade de Richarlyson — e trazido esse assunto à tona, Cellbit teve de especificar que sim, os quatro amigos eram, em conjunto, pais platônicos dele. Depois de atualizarem um ao outro sobre suas vidas, deixando de lado eventos sobre os quais não valia a pena se aprofundar (como, por exemplo, as circunstâncias em que Cellbit conhecera Pac e Mike), Bad tomou um gole de seu chá e perguntou casualmente:
— Mas e aí, Cellbit, o que trouxe vocês a Hatchetfield?
Ele suspirou.
— Sinceramente, foi uma coincidência, as coisas só meio que aconteceram. E a gente escolheu o seu hotel porque foi o mais barato que a gente viu nos panfletos, eu não tinha ideia de que você era o dono.
— O meu hotel era o mais barato, sério? Bom, é um dos únicos… Acredite ou não, mas mesmo com todos os mitos irreais, completamente fictícios, sobre esse lugar, muitas pessoas nunca ouviram falar dele, ou nunca tiveram interesse em visitar. A gente acaba recebendo alguns turistas na alta temporada, tipo durante o Festival do Mel, mas na maior parte do tempo, nada de especial acontece por aqui.
— Ah, é? Não tem nada de especial por aqui, sério?
Bad desviou o olhar antes de responder:
— É-é...
Cellbit se curvou para frente e sussurrou:
— Tem certeza? Qual é a desses cartazes brancos que dizem "Enjoy the island"?
A pressão de Bad pareceu cair. Quando foi falar, sua voz estava mais alta do que o necessário.
— Eu não tenho ideia do que você tá falando, Cellbit, hahah. Vamos falar sobre algo que faça sentido.
Cellbit ficou inquieto, mas cedeu. Bad continou a conversa como se aquela intervenção jamais tivesse acontecido, e o papo perdurou parecendo artificialmente casual. A quebra veio com a resposta à pergunta de Bad:
— É realmente muito bom te ver de novo, eu pensei que isso jamais aconteceria. Quanto tempo você vai ficar por aqui? Quais são seus planos pra essas férias?
O cérebro de Cellbit pareceu se embaralhar com aquela simples pergunta.
— Essa… essa é uma ótima pergunta. Quais são os nossos planos aqui?
A faceta de Bad de que tudo era normal oscilou.
— O que você quer dizer?
Quando Cellbit foi responder, seu olhar ficou perdido, sem foco, e a testa estava franzida.
— É difícil colocar em palavras, nós… nós estávamos viajando de barco e uma tempestade nos trouxe à costa dos Estados Unidos. Já dentro do país, assim que a gente viu algo sobre Hatchetfield, nós de alguma forma simplesmente sabíamos que precisávamos vir para cá. Estranho, eu… mal me lembro o que tava se passando pela minha cabeça. Tudo é meio que um borrão até eu atravessar a Nantucket Bridge hoje mais cedo.
Bad se levantou, arrastando sua cadeira no chão desajeitadamente de modo a produzir uma nota desafinada e incômoda. Enquanto falava, foi até Cellbit e segurou seus ombros, guiando-o para fora do cômodo e em direção à escada que levava aos quartos.
— Quer saber de uma coisa? Acho que tá ficando tarde, né não?
Cellbit pareceu acordar de um transe.
— São, tipo, seis da tarde.
— Oh meu Deus, tão tarde! Por que você não tenta descansar um pouco, Cellbit? Foi um longo dia. Vamos conversar mais amanhã, que tal?
— O-ok…? Mas eu posso comer alguma coisa antes? Seu hotel serve jantar?
— Droga, eu esqueci do jantar! — Bad perdeu seu tom robótico, genuinamente estressado pela situação — Eu não vou ter tempo de preparar, me desculpa, mas eu posso pedir uma pizza, se vocês quiserem.
— Claro…
Atrapalhado, ele se direcionou até o telefone em seu balcão para discar o número da pizzaria, ainda murmurando para si mesmo.
— Carambola, e eu ainda preciso ir buscar o Dapper…
Cellbit, subindo de volta ao seu quarto, ponderou sobre como sentia-se incomodado em relação àquela cidade. E nem foi a conversa com o amigo que trouxe a sensação, por mais que ela a tivesse ampliado; não apenas por causa daquele comportamento estranho, mas também porque Cellbit sabia, justamente por experiências vividas ao lado de Bad, que nem tudo podia ser explicado pela lógica e razão, que algumas coisas por trás da base sólida de sanidade do mundo vão além do que os olhos vêem.
Angustiado, buscando ser assegurado de alguma forma, ele tentou falar de seu mau pressentimento sobre Hatchetfield com Felps, contudo não foi capaz de achar as palavras certas para descrever algo tão intangível, ainda mais com alguém que não vivenciara o que ele e Bad vivenciaram para compreender certas sensações indescritíveis. Apesar disso, Felps foi compreensivo.
— Ah, Cellbit, eu não sei se eu me sinto estranho, mas eu entendo você se sentir. Tem todas aquelas histórias sobre coisas inexplicáveis acontecendo aqui, e querendo ou não, a gente tá em um lugar completamente novo e diferente do que a gente tá acostumado.
Não era exatamente aquilo — ou pelo menos, não só —, mas Cellbit deixou o assunto quieto. Afinal, não demorou muito para a chegada da pizza da Chico Malo’s Pizzeria, e os dois comeram junto com Richarlyson, enquanto Pac e Mike jantavam no outro quarto. A comida era decente, e por mais que estivesse curioso sobre o motivo para o restaurante ter o nome de Bad Boy traduzido para espanhol, dispensou o fato como uma mera coincidência, imaginando que Bad não estava no melhor dos humores para responder a perguntas de qualquer tipo.
— Espera, Richarlyson — Cellbit o observou, saindo um pouco de seus devaneios — Desde quando você tem uma touquinha vermelha de vaca?
Ele arregalou os olhos.
— Desde… desde sempre?
— Engraçado… eu lembro de ter visto várias iguais naquela loja de souvenirs hoje mais cedo.
— Eu não tenho ideia do que você tá falando — Richas respondeu enchendo a boca cheia de pizza e evitando o olhar do mais velho — Mas saiba que se eu tivesse roubado alguma coisa de lá, seria porque não me deram minha capivara Elisangela e eu precisava de alguma outra coisa para me consolar.
Felps encarou o amigo como se dissesse “eu avisei” e Cellbit suspirou.
— Tá tudo bem, Richarlyson, desde que você não se deixe ser pego. Olhos sempre abertos, hein?
A criança sorriu, satisfeita por não ter se metido em encrenca pelo que fez, e deu mais uma grande mordida em seu pedaço de pizza.
Depois de terminar de comer e tomar banho, Cellbit se jogou na cama, exausto. Ainda não era tarde, mas além do esgotamento pela caminhada até o hotel, havia dias que ele andava dormindo ainda menos do que de costume. Mesmo assim, quando fechou os olhos e tentou dormir, não conseguia cair no sono de jeito nenhum, com seus pensamentos o assolando e a sensação estranha perdurando. Assim ficou por horas, apenas rolando de um lado para o outro.
Quando finalmente dormiu, ainda assim não conseguiu relaxar ou ter paz. Em seus sonhos, viu um urso branco antropomórfico com um sorriso enervante aproximar-se dele e falar horrores com uma voz robótica distorcida. Atrás do urso, criaturas malignas cuja presença era difícil de decifrar, como se fossem complexas demais para a compreensão humana, agigantavam-se e despedaçaram a mente de Cellbit, trazendo-o à loucura aos poucos.
Viu seus amigos se arrastarem pelo chão com órbitas vazias onde deviam estar os olhos, suas bocas abertas de forma horrenda tentavam pedir ajuda, sem sucesso. O urso se aproximou deles com uma serra elétrica, fazendo Cellbit sobressaltar-se e, mesmo que se sentisse literalmente derretendo, correu naquela direção para impedir o bicho. O problema foi que ele logo percebeu que não saía do mesmo lugar, e quando finalmente alcançou o urso, já era tarde demais. Mesmo assim, cercado dos restos mortais de seus amigos, Cellbit perfurou e cortou a criatura, que emitia um som agonizante e fazia os ouvidos dele sangrarem.
Cellbit gritou muitas coisas, porém sua voz não saiu. As grandiosas criaturas malignas riram dele, e quando ele prestou atenção no corpo que esfaqueara, não era o urso que sangrava ali; era Richarlyson, confuso e chorando. Em completo choque, Cellbit deu alguns passos para trás, deixando a faca cair, e sentiu-se banhado em sangue, que o fazia escorregar sempre que tentava fugir.
Quando finalmente foi capaz de se colocar em pé, tentou encarar as criaturas malignas e poderosas que o observavam. Seu cérebro, porém, não foi capaz de processar o que viu, e Cellbit foi perdendo todos os sentidos até ser apenas capaz de discernir, mesmo em meio à cegueira, a confusão multicolorida que eram aqueles deuses funestos — rosa, amarelo, verde, azul, roxo.
Cellbit acordou suado, sentando-se depressa na cama e sentindo como se tivesse passado séculos em outra dimensão. Mas os grilos ainda cantavam e o vento frio trazia lá de fora o cheiro de dama da noite pela janela semi-aberta. Observando a escuridão do quarto e sentindo o gosto metálico de sangue na boca, ele recolocou a cabeça no travesseiro duro, ciente de que seu sono não voltaria mais naquela noite.
Notes:
- A frase inicial em itálico é uma tradução que eu fiz de algo dito pelo Nick Lang, um dos criadores do universo original de Hatchetfield, de onde eu tirei a ideia para criar este AU.
- A coisa do “base sólida de sanidade do mundo” eu formulei desse jeito por causa da frase do RPG do Cellbit, que eu nunca assisti, mas lembro dela sendo mencionada e tive a ideia de usar
Chapter Text
Quando Richarlyson acordou, já bem cedo, Cellbit decidiu levantar da cama e parar de fingir que dormia. Sentindo os olhos pesados, ele tirou o pijama e colocou a mesma roupa do dia anterior, assim como Richas fez, sem esquecer sua nova touquinha de vaca. Desceram para tomar café da manhã e, no pequeno salão do térreo, sentava-se à uma mesa alguém que só poderia ser o filho adotivo de Bad: uma criança com cabelo preto repicado na altura dos ombros e franja, usando cartola, camisa social e suspensórios, e com olhos claros contrastando sua pele escura. Ele calçava meias enquanto seu pai corria desesperadamente de um lado para o outro.
— Onde tá a droga daquela chave…? Dapper, já escovou os dentes?
— Escovei. E, pai… — a criança apontou para os hóspedes.
Ao vê-los, Bad deu-lhes bom dia com um sorriso nervoso e pediu para que sentassem enquanto corria até a cozinha para buscar o café da manhã, que já estava pronto. Richarlyson, esperando a refeição, observou de longe o filho de Bad, em uma batalha interna sobre dever ou não abordá-lo. Enfim se decidiu, e foi até ele para se apresentar.
— Oi. Eu sou o Richarlyson, como é seu nome?
— Eu sou Dapper.
— Gostei do seu chapéu.
— Obrigado, gostei do seu também. Quer ver minha coleção de animais?
— Uau, quero sim!
Muito empolgado, Richarlyson seguiu Dapper até outro cômodo. Pouco depois, Bad voltou da cozinha com as mãos cheias, anunciando:
— Encontrei as chaves do carro!
Ele foi até a mesa de Cellbit e serviu o café da manhã apressadamente, perguntando:
— Cadê o Dapper?
— Acho que ele foi brincar por aí com o Richarlyson.
— Ai, essa criança, viu! Ele precisa ir pra escola, deixa eu ir buscá-lo. Dapper! Dapper!
Cellbit pegou apenas o café preto e bebeu rapidamente, sem leite ou açúcar. Tivera muitas horas em claro para pensar em seus planos para o dia e concluiu que, encontrando o que havia de errado com aquela cidade, provavelmente sentiria-se mais relaxado. Estava se levantando da cadeira quando Bad, Dapper e Richarlyson voltaram.
— Ele vai se atrasar pra aula, eu preciso correr! — Bad falou, agitado — Cellbit, se os seus amigos acordarem, você pode por favor avisar eles que o café da manhã tá pronto na cozinha e que eles podem pegar à vontade? Eu volto já já.
— … Claro,
— Obrigado!
E saiu, segurando Dapper descalçado em seu colo, com uma mochila infantil no ombro e pequenos sapatos sociais na mão livre. Richarlyson puxou a camiseta de Cellbit para chamar sua atenção.
— Aonde você vai?
— Dar uma passeada pela cidade.
— Posso ir também?
Cellbit hesitou.
— Richarlyson, preciso investigar umas coisas. Tem muito para ver, eu preciso sair logo e você nem tomou seu café da manhã ainda.
— Não seja por isso.
Richarlyson se virou para aquela refeição intocada, a não ser pelo café. Ele enfiou duas torradas com abacate inteiras na boca e engoliu com ajuda do suco de laranja direto do jarro, largando-o pela metade e em seguida partindo para os ovos mexidos enquanto guardava uma maçã no bolso do shorts.
— ‘Tô pronto — disse, com pedaços de ovo voando de sua boca.
— Richarlyson!
— Agora não tem mais desculpa. Vamos, pra uma aventura!
Os dois saíram do hotel. Alguns minutos depois, Pac e Mike desceram até o salão de refeições e encararam o lugar vazio, com não mais que alguns restos nos pratos em uma das mesas.
— Eita que o serviço daqui é ruim demais, fi — comentou Mike — Por isso o hotel era barato. O dono nem fez café da manhã pra nós!
───────•••───────
O mapa dado pelo moço da loja de conveniência — Roier era o seu nome, Cellbit não esquecera — era um bom guia. Havia uma estação de trem não muito longe do hotel, porém ele não desejava ir a nenhum lugar específico, queria apenas andar até encontrar algo fora do ordinário, o que imaginava que não demoraria muito. Então, com Richarlyson no encalço, os dois andaram.
E andaram. E andaram muito. Havia os estranhos cartazes brancos por toda parte, claro, contudo nada mais parecia muito suspeito. O que Cellbit rapidamente notou, entretanto, foi o quanto Richarlyson se distraía; ele parava para olhar tudo, não de um jeito investigativo e útil, mas sempre para apenas perguntar: “Podemos entrar lá?”, “Quero um desses!”, “Que lugar é esse?”.
Sem ter muito o que fazer sobre isso, enquanto a criança se distraía, Cellbit decidiu otimizar seu tempo, ocupar-se, e começou a contar quantos cartazes e outdoors brancos com sorriso encontrava, marcando um risco em seu bloquinho de anotações a cada vez que localizava um e especificando qual das frases falsamente acolhedoras era exibida.
Passaram por mais algumas ruas, e Cellbit analisava um dos cartazes de perto, quando ouviu uma exclamação de susto de Richarlyson, o que o fez desviar sua atenção para descobrir a fonte daquela reação. Não foi difícil localizar o que poderia ser: do outro lado da rua, passava uma pessoa toda vestida de branco exceto por um colete laranja por cima, sem mostrar um centímetro de pele, seu rosto coberto por uma máscara que parecia de esgrima, porém era menos translúcida, a parte de trás da cabeça escondida por capuz branco e por cima de tudo, um chapéu amarelo de construção. Richarlyson se escondeu atrás de seu cuidador, e mais três pessoas vestidas igual à primeira passaram. Os quatro trabalhadores se dirigiram a uma área da calçada oposta interditada por fitas zebradas amarelo e pretas, e se comunicaram sem fala, apenas apontando para os lugares antes de cada um ir trabalhar em uma coisa.
— Que porra é essa? — Cellbit sussurrou para si mesmo.
Ele procurou desesperadamente por sua polaroid dentro da mochila; para a sua sorte, encontrou-a rapidamente, e desatou a fotografá-los. Segurou cuidadosamente algumas fotos reveladas, mas logo ficou difícil manter todas na mão junto com a câmera e decidiu pedir ajuda.
— Segura aqui pra mim, Richarlyson, com cuidado — cochichou.
Porém não houve resposta. Cellbit olhou ao redor e se viu sozinho, exceto pelos trabalhadores, indiferentes aos acontecimentos alheios.
— Richarlyson?
Em pânico, ele guardou as fotos, sem nem olhá-las, no meio do caderninho de anotações, o qual socou no bolso da calça apressadamente e correu, chamando o nome da criança. Richarlyson? Richarlyson? Bem quando pararam para observar aqueles trabalhadores suspeitos, isso acontecia. Richarlysooooon? Richarlyson! Como ele poderia ter sumido tão rápido? Richas! Richinhas?
Ele cruzou a esquina e se viu em um lugar conhecido: Starkid Gift Shop. No dia anterior, ele, apressado, não reparara na placa de letras brancas maiúsculas com sombreado roxo, anunciando o nome da loja falado pelo vendedor ao abordá-los. Rezando para um Deus no qual não acreditava, Cellbit correu até lá, sua última esperança.
Esse moleque filho da puta, pensou, quando encontrou a criança sentada em um balcão da loja, conversando com o mesmo funcionário do dia anterior e segurando a capivara de pelúcia.
— RICHARLYSON! — Cellbit correu até ele — DE NOVO? TÁ MALUCO, CARALHO? EU TE PERDI DE VISTA, QUASE QUE NÃO TE ENCONTRO, QUER ME MATAR DO CORAÇÃO?
— Calma, cara — Richas disse tranquilamente — O tio Roier tava agora mesmo se oferecendo pra ligar pro hotel pra te contatarem e dizerem onde eu tava.
Cellbit desviou a atenção de Richarlyson, subindo seu olhar para encarar Roier.
— Cuidado con este pendejito. Ele é bem esperto, mas ele usa isso pro mal.
Vendo como se descontrolara na frente dele, Cellbit imediatamente ajustou a postura e pigarreou.
— Hm, desculpa por gritar. Eu só fiquei muito, muito preocupado, você não pode simplesmente correr de mim desse jeito! Você precisa me avisar, e a gente anda por aí junto! Agora vamos, devolve a capivara pro Roier, eu não vou comprar isso depois desse susto que você me deu.
— Não, você disse que se a gente voltasse e a Elisangela ainda estivesse aqui, ela seria minha! — ele baixou o tom de voz e explicou em português, entredentes — Essa aqui era a última pelúcia assim e ele já sabia que eu queria, então se eu roubasse, ele ia perceber!
Cellbit se arrependeu amargamente de suas palavras do dia anterior. Pegando uma das pelúcias da prateleira para checar o preço, quase engasgou: como esperado, absurdamente caro.
— Richarlyson, isso aqui custa muito dinheiro.
— Mas você disse…
Apesar do diálogo em português, Roier pareceu compreender palavras o suficiente e sacar o contexto, porque colocou a mão no ombro da criança e agachou ao seu nível para lhe dizer:
— Você quer a capivara, certo, Richas?
Os olhos dele brilharam.
— Quero!
— Ok. Eu te dou a capivara só se você prometer para mim que nunca mais vai roubar da minha loja de novo.
Richarlyson arregalou os olhos e ficou quieto. Roier continuou:
— Uhum, mesmo que você tenha tirado sua touca de vaca antes de entrar aqui hoje, eu ainda consigo ver uma parte dela saindo do seu bolso, e eu também vi nas câmeras de segurança ontem quando você roubou. Tá tudo bem, eu te perdoo, desde que você não faça isso de novo. Porque se fizer, vai ser bem difícil da gente ser amigo.
Ele não conseguia olhar Roier nos olhos, envergonhado.
— Lo siento, tío…
— Yo sé ¿Pero me lo prometes?
— Sí.
Richas estendeu o mindinho para ele, que retribuiu o gesto e a promessa foi selada. Em seguida, o mais novo, ainda cabisbaixo e quieto, foi até um cantinho da loja brincar com sua nova capivara.
— Uau — Cellbit finalmente falou — Isso foi muito legal da sua parte, Roier. Obrigado.
— Nah, eu entendo. Como eu te disse no outro dia, eu tenho um filho mais ou menos da idade dele, e ele faz coisas assim, às vezes faz até pior. Então eu tô acostumado.
— Mesmo assim, você não precisava dar aquelas coisas pra ele.
— Yo sé, mas desde que ele entenda meu ponto, não tem problema.
Cellbit ficou um pouco sem graça, mas não insistiu.
— Eu acho que eu nem cheguei a me apresentar pra você. Meu nome é Cellbit, e como você provavelmente já sabe, o nome dele é Richarlyson.
— Cellbit… Prazer em te ver de novo — Roier ofereceu um aperto de mão.
— Prazer — ele o cumprimentou.
— Espero que você esteja curtindo Hatchetfield até agora. Já teve tempo de explorar a cidade?
— Ah, não muito. A gente tava só andando por aí.
— Qualquer dia você precisa trazer o Richas aqui depois das três da tarde, meu filho Bobby fica aqui comigo às vezes. Eles parecem se meter em pendejadas bem parecidas.
— Pode deixar, vou trazer sim. Acho que o Richas vai gostar.
— Ele vai.
Cellbit lançou um olhar à criança por cima do ombro e viu todas aquelas mercadorias: moletons com os dizeres Saudações de Hatchetfield Michigan, Lar dos Nighthawks!; pins com Mantenha-se Estranho - Hatchetfield; camisetas com Eu sobrevivi a Hatchetfield e tudo o que ganhei foi esta camiseta. Ele ponderou por alguns segundos e tomou coragem:
— Ei, hm, posso te perguntar uma coisa?
— Claro!
— Você conhece bem os mitos sobre Hatchetfield?
Roier foi surpreendido pela pergunta.
— Ah sim. Às vezes, contar histórias ajuda a vender produtos pros turistas.
— É mesmo? — Cellbit disse, pensativo — Que tipo de coisa você costuma dizer às pessoas?
Ele precisou de poucos segundos para pensar. Então, pegou uma das lanternas à venda e apontou a luz na direção de seu queixo, dando maior atmosfera à história que estava prestes a contar, usando vários gestos com a mão livre e com bastante emoção na voz. Pegou também, dentro do bolso de seu uniforme vermelho, um controlezinho que tocou uma música de mistério genérica e clichê depois de ele apertar um botão.
— Tem uma história que as pessoas costumam gostar bastante. Ela diz que uma família abastada e excêntrica, responsável pela construção de alguns dos mais importante pontos de referência na cidade, tinha alguns interesses… ecléticos, como sacrifícios humanos, rituais satânicos… Se você passar pela rua Hickory, vai ver a mansão abandonada deles, mas toma cuidado! Mesmo que eles tenham sido mortos décadas atrás por uma multidão furiosa porque a população estava cansada do culto deles, algumas pessoas acreditam que seus espíritos irritados ainda assombram a cidade. Tá vendo essa cicatriz na minha perna?
Ele puxou a barra da calça e revelou uma grande cicatriz avermelhada, mas já completamente curada, na canela, a qual iluminou com a lanterna antes de apontá-la novamente para o queixo.
— Eu fui lá com o meu amigo alguns meses atrás porque eu não acreditava nas histórias, mas tinha alguma presença maligna por lá, e eu tropecei enquanto tentava fugir. Meu amigo, por outro lado, se safou são e salvo. Quer saber como?
Roier pegou em uma das prateleiras um boné escuro enfeitado com as palavras Hatchetfield Nighthawks e o desenho de um pássaro.
— Ele tava usando um dos nossos bonés mágicos! E enquanto essa coisinha tá na sua cabeça, bom, nada pode te machucar.
— Uau — Cellbit pegou o boné e o analisou — Um boné? Não um amuleto ou algo assim? Essa é nova para mim.
— Não sou eu quem cria as regras, cara! Mas as pessoas compram, porque é verdade — ele concluiu, apagando a luz da lanterna e desligando a música de seu controle.
Cellbit não estava interessado em mitos sobre fantasmas satanistas e bonés mágicos, e sentiu-se levemente decepcionado pelo vendedor não mencionar as coisas muito mais óbvias espalhadas pela cidade. Ele devolveu o chapéu à prateleira e perguntou:
— Essa é sua melhor história?
— Eu diria que é uma das melhores, mas ela funciona melhor quando meu amigo tá aqui para contar comigo. Ele trabalha na loja também, mas tá de férias.
Cellbit curvou-se para mais perto de Roier e abaixou o tom de voz antes de perguntar:
— As pessoas não ficam curiosas sobre outras coisas? Tipo, elas não questionam, por exemplo, os posters brancos com o sorrisinho, ou os trabalhadores que cobrem seus rostos com máscaras brancas?
— As pessoas se acostumam com eles.
— Certo… Mas só porque elas estão acostumadas, não necessariamente significa que não é estranho.
— Bom, você tem um bom ponto. É fácil ficar dessensibilizado com a estranheza quando se está em Hatchetfield.
— Então! Você não acha que existe algo a mais, algo além das histórias de fantasmas?
Roier passou alguns instantes escolhendo as palavras que usaria antes de, com cuidado, começar a responder.
— Olha, tendo vivido nessa ilha por vários anos da minha vida, é impossível não notar que coisas estranhas acontecem o tempo todo, coisas que ninguém consegue explicar. E é por isso que as histórias de monstros funcionam tão bem: elas explicam o inexplicável. Eu realmente acredito que existam coisas aqui que são, como eu disse, meio sobrenaturais. Mas eu também acredito que muitas coisas poderiam ter outras explicações e são encobertas usando mitos e lendas.
Cellbit assentiu, silenciosamente absorvendo tudo o que o rapaz dissera.
— E o que você acha? — Roier indagou.
— Bom, eu acho… Que você é um cara muito esperto, Roier.
Ele gostou da resposta, e não pôde conter um sorriso lisonjeado. Os dois se olharam por alguns instantes, sem dizer nada, uma tensão positiva pairando entre eles. Cellbit se forçou a quebrar o contato visual depois de alguns segundos e limpou a garganta.
— Enfim, erm… Obrigado por responder às minhas perguntas — ele se virou — Richarlyson, vamos?
— Já vão embora?
— A gente precisa continuar nossa caminhada, e além disso… não quero te atrapalhar no seu trabalho.
— Bom, se algum dia você quiser me atrapalhar fora do meu trabalho, meu turno vai até às cinco e eu folgo de segunda e terça.
— Oh! — Cellbit sorriu — Vou lembrar disso.
Eles se despediram e Cellbit saiu da loja, acompanhado por Richas ao seu lado, exibindo um sorriso malicioso.
— Tô vendo, hein?
— O quê? Anda, Richarlyson, vamos voltar pra investigação.
Onde haviam parado? Ah, sim, os trabalhadores sem rosto. Voltando à rua em que estavam antes, as pessoas mascaradas continuavam trabalhando normalmente, ao que tudo aparentava. Mas aquelas máscaras… Cellbit pegou sua polaroid e preparou-se para mais uma fotografia.
— CELLBIT!
Ele deu um pulo de susto ao ouvir seu nome sendo chamado, e tirou o olho do visor da câmera. Bad estava em seu velho sedan vermelho, estacionado ali perto, e seu grito coincidiu com o momento em que o barulho da obra havia cessado brevemente, de modo que foi suficiente para fazer os trabalhadores sem rosto olharem para eles por um instante antes de voltarem ao trabalho. Bad desceu do carro.
— CELLBIT, O QUE CARAMBOLAS VOCÊ ESTÁ FAZENDO?
— Para de gritar, mano! Eu só tô explorando a cidade.
— Você tá tirando fotos! Vocês dois precisam voltar pro hotel.
— Por quê? Estamos investigando!— reclamou Richarlyson, e Cellbit lhe deu uma cotovelada de lado para calá-lo.
Bad empurrou os dois até seu carro e os colocou no banco de trás. Socou a porta ao entrar no banco do motorista, ligou o motor e os encarou pelo retrovisor.
— Coloquem o cinto — mandou, mal-humorado. Nenhum dos dois obedeceu.
───────•••───────
No hotel, Bad pediu para que Richarlyson fosse apresentar o lugar a Elisangela, a capivara, já que seus três outros pais haviam saído para passear pela cidade e ele não conseguiu pensar em nenhuma outra distração para a criança. Assim que Richas saiu de perto, Bad, apoiando-se no velho sofá do lobby, encarou seu hóspede.
— Cellbit — Bad disse, muito sério — Eu entendo a sua curiosidade, mas… Você não pode continuar fazendo isso.
— Fazendo o quê exatamente, Bad?
Ele pareceu frustrado com a pergunta e gaguejou antes de conseguir falar.
— Você… Você sabe o que eu quero dizer!
— Na verdade, eu não sei não. Você disse que não tem nada de especial sobre essa cidade, mas muitas coisas parecem estranhas pra mim. Tudo o que estou fazendo é tentar entendê-las, e se realmente não tem nada demais aqui, então você não tem por que se preocupar.
— Não! — Bad frustrou-se — Você tá perdendo seu tempo, vai aproveitar com os seus amigos o que a ilha realmente tem a oferecer, ou algo assim!
— Eu não sinto que eu tô perdendo meu tempo, ok? Tô me divertindo com isso.
Depois de passar as mãos por seus cabelos escondidos embaixo do capuz nervosamente, Bad puxou Cellbit para perto de si.
— O que você está fazendo… Pode ser perigoso…
Cellbit não pôde conter um sorriso de triunfo.
— Então tem algo de errado aqui!
— Eu nunca disse isso! — ele se exacerbou, ainda cochichando, e então voltou ao normal — Tudo o que estou dizendo é… Pense nos seus amigos, no seu filho. Pense na segurança deles, ok?
Bad o soltou e se ajustou, endireitando a própria postura e arrumando seu capuz na cabeça. Quando foi falar novamente, abriu um de seus sorrisos artificiais e roboticamente pediu:
— Espero que você desfrute a ilha, Cellbit.
E saiu para os fundos da recepção em seguida. Cellbit permaneceu ali por mais alguns instantes, intrigado, pensando no que fazer. Se não conhecesse Bad tão bem, pensaria que sua fala fora uma ameaça… Sem conseguir deixar o incômodo de lado, decidiu subir até seu quarto para registrar tudo o que observara até o momento, incluindo o comportamento esquisito do amigo, antes de voltar a explorar a cidade.
Já em sua acomodação, sentado à bamba mesa de madeira na cadeira que rangia, ele tirou do bolso da calça seu bloquinho de anotações, no qual, mais cedo, escrevera sobre os cartazes brancos com logo de sorriso. As fotos dos trabalhadores sem rosto, guardadas em meio ao caderno para não amassarem, deslizaram até o chão e Cellbit se abaixou para pegá-las.
Foi então que levou um susto: as fotografias estavam escuras, manchadas e indiscerníveis. Em todos os anos que utilizava aquela câmera, Cellbit nunca se deparara com problema semelhante. Tomara tanto cuidado com elas, tinha certeza que não tocara nas imagens antes de elas terminarem de se formar no papel fotográfico… Preocupado com a possibilidade de sua câmera ter estragado, ele fez um teste rápido com a polaroid. Alguns segundos depois de usá-la, tinha em mãos uma foto perfeita de um canto do quarto de hotel, sem danificação alguma na imagem.
Como pode ser possível?, pensou ele. Abaixou seus óculos steampunk que sempre deixava na cabeça, e usou suas lentes como lupa para observar de perto as fotografias queimadas. Não poderia ser coincidência, certo?
Depois de muito observar as fotos, não encontrou nenhuma conclusão plausível do motivo para estarem danificadas daquela forma. Derrotado, ele voltou ao caderninho e encarou as frases falsamente acolhedoras que registrara ali mais cedo. Então, exaustivamente, anotou tudo o que lhe incomodava e todos os poucos pontos que já que conectara.
Ele escreveu e rabiscou muito, e precisava ficar voltando as páginas no bloquinho para retomar conceitos, e se desconcentrava; ele concluiu, então, que precisava de uma forma mais clara de enxergar as próprias ideias.
Ponderando a respeito, teve a ideia de fazer uma parede de teorias, em que conectaria cada fato que descobrira a outro e poderia ver as anotações em sua totalidade. O ideal para aquilo seria uma lousa ou um quadro de cortiça, claro, porém na situação em que estava era preciso improvisar um pouco mais. Ele abriu sua mochila, em busca de post-its, mas depois de muita bagunça revirando e retirando itens, percebeu que não havia nada.
Olhando ao redor, viu a porta dentro de seu quarto de hotel que o conectava ao quarto de Pac e Mike, e imediatamente teve a ideia de abri-la, certo de que encontraria algo que lhe ajudaria ali. Depois de alguns minutos mexendo na fechadura com dois clips de papel desmontados, a porta finalmente foi destrancada e ele pôde entrar.
O cômodo não estava tão bagunçado quanto o seu, mas a comparação não era exatamente justa, já que Pac e Mike não o dividiam com uma criança de oito anos, nem passaram quinze minutos revirando bagagens em busca de post-its. As cortinas estavam abertas, as camas estavam feitas de qualquer jeito e embaixo delas estavam as malas. Cellbit abriu os pequenos armários e, apesar de quase vazios, eles tinham o que ele procurava: uma pochete cheia de ferramentas, no meio das quais havia fita adesiva. Era exatamente o que precisava.
De volta ao seu quarto, ele colou pedaços de papel na parede, ligando com setas os acontecimentos e fatos de seu conhecimento. Aquilo tornou muito mais fácil entender as informações, saber qual deveria ser seu próximo passo e criar suas teorias. Torceu para que, por ter escrito em portugues, Bad não compreendesse o conteúdo caso entrasse no quarto.
Ele colou as fotografias danificadas entre suas anotações e uma delas foi para a parede de teorias. Apesar dos trabalhadores não estarem visíveis nas fotos, Cellbit não acreditava ser coincidência todas as imagens estarem daquele jeito; a falha da câmera apenas servira como mais um combustível para suas teorias e paranoias.
Contemplando todas as informações compiladas, Cellbit tomou perspectiva do quanto ainda tinha a investigar, observando muitos pontos de interrogação e buracos em suas ideias. Logo em seguida, entretanto, Richarlyson apareceu no quarto dizendo estar com fome, e ele precisou colocar sua investigação de lado por um momento.
Os dois desceram até a recepção, Cellbit procurando em seu mapa algum restaurante que parecesse barato.
— Aonde vocês vão? — Bad, detrás do balcão, perguntou ao vê-los, levantando o olhar de um livro.
— Almoçar — Cellbit respondeu, levemente irritado pela supervisão — Já que, sabe, seu hotel não oferece almoço.
— Aonde vocês vão comer? Precisam de carona?
— Podemos ir de trem.
— Eu posso levar vocês a um lugar bom!
— Não vai ser necessário.
— Eu pago pela refeição.
— Bad, não.
Richarlyson deu um soquinho no braço de Cellbit.
— Ai! Richarlyson!
Richarlyson falou em português:
— Como que você tá recusando carona e almoço de graça?!
— Eu… Escuta, eu não quero o Bad na nossa cola desse jeito, tá bom?
— Pode ir parando, a gente vai sim. Tio Bad, let’s go.
Bad observava, confuso, a conversa. Com a confirmação da criança em uma língua que ele entendia, pareceu aliviado.
— Yes! Let’s go.
Cellbit os seguiu, a contragosto. Sabia que Richarlyson estava certo, que eles não estavam em posição de recusar um almoço grátis, porém seu orgulho falava mais alto, e ficou de cara fechada. Os três entraram no sedan vermelho.
— Vocês gostam de comida mexicana? — Bad perguntou, colocando o cinto.
— Sim! Principalmente o Cellbit, ele ia mesmo adorar um mexicano nesse momento — Richarlyson respondeu, rindo sozinho.
— Do que você tá falando? — Cellbit ficou confuso.
— Porque o tio Roier é mexicano.
Cellbit ficou sem palavras. Bad, alheio ao comentário em português, ligou o motor do carro, dizendo:
— Ok, eu sei um bom lugar, então.
Enquanto dirigia até o restaurante, Bad fazia papel de guia turístico. Como um garoto-propaganda de Hatchetfield, ele apontava para estabelecimentos e placas, falando de lugares que deveriam visitar e o porquê. Cellbit ouvia a contragosto, sem se importar muito, até uma construção chamar sua atenção.
— E aquele prédio branco ali?
Em meio a várias casas e comércios, um prédio alto, arredondado, simétrico e todo branco se destacava. Quando Bad virou-se para ver do que o amigo estava falando, não conseguiu disfarçar a sua surpresa antes de voltar ao seu modo guia turístico alegre.
— Aquele é só um prédio residencial — respondeu, evitando o olhar do outro. Cellbit não acreditou por um segundo nele, e memorizou pontos de referência ao redor; ele voltaria ali sozinho eventualmente, em breve, e investigaria melhor.
Bad estacionou o carro quando chegaram na Taqueria El Tripon, e Cellbit, precisou deixar de lado seu modo investigativo por um instante, pois sentiu-se perdido ao constatar, mesmo antes de entrar, que o lugar parecia extremamente familiar: a frente toda aberta, uma espécie de churrasqueira do lado de fora, várias cadeiras empilhadas e um cachorro cor de caramelo dormindo ali na frente.
O sentimento de familiaridade só se intensificou ao ver o interior humilde, com as mesas e cadeiras de madeira simplórias e desgastadas, a tabela de produtos e preços em uma das paredes, uma máquina de refrigerante em um dos cantos e, o mais surpreendente, uma televisãozinha ligada em um jogo de futebol.
— Ai meu Deus… Bad, acho que você trouxe a gente pro Brasil.
— É um restaurante mexicano.
— Sim, mas o ambiente… É exatamente igual a um milhão de outros lugares que eu já vi no Brasil.
Eles sentaram ao lado de uma parede com calendário de santo, e atrás deles estava uma maquininha de chiclete. O homem que veio atendê-los tinha cabelo escuro com franja, vestia-se de azul e roxo e boa parte de seu rosto era coberto por uma máscara de caveira.
— Bad Boy Halo, olá! — foi a primeira coisa que ele disse.
— Oi, Missa! Eu trouxe alguns dos meus hóspedes pra conhecerem seu restaurante.
— Señor Missa — manifestou-se Richarlyson — ¡Tu restaurante es cómo los restaurantes brasileños!
— El poder de Latino America — Missa riu — Então você tá com hóspedes brasileiros, Bad? ¿Qué los brasileños van a comer?
Depois de fazerem seus pedidos, Bad entrou em mais um discurso sobre os ótimos lugares a se descobrir em Hatchetfield. Enquanto falava, Cellbit, sentado de frente para a saída do restaurante, com ótima visão do exterior, encarava um outdoor branco do outro lado da rua com os dizeres “Não procure mais além para achar o lugar que apenas seus sonhos mais loucos podem imaginar!”, seguido pelo sorrisinho.
Bad os distraiu pelo resto do dia. Depois do almoço — e Cellbit precisava dar crédito, a comida da Taqueria El Tripon era realmente boa —, ele os levou para buscar seu filho na escola antes de voltar ao hotel, onde Dapper e Richarlyson foram brincar juntos. Pac, Mike e Felps voltaram pouco depois, e Cellbit não conseguiu sair mais para investigar. Sempre que Bad estava no mesmo ambiente que ele, como na hora do jantar, era possível sentir o peso de seu olhar na nuca antes de Cellbit virar para encará-lo e fazê-lo desviar os olhos. Além disso, a postura do dono do hotel permanecia inquieta e ansiosa.
— O que você não está me contando, Bad Boy Halo? — Cellbit murmurou para si mesmo, com olhos semicerrados.
───────•••───────
Depois que todos os outros já estavam recolhidos para ir dormir, inclusive Dapper, Bad foi até o lobby e ao balcão de recepção, usando uma vela como única fonte de luz. Em seu molho de chaves, escolheu uma delas e destrancou uma gaveta, de onde pegou uma das fotos tiradas por Cellbit dos trabalhadores sem rosto, que Bad fora capaz de roubar do bolso do hóspede sem que ele percebesse ao abordá-lo na rua mais cedo. Ele contemplou o filme queimado, suspirando fundo, e tirou o celular do bolso.
Temos coisas a discutir na próxima segunda-feira, dizia a mensagem que mandou. Bad fechou seu celular, guardou-o de volta no bolso e, depois de encarar mais um pouco a foto sem nada, aproximou-a de sua vela e a assistiu queimar.
Notes:
Eu vou TENTAR postar novos capítulos uma vez por semana, ok? Espero que tenham gostado do capítulo <3
Chapter 4: Turistando
Chapter Text
Por dias, Bad Boy Halo levou seus cinco únicos hóspedes do Egg Carton Hotel para passeios em Hatchetfield, como um guia turístico assalariado pelo qual ninguém havia pedido. Cellbit, em especial, não aguentava mais o antigo amigo agindo como sua babá, e mesmo procurando atentamente em busca de aspectos anormais sobre Hatchetfield, ele não pôde acrescentar quase nada à sua parede de teorias nesse período de tempo — exatamente, ele sabia, como Bad planejava.
Poucas horas depois da virada da noite de sexta-feira para sábado, Cellbit abriu os olhos na escuridão da madrugada com o coração disparado por causa de mais um pesadelo horrendo. Ele esfregou os olhos com as mãos, cansado, e se virou na cama na esperança de cochilar mais um pouco, torcendo para não sonhar com nada.
Toda noite, sem falta, desde sua chegada a Hatchetfield, Cellbit tinha pesadelos. Não sabia se sentia gratidão ou não por ter acordado no meio do sonho desta vez, porque a interrupção das visões violentas em sua mente era também a interrupção de seu sono. Encarando o teto, ele sentiu a cabeça agitada, não apenas pelas imagens de seus pesadelos ainda frescas na memória, mas também pela frustração sobre a vigilância constante de Bad. Sentindo-se incapaz de relaxar, Cellbit logo percebeu como, ao menos, a calada sonolenta da noite oferecia a oportunidade perfeita de sair sem companhias indesejadas. Ele levantou da cama, ignorando sua exaustão.
Já pronto para sair, enquanto Cellbit terminava de conferir sua mochila, Felps, ainda deitado e apenas parcialmente acordado, levantou a cabeça e o encarou com olhos semicerrados.
— Aonde você vai? — perguntou com a voz fraca e embolando um pouco as palavras.
— Tive insônia. Vou andar. Não esperem por mim.
Felps murmurou algo ininteligível e tombou a cabeça de volta no travesseiro, voltando a dormir. Cellbit saiu do quarto, sendo o mais silencioso que podia, e caminhou até a saída pisando de leve no chão de carpete.
Finalmente do lado de fora, satisfeito pela solidão, ele inspirou o ar cheio de neblina da manhã e se afastou do hotel enquanto abria seu mapa da cidade. Logo encontrou os pontos de referência de que precisava, que gravara na memória alguns dias antes: iria até o prédio branco esquisito que tinha visto enquanto Bad o levava ao restaurante mexicano. Depois de circular com caneta seu destino no mapa, Cellbit seguiu em direção à estação de trem.
───────•••───────
Richarlyson já se sentia completamente descansado logo cedo. Vestido, calçado e com a touquinha vermelha na cabeça, ele se jogou na cama de Felps para acordá-lo.
— Cellbit saiu — disse a criança, pulando — Quero café da manhã.
E correu para bater na porta do quarto de Pac e Mike até acordá-los também.
Minutos depois, Richarlyson estava descendo as escadas correndo, seguido por três adultos cansados, todos indo em direção ao salão de refeições. Bad, ao ouvi-los, saiu da cozinha e serviu o café da manhã aos seus hóspedes.
— Cadê o Dapper? — Richarlyson quis saber, ansioso.
— Sinto muito, Richarlyson, já que hoje não tem aula, ele ainda tá dormindo. E onde está o Cellbit?
— Ele já saiu — Felps explicou — Disse que teve insônia.
Bad não ficou satisfeito com a explicação. Enquanto seus hóspedes comiam e conversavam entre si em português, ele se aproximou da janela para olhar a paisagem nublada, preocupado, se perguntando onde o amigo poderia ter ido e o que poderia estar fazendo.
───────•••───────
Cellbit encontrou a estação de trem deserta e não foi difícil localizar-se e descobrir qual direção deveria seguir. Dentro do transporte público barulhento e vazio, pôde escolher o lugar que quisesse, e sentou-se ao lado de uma janela, observando a paisagem de Hatchetfield passar rapidamente diante de seus olhos. A viagem foi rápida até a parada mais próxima de seu destino.
Fora da estação, foram necessários poucos minutos de caminhada até encontrar o que queria e, assim que Cellbit entrou na rua desejada, viu a prova física confirmando que Bad mentira, como lhe era óbvio, sobre aquele prédio branco estranho ser residencial: placas o identificavam como CCRP - Census of Communication, Research & Power. Seu momento eureka trouxe ainda mais catarse ao verificar, acompanhado do nome da empresa, a logo do sorrisinho que via em todo cartaz falsamente acolhedor espalhado pela cidade.
A entrada era guardada por dois seguranças, os quais, apesar de usarem uniforme cinzento e engravatado, tinham todas as áreas de seus corpos que não eram cobertas pela roupa, escondidas com tecido branco, inclusive as mãos, com luvas. Seus chapéus eram semelhantes aos de policiais e, nas faces, tinham as mesmas máscaras usadas pelos funcionários da calçada; todavia, estranhamente, mesmo de perto, seus rostos eram indiscerníveis por trás delas, diferentemente de como acontecia com máscaras de esgrima comuns. Os dois guardas se colocaram em frente à porta para não deixar o visitante passar.
— Bom dia, senhores — Cellbit cumprimentou — Entendo que essa é uma propriedade privada, mas eu sou turista e me perdi. Só preciso usar o banheiro rapidinho, tem problema?
Os dois trocaram olhares. O da direita tirou do bolso algo que parecia uma lousa mágica preta com bordas brancas e escreveu algo para seu colega, o qual, em resposta, negou com a cabeça e pegou sua própria lousinha para se expressar. Assim, uma conversa sem fala se iniciou, até que, finalmente, depois de muitas mensagens que Cellbit não era capaz de ver, eles pareceram consentir em deixá-lo passar, não sem antes o da esquerda cutucá-lo e mostrar algo escrito na lousinha: Seja rápido.
A recepção em que ele foi parar ao entrar fazia os olhos doerem de tão branca. Alguém que parecia um secretário, mas se vestia como os guardas da entrada, levantou a cabeça ao vê-lo entrar, e Cellbit sentiu-se ameaçado pela máscara sem expressão encarando-o.
— Eles disseram que eu podia usar o banheiro — explicou.
Sem dizer nada, o secretário assentiu, apontou para a direita e voltou ao trabalho. Cellbit tentou fingir que a curiosidade enquanto olhava ao redor era trivial, mas sua mão coçava para pegar a polaroid na mochila. Ele atravessou a sala até a porta dupla localizada na direção indicada pelo trabalhador, e foi parar em um longo corredor, tão branco quanto a recepção, e completamente vazio, exceto pelas várias outras portas. Ao fim do corredor, havia uma porta maior que as outras, e Cellbit já estava pronto para correr até lá silenciosamente quando notou as câmeras de segurança: havia várias delas, todas apontadas diretamente para ele. Encarando uma delas de volta brevemente, ele desistiu da grande porta; seguiu a placa Restroom e entrou no banheiro.
Não ficou nem um pouco surpreso ao se deparar com, pasmem, um local completamente branco. Porém, algo ali quebrava aquele padrão, uma pessoa: um dos boxes estava sendo limpo por um homem careca usando um macacão de zelador azul-marinho, botas pretas e luva amarela; um de seus olhos era atravessado por uma cicatriz e seu braço esquerdo era uma prótese metálica. O que mais chamava atenção sobre o moço, no entanto, era que nenhuma parte do seu corpo era coberta por panos ou máscaras brancas. Ele pareceu tão surpreso pela presença de Cellbit quanto Cellbit estava pela dele.
— Ahn… Bom dia? — o brasileiro cumprimentou, hesitante.
— Bom dia — o zelador respondeu com uma sonora voz grave, marcante e facilmente identificável.
Sem saber exatamente o que fazer depois daquilo, Cellbit entrou desajeitadamente na cabine mais distante do homem, que o seguia com o olhar, e se fechou ali dentro. Cada barulho parecia ecoar por todo o banheiro, então ele precisou de um momento para pensar em como agir discretamente. Ficou aliviado ao encontrar uma garrafa com resto de água em sua mochila e, devagar, despejou o líquido no vaso, fingindo que usava o banheiro, para não levantar suspeitas daquele funcionário. Em seguida, garantindo que o flash da polaroid estava desligado, posicionou-se com os cotovelos no chão e uma das pernas para cima, segurou a câmera, mirou pelo vão embaixo da porta e apertou o botão da descarga com pé enquanto apertava o da câmera com o dedo da mão, ocultando o som de click com o da privada.
Cellbit levantou com cuidado para não tombar nem fazer muito barulho, com a fotografia em mãos enquanto esperava a imagem esclarecer. Constatando que o resultado não foram borrões indiscerníveis como os registros dos trabalhadores sem rosto, ele colocou a imagem cuidadosamente dentro de seu bloco de anotações, guardou a polaroid e saiu do box.
Ele caminhou de cabeça baixa até a pia e lavou as mãos sem olhar diretamente para o zelador, que estava de costas para ele agora, de qualquer forma.
Saiu rapidamente e, de volta ao corredor das câmeras, soube que nenhuma outra desculpa para permanecer no prédio por mais tempo pareceria natural. Preferindo retirar-se enquanto ainda sentia a euforia do triunfo, contentou-se em andar devagar até a saída. Não disse nada ao secretário, porém acenou para os dois guardas na porta e agradeceu antes de se afastar rapidamente, virar a esquina da rua e se apoiar em um muro, banhado de suor e com o coração disparado.
O brasileiro se deixou escorregar pelo muro até sentar no chão da calçada. Em seguida, veio-lhe a ideia e ele fotografou o exterior do prédio de longe, sem sair da esquina, colocando as fotos desajeitadamente entre as anotações depois de conferir se estavam boas. Em seguida, checou novamente a fotografia do banheiro e ela estava intacta, para seu grande alívio. Ele olhou ao redor, pensando que deveria parecer um louco com sua caderneta e polaroid no canto da calçada, porém as pessoas passando por Cellbit na rua mal botavam reparo; talvez situações como aquela não fossem tão incomuns assim em Hatchetfield — ou talvez, a população estivesse, como Roier dissera, dessensibilizada.
Cellbit sentiu a cabeça parecendo prestes a explodir. Seria por causa da adrenalina e da quantidade de informações que absorveu simultaneamente? Ele checou a hora, então percebeu: ainda não havia tomado café. Por sorte, o mapa indicava que a cafeteria Beanie’s ficava a poucas ruas dali. Levantou-se do chão sem pensar duas vezes e seguiu o caminho.
Depois da curta caminhada, Cellbit sentiu-se aliviado por encontrar a cafeteria vazia. Sem filas a serem enfrentadas, ele foi até o caixa, onde uma funcionária de comprido cabelo castanho claro preso em duas tranças e boné aberto em cima vestia uma blusinha branca com laço preto, avental verde e shorts. Ela parecia cansada e entediada lixando as próprias unhas, e um crachá no avental mostrava seu nome: Tina.
— Café puro, por favor — Cellbit pediu, sem delongas, e pagou.
Enquanto Tina virava para preparar o pedido, Cellbit notou ao lado da caixa registradora um grande pote de vidro quase vazio anunciando com uma plaquinha Dê gorjeta e ganhe uma canção. Ele sentiu um arrepio na espinha só de pensar. Ao receber a bebida, ele agradeceu e foi sentar.
Tomando o caderninho nas mãos depois de uma grande golada de café, ele pegou a foto do interior da CCRP para olhá-la atentamente e reparar em cada detalhe. Naquele banheiro monocromático vazio, de alguma forma, o zelador sem máscara parecia olhar diretamente para a lente da câmera. Porém só podia ser impressão de Cellbit… certo?
Deixando a imagem de lado, Cellbit tentou rabiscar da forma mais fiel possível o interior da CCRP e montar uma planta com as salas cuja existência sabia. Lembrou de ter notado um elevador atrás do secretário, mas ele não viu nenhuma especificação sobre o que havia em cada andar.
Depois de muito escrever e desenhar, contemplou o caderninho à sua frente, mordendo a ponta do lápis, pensativo. Ele releu o que tinha e circulou mais uma vez a informação que mais destacara entre suas anotações: “TRABALHADORES SEM ROSTO → CONECTADOS À LOGO DE SORRISINHO :)”.
───────•••───────
Richarlyson correu até a areia, empolgado e mancando um pouco por não estar com sua palmilha elevada para igualar a altura das duas pernas. Contudo, assim que se aproximou mais, seu sorriso se desmanchou.
— Que tipo de praia é essa?!
— Essa praia não dá no mar, Richas, ela dá em um lago — explicou Pac.
— Sim, mas onde estão as barraquinhas vendendo camarão frito? Os vendedores de sorvete? Os guarda-sois?
— Eu não sei se vai ter isso por aqui não, Richinhas — Mike respondeu.
— Por que o mundo é tão cruel?! — ele se jogou de joelhos na areia, olhando para os céus.
— Vamos lá, Richarlyson — Felps colocou a mão em seu ombro — Você não queria nadar?
— Calma, eu tô só tendo um momento aqui — ele respirou fundo e voltou a ficar de pé — Ok, tô pronto.
A criança tirou sua camiseta, touca e chinelos, enquanto Mike pegava em sua mochila duas boias para braço, emprestadas por Bad, que estranhamente não quis acompanhá-los até a praia de Hatchetfield depois de todos aqueles dias agindo com guia. Assim que as boias terminaram de ser colocadas, Richarlyson correu até a água, vestindo apenas sua bermuda.
— Não vai fundo! — gritou Felps. Em seguida, virou-se para seus amigos — Vocês vão andar? Eu pensei em dar uma caminhada.
— Acho que vou ficar de olho no Richarlyson — respondeu Pac, tirando da mochila uma das toalhas do hotel e colocando-a na areia para sentar-se em cima — Você não acha que o Bad Boy Halo vai ver problema na gente usando as toalhas dele para isso, né…?
— Só coloca — falou Mike, puxando a toalha e sentando-se nela — Vamos ficar aqui um pouquinho, Felps. Até depois!
Felps se afastou. Metros a frente, Richarlyson tampou o nariz e mergulhou a cabeça inteira na água, voltando à superfície logo em seguida e chacoalhando os cabelos. Pac e Mike, sentados lado a lado, mantinham o olhar fixo nele, até um desconhecido parar ao lado deles.
— Com licença, cavalheiros.
Os dois levantaram as cabeças para encará-lo. De cabelos castanhos com gel e uma mandíbula protuberante, vestindo jaqueta e calça jeans e exibindo um brilhante sorriso de lado, o desconhecido carregava uma cesta de vime em cada braço.
— Por acaso estão interessados em refrescantes maçãs verdes nessa quente manhã de primavera?
Mike olhou ao redor e franziu a testa ao constatar que aquele era o único vendedor na praia. Pac, encarando o homem, recusou as maçãs educadamente.
— Têm certeza? — perguntou o vendedor — Essas maçãs são de outro mundo.
— A gente não trouxe dinheiro, moço — explicou Pac — Mas muito obrigado.
— Bom, se vocês insistem. Espero que desfrutem a ilha, então.
Ele se afastou, ainda sorrindo, e Mike o perdeu de vista estranhamente rápido. Os dois amigos permaneceram em silêncio mais um pouco, enquanto Richas boiava deitado de costas no lago.
— Moço, eu preciso dizer uma coisa — Pac comentou, quebrando o silêncio entre eles e abraçando as próprias pernas — Agora que eu tive mais tempo para descansar um pouco e pensar sobre as últimas semanas, eu tô realmente nervoso…
Mike tirou da mochila uma garrafa plástica enchida no hotel com água da pia.
— Com qual parte?
Pac riu nervosamente, sem humor:
— “Qual parte”, esse é o problema, Mike! Como a gente veio parar aqui? — ele gaguejou um pouco, procurando as palavras certas — Sabe, no início do ano parecia que a gente tinha arrumado a nossa vida, que a gente não ia se meter em encrenca dessa vez!
— Mas você tava satisfeito? Porque pra mim, olhando pra trás e pensando em tudo, eu gosto de saber que a gente pelo menos deu uma mudada.
— Bom, eu não! Eu sinto que eu passei a maior parte da minha vida correndo, e quando eu finalmente consigo oficialmente arrumar tudo e deixar as coisas minimamente normais, tudo muda!
Mike estava começando a se zangar com aquela conversa.
— Você tá me dizendo que preferia ter ficado lá no Brasil, sozinho? Torcendo para que a polícia não te conectasse ao que aconteceu?
— Isso não seria ideal…
— Então, caramba! O que você queria?
O tom de voz de Pac aumentou.
— Meu deus, Mike, eu só queria que as coisas fossem diferentes, é loucura minha pensar em como eu deveria ter interferido antes que fosse tarde demais? É loucura remoer as decisões que eu tomei?
Mike foi surpreendido por uma onda de raiva intensa, sem saber ao certo o porquê de se sentir tão irritado com o amigo.
— Que tipo de decisão? Você nunca decide nada por si, e mesmo se decidisse, você mesmo disse que não teria sido bom ficar no Brasil depois do que aconteceu!
— Talvez eu me arrependa de não ter decidido, então! De só seguir você e as suas ideias!
— Ah, então a culpa é minha agora?
— Você sabe muito bem que…
— Então, gente — Richas cortou a fala, parado em frente a eles — Desculpa interromper a DR de vocês, mas uma das minhas boias meio que murchou, o que que eu faço?
Pac e Mike viraram em sincronia para olhá-lo. Richarlyson deixou o tom brincalhão de lado ao ver as expressões dos dois, sentindo uma sensação ruim repentina.
— Pac, Mike… Vocês estão bem? Algo parece errado. E que maçã é essa?
Os mais velhos seguiram a direção do olhar da criança e viram que, entre os dois, estava uma maçã verde grande e redonda. Eles piscaram algumas vezes, forçando suas mentes a se desembaralharem, a raiva já se esvaindo e sendo substituída por confusão, choque e vergonha.
— Acho que eu vou atrás do Felps — disse Pac, se levantando com dificuldade por causa de sua perna direita e em seguida limpando a areia da calça. Sem olhar para trás, ele se afastou.
— Dá a boia aqui, Richarlyson — Mike estendeu a mão.
Enquanto Mike assoprava a boia de braço para enchê-la, Richarlyson abraçou os próprios braços, sentindo um frio repentino. A sensação que tinha era a de um bom momento sendo amargurado por uma situação horrível que estraga todas as memórias anteriores, todavia não sabia exatamente o porquê, já que nada de fato acontecera com ele. Quando seu cuidador colocou a boia já enchida de volta em seu braço, a criança chutou a maçã verde o mais longe que conseguiu.
— Acho que tava estragada — mentiu, e virou-se em direção ao lago novamente.
───────•••───────
Depois de muito tempo sentado no Beanie’s e de perambular pela cidade sem conseguir nada de novo, Cellbit encarou que chegara a hora de voltar ao hotel. Ao menos, pensou, poderia complementar sua parede de teorias, adicionando a existência da CCRP, e teorizar sobre o que faziam além de espalhar cartazes pela cidade.
Chegando ao Egg Carton Hotel, ele entrou silenciosamente, torcendo para que o dono tivesse saído. Para o seu alívio, ele de fato não estava no lobby, então Cellbit seguiu até as escadas e subiu com passos leves, já relaxando um pouco.
Assim que abriu a porta do quarto, entretanto, foi surpreendido: Bad Boy Halo estava lá, de braços cruzados, observando a parede de teorias, tentando decifrar o significado das palavras em português. Ainda com a mão na maçaneta, Cellbit perguntou:
— Bad, o que você tá fazendo?
— Por que tem notas na parede?
— Pra eu lembrar de fazer as coisas — ele tinha a desculpa na ponta da língua — Eu não sou uma pessoa muito organizada, e fazer isso me ajuda.
Bad virou-se para ele.
— Hm, certo. Por que você saiu tão cedo, Cellbit? Você nem tomou seu café da manhã.
— Como eu disse pro Felps, tive insônia. Quis ir caminhar um pouco.
— E você foi aonde?
— Deus do céu, por que você tá me interrogando? — Cellbit perdeu a paciência — O que você quer de mim?
— Eu quero que você se divirta aqui com seus amigos! Você não parece estar fazendo isso, eu sei que estava investigando.
— Mano, por que você só não me deixa viver minha vida? Você mesmo disse que acredita que não tem nada para ser visto, mas eu não acredito nisso. Você vem me tratando como uma criança a semana inteira, mas eu vou fazer o que eu quero fazer, e você não pode me parar!
— Eu posso tentar!
— Você sabe que não vai funcionar, Bad Boy Halo.
O dono do hotel se aproximou dele com o dedo apontado para seu rosto.
— Você… Você é a pessoa mais teimosa que eu já conheci na minha vida inteira!
— Não sou não, eu só reconheço um mistério quando o vejo. Agora pode dar o fora do meu quarto?
Bad o encarou intensamente em silêncio durante alguns segundos, o punho direito cobrindo a boca, a mão esquerda na cintura, o pé batendo.
— Ok, para com isso, cara! É esquisito — Cellbit reclamou.
Bad finalmente se decidiu. Suspirou e sentiu-se tremer enquanto se aproximava para cochichar:
— Você quer realmente falar sobre isso? Então a gente precisa ter certeza de que ninguém mais vai conseguir ouvir
Cellbit foi pego de surpresa.
— O que você quer dizer?
— Essa ilha. A verdade.
Bad saiu do quarto e fez um gesto com a mão.
— Siga-me.
Por mais que Cellbit sentisse que o conhecesse, sempre priorizava prevenir do que remediar, principalmente considerando o comportamento estranho e semi-errático do outro ultimamente. Ele colocou a mão no bolso da calça e sentiu a bainha de sua faca, como esperava, e só então, a postos, com a mão no cabo da arma, ele seguiu Bad.
Foi guiado escada abaixo, em direção ao lobby e até uma portinha atrás do balcão da recepção, dentro da qual havia mais uma escadaria, que levava a um porão. Não havia nada demais ali, apenas uma passagem até uma sala usada como armazém. Bad deixou Cellbit entrar primeiro, e fechou a porta do cômodo ao passar. Ali ficou, de costas para o outro, segurando a maçaneta, em silêncio.
— Bad… O que você tá fazendo?
— Eu menti, Cellbit.
A faca estava firme na mão do hóspede. Bad se virou para ele e sua testa franzida com olhos arregalados demonstravam uma espécie de pânico.
— Eu disse que, na maior parte do tempo, nada acontece em Hatchetfield. Mas não tem um pingo de verdade nisso; existe alguma coisa profundamente errada nessa cidade. E, assim como você, eu quero entender o que é.
Cellbit relaxou a mão envolta no cabo da faca. Bad sentou em uma das grandes caixas de madeira, parecendo desamparado.
— Eu não queria que você se envolvesse nessas coisas pela sua própria segurança. Estava preocupado porque eu sei que quando você começa uma coisa, você mergulha de cabeça até conseguir o que quer, e isso poderia ser especialmente perigoso aqui. Sei as coisas pelas quais você já passou na vida, ainda tão novinho, e eu realmente queria que você finalmente encontrasse paz. Mas eu fui burro de pensar que você dentre todas as pessoas não ia querer investigar mais a fundo as coisas, e procurar por respostas.
O olhar de Bad se intensificou.
— Se você realmente vai seguir esse caminho, então é melhor que não faça isso sozinho. Eu faço parte de um grupo… Nós procuramos por respostas. Juntos.
Finalmente, uma luz. Alguém falando sua língua. O verdadeiro Bad Boy Halo estava de volta.
— Por que você me trouxe aqui antes de dizer tudo isso? — foi a primeira coisa que Cellbit perguntou, embora já imaginasse qual deveria ser a resposta
— Porque, se não tomarmos cuidado, eles podem nos ouvir. E aí, só Deus sabe o que aconteceria com a gente.
Chapter 5: Reuniões de Churrasco
Summary:
"A figura do palco, Melissa, se virou e ficou de frente pela primeira vez no momento em que a letra da canção começou, mexendo a boca sincronizadamente como se fosse ela mesma cantando. [...] Seu rosto parecia estranhamente familiar a Cellbit, por mais que ele não soubesse da onde poderia conhecê-la."
Ou, o dia em que os outros brasileiros provavelmente tiveram que jantar miojo, porque Bad estava ocupado demais levando Cellbit a uma boate drag.
Notes:
(See the end of the chapter for notes.)
Chapter Text
Hatchetfield era pequena o suficiente para, à noite, passar a sensação de segurança quando as pessoas saíam de casa, pelo menos em relação a questões humanas, mas com opções de entretenimento suficientemente variadas a ponto da cidade não parecer morta e vazia nos fins de semana e sextas-feiras.
Bad levou seu filho para dormir na casa de um conhecido de confiança, e Cellbit deixou Richarlyson no hotel com os outros co-pais para acompanhar Bad em um “evento com amigos” — na realidade, Bad tinha um grupo com quem se encontrava às segundas-feiras para conversarem e teorizarem sobre as esquisitices de Hatchetfield. Ele marcou uma reunião adiantada, de emergência, para apresentá-los a um muito empolgado e ansioso Cellbit. O grupo usava em público um codinome para não levantar suspeitas de suas atividades, dizendo que faziam Reuniões de Churrasco, contudo, o nome real que usavam em privado era Theory Bros.
Era tarde da noite e os dois já estavam dentro do carro, prontos para sair, quando Bad abriu seu flip phone e viu um torpedo que o fez gemer de desprazer e largar a cabeça no volante, acionando a buzina.
— O que aconteceu, Bad?! — Cellbit se sobressaltou, sentindo-se mais acordado com aquilo do que com a grande xícara de café que tomou antes de sair. O amigo levantou a cabeça, ainda fazendo uma careta de desgosto.
— Eu esqueci que o Max tem que trabalhar hoje antes da reunião. Droga, por que ele precisa ter tantos empregos?
— Então a gente espera por ele?
— A reunião acontece na casa dele, é o Max quem guarda a maioria das coisas que precisamos, e o Max quer que a gente se encontre no trabalho dele.
— Bom, então vamos lá, qual é o problema?
— Eu-- Cellbit, acho que você não tá entendo o que o trabalho dele é.
— Claro que não, eu nunca vi o cara e você não tá me explicando nada!
— É só que… o trabalho dele… É meio diferente.
— O que tem de tão errado nesse trabalho?
— Não tem nada errado, ok? É só que… Bom, é no mínimo… coisa demais para processar, entende, principalmente pra quem nunca viu algo parecido antes, o que eu acredito que seja o seu caso. Talvez a gente possa esperar por ele em algum outro lugar… Mas isso atrasaria a reunião, e o Foolish provavelmente vai estar lá também, o que já ia matar dois coelhos com uma cajadada só…
— Bad, para com isso, tá? Eu não sei o que esse cara faz, mas eu tenho certeza de que não tem como ser tão ruim assim. Podemos ir?
— Ugh, tá bom. Mas lembre-se, aquilo não tem nada a ver com a reunião em si, ok? — reforçou, ligando o motor do carro.
───────•••───────
Foi difícil encontrar lugar para estacionar o carro por ali, presumidamente porque estavam perto do tal Las Casualonas Nightclub , que aparentava estar com grande lotação, como esperado em um sábado à noite. O que Cellbit não esperava, entretanto, era que assim que conseguissem estacionar na avenida seguinte, Bad voltaria àquela rua e o guiaria exatamente até o clube. Olhando as luzes roxo-neon anunciando o nome do estabelecimento em letra cursiva, ele ergueu uma sobrancelha e o amigo logo disse:
— Foi você quem insistiu em vir aqui! Eu tentei te avisar!
— Olá, meus queridos! — o homem à porta do Casualonas cumprimentou-os em um inglês com sotaque carregado e um grande sorriso no rosto. Ele não vestia nada além da cueca e uma gravata borboleta, exibindo os músculos e tanquinho, dos quais era difícil desviar o olhar.
— E-ei, Vegetta — Bad cumprimentou, corando intensamente.
— Bad Boy Halo? Eu não te vejo faz tempo, como você tá?
— Eu tô bem, só… Nós temos uma Reunião de Churrasco marcada e os meninos pediram para a gente encontrar eles aqui, então…
— Não se preocupe! Você sempre é bem-vindo aqui, meu Foolish gosta de você. E quem é seu amigo?
Cellbit deu um passo à frente.
— Cheguei na ilha faz pouco tempo.
— Bem-vindo a Hatchetfield e bem-vindo a Las Casualonas! Hoje, entrada grátis pros dois. Cortesia da casa pela Reunião de Churrasco.
— Obrigado.
Os dois atravessaram o corredor depois da entrada, desceram algumas escadas e chegaram a outro corredor, que dava em direção a uma portinha preta fechada, por baixo da qual passava música alta. Já mais distantes de Vegetta, Cellbit cutucou o amigo e disse:
— Então, Bad… você é um cliente regular no Casualonas Nightclub, é?
— PARA!
Enquanto Cellbit ria, Bad, de cara fechada, abriu a porta em direção à barulheira, fazendo-os dar de cara com uma área cheia de luzes piscantes roxas e azuis, com um bar, mesas, uma cabine de DJ e um palco. A plateia aplaudia de pé, dando a entender que uma apresentação acabara de terminar. Bad apontou em direção ao DJ e explicou para Cellbit, aos gritos para que fosse ouvido:
— Aquele é o Max. O Foolish também deve estar em algum lugar por aqui. Acho que eles vão poder sair daqui a pouco.
— E agora! — Max anunciou no seu microfone, com um sotaque muito semelhante ao de Vegetta — Para fechar a noite, vem aí, a estrela do show!
As pessoas todas se animaram. Muitas estavam de pé para ficarem mais perto do palco, mas mesmo assim, Cellbit e Bad só conseguiram encontrar uma mesa vazia mais ao fundo, de onde ainda conseguiam enxergar a performance, porém não tão claramente. Max continuou:
— Vocês todos a conhecem, vocês todos a amam! Façam barulho pra a primeira e única: Meeeeelissa!
A plateia gritou e assobiou. Uma pessoa saiu da coxia para o palco: tinha longo cabelo castanho escuro enfeitado por um laço branco atrás, sandálias de saltos bem altos acompanhavam uma meia-calça arrastão, e ela vestia algo vermelho que estava entre uma camisola roupão e uma saída de banho de seda fina. Ela parou de costas para o público, deixando sua grande bunda em evidência, suas mãos estavam na cintura e a música começou. Quando as primeiras notas de piano ecoaram, o bar foi à loucura, e a ela girou o pulso direito enquanto levantava o braço, acompanhando a batida.
A figura do palco, Melissa, se virou e ficou de frente pela primeira vez no momento em que a letra da canção começou, mexendo a boca sincronizadamente como se fosse ela mesma cantando. Ela tinha sobrancelhas grossas, usava muita maquiagem, e seu rosto parecia estranhamente familiar a Cellbit, por mais que ele não soubesse da onde poderia conhecê-la.
At first I was afraid, I was petrified
Kept thinking I could never leave without you by my side.
Melissa foi caminhando mais para frente, um pé em frente ao outro, devagar e elegantemente, com as mãos na cintura, sem errar uma palavra da dublagem da música.
And so you’re back
Com a batida da música ficando mais animada, ela começou a dançar. O público jogava notas de dinheiro no palco ou estendia a mão para entregar a ela, então Melissa ia dando um jeito de incorporar à sua coreografia o ato de se abaixar e ir guardando as notas em seu sutiã, visível por baixo da roupa vermelha.
Go on now, go, walk out the door
Just turn around now
Melissa tinha brevemente ficado de costas para a plateia novamente, mas se virou acompanhando a letra, “ Apenas dê meia-volta agora ”, e, simultaneamente, puxou um pouco para baixo seu roupão, revelando ainda mais seus ombros do que antes. Ela foi se agachando, até estar deitada no momento em que a música dizia:
You think I’d lay down and die?
Mas com o refrão vindo no verso seguinte, ela sentou de volta a tempo do:
Oh no, not I, I will survive
Conforme foi levantando do chão, o que era impressionante por si só devido ao tamanho dos saltos de suas sandálias, ela tirou completamente aquele roupão vermelho, ficando apenas com calcinha e sutiã pretos. Seus braços, agora visíveis, pareciam musculosos.
Melissa passou o resto da música dançando, agachando-se e levantando-se e recolhendo dinheiro, sua dublagem em perfeita sincronia com a música. Cellbit estava um pouco confuso, mas inegavelmente entretido, e definitivamente não compreendia o drama de Bad sobre levá-lo até lá.
Quando a canção terminou, Melissa finalizou com uma pose final e recebeu muitos aplausos. Enquanto ela pegava todo o resto do dinheiro que lhe fora jogado no chão, o DJ falou:
— Uma salva de palmas pra Melissa, fechando as performances da noite!
De pé, acompanhando os aplausos, Cellbit virou-se para Bad:
— Ela… me parece familiar.
Bad também aplaudia.
— Eu não sei de onde você poderia conhecer uma drag queen de Hatchetfield, mas quem sabe — ele parou de bater palmas, puxou Cellbit e foi andando — Vem, a gente precisa falar pro Maximus acelerar, eu tô ficando cansado, hoje foi um dia cheio.
Outra música foi colocada para tocar, algum remix, e Max estava arrumando seus fones headset enquanto batia papo com alguém. De perto, era possível ver que ele usava o cabelo num coque samurai, vestia um sobretudo — por mais que essa realmente não parecesse a roupa mais apropriada para aquele ambiente — e usava óculos de sol, com os quais Cellbit não tinha ideia de como ele poderia estar enxergando em uma balada escura. Bad chamou seu nome e, quando Max o viu, saiu da cabine de DJ e deu espaço para a pessoa com quem conversava controlar a música em seu lugar. Ele se aproximou dos dois.
— Hey, Bad! Desculpa por já estar tão tarde, mas quando você me mandou mensagem sobre a Reunião de Churrasco de emergência, já era tarde demais para cancelar aqui, a casa tá sempre cheia nos sábados. Esse aí é o amigo de quem você falou?
Cellbit se adiantou, tirando a mão do bolso para cumprimentá-lo.
— Prazer em te conhecer, eu sou o Cellbit.
Os dois trocaram um aperto de mão.
— Meu nome é Maximus, o prazer é meu. Agora só precisamos encontrar o Foolish e aí podemos ir pra minha casa pra reunião. Onde ele tá?
— Acho que ele nem viu a mensagem que eu mandei sobre a reunião — respondeu Bad — Honestamente, ele é bem frustrante às vezes, não parece que ele leva essa coisa toda muito a sério.
— Vamos indo pro seu carro — sugeriu Max, já caminhando até a saída, fazendo os outros dois seguirem-no — Eu vou ligar pra ele e dizer pra ir logo.
Maximus estava com o telefone no ouvido, esperando ser atendido, enquanto atravessava o corredor perto da saída. Havia poucas pessoas ao redor, a maioria permaneceria no clube para o resto da festa. O trio ouviu o som de um celular tocando.
— Olha ele ali! — apontou Bad — Foolish! Foolish, seu filho da mãe!
Vegetta, ainda na entrada do bar, se virou para olhar, bem como o rapaz que o abraçava de lado: era alto, a estrutura óssea de seu rosto era bem definida, ele vestia uma regata preta, shorts e, por algum motivo, tinha uma touca de tubarão cobrindo parte dos cabelos dourados, além de usar um óculos com lentes de um verde tão forte que parecia brilhar. Ele tirou os óculos, revelando por baixo deles olhos quase tão verdes quanto.
— Foolish, por que você não atendeu o telefone? — Max perguntou conforme os três se aproximavam dele.
Sua voz esganiçada não parecia em nada com o que Cellbit imaginou que soaria de acordo com sua aparência:
— Porque se eu fizesse isso, ele ia parar de tocar, e eu gosto da musiquinha. Tuddo doo tuddo doo tuddo doo — ele imitou o toque do celular afinando a voz.
Bad suspirou, irritado, e deu uma das maiores reviradas de olho que Cellbit já presenciara.
— Eu não acredito nisso. É por isso que você nunca atende as minhas ligações?
— O quê? Não! Eu não atendo suas ligações porque eu não me importo muito com as coisas que você tem pra dizer.
— E SE FOR ALGO RELACIONADO ÀS REUNIÕES DE CHURRASCO, FOOLISH?
— Aí você me manda uma mensagem — ele deu de ombros.
— E SE FOR URGENTE?! EU TE MANDEI MENSAGENS HOJE E VOCÊ NÃO VIU…
— Ok, ok, chega, vocês dois — Max interrompeu-os e virou para o dono do bar — Vegetta, necesitamos Foolish un rato, el amigo de Bad quiere ver cómo son nuestras Reuniões de Churrasco.
— Ah, indo ya? — disse Vegetta, direcionando-se a Cellbit em seguida — Mas espero que tenham gostado do show.
— Gostei sim! — Cellbit apressou-se em responder. Não sabia o porquê, mas sentia-se levemente intimidado por Vegetta e queria mostrar gratidão pela entrada grátis — Foi bem, como posso dizer… Me entreteve bastante!
— Bom, bom, fico feliz que gostou. E Fooliiiish — Vegetta deixou sua voz mais suave e envolveu o loiro em seus braços — Te vejo depois, mi amor, divirta-se!
— Gracias, mi amor — Foolish disse em meio a uma risadinha apaixonada e deu um beijo de despedida em Vegetta. Bad revirou os olhos mais uma vez.
— Você literalmente vai ver ele de novo em, o quê, duas horas? Não dá pra ir logo?
Foolish se afastou de Vegetta e deu um último tchauzinho enquanto eles seguiam até o veículo. Bad ficaria no volante e Foolish insistiu firmemente que queria ir no passageiro, “Se vocês não me derem o lugar da frente eu vou começar a latir!” , deixando os bancos de trás para Cellbit e Maximus. Bad deu partida e seguiu pela rua.
— Espera, quem é esse cara mesmo? — Foolish perguntou.
— Foolish, eu já te disse! — Bad, indignou-se.
— Meu nome é Cellbit, sou amigo do Bad.
— Inclusive — Max se manifestou — Bad, pode nos dizer por que acha que podemos confiar nesse cara pra ele frequentar nossas Reuniões de Churrasco?
— Ele pode ter chegado na ilha há pouco tempo, mas a gente se conhece há anos, desde antes de eu me mudar para cá — ele deu seta e olhou para os dois lados antes de continuar — E eu tentei não envolver ele nisso, mas ele ficava indo investigar por si mesmo. Então eu pensei: se ele vai fazer isso de qualquer forma, é melhor que tenha companhia, certo? Pra não se envolver nessas coisas sozinho. Ele é o motivo pra eu ter te mandado mensagem aquela noite, Maximus, dizendo que tínhamos muito a discutir.
Max pensou sobre. Foolish mexia no rádio e simplesmente deu de ombros:
— Me parece razoável.
— Você tá realmente dedicado a isso? — Max perguntou a Cellbit.
— Cem por cento.
— Isso nós vamos ver. O que você já notou até agora?
— Bom, em primeiro lugar, aqueles outdoors e cartazes brancos com o sorriso, claro, a coisa mais óbvia — disse, e viu Maximus assentir ao seu lado — Eu tava anotando as diferentes frases que encontrei e quantas vezes cada uma aparece. Alguns dias atrás, eu tirei umas fotos dos trabalhadores sem rosto que estavam em uma construção, mas por algum motivo…
— As fotos saíram todas fodidas — Maximus completou.
— Olha a boca!
— Desculpa, Bad, eu não sei outra forma de dizer isso nesse idioma. Mas sim, toda vez que tentamos tirar fotos dos trabalhadores sem rosto, elas saem… estranhas.
— Eu sabia que não era coincidência!
— Então, isso é tudo o que fez?
— Tem mais uma coisa: hoje mais cedo, eu fui até o prédio da CCRP.
Do volante, Bad disse, com a gratificação de quem tem razão:
— Eu sabia que você não tinha saído cedo por causa de insônia!
— Eu não menti sobre isso, só omiti o que eu tava fazendo. Enfim, quando eu cheguei lá, disse pros guardas que eu era um turista e que tinha me perdido, e eu perguntei se podia usar o banheiro. Eles me deixaram entrar e…
Todos soltaram exclamações de surpresa. Cellbit sorriu, orgulhoso, percebendo que finalmente despertara o interesse deles.
— ELES TE DEIXARAM ENTRAR?! — Foolish virou-se para trás para olhá-lo, empolgado — Como é lá dentro?
— É melhor a gente parar por agora — interveio Maximus — Vamos discutir isso melhor quando chegarmos a um lugar seguro. Mas estou impressionado, Cellbit, você parece ter umas ideias interessantes. Tenho algumas coisas pra te mostrar quando estivermos em casa.
Cellbit sentiu a empolgação crescendo em seu peito, curioso sobre as possíveis informações que lhe passariam e satisfeito por ter encontrado outras pessoas que faziam o que ele estava fazendo, um grupo que não se deixava enganar e pensava além do óbvio. Enquanto ele esperava ansiosamente, Foolish, no banco da frente, parecia ter finalmente encontrado uma música que lhe agradava no rádio, então abriu a janela ao seu lado por completo e colocou o tronco do corpo para fora, como se fosse um cachorro, dizendo UHUUUU!
Permaneceram no carro por mais alguns minutos antes de Bad finalmente desacelerar e estacionar em frente a um jardim com grama baixa, algumas árvores, uma casinha de madeira e um moinho. Havia algo semelhante a uma estátua bem mais ao fundo, porém era impossível distingui-la no breu.
Todos desceram do veículo, e foram acesas automaticamente as pequenas lâmpadas do chão que traçavam o caminho até a casa. Os quatro caminharam lado a lado naquela direção, Bad cansado, Maximus parecendo determinado enquanto colocava seu fedora que tirou de dentro do sobretudo, Cellbit empolgado e Foolish fingindo-se de durão, por algum motivo.
A casinha de madeira era por dentro tão pequena quanto parecia por fora, com uma cozinha anexa à sala, uma porta que levava a um pequeno quarto, e um banheirinho. Maximus abriu caminho por entre o grupo e foi até um canto da casa, na parede mais distante da porta de entrada, perto da qual havia um vaso de flor, e indicou com o dedo para que todos o acompanhassem. Os três se aproximaram tanto quanto podiam no espaço apertado, e ele levantou o vaso de flor para revelar um botão vermelho, o qual, após pressionado, abriu uma passagem secreta na parede: uma escadaria levando para baixo.
Cellbit surpreendeu-se ao, depois de descer, encontrar-se em um subsolo amplo e bem iluminado, apesar de meio vazio, com um elevador de vidro perto de uma das paredes. Foi até lá que Max guiou os outros três, e ele apertou o botão para o elevador descer, o que os levou a um corredor contrastante, apertado e cuja única fonte de luz era uma lampadazinha amarelada pendurada no teto por alguns fios.
Maximus virou à esquerda, onde destrancou uma porta de metal cheia de fechaduras, fazendo com que os quatro finalmente entrassem aonde queriam chegar: também escura, essa última sala possuía, dentre outras coisas, mesa e cadeiras, um projetor no centro, uma parede de teorias deles próprios, cheia de fotos e anotações em espanhol e inglês, e uma estante com vários cadernos e fitas.
Cellbit entrou e tomou seu tempo olhando ao redor, curioso, querendo mexer em tudo. Bad, entretanto, pediu para que ele se sentasse à mesa, onde Maximus e Foolish esperavam. Eles se juntaram aos outros dois, e Maximus disse:
— Agora você pode contar o que viu no prédio da CCRP sem se preocupar.
— Ficarei feliz em compartilhar o que vi, mas antes… Eu não sei se posso realmente confiar em vocês. Eu gostaria de ouvir o que vocês sabem antes de contar o que eu sei.
— Oh, você é um cara esperto — Foolish sorriu.
Max suspirou.
— Justo. Bad, quer começar?
— Bom, você viu as coisas com logo de sorriso.
— Impossível não notar — Cellbit respondeu.
— Aquele é o logo da CCRP, a instituição que basicamente manda nessa ilha por trás das cortinas. Eles patrocinam certas insituições pra poderem usar os terrenos delas sempre que quiserem, eles até mesmo privatizaram os trens e desativaram a ferrovia que passava pela Ponte Nantucket, saindo de Hatchetfield. Achamos que eles querem diminuir o fluxo de pessoas entrando e saindo.
Maximus continuou:
— A CCRP, apelidamos ela de A Federação, tá aqui desde sempre, certo, Foolish?
— É, eu nasci aqui na ilha e lembro dela sempre estar por aí.
— Mas parece que nos últimos anos eles têm ficado mais e mais poderosos! — Maximus exclamou — Pra a população local é mais difícil de notar, porque é um processo, eles não acordaram um dia e simplesmente viram a cidade cheia de panfletos.
Bad completou:
— Notamos que parece existir alguém em uma posição mais alta do que os trabalhadores sem rosto que você viu naquele dia. Mostre a ele, Max!
— Ah, sim!
Maximus foi até a parede de evidências, procurando uma foto específica e, ao achá-la, retirou-a com cuidado.
— Isso foi bem difícil de conseguir — disse ele, voltando à mesa — Tivemos que enganar ele pra conseguir esta foto, e especialmente pra conseguir ficar com ela.
A fotografia foi colocada em cima da mesa redonda e posicionada para que Cellbit a visse no ângulo certo. Assim que ele pousou os olhos na imagem, sentiu sua pressão caindo: era o urso branco dos seus pesadelos.
— Ele se apresenta pras pessoas como Census Bureau — explicou Bad — Mas a população de Hatchetfield criou um apelido para ele: Cucurucho. Pra ser sincero, nós nem sabemos direitos o que ele é.
“O que”, não “quem”. Cellbit estava sem palavras, incapaz de desviar o olhar da foto borrada. Foolish se sobressaltou na cadeira, falando em um tom intenso.
— Você provavelmente vai pensar que somos loucos, Cellbit. Mas achamos que existem forças sobrenaturais agindo sobre Hatchetfield.
Não lhe parecia loucura, de forma alguma; as coisas finalmente começavam a fazer sentido.
— Isso é o básico do que nós temos — Bad disse — O mínimo que precisa saber pra entender Hatchetfield.
O brasileiro passou muito mais tempo do que seria considerado normal olhando para aquela foto meio tremida de Cucurucho, em que só era possível ver parte dele. Aquilo parecia uma fantasia, ao mesmo tempo que não, de um urso branco que deveria ser fofinho, porém alguns aspectos dele acabavam tornando-o aterrorizante: o sorriso de dar frio na espinha era costurado, uma caixinha de som perto do tórax trazia uma sensação enervante, e seus olhos completamente negros e vazios faziam quem os encarasse perder-se naquela escuridão.
Maximus limpou a garganta audivelmente, chamando a atenção de Cellbit, que foi obrigado a desviar o olhar da foto.
— Agora que compartilhamos nossas coisas — falou ele — Precisa nos dizer o que você descobriu.
Cellbit se ajeitou na cadeira, tentando organizar os próprios pensamentos, antes de narrar aos companheiros sua breve expedição ao banheiro da CCRP. Os Theory Bros ouviram atentamente, surpresos por nunca terem pensado em uma ideia tão simples e tão eficaz, que abria tantas portas para mais teorias e planos. Quando ele contou sobre sua fotografia, eles imediatamente exigiram vê-la, algo que ele só aceitou se a imagem permanecesse em suas mãos. Os três, então, levantaram e ficaram de pé atrás da cadeira dele, espremidos e tortos para olharem a foto de perto.
— Você disse que esse zelador — Bad apontou, intrigado e levemente incomodado com a imagem — era careca, tinha um braço robótico e não tava usando o uniforme da Federação?
— Isso, ele tava limpando o banheiro.
Os outros três membros trocaram olhares intrigados.
— Você acha que ele poderia ser… — começou Bad.
— É óbvio que é ele, Bad! — bradou Foolish — Que outro homem careca tem um braço robótico em Hatchetfield? E olha a foto, dá pra ver o rosto dele claramente!
— De quem vocês estão falando? — Cellbit quis saber.
Bad explicou:
— Esse moço… Ele é igualzinho ao pai do melhor amigo do meu filho. Eu já falei com ele um monte de vezes, o Dapper ama ir pra casa dele, brincar com o filho dele, e vice-versa. É só que… Isso não faz sentido!
— E você não sabe com o que ele trabalha?
— Ele diz que é um veterano de guerra, e que às vezes ele consegue alguns trabalhos avulsos… O sonho dele é abrir a própria academia fitness um dia.
— Ou… — Foolish interveio — Ele vem mentindo pra você esse tempo todo.
— Mas o Dapper tá dormindo na casa dele agora mesmo! Ele já fez isso um monte de vezes e o Fit é sempre tão educado!
— Os trabalhadores da Federação são educados — contra-argumentou Foolish.
Bad tentou justificar seu ponto, e Foolish discordava, o que fez a discussão ir se estendendo. Maximus se encurvou para falar com Cellbit.
— Acho que eles vão ficar nessa por um tempo. Tudo bem se eu pegar sua foto por um instante pra fazer uma cópia?
— Só se você me der uma cópia da foto do urso.
No canto da sala, havia uma copiadora, e os dois foram até lá juntos. Enquanto Maximus colocava a primeira foto na máquina, Cellbit viu, pendurado na parede mais próxima, uma placa de madeira em formato de porco, em que estava entalhado em letras grandes “BBQ”, a abreviação em inglês para barbecue, churrasco, e as letras acompanhavam a palavra “monólogos”, em cursiva e menor.
— Monólogos De Churrasco?
Max levantou a cabeça para seguir o olhar dele.
— Ah. Sim. É um musical, foi daí que tiramos a ideia pro apelido das nossas reuniões. Uma produção que tava em tour veio pro teatro Starlight alguns meses atrás e todos diziam que era bom, então fomos assistir juntos.
— E como foi?
Maximus tirou os óculos escuros, olhando a placa pensativamente.
— Transcendental.
Ele recolocou os óculos, e pegou as cópias das fotos. Depois de entregar a duplicata da fotografia de Cucuruchu a Cellbit, analisou satisfeito a imagem copiada que ficaria para ele do banheiro da CCRP.
— Eu sinto que você vai nos ajudar bastante. Isso é, se você aceitar virar um membro oficial, claro.
Cellbit olhou ao redor naquela sala escura: a estante com fitas taxadas de CONFIDENCIAL , a parede de teorias mais completa que a dele, os cadernos, a placa em formato de porco, a mesa de reunião em que Bad e Foolish discutiam acaloradamente, sobre um assunto que não mais tinha a ver com o zelador estranho.
— Eu adoraria.
Maximus sorriu e olhou-o nos olhos.
— Então bem-vindo aos Theory Bros.
Notes:
EU AMO A MELISSA DRAG OK
Se por algum motivo você nunca ouviu a música da lip sync da Melissa, eu recomendo, é muito boa e muito gay! Este é o link.
Chapter 6: Suspeito
Chapter Text
— Cellbit, a gente vai visitar o museu de Hatchetfield.
— Ok.
— Dizem que a comida da lanchonete de lá é boa e barata.
— Uhum.
— Aparentemente, além de uns quadros legais, lá tem também umas atividades interativas.
— Divirtam-se.
Mike finalmente desistiu e fechou a porta, virando-se para os outros e caminhando com eles em direção às escadas.
— Isso não pode ser bom. Ele tá agindo da mesma forma que agia antes dele… Vocês sabem. Ter aquele ataque explosivo.
— Que ataque? — perguntou Richarlyson.
Pac rapidamente intersectou:
— Richinhas, o que você acha de pegar carona nas minhas costas?
— Eu não recusaria um cavalinho! — ele disse, colocando os braços ao redor do pescoço do mais velho, e eles andaram mais à frente dos outros. Felps se virou para Mike.
— Eu entendo por que você pensaria isso, mas não é a mesma coisa. Antes ele estava mais blasé, sabe? Agora ele está focado em alguma coisa, algo que acha tão interessante que não tem vontade de fazer mais nada. É bom o Cellbit arranjar algo que ele goste, agora a gente só precisa esperar alguns dias até ele se acalmar um pouco e aceitar fazer qualquer outra coisa… E talvez demore mais do que alguns dias.
— Bom, só espero que ele siga o plano. Desde que ele continue saindo por aí, pra que depois seja convincente a história de que a gente "se apaixonou tanto pela ilha a ponto de decidir morar aqui", ou sei lá o quê.
Enquanto eles iam embora, Cellbit, com as anotações espalhadas pela cama, organizava as próprias ideias. O encontro com os Theory Bros lhe dera muito sobre o que pensar, e ele mal dormira nas últimas duas noites.
Passara o domingo inteiro no hotel, atualizando sua parede de teorias, se entupindo de café, e consultando Bad Boy Halo sobre algumas coisas. Ele também insistira e teimara com Maximus até que ele aceitasse lhe entregar uma lista de pessoas suspeitas que deveriam ser investigadas, para que Cellbit tivesse o que fazer enquanto os outros membros iam para seus trabalhos regulares e viviam suas vidas normais durante a maior parte da semana.
Aparentemente, um dos moradores mais suspeitos da ilha era um tal de Quackity, professor de espanhol na escola de ensino fundamental de Hatchetfield — o que, por esse lado, o tornava um dos mais fáceis de localizar na cidade. Tanto Maximus quanto Bad já o tinham visto conversando várias vezes com o urso branco da Federação, Cucurucho. As fotos dele presentes nos arquivos dos Theory Bros mostravam um rapaz jovem, com o cabelo preto no nível do queixo e parcialmente coberto por uma touca, olhos escuros e profundas olheiras.
Pensando nas informações do professor suspeito, Cellbit teve uma ideia e correu para fora do quarto.
— Bad!
O dono do hotel estava em um corredor próximo aos quartos dos brasileiros, passando esfregão no chão enquanto usava um avental rosa e florido por cima das roupas preto e vermelhas, seus cabelos escondidos embaixo do capuz como sempre.
— Sim?
— O seu filho é aluno do Quackity?
O semblante de Bad imediatamente mudou com a pergunta.
— Ah, Cellbit… Olha, eu entendo o que você está tentando fazer, e entendo por que está tentando, mas… O Quackity é um cara meio mal humorado. Eu não acho que nós vamos conseguir extrair informações dele tão facilmente assim.
— Bem, mas eu poderia usar o meu charme e carisma pra passar uma boa primeira impressão e…
Bad o encarou por alguns segundos antes de cair na gargalhada, dobrando o corpo e apoiando-se no esfregão. Cellbit se ofendeu.
— Tô falando sério!
A risada se intensificou, e Cellbit esperou, de cara fechada, ele parar.
— Ai meu Deus — Bad se endireitou e limpou uma lágrima dos olhos com a ponta do dedo — Obrigado por isso. Eu tava precisando dar uma boa risada.
— Já acabou? Olha — ele se aproximou — Eu só quero saber com quem estamos lidando aqui, ok? Talvez nada mude, mas tenho certeza de que nada vai piorar, também.
— Nunca diga que algo não pode piorar.
Cellbit continuou a encará-lo, de braços cruzados.
— Ugh, tá bom — Bad cedeu — O que você quer saber?
— Eu só preciso que você me diga como eu chego na escola e a que horas as aulas acabam. Ah, e eu preciso do seu carro emprestado.
— Cellbit, as aulas acabam, tipo, às três da tarde, o que você vai fazer até lá?
— Ler panfletos e observar a cidade em seu estado natural.
Bad não ficou nada feliz com aquilo, todavia, acabou entregando a chave do carro, com a condição de que Cellbit aproveitasse que iria para a escola de qualquer jeito e levasse Dapper para casa depois da aula.
Enquanto esperava as horas passarem até Quackity sair da escola, Cellbit dirigiu de volta à calçada perto da loja de souvenirs, onde os trabalhadores sem rosto continuavam a trabalhar normalmente, apenas se comunicando esporadicamente por meio de gestos simples sobre coisas triviais ou relacionadas à obra. Cellbit tentou de todas as formas possíveis tirar fotos deles, mas as imagens sempre acabavam queimadas ou parcialmente danificadas. Ele apoiou os braços no volante e encostou a testa ali, começando a ficar frustrado.
Sentindo que ia cair no sono se continuasse parado, Cellbit coçou os olhos, tomou um gole d’água, estalou os ossos dos dedos e desceu do carro para caminhar um pouco. Ele respirou fundo e sentiu o cheiro de poeira da construção, depois esticou todo o corpo para se espreguiçar.
Cellbit se aproximou mais dos trabalhadores sem rosto, de onde os sons de serras e britadeiras continuavam, altos e constantes. Mas havia algo de diferente próximo a eles, algo que fez o brasileiro sobressaltar-se: vistoriando a construção, havia uma figura alta, branca e esquisita — o maldito urso branco , Cucurucho. Ele os observava com seus olhinhos sem pálpebras e fazia anotações.
Cellbit congelou, porém só por um instante. E então, ele se aproximou do urso.
— Good morning — Cucurucho disse com uma voz robótica suave e feminina, muito menos ameaçadora do que a voz que Cellbit costumava ouvir em seus piores pesadelos — What are you doing?
— Você é o Census Bureau, certo?
— Ha ha ha.
— Eu só queria conversar com você, fazer algumas perguntas sobre a ilha.
— Why?
Ele hesitou.
— Por que eu não perguntaria? Tem algum problema nisso?
Cucurucho virou levemente a cabeça.
— You have committed an illegal act.
— O q--
Mas, de repente, Cellbit não estava mais na rua em frente aos trabalhadores. Em um piscar de olhos, fora parar em um corredor estreito e escuro, cheio de teias de aranha. Exclamando, assustado, ele virou para trás e encontrou Cucurucho com uma serra elétrica, a qual ele ativou e enfiou na barriga de Cellbit.
— WHAT THE FUCK? SOCORRO! — ele gritou, virando-se para correr para o outro lado, com dificuldade, segurando a barriga e vendo suas mãos ficando encharcadas de sangue e com pedaços de sua carne despedaçados do corpo.
Dando uma olhadinha para trás, o urso andava calmamente em sua direção, com sua serra fazendo barulho. Cellbit continuou correndo tanto quanto podia pelo corredor, até chegar a um ponto em que havia um extenso buraco no chão, completamente coberto de parafusos e cacos de vidro. Atrás dele, Cucurucho chegava cada vez mais perto. Sem opção, ele pulou pelo buraco, tentando atravessar até o outro lado, porém não conseguiu impulso o suficiente e caiu, sentindo seu corpo inteiro sendo perfurado…
E então Cellbit acordou, levantando a cabeça do volante do carro, assustado. Ainda estava dentro do sedan de Bad, os trabalhadores sem rosto continuavam o serviço, e Cucurucho não estava por lá. A janela do carro se encontrava aberta, trazendo o cheiro de poeira de construção para dentro, além dos sons da obra, inclusive o de uma serra circular cortando madeira.
Arfando, ele esfregou os próprios olhos com força e checou o mapa. Sabia que não deveria ficar gastando dinheiro, porém um café naquele momento poderia ser literalmente questão de vida ou morte. Ligou o motor, torcendo para manter-se acordado no volante até chegar ao Beanie’s .
───────•••───────
Cellbit já estava no estacionamento da escola de Ensino Fundamental de Hatchetfield havia mais de uma hora quando, finalmente, deu o horário do fim da aula. Apressado, ele largou seu sudoku barato no banco e saiu do carro cheio de copos vazios de café, para esperar perto da saída.
Ficou aliviado ao encontrar Dapper antes de encontrar Quackity.
— Seu pai me pediu para eu te levar pra casa hoje.
A criança pareceu desconfiada.
— Pediu, é?
Cellbit se deu conta de que ele estava certo em ficar desconfiado, pois aquilo era exatamente o que um sequestrador diria naquela situação. Para mostrar que dizia a verdade, Cellbit encorajou Dapper a ligar para seu pai antes de segui-lo, e a criança foi atrás de um telefone público, já que Cellbit ainda não arranjara um celular para si desde que chegara à ilha. Dapper voltou alguns minutos depois, mais aliviado, e foi até o sedan vermelho esperar por Cellbit, que disse que precisava resolver mais uma coisa antes deles irem embora.
Não foi preciso esperar muito mais tempo até ver, saindo da escola, alguém que só poderia ser Quackity; apesar disso, era difícil ter certeza, pois ele estava de touca e óculos escuros, cobrindo seus principais traços. O homem caminhava até o estacionamento com um cigarro na boca, prestes a ser acendido pelo isqueiro em sua mão. Cellbit apressou-se em sua direção.
— Com licença! Oi, posso falar com você?
— Ahn… Claro — respondeu, com o cigarro, agora aceso, entre os dentes — Eu te conheço?
— Não, a gente nunca se viu antes. Mas que vista você é… — respondeu Cellbit, lançando o sorriso mais charmoso que conseguiu. Quackity franziu a testa, confuso.
— Ok…?
Cellbit não deixou a falta de reação abalá-lo. Respirou fundo e continuou com a desculpa que planejara.
— É só que, eu tenho um filho, sabe, e eu estava pensando em matricular ele pra estudar nessa escola.
— Quer que eu chame o diretor…?
— Não não não! É que eu, hm… Eu ouvi falar de você.
— Você ouviu falar de mim?
— Sim, algumas pessoas me falaram coisas muito boas sobre as suas aulas.
— Tem certeza de que não tá me confundindo com outro professor?
— Você é o Quackity, não é?
— Sou, mas… Tem certeza de que esses elogios eram direcionados a mim?
Antes que pudesse responder, Cellbit ouviu seu nome sendo chamado. Ao virar para olhar, encontrou Roier segurando a mão de um menininho de cabelos castanhos, que vestia um macacão jeans. Os dois se aproximaram.
— Cellbit, eu não sabia que você conhecia o Quackity.
— Acabei de conhecer.
— Roier, foi você quem disse pra esse cara que eu sou um bom professor?
— O quê? Por que eu mentiria assim?
Quackity lançou-lhe um sorriso propositadamente falso e virou-se para Cellbit novamente.
— Mais alguma coisa, senhor? Eu gostaria de ir pra casa agora.
A sequência de eventos o atrapalhou e Cellbit já não conseguiria continuar a conversa naquele momento. Pensou em pedir seu número de telefone, como planejava fazer caso algo não saísse como esperado, mas com a presença de Roier ali, sentia-se estranho sobre a ideia.
— Ok, acho que eu te vejo por aí então?
Quackity simplesmente continuou o seu caminho sem se despedir, como se nada tivesse acontecido, deixando um rastro de fumaça para trás. Cellbit e Roier o observaram se afastando.
— Ele é sempre assim? — Cellbit indagou.
— Na maior parte do tempo, sim.
— Vocês dois são amigos ou…?
— É, tecnicamente somos. Eu conheço ele há muitos anos, mas a gente meio que se afastou um pouco nos últimos tempos. Mas e você, sobre o que estava conversando com ele? O que foi aquilo sobre ele ser um bom professor?
— Eu só estava perguntando sobre a escola, caso a gente acabe se mudando pra Hatchetfield e o Richarlyson tenha que estudar aqui.
— Você tá pensando em se mudar?
— Bom, não é um cenário impossível, quer dizer, a gente já tava saindo do Brasil, de qualquer forma, e Hatchetfield parece ser um bom lugar.
— ¡Apá, vamos a casa ya, estoy cansado! — o menininho choramingou, balançando uma das pernas com tédio e se pendurando no braço do pai.
— Calmate, Bobby, estoy hablando con mi amigo. Ahh sim, inclusive, Cellbit, esse aqui é o meu filho, lembra que eu tinha comentado dele? E Bobby, esse é o pai daquela criança da loja que eu te falei.
— Eu não ligo, quero ir pra casa.
— ¡Ay, Bobby, como eres maleducado! Vamonos pronto, espérate un poco, mijo.
Bobby gemeu de desprazer dramaticamente. Roier tirou a chave do carro de seu bolso e entregou a ele, dizendo-lhe algo em espanhol, que Cellbit conseguiu captar: era para o menino esperar no veículo. Ele saiu correndo, fazendo sua mochila pular nas costas.
— Ele é muito parecido com você. Fisicamente, pelo menos — notou Cellbit.
— Claro que é, ele é meu filho biológico.
Cellbit congelou por alguns segundos, fazendo contas em sua mente, sem tentar esconder seu choque.
— Nah, eu tô brincando — interviu Roier — Eu tinha, tipo, uns doze anos quando ele nasceu, a aparência é pura coincidência. Enfim, do que a gente tava falando mesmo? Ah, sim, quem te falou para conversar com o Quackity dentre todas as pessoas pra conseguir informações sobre a escola?
Cellbit sentiu-se conflitado; não podia dizer a verdade a Roier, mas, ao mesmo tempo, parecia que a conversa com Quackity nunca renderia, e tinha ali à sua disposição um amigo dele… Mesmo assim, hesitou.
— O dono do hotel em que eu tô ficando mencionou ele, então decidi vir e perguntar.
— Ahh, você tá ficando no Egg Carton Hotel, não é? Foi o Bad Boy Halo quem te disse isso?
— Você conhece o Bad?
— Todo mundo se conhece em Hatchetfield, meu amigo — Roier riu — Mano, só mesmo aquele pendejo do Bad Boy Halo para dizer que o Quackity é um bom professor.
Todo mundo se conhece. Cellbit decidiu arriscar:
— Espera, você conhece o Maximus?
— Da estação de rádio? Claro que conheço!
— Estação de rádio? Eu não sabia que ele trabalhava lá.
— Bom, se você não conhece ele da rádio… — Roier abriu um sorriso — Ah, Cellbit… Eu sei que lugares você anda frequentando.
Cellbit sentiu-se corar intensamente, fazendo o outro gargalhar.
— Calmate, Cellbit, não tem nada de errado nisso. Eu gosto das Casualonas também.
— Bom, eh, enfim, eu preciso ir agora, o filho do Bad tá esperando por mim no carro. Te vejo depois, ok?
— ¡Adiós, Cellbit!
───────•••───────
Como era segunda-feira, à noite, os Theory Bros se reuniram novamente na sala secreta de Maximus. Cellbit sentia que poderia ficar dias discutindo teorias e fazendo perguntas, porém a ideia que tivera mais cedo, conversando com Roier, era a que mais pairava em sua mente. Enquanto Foolish brincava com uma caneta sentado à mesa e Bad olhava as novas adições à parede de teorias, ele foi até Maximus, que ajustava o projetor.
— Ei, Max? Eu tive uma ideia, mas queria conversar com você antes. Eu tava pensando… Sabe o Roier?
— Claro que sei! Cara muito engraçado.
— Você sabe se podemos confiar nele?
Max hesitou.
— Ele é alguém em quem podemos confiar, sim, somos amigos, inclusive. Mas eu não sei se gosto das implicações do que você tá me perguntando, Cellbit. Você quer envolver ele nisso tudo? Acho que é mais seguro deixar ele viver em ignorância, ter uma vida normal.
— Mas eu acho que ele pode nos ajudar sem se envolver demais. Deixa eu explicar: fui falar com o Quackity hoje…
— Ai, Cellbit, Cellbit — Maximus balançou a cabeça — O que você achou que conseguiria com isso?
— Eu sei, em retrospectiva não foi um plano muito bom, mas! Eu descobri que o Quackity e o Roier são bons amigos.
— Eu sei disso, mas eu não acho que eles andam conversando muito um com o outro ultimamente.
— Sim, sim, ele mencionou isso, mas mesmo assim. Eles se conhecem há anos, certo?
— Acho que eles são amigos de infância.
— Tá vendo? A gente poderia pedir pro Roier descobrir por que o Quackity tava conversando com o urso. Você disse que a existência do Cucurucho não é um segredo.
Maximus ponderou sobre o assunto, considerando as possibilidades.
— Não sei não, Cellbit…
— Se o Roier não aceitar, a gente pensa em outra coisa. Vamos lá! A gente devia pelo menos ver o que os outros acham disso. Foolish, Bad?
Os dois se aproximaram, e Cellbit explicou sua ideia a eles.
— Roier! — Foolish se empolgou — Eu adoraria ter ele acompanhando a gente em uma missão!
— Bom, me parece um plano interessante, se ele concordar — disse Bad, pensativo — Quer dizer, são só dois amigos antigos conversando, não tem nada de suspeito sobre isso, eu não acho que seria perigoso pra eles.
Todos olharam com expectativa para Maximus, que ainda parecia incerto. Enfim, ele concluiu:
— Vamos falar com Roier, então.
───────•••───────
Meia hora depois, Maximus estava dirigindo, com Cellbit no banco ao seu lado. Foolish e Bad foram para suas respectivas casas, cuidar de seus filhos, enquanto os outros dois davam conta da situação. A viagem não foi longa antes de Maximus parar o carro por eles terem chegado ao destino: a casa de Roier. Era em um sobrado perto de um riacho, envolto de árvores adornadas com flores roxas como presente da primavera, e em uma delas, ficava uma casinha na árvore.
Max estacionou próximo à pequena ponte de pedra que abria caminho pelo riacho, e Cellbit o acompanhou quando ele se aproximou da construção principal, em frente à qual havia bancos ao redor de restos de uma fogueira de dias antes. Ao tocar a campainha, quem atendeu a porta foi uma mulher de longos cabelos castanhos, camiseta roxa e muitas tatuagens nos braços.
— Oi, posso ajud-- Max? O que você tá fazendo aqui às nove horas da noite?
— Oi, Jaiden, desculpa por aparecer assim do nada. Queríamos falar com o Roier, ele tá de folga hoje, certo?
Ela parecia atenta e hesitante, principalmente ao notar o rosto desconhecido que era Cellbit.
— Sim. Vou chamar ele. Podem entrar — disse ela, apesar da postura tensa.
A primeira impressão que a sala de estar passava era de ser confortável e vivida: quadros com fotos da família ou somente de Bobby, a mesa de jantar com uma embalagem de cereal sabor chocolate ao lado de um laptop ligado com a tela levemente abaixada, uma xícara de chá quente pela metade.
O menininho que Cellbit vira mais cedo no estacionamento estava envolto em um cobertorzinho e deitado no sofá em cima de várias almofadas, porém ele sentou-se, mal-humorado, ao ver as visitas. Ele assistia a algo em espanhol na televisão, e quando o brasileiro espiou, a imagem da touquinha verde xadrez e o barril eram inconfundíveis: passava a série de televisão Chaves.
— Hola, Bobby, desculpa por te incomodar tão tarde na sua casa — disse Max, em espanhol, com a voz suave.
— Pois eu não aceito suas desculpas — a criança respondeu, cruzando os braços.
Os donos da casa voltaram do segundo andar, Roier usando uma camiseta preta desbotada e calças xadrez de pijama.
— Ah, o Cellbit também tá aqui? Se eu soubesse, eu tinha descido mais arrumadinho.
Cellbit sentiu as bochechas esquentando, mas não conseguiu conter um sorriso, e Maximus ergueu uma sobrancelha diante da cena. Jaiden pegou na mão de Bobby e o acompanhou até o andar de cima, para colocá-lo na cama. Roier sentou à mesa de jantar, virado para as visitas, e ofereceu que se sentassem no sofá
— Então. O que traz vocês à minha casa a essa hora? Não tô achando ruim, só fui pego de surpresa.
Maximus foi quem falou:
— Queríamos te pedir um favor
— Claro, dime.
— Você tem falado com o Quackity?
O semblante alegre de Roier pareceu oscilar por um momento, porém ele rapidamente se recuperou, voltando ao seu jeito brincalhão.
— Falei com ele hoje, o Cellbit viu.
Maximus não ficou satisfeito com a resposta.
— Vocês estão… de boa?
— Sim, mano, o Quackity é um culero, mas tudo bem.
Roier apoiou o cotovelo no encosto da cadeira, querendo parecer à vontade. Cellbit decidiu falar.
— Bom, o Maximus me disse que ele anda agindo de um jeito bem estranho…
— Ele é estranho.
— Mais estranho que o normal. E já que, bom, como eu te disse, eu talvez me mude pra Hatchetfield, eu queria garantir que o Richarlyson não vai correr perigo na escola. Então queríamos te perguntar se você aceitaria, talvez… Falar com ele. Ver o que tá rolando.
— Falar com ele? Sobre o que exatamente?
Maximus, tentando formular seus pensamentos, acabou se rendendo ao conforto e segurança de recorrer ao espanhol.
— Eu o vi falando com o Cucurucho. Perguntei o motivo, mas ele não me respondeu.
— Acredito que tem algo a ver com Tilín, ¿não?
Cellbit perdeu a linha de raciocínio da conversa em outra língua, sem saber o que significava a palavra Tilín. Além disso, o espanhol de Roier era incomparavelmente mais fácil de entender do que o de Maximus, que continuou:
— Mas eu o vi com o Cucurucho muitas vezes, tío, e até brigando com ele, e tenho medo de que Quackity esteja planejando alguma coisa. Isso poderia ser perigoso, já que ele é um professor e vê as crianças todos os dias. Além disso, Charlie disse que acha que o Quackity tem a ver com o que aconteceu com a filha dele.
Maximus apontou para Cellbit, que observava a conversa atentamente mesmo sem entender, e então apontou para si mesmo, antes de completar:
— Gostaríamos de ouvir as explicações de Quackity, e precisamos de você para tirá-las dele. Eu ficaria verdadeiramente agradecido, Roier.
Roier precisou pensar sobre. Enfim, olhando para Cellbit, respondeu:
— Vale. Voy a hablar con Quackity y preguntarle de Cucurucho — então ele voltou a falar em inglês para que o brasileiro também o entendesse — Eu sei onde podemos interrogar ele pra que vocês possam ouvir tudo.
Chapter Text
Cellbit passou a manhã inteira do dia seguinte atualizando seu quadro de teorias de Hatchetfield, além de anotar tudo o que lembrava sobre seus pesadelos constantes que começaram quando chegou na cidade. Fazia esboços, colava papeis pelo quarto, tinha surtos e crises existenciais, e precisava abafar seus gritos de frustração no travesseiro. Repetidamente caiu no sono enquanto escrevia, acordando depois de dois minutos, tomando alguns goles de café e continuando.
O ciclo só parou durante a tarde, quando ouviu alguns toques na porta antes dela ser aberta.
— Ei, Cellbit, é hora d… Que que é isso?!
O hóspede encarava Bad com arregalados olhos vermelhos e olheiras profundas, a barba por fazer e uma mecha de cabelo tombando sobre seu rosto.
— Hora do quê?
— Cellbit, tem certeza de que quer ir na reunião com a gente? Eu posso falar pra eles que você ficou doente e--
— NÃO! — ele interrompeu, falando mais alto do que planejava.
— Mas você não parece nada bem!
— Eu me sinto ótimo, Bad Boy Halo — Cellbit afirmou, abrindo um sorriso. A careta do amigo piorou.
— Não parece.
— Nem tudo é o que parece ser, Bad. Você deveria saber disso melhor do que qualquer um, sendo um Theory Bro.
— SHHH, FICOU MALUCO, CARAMBA? Eu… Eu nunca ouvi falar desse “Theory Bro” que você falou, hahah!
— Tanto faz, só vamos logo — ele disse, pegando a camisa da cadeira e vestindo-a por cima da camiseta.
— Então tá, faz o que preferir. Você é um adulto, você toma suas próprias decisões. Mas saiba que eu não concordo com isso.
— Eu não ligo e você não é meu pai.
Bad revirou os olhos, mas cedeu. Os dois foram até o carro e começaram a viagem até a escola de ensino fundamental, onde encontrariam os outros Theory Bros e Roier. Assim que estacionaram, viram que eles já estavam lá, acompanhados de Vegetta, todos em frente a um chamativo carro roxo, moderno e grande.
Enquanto saía do carro simples de Bad e fechava a porta atrás de si, Cellbit pôde ouvir, a alguns metros dali, Roier perguntando:
— ¿Por qué hay tantas personas que quieren escuchar mi conversación con Quackity? ¡Qué chismosos!
— Bad, por que o Vegetta tá aqui? Não era para isso ser o mais restrito possível? — Cellbit cochichou no ouvido do amigo, enquanto ouvia ao fundo Maximus tentando inventar uma desculpa para Roier.
— Precisamos que alguém cuide das crianças, o Vegetta vai levar elas pra casa dele para uma festa do pijama com a filha dele. Além disso, não importa muito, porque a gente tem quase certeza de que o Foolish conta tudo pra ele, de qualquer jeito.
Foolish segurava a mão do namorado e brincava com os dedos dele, enquanto este conversava em espanhol com os amigos. De vez em quando, o loiro entendia uma palavra ou outra do papo e levantava o olhar, dando uma risadinha.
— Pra alguém que nem mesmo me deixa dizer em voz alta o nome real do grupo, você não parece ligar muito pra isso.
— ESSA SITUAÇÃO TÁ COMPLETAMENTE FORA DO MEU CONTROLE! — Bad se exacerbou, ainda cochichando — O que eu posso fazer sobre isso? Se eu reclamasse de algo assim com o Foolish, ele ia fazer questão de compartilhar ainda mais detalhes com o namorado dele, só pra me contrariar!
Reunidos ao resto do grupo, Cellbit viu que havia um fio semelhante ao de fones de ouvido aparecendo de dentro do moletom de homem aranha que Roier vestia; o brasileiro fez questão de avisá-lo, e o outro, em resposta, escondeu melhor o fio dentro da roupa e lançou-lhe uma piscadela. Maximus, enquanto isso, segurava algo parecido com um radiozinho, e Cellbit logo entendeu: os Theory Bros conseguiriam ouvir toda a conversa entre Roier e Quackity graças a microfones escondidos.
Não precisaram esperar muito até que tocasse o sinal da escola anunciando o fim das aulas. Logo, Dapper, vestindo roupas sociais e cartola como sempre, aproximou-se deles, vindo acompanhado de Bobby em um lado, e do outro, uma criança de boné vermelho virado para trás em cima dos cabelos negros, vestindo uma camiseta de cachorrinho.
— Leo! — Vegetta e Foolish disseram em uníssono.
A criança de boné correu até eles e abraçou os dois de uma vez. Dapper, enquanto isso, aproximou-se devagar e, chegando ao lado de seu pai, bateu algumas vezes na cabeça de Bad, carinhosamente, como se fizesse carinho em um bom cachorro. Bobby reclamou quando Roier lhe deu um beijinho na cabeça. Maximus, um pouco mais atrás dos outros, olhava para baixo, fingindo que tirava uma sujeirinha de sua camiseta.
Depois de uma conversa trivial sobre o dia na escola, Dapper e Bobby entraram no carro de Vegetta ao lado de Leo, os dois tendo trocado suas mochilas da escola por mochilas com roupas trazidas pelos seus responsáveis. As crianças se despediram dos seus respectivos pais com acenos, e o carro deu partida.
— Gente! — observou Max, apontando — O Quackity! Vamos, rápido!
Roier se aproximou do professor de espanhol enquanto os Theory Bros foram se afastando até o carro de Bad, escondendo-se atrás de todos os veículos possíveis para garantir que não seriam vistos. Finalmente conseguiram entrar no sedan vermelho, e Maximus tirou do bolso o dispositivo que Cellbit notara mais cedo, de onde foi possível ouvir a voz levemente abafada de Roier, em meio a uma conversa.
— … bem vazio. O que acha?
Quackity respondeu:
— Você não tem que levar seu filho pra casa?
— A Jaiden já cuidou disso.
Houve uma pequena pausa.
— Por que você do nada tá querendo passar tempo comigo? — Quackity indagou, em tom desconfiado.
— O quê, é proibido sentir falta de um antigo amigo?
Mais alguns instantes em que ninguém falou. Enfim, Quackity se manifestou:
— … Tá. Meu carro tá estacionado por ali.
Bad ligou o próprio motor assim que distinguiu o som de Quackity e Roier fechando as portas do carro do professor depois de entrarem. Momentos depois, uma música alta vinda do dispositivo de Maximus assustou os Theory Bros ao começar a tocar repentinamente: “ Wake me up inside, I CAN’T WAKE UP, wak… ” e ela logo em seguida parou.
— Foi mal — a voz envergonhada de Quackity soou.
Enquanto dirigiam ao destino, a conversa que o quarteto ouvia dos dois era superficial, com um tom desconfortável. Maximus olhava ansiosamente para o dispositivo, tremendo a perna impacientemente e murmurando para si mesmo:
— Cambia el tema de la conversasión, estúpido. ¿Cómo van a llegar a Cucurucho así, tío?
Eventualmente, depois de uma das pausas com silêncio desconfortável, Roier disse, como quem não quer nada:
— Sabe, eu vi o Cucurucho um dia desses.
Foi possível ouvir o esfregar das roupas de Quackity no banco quando ele se mexeu, mais alerta.
— Ah é? — falou, levemente nervoso, também tentando soar casual.
— Sim, mano. Eu meio que evitei ele, sabe? Ele me dá arrepios.
— É, ele tem um rosto meio assustador, por assim dizer.
— E é meio que, tipo, eu nem sei sobre o que eu falaria com ele. Mas ele parece sempre querer conversar e perguntar coisas.
— Uhum — Quackity murmurou.
— Ele faz isso com você também ou só comigo?
— Olha, chegamos — Quackity mudou de assunto.
Ele estava certo: assim que Bad virou a rua, estavam em um lugar que Cellbit já conhecia. Os Theory Bros precisaram esperar Roier e Quackity já estarem dentro da Las Casualonas para entrarem também, pelo fundo, usando uma chave que Foolish trazia em um colar no pescoço. Enquanto isso, o dispositivo de Maximus ia dizendo:
— Uau, esse lugar tá vazio mesmo… Tem certeza de que podemos ficar aqui?
— Ah, sim, relaxa. O Vegetta diz que sou sempre bem-vindo aqui.
— Mas outras pessoas vão vir também?
— É terça-feira à tarde, Quackity, quem mais viria às Casualonas? Não se preocupa. Eu só pensei nesse lugar porque, já que eu tenho esses privilégios, por que não beber com privacidade?
Os Theory Bros entraram pelo camarim, atrás do palco, com Foolish os guiando. O lugar era lotado de espelhos meio sujos, maletas de maquiagem, araras com roupas coloridas, brilhantes e extravagantes, e cabeças de manequim de plástico com perucas. Foi preciso tomar muito cuidado para não tropeçarem e/ou fazerem barulho.
— Roier, por acaso você tá com… tipo… segundas intenções aqui? — a voz de Quackity soou baixa e um pouco tímida, porém não avessa à sugestão.
O quarteto subia até onde a pessoa que controlava as coxias ficava, e eles pisavam da forma mais leve que eram capazes naquela escada. Ao ouvirem a pergunta de Quackity, todavia, Cellbit sentiu-se corando e Bad tropeçou; Maximus teve de ser rápido para segurá-lo e impedi-lo de cair e, apesar do sucesso em pegar o braço do amigo no ar, precisaram deixar de lado o zelo.
— Ouviu alguma coisa? — Quackity perguntou, olhando ao redor.
— Eu não tenho ideia do que você tá falando.
Foolish virou para encarar Bad e movimentou a boca formando as palavras “What the fuck?”. Bad cochichou de forma quase inaudível:
— Por favor, não me diga que vamos ter que ouvir eles… fazendo coisas.
O dispositivo, em seu volume mínimo, ecoou a voz de Quackity:
— Você não tem ideia sobre os sons ou sobre as segundas intenções?
— Os dois. Eu não quero transar com você, Quackity, só quero conversar com o meu amigo sem ter que me preocupar com outras pessoas nos ouvindo.
— Não tenho tanta certeza sobre a parte de não ter outras pessoas aqui.
— Nah, que nada. Esse lugar tá cheio de ratos, já falei pro Vegetta dar um jeito neles faz tempo, mas ele não me ouve.
— Só pra deixar claro — Foolish interceptou, falando o mais baixo que podia — Isso é mentira.
— Você me trouxe pra um lugar cheio de ratos? — Quackity indignou-se — E como você sabe disso tudo, você vem tanto assim pras Casualonas?
— Para de fazer tantas perguntas, cara — a voz de Roier foi acompanhada do som de líquidos sendo colocados em copos — Isso aqui é pra ser um encontro entre dois velhos amigos colocando a conversa em dia, não uma investigação. Então… você mudou de assunto quando eu falei do Cucurucho.
Os Theory Bros já estavam acomodados no alto da coxia. Conseguiam ouvir a conversa ao vivo e enxergar Roier no bar, apesar de Quackity estar de costas para eles. O dispositivo de Maximus já estava sem som e guardado em seu sobretudo, e Cellbit tinha seu caderno e caneta em mãos, pronto para anotar qualquer informação importante, como um estudante dedicado assistindo à sua aula favorita.
— O que você quer de mim? Não tem muito a ser dito sobre ele — respondeu Quackity, em tom defensivo.
— Você conversou com ele alguma vez depois… Depois de Tilín?
Tilín. Cellbit reconheceu aquela como uma das palavras que ele ouvira na conversa em espanhol entre Roier e Maximus, porém cujo significado desconhecia. Ele não foi capaz de ver Quackity fechando a cara para o amigo.
— Conversei.
— E o que ele te falou?
Quackity bebeu de seu copo e o devolveu à mesa com um baque.
— Ele disse que não poderia me ajudar.
— E você acreditou nele ou…?
— Escuta aqui, Roier — Quackity cortou o assunto — Eu não sei por que você tá trazendo isso à tona agora, meio que já é tarde demais.
A expressão de Roier tornou-se menos compadecida.
— Não tô entendendo seu tom comigo, Quackity. Por acaso vai fingir que essa é a primeira vez que tento falar contigo? Você sabe muito bem que eu tentei te ajudar na época, eu tentei estar lá por você, mas você nunca disse nada sobre o assunto e se afastou de todo mundo, e então você sumiu.
Quackity perdeu a compostura.
— Não, você tá certo…
— E você sabe que poderia ter recorrido a mim a qualquer momento, pelo menos até aquilo lá acontecer. Eu só me distanciei de você quando você fez merda. Porque eu sou humano também, e você sabe que o que fez não foi certo.
O silêncio foi cortante. Quackity foi mais cuidadoso quando voltou a falar.
— Eu sempre soube que você era a vítima naquela situação, Roier, mas eu… O Spreen se ofereceu pra passar tempo comigo, e eu tava cansado de ficar sozinho…
— Mas que porra, Quackity?! Eu te ofereci companhia o tempo todo, e você sempre recusou!
— Ofereceu mesmo, você tá coberto de razão! Mas não é a mesma coisa. Porra, isso soa tão idiota quando eu digo em voz alta… Por toda a minha vida, você sempre esteve lá por mim, uma parte tão positiva dela. E eu tava autodestrutivo pra caramba na época, ainda tô, mas tô tentando trabalhar nisso. Naquele momento, me pareceu errado estar próximo de alguém que eu amo tanto. E quando o Spreen se ofereceu pra passar mais tempo comigo, eu sabia que ele tinha feito umas cagadas, mas eu não queria perder mais ninguém. O preço disso foi que, no fim… acho que eu acabei perdendo você, que era a única pessoa que sobrou que eu não queria perder.
O nome não soava estranho a Cellbit, Spreen. Mas onde já o ouvira antes…?
Roier tomou um tempo antes de retomar a conversa.
— A vida é sua, Quackity, você faz o que quiser com ela e se rodeia das pessoas que quiser. Mas você não pode vir aqui e fingir que eu sou o errado na história por não saber de mais detalhes sobre o desaparecimento de Tilín — sua voz suavizou um pouco — Eu gostava daquela criança também. Eu quero saber o que aconteceu com ele.
Quackity se encolheu.
— Eu sei…
Quackity suspirou. Ele estendeu a mão para a garrafa de cooler para encher seu copo, porém parou ao ver o que estava prestes a beber.
— Você não tem nada mais forte aí?
Roier pegou uma vodka de trás do bar e ofereceu a garrafa; o outro assentiu. Assim que seu copo foi enchido, ele tomou uma grande golada e fez careta.
— Muita coisa aconteceu — Quackity disse, brincando com o copo em suas mãos — Mas eu não tava mentindo quando falei que nada mais pode ser feito a essa altura. E sim, eu insisti com o Cucurucho para ele fazer algo sobre isso, porque eu não sabia o que mais eu poderia fazer, para quem mais poderia recorrer. Eu estava completamente desamparado.
— Mas ele só falou o de sempre? “No. Classified. Enjoy the island. Hahaha”?
— Não, mano — ele deu mais uma golada e olhou ao redor, e então inclinou-se para frente, aproximando-se mais de Roier e cochichou — Ele me pediu um favor.
— ELE TE PEDIU UM FAVOR? — Roier repetiu em tom mais alto, ciente de que o quarteto da coxia não teria como ter ouvido.
— SHHH! Cala a boca, porra! Ele poderia estar nos observando!
— Quem, o Cucurucho? Acha mesmo que ele vai estar ouvindo a nossa conversa dentro da Casualonas, a propriedade privada de Vegetta?
Max preparou seu dispositivo, caso Quackity cochichasse novamente.
— Nunca duvide dele, Roier. Nunca.
— Cara, falando desse jeito, até parece que ele te pediu para matar alguém, ou algo assim.
— Não. Ele queria que eu entregasse uma criança — respondeu, dando mais um grande gole. Os Theory Bros se entreolharam, em choque.
— Como assim?
Quackity arregalou os olhos, com o copo ainda na boca.
— E-esquece o que eu acabei de dizer.
— Quackity, como assim o “Cucurucho queria que você entregasse uma criança”?
— Pelo amor de Deus, você é incapaz de falar baixo?
— Me explica agora ou eu vou continuar a gritar.
Foolish, Bad e Cellbit aproximaram o ouvido do dispositivo de Maximus, para ouvir os sussurros.
— Ele disse que poderíamos fazer um acordo: uma criança pela outra. Não seria muito difícil, já que eu trabalho em uma escola. Ele me pediu para pegar uma das crianças e entregar a ele.
— Como é?!
— Ele disse que eu me arrependeria se essa informação vazasse, então espero que você entenda as possíveis implicações da nossa conversa aqui. Mas sim, ele me garantiu que conseguiria encontrar Tilín para mim se eu fizesse isso.
— O que caralhos ele ia fazer com uma criança?
— Porra, eu não sei! Mas mesmo assim, eu… quase cumpri o acordo.
Bad estava ultrajado. Maximus parecia perdido nos próprios pensamentos.
— Sem nem saber o que ele ia fazer com a coitada?
— Eu tava desesperado, ok? Que merda, eu só quero meu filho de volta! — Quackity se exaltou.
Fez-se silêncio por alguns segundos, apenas o som de Quackity consumindo a bebida.
— Então por que você não foi em frente e fez?
— É… complicado.
“Eu já tinha feito todo um plano: eu ia pegar a filha do Philza, Tallulah, porque ela parece não me odiar como os outros alunos, então seria mais fácil atrair ela. Eu tava dando aula para a turma dela antes do intervalo, então eu discretamente avisei ela que a gente precisava conversar no fim da aula.”
Quando o sinal tocou, a maioria das crianças saiu correndo. Tallulah, por outro lado, se aproximou da mesa do professor.
— ¿Señor Quackity? ¿Querías hablar conmigo?
Ela era fluente em espanhol e uma aluna muito dedicada, o que tornava suas notas impecáveis. Mesmo assim, seu semblante era preocupado.
“Eu não sei como ela poderia pensar que fez algo de errado. Foi aí que a culpa começou a bater um pouco, mas eu ignorei isso e fui em frente.”
— No te preocupes, Tallulah, no hicistes nada de malo.
Ela soltou um suspiro aliviado.
— ¿Por qué me llamastes entonces?
“Eu tinha pensado em uma desculpa bem merda, algo sobre ter encontrado velhas histórias em quadrinho em espanhol que me lembraram dela. Perguntei se ela queria passar na minha sala no fim do dia para irmos juntos buscar os quadrinhos no meu carro. Ela ficou super empolgada…”
— ¿Después de las clases, sí? — Quackity disse, sem conseguir olhá-la nos olhos.
— ¡Gracias, Señor Quackity!
“Alguma coisa me fez seguir ela no intervalo. Algum tipo de curiosidade mórbida sobre essa criança que estava prestes a ter sua vida arruinada.”
— Você tá atrasada pro almoço hoje, Tallulah.
— Desculpa, Chayanne, é só que o Señor Quackity queria conversar comigo. Ele disse que vai me entregar umas revistinhas antigas depois da aula.
— E você aceitou? Ugh, eu odeio aquele cara.
“O irmão mais velho dela, o Chayanne, é um merdinha. Eu adoraria levar ele ao invés da irmã, mas eu sei que ele seria muito bom em lutar de volta. Babaca.”
— Ah, Chayanne, não é assim também, ele tá dando seu melhor. Eu sei que ele pode ser meio amargo às vezes, mas ele tem um bom coração. Eu acho que ele só passou por muita coisa.
“Isso. Isso me paralisou. Quando ela passou na minha sala pra me procurar no fim do dia, eu me escondi; eu tava perdendo a coragem. Falei para mim mesmo que deixaria isso pro dia seguinte. É. Deixa ela viver sua vidinha normal por mais um dia. Então eu só fui pro estacionamento pra ir pra casa depois que ela já tinha desistido e ido embora. Mas aí, quando eu cheguei lá, ouvi vozes que eu reconheci. E eu me escondi de novo.”
— Oi, pai! — Tallulah deu um abraço apertado em Philza ao vê-lo.
— Oi, meu amor! Como foi sua aula hoje?
— Conseguiu os quadrinhos com o Señor Quackity? — Chayanne perguntou, cético.
— Na verdade, eu não achei ele, talvez ele tenha esquecido…
— Claro que esqueceu — Chayanne revirou os olhos.
— Acontece, meu bem — Phil fez cafuné na filha — Tenho certeza de que ele vai entregar isso amanhã. Mas, ei, tenho boas notícias pra te animar: seu papá tá cansado de jantar torrada com abacate toda noite, então a gente tava pensando em cozinhar algo especial pro jantar, nós quatro juntos.
— SIIIM! — Chayanne comemorou.
— Eu ia adorar, pai! O que você acha da gente fazer tacos?
“E conforme os três se afastaram e entraram no carro, eu percebi uma coisa.”
Quackity deu mais uma golada em sua bebida.
— Eu percebi… que eu tava prestes a arruinar a vida de outra família porque eu fui incapaz de cuidar da minha própria.
Quackity abaixou a cabeça, agarrando o copo com força até seus dedos embranqueceram. Enfim, ele levantou a cabeça de novo.
— Sabe, talvez seja melhor assim. Talvez Tilín realmente esteja melhor sem mim.
Ele mantinha o olhar baixo. Escolhendo as palavras e o tom com cuidado, Roier cochichou:
— Quackity… Desculpa por perguntar, mas onde tá Tilín agora? Você sabe?
O semblante dele mudou rapidamente, a decepção se dissipando e sendo substituída pela raiva:
— Não, eu não sei. E é tudo culpa do Charlie, aquele filho da puta!
— Charlie? Tipo, o Charlie Slime?
— Sim, ele. Se ele só tivesse… UGH!
— O Slime fez algo para Tilín?
— De certa forma…
“Eu ia voltar rapidinho pra casa naquela tarde. Eu só ia sair pra comprar cigarro, e tava chovendo, e Tilín tava cochilando, e eram só cinco minutos de caminhada pra chegar na loja…”
— Tá me dizendo que você saiu pra comprar cigarro?
— Porra, tô falando sério! Eu ia literalmente comprar cigarro, ok? Não o “ir comprar cigarro” que você tá pensando — ele fez o desenho de aspas com os dedos no ar.
“Mas acabou sendo mais demorado do que eu pensei, e acho que Tilín acordou e ficou preocupada que eu não tava por lá, então ela decidiu ligar pro Charlie porque a filha dele era a melhor amiga de Tilín.”
— Pai, Tilín ligou! — Juana Flippa anunciou, correndo até seu pai — Ele tá chorando no telefone, dizendo que tá assustado e sozinho em casa!
“Esse arrombado do Charlie decidiu tomar as dores pra si e se enfiar na situação como se ele fosse algum tipo de heroi. Ele mal dava conta de cuidar da própria filha!”
A chuva estava fraca quando Slime estacionou em frente à pequena casa. Ele deu uma batidinha na porta e trocou um olhar preocupado com sua filha. Tilín correu até a entrada para recebê-los, aos prantos.
— Obrigado por vir, tio Charlie! — Tilín abraçou as pernas dele.
“Isso nem faz sentido! Eu já tinha deixado meu filho sozinho em casa antes, ele sabia que eu sempre voltava! Mesmo que dessa vez eu não tenha…”
— Tilín… Cadê seu pai?
— Eu não sei!
“Slime diz que me ligou várias vezes e eu não atendi… Então ele propôs que Tilín fizesse as malas e fosse dormir na casa dele.”
— Mas a história que ele contou do que aconteceu depois… — Quackity riu como um maníaco — Maior monte de bosta que eu já ouvi.
— Por quê?
— Ele disse que — Quackity limpou a garganta — Ele disse que tava levando as crianças de volta pra casa dele.
As grossas gotas de chuva faziam um estrondo ao bater no teto do carro. Estranho; quando tinham ido buscar Tilín, a chuva não estava forte, o tempo virou muito repentinamente. O para-brisa escorregava correndo de um lado para o outro do vidro, e mesmo assim, não era suficiente; era quase impossível enxergar a rua.
“Ele disse que as coisas ainda pareciam relativamente normais… Até que a lua, parecendo quase laranja, passou rapidamente pelo céu escuro, que ficou roxo de repente.”
— Que porra é essa?! — Charlie murmurou, olhando para cima por trás do vidro do carro — Crianças, vocês viram isso…?
“O Charlie olhou pelo espelho retrovisor pra falar com as crianças, e o que ele viu fez ele se assustar tanto que ele precisou virar pra trás e olhar elas cara a cara, porque achava que era uma ilusão. Mas não era, o que ele viu foi aquilo mesmo: tanto Tilín quanto a filha do Slime tavam sentadas com as colunas bem eretas e com olhares vazios nos rostos. E seus olhos… Eles tavam brilhantes e laranjas, exatamente como a lua!”
Charlie sentiu-se perdendo o controle do volante ao não prestar a atenção necessária à direção em tão forte chuva, pois ficara completamente desconcertado ao ver as crianças. O carro girou algumas vezes na pista molhada.
“E, de acordo com ele… Urgh… Tanto a filha dele quanto Tilín abriram as portas do carro e se jogaram, em sincronia.”
— FLIPPA! TILÍN!
Frear ou acelerar, àquela altura, dava no mesmo, então Slime abriu a porta do carro e também se jogou. Ele rolou pelo asfalto deserto, tanta adrenalina em suas veias que sequer sentiu a dor dos esfolados, e não sabia mais se estava molhado pelo sangue ou pela chuva. Ele encontrou seus óculos no chão, mas com eles molhados e aquele breu, era preciso fazer um enorme esforço para enxergar de qualquer jeito.
— FLIPPAAA! TILÍN? ONDE VOCÊS ESTÃO?!
“Claro que o Slime encontrou a filha idiota dele primeiro.”
— FLIPPA! JUANA FLIPPA, FALA COMIGO!
Ela parecia tão pequena nos seus braços. Cuidadosamente, Slime tirou as duas trancinhas dela do rosto e encarou suas pálpebras fechadas, ciente de que seus óculos deviam estar caídos e quebrados a alguns metros dali. Sem saber o que mais fazer e ainda chamando seu nome, ele a abraçou e a balançou um pouco.
“Ela abriu os olhos devagar, e eles estavam verdes de novo, não laranjas. Suas primeiras palavras…”
— Onde tá Tilín? — Juana Flippa perguntou, com a voz fraca.
Quackity soltou uma risada sem humor, seus olhos marejando. Depois de fungar e tomar mais um gole, continuou :
— Flippa! Graças a deus que você está bem! Por que vocês fizeram isso? Por que se jogaram do carro em movimento?
“Mas a única coisa que ela dizia era:”
— Onde tá minha amiga? Onde tá Tilín?
— Eu não sei, vocês simplesmente pularam!
— Vai procurar ela, pai. Você precisa encontrar ela agora…
“Ele pegou a filha no colo, e só então começou a procurar pelo meu filho… Inacreditável.”
Chamando o nome da criança de Quackity, Charlie andou pelo acostamento, praticamente cego, com a própria filha escorregando em seus braços e clamando em murmúrios fracos:
— Você precisa encontrar ele. Precisa.
A estrada pela qual passavam era ao lado de um bosque, e Slime apertou os olhos tentando decifrar alguma figura humana por aí.
“Até que ele finalmente viu algo.”
Ele sentiu uma presença atrás de si, mas Juana Flippa foi mais rápida em interpretá-la do que Slime.
— Tilín…
Ele se virou imediatamente, e lá estava, de pé na chuva, a criança, com seu moletom azul e os shorts, ambos encharcados e grandes demais para ela, e o laço vermelho em seus cabelos pretos, que pingavam.
“Meu filho ainda tava com olhos laranja, de acordo com o Charlie.”
Slime se aproximou.
— Tilín? Você tá bem? Se machucou?
A criança fungou, chorando. Era impossível distinguir o que eram lágrimas e o que era chuva em seu rosto molhado, iluminado pelos olhos laranja com íris roxas. Quando ela foi falar, sua voz soava estranha:
— O Quackity realmente falhou comigo. E você também, Charlie.
— O quê…?
— Eles estavam assistindo o tempo todo, eles sabem.
Charlie engoliu em seco.
— Vamos, Tilín, vamos te tirar da chuva.
— É tarde demais para isso agora.
Ela deu um passo à frente.
— Tome cuidado, Juana Flippa — a menina virou-se para encarar a amiga quando ouviu o próprio nome — Você será a próxima.
Tilín deu as costas aos dois e adentrou o bosque
“E esse desgraçado… Esse filho da puta disse que ficou paralizado, e que quando se recuperou, ele tava com tanto medo que só conseguiu fugir com a filha dele, deixando o carro lá e tudo o mais. Ele nem tentou correr atrás de Tilín!”
Quackity tinha o olhar num ponto fixo da mesa, deixando as lágrimas rolarem pelo seu rosto como uma torneira aberta. Depois de passar a manga da blusa agressivamente na bochecha, ele tomou ar para falar.
— O que eu deveria ter feito, ido à delegacia? Eles disseram que eu sumi por cinco dias!
Roier, de alguma forma, conseguiu encontrar voz para fracamente perguntar:
— E sumiu mesmo?
Quackity socou violentamente a mesa, fazendo o amigo dar um pulo e ficar em alerta.
— ESSE É O PONTO, CARALHO: EU NÃO SEI!
Ele então cobriu o próprio rosto com as mãos, soluçando.
— Vo-você não sabe? — Roier gaguejou.
Depois de longos segundos, Quackity tirou as mãos do rosto e as levou até seu copo, que estava vazio. Em resposta, ele o atirou na mesa e, no lugar, pegou a garrafa de vodka e virou uma grande golada.
— Não, Roier, eu não sei. Como eu te disse, eu lembro de sair da minha casa, eu lembro que não tava chovendo forte, e eu lembro de atravessar a rua, e aí… Nada. AÍ, EU NÃO LEMBRO DE NADA, ROIER, ATÉ EU ACORDAR NA MINHA CASA DIAS DEPOIS, CHAMANDO MEU FILHO! MAS ELE NÃO TAVA LÁ, NÃO É MESMO!
Roier encarou a coxia, de onde sabia que os Theory Bros assistiam escondidos, e lançou-lhes um olhar aflito. Em seguida, colocou o braço ao redor de Quackity e deu alguns tapinhas em suas costas, sem saber o que mais fazer. Quackity recuperou um pouco do fôlego:
— Claro que as pessoas acham que eu tive algo a ver com o que aconteceu com a filha idiota do Slime. Eu quase perdi meu emprego por causa dessa merda, mas eles não conseguiram provar nada…
Roier recolheu o braço que estava em volta de Quackity, fazendo o outro encará-lo e murmurar um quase inaudível “não…”.
— Mas, Quackity… Você teve algo a ver com isso?
— CLARO QUE NÃO, ROIER, PORRA, OLHA PRA MIM! — Quackity se exacerbou, ficando de pé e se jogando na cadeira novamente logo depois — Eu sou um merda, até para tentar me vingar! Eu até fui atrás de velhas revistinhas mexicanas para dar pra Tallulah, só pra ela não ficar muito chateada. Eu gastei dinheiro com essa bosta! Mas eu sinceramente tô pouco me fodendo para o que aconteceu com a filha do Slime. Agora ele quase sabe como eu me sinto…
Roier o encarou, desacreditado. Quackity deu de ombros.
— Que foi?! Vai me julgar? Você não entenderia, você ainda tem o seu Bobby, aquele merdinha. Pelo menos por enquanto…
— Qual foi, caralho?!
Quackity tinha escorregado na cadeira, com a garrafa na mão. Ele deu um gole.
— Nessa cidade, qualquer coisa pode acontecer. Ninguém tá realmente a salvo. Mas eu tô pouco me fodendo agora. Todos vamos morrer um dia, então me leva logo! — ele ficou de pé, gritando para o céu e apontando — ME LEVA LOGO, DEUS, EU NÃO LIGO! SEU IDIOTA PERVERSO DE DUAS CARAS!
— Ok, Quackity, chega — Roier tirou a garrafa da mão dele, que protestou, mas foi incapaz de recuperá-la.
— Ei! Me devolve isso!
— Você já tomou demais, vai acabar passando mal!
— Quem se importa?!
— Eu me importo, burrão!
Quackity parou de repente, olhando profundamente para Roier.
— Você… você se importa?
— O quê, acha que eu devia te deixar se embebedar ainda mais? Ya estás suficientemente borracho.
Quackity continuou a encará-lo, boquiaberto. Enfim, limpou a garganta e disse, de forma arrastada:
— Sabe, Roier, eu… sempre te achei tão gostoso, e…
— É, chega, eu vou te levar pra casa — Roier o interrompeu, começando a empurrá-lo cuidadosamente até a saída — Você precisa de uma boa noite de sono, me dá a chave do seu carro.
Quackity corou enquanto pegava a chave no bolso.
— Você… você vai “me levar pra casa”?
Roier não conseguiu reprimir uma risada.
— Cómo eres pendejo, Quackity. Vem, vamos embora.
Quackity ainda o olhava, esperançoso.
— Tô falando sério! Eu…
Mas ele não conseguiu terminar a frase; seu corpo se contorceu para frente e ele vomitou. Roier desviou por pouco.
— Ahn, gente? Uma ajudinha aqui?
Sem ligar mais para disfarce, os Theory Bros saíram de onde estavam escondidos e foram socorrê-los. Conforme Quackity sentiu seus braços sendo passados por pescoços para dar-lhe apoio, ele olhou para os rostos dos responsáveis por aquilo:
— Foolish?! Maximus?! Da onde vocês surgiram?
Cellbit se colocou ao lado de Roier, enquanto Bad corria à frente com a chave do carro já na mão, murmurando algo sobre sacolas de papel e ter lavado seu carro recentemente. Quackity virou a cabeça para encarar o antigo amigo, e arregalou os olhos ao ver o homem ao lado dele.
— Você! Você me perguntou sobre a escola outro dia!
Cellbit corou.
— Bom…
— Sabe — Quackity limpou a garganta — Sabe que você é um gostoso, né?
Cellbit arregalou os olhos. Maximus e Foolish foram arrastando Quackity para fora, porém ele virou a cabeça e continuou gritando para ser ouvido:
— Você tava falando sério quando insinuou que eu era uma bela vista? Eu só tava me fazendo de difícil, viu? Você tem muito charme e carisma!
Porém ele foi levado. Cellbit estava tão surpreso que não conseguiu reagir. Roier, contudo, o trouxe de volta à situação: era a primeira vez que o rapaz parecia genuinamente chateado.
— Desculpa por ele — Roier murmurou — Eu não achei que ele ia ficar tão… intenso.
— O quê? Não tem por que se desculpar, você foi de grande ajuda pra muita coisa! Mas como você tá? Foi preciso se abrir bastante para fazer ele falar.
— Tá tudo bem, eu tô bem. Tô feliz em descobrir o que aconteceu com Tilín. Não que aquilo tenha respondido muita coisa, mas… Eu costumava tomar conta dele às vezes, sabe? Ficar de babá. E sei agora um pouco mais do que sabia antes.
Cellbit tinha centenas de perguntas, e sabia que Roier poderia responder ao menos parte delas. Mesmo assim, a única coisa que indagou foi:
— O que vamos fazer com o carro do Quackity?
— Acho que vamos ter que dirigir até a casa dele — Roier respondeu, mostrando que tinha em mãos a chave do carro do dito cujo.
— Eu posso tomar conta disso — prontificou-se Cellbit — Imagino que você só queira ir para casa e descansar agora.
— Bom, na verdade, sua companhia não faria mal. Se você dirigir.
— Nesse caso…
Cellbit tocou suavemente a mão de Roier para pegar a chave. Em seguida, não soube exatamente o que fazer e, corando, deixou a chave cair sem querer. Ele limpou a garganta enquanto pegava o objeto do chão e, ao levantar, viu Roier dar um risinho genuíno e sem malícia perante seu desastre. Sentindo as bochechas esquentarem ainda mais, murmurou:
— Eu… serei seu chofer?
— Claro — Roier respondeu, ainda dando uma leve risadinha — Eu ia gostar disso.
Roier apagou as luzes e trancou o Casualonas antes que eles se afastassem, seguindo o sedan vermelho pelas ruas escuras de Hatchetfield.
───────•••───────
O carro de Bad Boy Halo estava cheio de passageiros. Além de Foolish ao seu lado, o banco de trás era ocupado por Maximus e um muito bêbado Quackity, que no estado em que estava, contava como duas pessoas. Quackity se apoiava na janela aberta, segurando sua touca na cabeça enquanto o vento soprava seu rosto.
— Não acredito que vocês tavam me espiando enquanto eu abria meu coração. Filhos da puta — Quackity reclamou, falando enrolado.
— Do que você tá falando, idiota? — Foolish respondeu com convicção — Meu namorado é dono do lugar, eu vou lá o tempo todo. Como eu deveria saber que no dia em que a Casualonas tá fechada e eu quero usar o espaço com meus amigos, você estaria lá se embebedando com o Roier?
Quackity engoliu em seco, ainda de cara fechada. Bad encarou Foolish de canto de olho, impressionado e levemente assustado com a naturalidade com que ele mentira, principalmente por se tratar de alguém que parecia levar as coisas pouco a sério e ser simplesmente brincalhão.
Enquanto isso, atrás deles, Cellbit os seguia dirigindo o carro de Quackity em um silêncio incômodo. Roier, no banco do passageiro ao seu lado, mantinha-se em uma quietude irreconhecível e preocupante.
Cellbit tentava equilibrar sua atenção ao volante com as ideias que sua mente martelava. Apesar de sentir o peso de seu bloco de anotações no bolso do camisa, ele surpreendeu a si mesmo com o quanto o diálogo no Las Casualonas não ocupava seus pensamentos no momento; apenas se perguntava se deveria manter-se quieto ou dizer algo a Roier. E, se falasse, devia confortá-lo? Distraí-lo? Desculpar-se pela situação toda?
Divagando, ele não notou uma lombada no meio da rua e o carro deu um tranco ao passar por ela rápido demais.
— Meu Deus, me desculpa — apressou-se em dizer.
— Tá de boa.
Roier ajustou seu cinto e forçou um leve riso.
— Caramba, eu não tinha percebido como está silencioso aqui. Quer ouvir música?
— Só se você quiser. Não tem problema se você não estiver com humor para isso…
— Não, tá tudo bem. Deixa eu ver se tem alguma coisa aqui no meio desse lixo todo.
De fato, havia muito lixo no carro de Quackity: latas, garrafas, papeis, jornal velho, embalagens, cinzas de cigarro… Abrindo o porta-luvas, Roier encontrou um estojo porta CDs, e começou a procurar.
— ¿Este pendejo no tiene Luis Miguel?
— Luis Miguel? Nunca ouvi falar dele.
— É um dos meus cantores favoritos, ele é bem famoso no México.
— Quero ouvir.
— Infelizmente, parece que o Quackity é um mexicano fake e não tem músicas dele, então não vou conseguir te mostrar agora…
— Você precisa me mostrar algum dia, e eu vou te mostrar minhas músicas brasileiras favoritas.
— Eu ia gostar disso — Roier respondeu, parecendo um pouco mais animado do que antes.
Quando Bad começou a desacelerar seu carro para estacionar, Cellbit fez o mesmo. Quackity morava perto da praia de Hatchetfield, em um pequeno sobrado de madeira cuja entrada era no segundo andar, com varanda e um quintal cercado na parte de baixo.
A casa parecia ter sido charmosa em algum momento, porém parecia agora sem vida e quase abandonada: uma das luzes na escadaria externa não acendia, e a outra, estava com a lâmpada quebrada; havia vários vasos de flor, todos com plantas mortas; a caixa de correio estava enferrujada; o quintal tinha um triciclo de criança colorido, quebrado e empoeirado, além de várias coisas cobertas por lonas.
Fazer Quackity, bêbado como estava, subir as escadas até a porta de entrada, não foi fácil. Maximus e Foolish o ajudaram, e Roier foi quem pegou sua chave de casa no bolso para destrancar a porta.
O interior da residência estava muito pior do que o exterior: empoeirado, com louça e lixo espalhados por todo o canto, e um forte cheiro de cigarro, além de bitucas em cinzeiros improvisados, como tigelinhas de metal e copos de plástico com água. Nas paredes da sala, algumas áreas retangulares eram mais claras que o resto da tintura a sua volta, como se vários quadros tivessem sido tirados de lá havia pouco tempo.
Quackity reclamou:
— Eu não convidei vocês a entrarem.
— Mas você vai ficar bem? — Max perguntou.
— Vou sobreviver — ele falou, indo até a pia na cozinha anexada à sala para pegar um copo d’água.
Cellbit tropeçou em uma caixa de papelão ao lado do sofá, cheia de fotos emolduradas largadas. A que estava no topo das outras exibia uma criança de cabelo preto liso com um laço vermelho enfeitando a cabeça, andando no triciclo infantil que agora estava abandonado no quintal. Tilín, só podia ser.
Partes de algumas imagens dentro da caixa ainda eram visíveis, alguns dos quadros com mais de uma fotografia dividindo uma única moldura. Cellbit pôde discernir Tilín na escola, Tilín segurando uma fatia de bolo ao lado de Roier, Tilín brincando com Bobby, Tilín abraçado a uma menina de trancinhas e óculos, Tilín no colo de alguém que parecia ser Jaiden, Tilín sentado na cama com pijama vermelho e laranja, e Tilín com Quackity em um parque de diversões com luzes roxas ao fundo.
— Você devia comer alguma coisa doce, Quackity — Bad recomendou — Vai te ajudar, já que você tava bebendo.
— Não te perguntei nada! — ele respondeu, mas quando Bad se virou, Quackity abriu as prateleiras da cozinha e procurou por doces; sem sucesso, ele foi até o refrigerador e pegou um iogurte. Quando ele fechou a porta da velha geladeira, Cellbit notou que um imã encardido e descascado de uma cara sorridente segurava uma folha de papel com a mensagem escrita de canetinha vermelha em uma letra bastão torta: “Você não é ruim pai, eu te amo”.
Maximus parecia enjoado e desconfortável. Ele ajustou os óculos escuros com o dedo e colocou as mãos no bolso do sobretudo.
— Vamos embora, deixem o Quackity descansar.
— Tchau, Quackity! — disse Foolish, acenando, enquanto saía junto com os outros. Quackity estava sentado com as costas arqueadas e tinha uma colher cheia de iogurte na boca, enquanto encarava a mensagem de canetinha na porta da geladeira.
Notes:
Espero que gostem deste capítulo tanto quanto eu gosto <3
Chapter 8: Linguagens do amor
Chapter Text
Cellbit encarava em silêncio a parede de teorias improvisada em seu quarto de hotel; passara muito tempo anotando todas as novas informações que tinha, e queria garantir que não esquecera de nada. De alguma forma, por mais que sentisse que havia descoberto muitas coisas novas, via ainda mais pontos de interrogação do que antes, e ainda faltavam muitos dias para a próxima reunião com os Theory Bros, em que ele conseguiria discutir tudo aquilo direito.
A tarde da conversa com Quackity fora intensa. Cellbit ainda lembrava vividamente da melancolia desamparada do professor, de como Maximus parecia perdido, de como Roier tinha ficado quieto…
Roier . Toda vez que Cellbit lia aquele nome em suas anotações, tinha dificuldade de se concentrar na investigação. Só conseguia pensar em como ele era tão alegre e brincalhão, e mesmo assim, da última vez em que haviam se visto, ele estava tão para baixo.
Roier fora de suma importância para a aquisição de informações valiosas, por mais que Cellbit ainda não entendesse direito muitas delas, e a situação toda parecia tê-lo afetado bastante. Estaria ele melhor? Cellbit não tinha como contatá-lo para descobrir.
Foi assim que, naquela tarde, ele impulsivamente tomou uma decisão, e saiu do quarto antes que pudesse mudar de ideia.
A luz do dia fez os olhos de Cellbit arderem quando ele subiu até o terraço, que nada mais tinha além de algumas mesas, cadeiras e plantas. Richarlyson estava deitado de barriga para baixo no chão, desenhando, enquanto Felps lia, sentado próximo a ele. Pac e Mike não estavam por ali.
— Uau! — Cellbit exclamou ao se aproximar e ver o desenho no qual Richarlyson trabalhava no momento — Caraca, foi você que fez?
A imagem mostrava uma criança com um cabelo enrolado que cobria os olhos, usando tênis de marca, shorts, e uma camiseta da seleção brasileira de manga curta, deixando em evidência braços e pernas musculosos. Havia realmente muita técnica no desenho, evidenciando como a criança era talentosa considerando sua tenra idade.
— Sim, fui eu — Richarlyson respondeu, orgulhoso — É como eu quero ser um dia.
— Assim é como eu te vejo agora.
Richas sorriu, satisfeito consigo mesmo. Cellbit se agachou para ficar mais próximo dele.
— Deixa eu te falar o porquê de eu ter subido aqui. Queria te perguntar: se a gente for para a loja do Roier, você jura que não vai roubar nada?
A criança lançou-lhe um olhar sério.
— Claro que eu não vou roubar, eu jurei de dedinho para ele que não faria mais isso. A gente vai agora?
— Vamos, mas eu não vou comprar nada.
Ele se colocou de pé e bateu uma mão na outra, limpando a sujeira que grudara nelas por ter se apoiado no chão para levantar, e ajustou seus shorts.
— Ok. Vou colocar meu tênis.
Enquanto a criança corria, Felps soltou uma risadinha para si mesmo sem levantar o olhar do livro.
— O que foi? — Cellbit quis saber.
— Eu só fico feliz por você. Por ver que você finalmente está se permitindo ser feliz.
— Como assim?
Mas ele não respondeu. Em vez disso, Felps se levantou para sair do terraço, não sem antes passar ao lado de Cellbit e apertar-lhe o ombro carinhosamente. Só então, ele disse:
— Acho que você sabe do que eu estou falando. Divirta-se hoje!
───────•••───────
Quanto mais se aproximavam do Starkid Giftshop , mais Cellbit ficava nervoso e se arrependia da decisão impulsiva. Claro, Roier havia dito que ele e Richas eram bem-vindos a qualquer momento, mas talvez ele estivesse apenas sendo gentil? De um jeito ou de outro, não havia mais tempo de desistir, e ele observou Richarlyson passando pela porta de vidro com sininho antes de ouvir a voz familiar vinda de dentro:
— ¡Richas! ¿Escapaste de tus papás de nuevo? — Roier começou, até ver Cellbit chegando logo atrás, o que o fez rir — Oh, dessa vez não!
— Oi — Cellbit falou, timidamente.
— ¡Hola, tío Roier! — Richas cumprimentou, animado.
— Que bom que vocês vieram, o Bobby está aqui hoje. Vou lá no fundo da loja chamá-lo. ¡Mijo, vente!
O menininho mal-humorado de macacão jeans foi empurrado pelo pai até lá, de braços cruzados. Roier, no entanto, não parecia abalado pela careta do menino, e o apresentou aos brasileiros em espanhol.
— Este é meu filho, Bobby. Você disse que gosta de desenhar, ¿sim, Richarlyson? ¡O Bobby também gosta! ¿Por que não mostra a eles, Bobby?
— ¡No quiero, apá! — o menino respondeu, batendo o pé.
— O Richas é legal, pendejo , vamos lá, apresenta o lugar para ele.
Bobby continuava infeliz, porém obedeceu seu pai e voltou ao fundo da loja, seguido por um Richarlyson hesitante. Roier se aproximou de Cellbit, e os dois apoiaram as costas no balcão, lado a lado.
— Então. Vocês dois por acaso estavam passeando pelas redondezas e decidiram passar aqui para dizer oi?
— Bom, não exatamente. Eu só estava pensando sobre o quanto você me ajudou com o Quackity aquele dia, e eu queria te agradecer e checar como você está. E já que, sabe, eu não tenho um celular para te ligar, decidi vir pessoalmente.
— Oh, muito gentil de sua parte. Estou bem agora. E fico feliz que eu tenha ajudado na sua coisa de investigação.
Cellbit levou um susto com o comentário, e tomou cuidado com suas próximas palavras.
— Não é uma investigação. Eu só queria ter certeza de que a cidade é segura e…
— Ahh, é verdade, vocês fingem que é uma outra coisa. Como vocês apelidaram mesmo? Clube do livro? Clube da carne?
Cellbit não sabia como deveria responder.
— Eu… Você sabe sobre aquilo?
Roier achou graça no espanto do outro.
— Pense pelo meu ponto de vista. Vocês me pedem para usar um microfone escondido e então os quatro se escondem no camarim da Casualonas só para “ver quão suspeito o Quackity é” porque seu filho talvez vire aluno dele, assim como dezenas de outras crianças são?
— É, quando você apresenta os fatos desse jeito…
— Além disso, o Foolish já tinha me contado sobre esse grupinho de investigações.
Cellbit bateu a mão no rosto em frustração.
— Puta, sério? Por acaso ele sai por aí falando disso para todo mundo?
— Não para todo mundo, ele contou para mim porque ele é meu pai.
— O Foolish é seu pai?!
— Não exatamente — ele respondeu, se divertindo com as caras e bocas de Cellbit — Vegetta é meu padrinho, eu o chamo de papá há anos, e agora ele está namorando o Foolish, então…
— Caramba… Tudo e todos parecem conectados em Hatchetfield. Mas, an, já que você sabe disso tudo, acho que posso mudar minha abordagem um pouco. De qualquer forma, eu… Obrigado por ajudar o Clube da Carne.
— Vocês realmente apelidaram a coisa de Clube da Carne?
— Não, mas já que você já sabe de tanta coisa, eu não vou simplesmente revelar o nome a você.
— Ahh, então é assim, espertinho? — Roier sorriu.
Os dois foram interrompidos quando a porta dos fundos da loja foi aberta abruptamente e Bobby passou correndo por ela, rindo maliciosamente, e Richarlyson o seguiu poucos segundos depois, seus os punhos fechados com força, colérico. Ele correu atrás do filho de Roier, até finalmente conseguir dar-lhe uma rasteira, e riu da queda.
— Que que é isso, Richarlyson?! — Cellbit sobressaltou-se.
Porém não teve resposta, pois Bobby rapidamente se colocou de pé novamente e empurrou Richas com força, fazendo-o se desequilibrar e ter de apoiar-se nas araras de roupa, derrubando várias camisetas no processo.
— Bobby! — Roier repreendeu.
Richarlyson rapidamente se recuperou e partiu para cima do menino, fazendo com que uma luta começasse entre ambos. Os adultos correram para separá-los, cada um segurando seu próprio filho enquanto as crianças tentavam se soltar e se encaravam com ódio.
— O que aconteceu?! — Roier perguntou, os olhos arregalados. Os dois responderam ao mesmo tempo:
— ¡Richarlyson es un culero!
— ¡Bobby es un pendejo!
— Richarlyson — Cellbit virou a criança para si — Você não pode começar brigas!
— Eu não comecei, o Bobby que começou! E você disse que eu preciso sempre me defender!
Era difícil contra-argumentar.
— Bom, é, você não pode apanhar em silêncio mesmo. Bobby, o que aconteceu?
— Eu disse que o desenho dele tava uma merda e ele mandou eu ir tomar no cu.
— Bobby! — Roier repreendeu.
— Os seus desenhos são uma merda! — Richarlyson cuspiu nele.
— Ok, chega — anunciou Cellbit, pegando Richarlyson no colo com certa dificuldade — Desculpa por isso, Roier, eu vou levar ele para casa.
— Não! — as duas crianças protestaram em uníssono.
— Como não, Richarlyson?
— Eu quero brincar mais com o Bobby…
— ¡Não terminamos o desenho que estávamos fazendo juntos!
Roier e Cellbit trocaram olhares confusos.
— ¡Mas estavam brigando!
— ¡Estávamos brincando , apá!
Cellbit colocou Richarlyson no chão, e ele rapidamente correu para perto de Bobby.
— Deixa só a gente terminar o desenho! — Richas implorou.
— Eu… An…
Cellbit buscava aprovação de Roier, que deu de ombros.
— Só não briguem, ok?— Cellbit pediu enfim.
— Não vamos!
Bobby pisou no pé de Richarlyson com força.
— Eh, eh! — Roier chamou atenção.
— Desculpa, lo hice sin querer .
Os dois voltaram ao fundo da loja.
— Eu vou mostrar quem aqui faz desenhos merda — ouviram Richarlyson dizer, antes dos dois desaparecerem completamente de vista.
Cellbit ainda estava confuso.
— Então… A linguagem do amor dos dois é brigar?
Roier aproximou-se até que seu braço estivesse encostado no dele.
— Aparentemente, sim. Bom, parece que os dois vão ficar nessa por um tempo. Quer sentar? Posso passar um cafezinho ali nos fundos da loja enquanto a gente espera.
Talvez aquela tarde acabasse sendo agradável, afinal.
───────•••───────
Quando Cellbit se viu novamente no familiar caminho de pedra com vigas de madeira na entrada do Egg Carton Hotel, o sol já estava se pondo. Richarlyson, apesar de ter ganhado alguns novos hematomas, parecia radiante.
— Quero ver o Bobby e o tio Roier de novo! Podemos voltar lá amanhã?
— Amanhã eu não sei, Richarlyson, mas podemos ver.
Assim que entraram no prédio cinza do hotel, não encontraram o silêncio com o qual estavam acostumados: Dapper, anormalmente irritado, tinha os braços cruzados e as sobrancelhas franzidas enquanto discutia com seu pai.
— Por que você não me fala logo o motivo? Já que é tão sério assim.
— Dapper, não é tão simples assim, ok? Eu não tenho certeza de nada ainda, isso é só uma precaução. Para a sua segurança.
— Ah, pai, por favor, né? — a criança revirou os olhos — Se tivesse algum perigo, não acha que algo já teria acontecido comigo a essa altura? Eu faço isso há anos!
— Dapper, tudo o que eu te peço é tempo e paciência. Pode fazer isso por mim?
— Não! Eu quero ver meu amigo, hoje na escola a gente planejou fazer um monte de coisas!
— Vocês não podem fazer essas coisas na escola ?
— Não, pai! A gente não pode continuar a construir um robô na escola !
Bad finalmente notou a presença de outras pessoas, e pareceu envergonhado.
— Minha resposta final é não, Dapper, sinto muito. Hoje não. Vai para o seu quarto.
— ISSO NÃO FAZ SENTIDO! — a criança gritou em protesto e saiu do lobby.
Bad tirou os óculos e massageou as têmporas, suspirando. Cellbit baixou o olhar.
— Desculpa por me intrometer. Vem, Richas, vamos para o quarto.
— Não, tudo bem — garantiu Bad — É só que… O Dapper realmente quer muito dormir na casa do melhor amigo dele, eles fazem isso quase toda semana, mas hoje eu não deixei.
— Por quê? — Richarlyson perguntou, curioso.
— Richas, por que você não vai checar se o Pac e o Mike já voltaram? — Cellbit sugeriu.
— Mas eu quero saber a fofoca!
— Assim que eu terminar de conversar com o Bad, vou te mandar direto para o chuveiro.
— NUNCA!
Richarlyson correu para as escadas, e Cellbit fingiu segui-lo até garantir que ele realmente se afastara. Então, voltou para perto de Bad, murmurando para si mesmo:
— Fofoqueiro…
Bad se jogou no velho sofá da recepção, e Cellbit o acompanhou.
— Eu não posso deixar o Dapper dormir na casa do amiguinho dele agora, Cellbit — o dono do hotel desabafou, e então baixou o tom de voz — O pai do menino é aquele careca com cicatriz no olho e braço mecânico!
Cellbit imediatamente entendeu a quem Bad se referia: o zelador sem máscara da CCRP que aparecera em sua fotografia do banheiro da Federação.
— Ah. Você pretende falar com o cara, ou…
— Eu não tenho ideia de como abordá-lo! “Ah, oi, Fit. Eu sei que você me disse que era um veterano de guerra desempregado, mas meu amigo tem a foto de alguém que se parece muito com você trabalhando como zelador em um prédio da Census of Communication, Research & Power , um lugar que a gente acha bem suspeito pelo que a gente investiga.”
— Achei que a gente não podia falar disso em voz alta explicitamente.
— EU ESTOU BEM FRUSTRADO NO MOMENTO, OK?
— Ok, tá bom — Cellbit ergueu as mãos em forma de rendimento — Qual vai ser sua desculpa, então, caso o careca questione o motivo para o seu filho de repente não ter mais permissão de visitar a casa dele?
Bad passou as mãos por trás de seus óculos e cobriu os olhos, estressado.
— Eu também não sei. Eu estou em uma situação bem complicada. E eu ainda preciso fazer o jantar…— ele gemeu as últimas palavras para expressar seu cansaço.
— Você prefere ligar em algum restaurante para pedir comida?
— Tudo bem para vocês se a gente fizer isso?
— Desde que seja você quem está pagando…
— Pode ser pizza? Eu tenho um grande desconto lá.
— Claro… Inclusive, você tem algo a ver com o nome daquele lugar? Chico Malo’s Pizzeria ?
— Eu era o dono de lá assim que me mudei para Hatchetfield, mas operar um restaurante realmente não é para mim, então eu vendi. A pessoa que comprou manteve o nome e sempre me dá desconto.
— Ah, ok, faz sentido.
Cansado e ainda muito estressado, Bad se arrastou até o telefone no balcão. Cellbit o deixou lá e subiu as escadas até o andar de cima, indo procurar Richarlyson para começar a batalha que seria necessária para dar-lhe banho.
Chegando no quarto, Cellbit foi surpreendido ao encontrar a porta que o separava do quarto de Pac e Mike semi-aberta, e várias vozes eram ouvidas do cômodo ao lado. Richarlyson, percebendo que Cellbit havia chegado, veio até ele.
— Vem ver! — ele disse, animadamente — O Mike está com o primeiro cliente da nova barbearia dele!
— Barbearia?
Cellbit atravessou o cômodo para chegar no quarto ao lado e demorou para associar a visão do que encontrou lá: Mike estava com uma mecha rosa em meio aos seus cabelos castanhos, Pac estava sentado na ponta da cama com o capuz apertado em sua cabeça, escondendo completamente os cabelos, enquanto sentado na cadeira em frente a Mike estava ninguém menos do que…
— Foolish? O que é que você está fazendo aqui?
— Cellbit! — ele sorriu, seu corpo do pescoço para baixo coberto por uma capa de cetim preta e seu cabelo escondido por uma touca de plástico cinza — Você também veio cortar o cabelo?
— Eu nem sei o que está acontecendo!
— O Mike vai ser cabelereiro agora — explicou Richas — E ele disse que eu posso ser o ajudante!
Mike ajustou os óculos e falou à criança em uma imitação alta de cochicho:
— Você é meu melhor ajudante, não conta para o Pac.
Richarlyson juntou seu indicador com o polegar e os passou pelos lábios cerrados, fingindo fechar um zíper. Em resposta, Mike bagunçou os cabelos dele carinhosamente, e então se dirigiu a Cellbit com a voz calma, como se nada fora do ordinário estivesse acontecendo.
— Então, Cellbit, basicamente: eu estou cansado de procrastinar nessa ilha e nosso dinheiro está se esgotando, então eu decidi começar um negócio para ir ganhando uns trocados. Bem-vindo ao salão provisório da Barbearia do Mike!
— Como você convenceu o Foolish a aceitar ser o seu primeiro cliente? Aliás, como você conhece o Foolish?
— Domingo à noite, enquanto você ficava trancado no quarto fazendo sabe-se lá o quê, a gente foi conhecer as Casualonas , aquele lugar por onde a gente passou no primeiro dia, lembra?
— Sim, conheço as Casualonas .
— … E o Foolish namora o dono, então ele costuma ficar por lá, e ele já sabe quem costuma frequentar o lugar. Quando viu rostos desconhecidos, ele puxou assunto com a gente.
— Espera, Cellbit, você já foi para as Casualonas ? — Pac surpreendeu-se. No momento, ele deixava Richarlyson pintar suas unhas de preto com os novos esmaltes que Mike comprara para seu salão — Quando? E nem chamou a gente!
— Algo sobre as Casualonas… — Foolish pensou alto, tentando entender alguma coisa, qualquer coisa que fosse, da conversa em português.
— Foolish concordou em ser meu primeiro cliente — Mike disse, mudando para o inglês para que o dito cujo entendesse.
— Yes! — ele respondeu, animado — Estou ajudando um pequeno negócio.
— Ele é tipo meu cobaia, sabe? Estou tentando novas técnicas nele.
Cellbit moveu devagar o olhar para Pac e seu cabelo completamente escondido.
— E o Pac…
Pac, com olhos arregalados, encontrou o olhar do amigo.
— Ah, bom, sabe… O Mike pediu para que eu fosse a primeira vítima-- quer dizer, modelo. Para eu ser meio que a propaganda ambulante do negócio dele, sabe? Em troca a gente dividiria os lucros…
— Ah, fi, para com esse drama — Mike reclamou — Seu cabelo ficou bom, vai. Mostra para ele.
Pac suspirou e tirou o capuz, bagunçando os próprios cabelos em seguida, cabelos estes que estavam secos e não mais pretos, mas num tom alaranjado esquisito.
— Uau — foi tudo que Cellbit conseguiu dizer.
— Não é meu melhor trabalho — admitiu Mike — Mas ele não deixou eu terminar de descolorir, só surtou quando viu essa cor. Mesmo assim, ainda acho que ficou bom.
Mike foi checar o progresso do cabelo de Foolish embaixo da touquinha. Pac aproveitou sua distração para, encarando Cellbit, negar com um gesto de cabeça e movimentar os lábios em silêncio, formando as palavras “ Não ficou bom não ”. Richarlyson puxou a mão de Pac e reclamou, falando que se ele não parasse de chacoalhar, o esmalte ficaria borrado.
— Então, Foolish — Mike colocou as mãos nos ombros dele — Acho que seu cabelo está pronto.
— YES! — disse ele, engrossando a voz.
— Vamos lavar e secar para ver como fica. Richinhas, traz o balde!
Richarlyson imediatamente largou o esmalte e correu até o banheiro. No canto do quarto em que ficava a velha mesa, havia uma pequena plataforma de madeira que não estava lá antes, em cima da qual haviam colocado uma bacia adaptada, com uma cadeira à sua frente. Quando Foolish sentou e apoiou a cabeça na bacia, Mike anunciou.
— Todo mundo, para fora, quero que o resultado seja surpresa. Richas, muito obrigado por trazer o balde, agora você pode ir
Pac, segurando o vidro de esmalte preto e já com o capuz de volta na cabeça, saiu do quarto, seguido por Cellbit e Richarlyson. Os três foram até o quarto ao lado, onde ficaram esperando, e a criança finalizou seu trabalho de manicure.
Bad eventualmente bateu à porta, anunciando a chegada da pizza, e um bem empolgado Richarlyson convidou todo mundo para jantar no quarto enquanto “esperavam pelo resultado”. Felps também apareceu, e até Dapper juntou-se ao grupo no quarto de espera, mesmo que ainda estivesse meio emburrado.
— O que eu não daria por um guaranazinho neste momento… — Richarlyson comentou, suspirando, conforme as caixas de pizza eram abertas.
Bad, pensativo e culpado pela discussão de antes, observou seu filho enquanto todos se serviam. Ele se aproximou da criança para servir refrigerante aos dois e cochichou algo, rindo um pouco. Em resposta, Dapper soltou um risinho reprimido a contragosto, apesar de ainda querer manter a carranca para mostrar-se irritado por não poder dormir na casa do amigo.
Ao sentarem para comer, Bad ficou ao lado dele e arrumou algumas mechas do cabelo de Dapper atrás da orelha, para que não encostassem na pizza. Diante disso, Dapper propositalmente deixou o cabelo esfregar na comida, e riu da indignação de seu pai, oficialmente deixando de lado qualquer ressentimento pela discussão de antes.
— Estamos esperando pelo quê, mesmo? — Bad fez a pergunta a ninguém em específico, insistindo em arrumar o cabelo do filho.
— O Mike está pintando o cabelo do tio Foolish!
— Espera, o Foolish está aqui? Aquele filho da mãe, vem para o meu hotel e nem me avisa!
Aproveitando a distração de todos e a conversa paralela, Cellbit aproximou-se de Bad, tentando não chamar atenção para si.
— Falando no Foolish, você tem falado com o Max? Ele ficou bem quieto depois daquela conversa com o Quackity, ele nem quis discutir sobre, mesmo que a gente tenha descoberto tanta coisa. Ele só parecia meio… mal, no geral.
Bad suspirou e tomou um gole de refrigerante.
— Eu mandei mensagem para ele ontem, ele diz que está bem. Acho que ele vai ficar bem, eventualmente, só dê alguns dias a ele. O Quackity falou sobre várias coisas que eu sei que pegam mais para o Maximus do que para a gente, mas não é minha história para contar. Enfim, se eu tiver mais notícias dele, eu te falo, ok? E tenho certeza de que a reunião da próxima segunda-feira ainda está de pé.
Cellbit, sem saber o que devia dizer, desviou o olhar. Poucos metros à frente dele, Felps e Richarlyson estavam sentados em uma das camas, as costas apoiadas na parede.
— Você pegou pizza do quê? — Felps perguntou à criança.
— Pepperoni, e tu?
— Margherita. Quer experimentar?
— Uhum! Quer experimentar a minha?
Os dois trocaram os pedaços que seguravam e brindaram, batendo uma pizza na outra, antes de comerem.
Enfim, Mike abriu a porta dramaticamente e anunciou:
— Podem vir, está pronto.
Todos entraram no quarto ao lado. Foolish ainda não tinha visto o resultado: seus cabelos, naturalmente dourados, estavam, agora, pintados de um tom vermelho vivo, e Mike havia aparado as pontas do corte.
— Pela cara que vocês estão fazendo, eu não tenho ideia do que esperar — Foolish comentou, dando uma risadinha nervosa.
Mike, então, entregou um espelho a ele.
— Oh! Uau — Foolish riu ainda mais — Yes! Caralho, você mandou muito!
— Acho que o vermelho complementa o verde dos seus olhos — Mike explicou, observando mais de longe com os braços cruzados, parecendo muito orgulhoso de si.
— Oh meu Deus — Foolish mexeu no próprio cabelo com uma mão, segurando o espelho com a outra.
Cellbit e Bad trocaram olhares, parecendo compartilhar o pensamento: de que Foolish fizera uma péssima escolha.
— Olha para mim, Bad! O que você achou? — Foolish perguntou.
— Ahn… Você parece feliz, né?
— Sim!
— Então está bom, ótimo!
— Parece que um tomate caiu na sua cabeça — Felps comentou com sinceridade.
— Isso é algo ruim? — Foolish levantou o olhar para ele.
— Ah, nem um pouco. Parece molho de tomate no macarrão, e eu gosto de macarrão.
Foolish pensou por alguns segundos, processando aquela fala, antes de assentir com a cabeça.
— Esse cara aí é muito sábio. Gostei dele.
Enquanto Pac tirava fotos de Foolish para Mike acrescentar em seu portfólio para futuros clientes, Richarlyson puxou a barra da blusa de Cellbit para chamar sua atenção, e ele se abaixou para atender a criança. Richas parecia levemente tímido, com uma das mãos atrás das costas.
— Então. Tipo, você sempre fala que gosta dos meus desenhos, né? Aí eu comecei a trabalhar em uma coisa, e acho que eu terminei, mas eu tinha esquecido de te entregar hoje mais cedo.
Ele revelou a mão escondida, com a qual segurava um pedaço de papel levemente amassado, em que havia o desenho de alguém que era claramente uma representação fofinha de Cellbit. Ele sorria, tinha óculos steampunk na cabeça, cabelo levemente bagunçado, a barba curta e uma mochila nas costas; o fundo era uma parede verde com papéis rabiscados imitando escrita, exatamente como a parede de teorias a poucos metros deles no momento.
— Eu fiz o meu melhor, até pedi os lápis de cor do Dapper emprestados.
— Richarlyson, que desenho foda! Nossa, que da hora… — ele analisou, sem conseguir conter um sorriso — Eu posso guardar comigo?
Richas pareceu aliviado e emocionado.
— Pode, claro! Fiz para você.
Em sua mochila, Cellbit encontrou uma pasta que pegara na casa de Maximus na última reunião dos Theory Bros, para conseguir organizar papeis soltos, e parecia o lugar perfeito para garantir que a obra-prima de Richarlyson não iria amassar. Enquanto ele guardava o desenho com cuidado, ouviu um som de telefone e viu Bad Boy Halo saindo do quarto para atender, porém ignorou aquilo.
— Caraca, Richas, muito obrigado. Você um puta de um desenhista!
— Talvez eu devesse começar a vender minha arte. Conseguir uns trocados, que nem o Mike está fazendo.
A conversa foi interrompida com Bad voltando ao quarto e estendendo o telefone para Cellbit.
— É para você.
Confuso e hesitante, ele pegou o aparelho e o aproximou de seu ouvido.
— Alô…?
— Alô, Cellbit! — Roier respondeu do outro lado da linha, animado — Achei que este seria o jeito mais fácil de me comunicar com você, haha. Desde que você saiu daqui, o Bobby não cala a boca sobre querer ver o Richarlyson de novo, e eu estava pensando… O movimento lá na loja anda bem baixo, eu realmente não acho que vai ter problema se eu não abrir ela no próximo domingo, caso você queira marcar do Bobby e o Richas se verem de novo.
Cellbit reprimiu um sorriso.
— Acho que seria ótimo.
Depois de decidir os detalhes e murmurar uma despedida tímida, Cellbit devolveu o celular a Bad, que disse:
— Sabe… Se você não vai fazer isso por si mesmo, acho que vou ter que acabar comprando um telefone para você.
Chapter Text
Estava claro, muito claro. Seus olhos azuis ardiam pela luz e seus pés descalços sentiam a grama quente entre os dedos. O sol devia estar forte mesmo, porque as árvores e o campo pareciam banhados por uma luz amarelada, como se houvesse um filtro amarelo em sua visão.
Devia estar perto da hora do almoço, também, e Cellbit já se sentia cansado, o que não fazia sentido — sabia que tinha tanta energia para gastar! Ele se esforçou para lembrar o que tinha feito para sentir o peso da exaustão em seus olhos e ombros, e então lhe veio: claro, havia brincando muito. Só poderia ser isso, passara a manhã toda jogando futebol.
Mesmo assim, ainda parecia haver mais coisas de que precisava lembrar. Sentia como se tivesse uma ideia pairando bem na sua frente e ele só precisasse agarrá-la, porém não conseguia. Aquilo o incomodava, uma única ruptura em sua paz.
— Já desistiu, bobão?
Ele olhou para trás, na direção da voz familiar que lhe falava, e encontrou uma menina da idade dele, alguém que conhecia bem, porém sua fisionomia como um todo era indiscernível.
— Cansei. Estou com fome — Cellbit explicou.
— Acho que você está inventando desculpas porque eu fiz mais gols que você.
— Cala a boca — ele disse calorosamente, sorrindo com intimidade diante da rivalidade amigável. Mesmo que não enxergasse os detalhes do rosto da menina, ele soube quando ela sorriu de volta.
— Espero que hoje seja estrogonofe de almoço — ela falou, sentando-se ao lado dele.
— Só se for de carne.
— O quê? O de frango é bem melhor!
— Nã-na-ni-na-não, o de carne é mil vezes mais gostoso.
— Você não entende nada de estrogonofe.
— E você é uma esquisita que está completamente errada.
— Que idiota! — ela o empurrou de lado, e ele riu.
— Você não sabe viver sem mim.
A menina, passando a mão na grama e desviando o olhar, suspirou.
— Não. Não mesmo.
Cellbit se sentia da mesma forma, mas não falou nada. Ao invés disso, apenas olhou em volta, aproveitando o momento e a companhia, e colocou as mãos na grama atrás de si para se apoiar nelas, ficando em uma posição mais confortável.
Quando jogou seu peso, no entanto, não havia mais chão para apoiá-lo, e ele sentiu-se sem ar enquanto caía na vastidão amarela do nada.
A menina, ainda sentada na grama lá em cima, se virou e aproximou a cabeça do buraco para vê-lo, sem conseguir ajudar. Então, outra figura apareceu ao lado dela para observar a queda: uma enorme criatura monstruosa, cuja cabeça assemelhava-se ao crânio de um bode com pontiagudos chifres curvados e dentes grandes e afiados, a parte inferior do corpo toda preta e indiscernível. A menina não parecia enxergar a coisa , que estendeu uma de suas várias mãos cheias de muitos dedos para agarrá-la no pescoço. Então, escuridão e gritos.
— Aaaaaacorda, dorminhoco! — disse uma voz infantil bem diferente da voz da garota.
Cellbit abriu os olhos. Estava em seu quarto no Egg Carton Hotel , com Richarlyson em cima dele, apontando uma lanterna de luz amarela em seu rosto, na tentativa de acordá-lo.
— Aonde foi que você arranjou isso? — foram as primeiras palavras de Cellbit do dia, pronunciadas com voz rouca enquanto ele cobria os próprios olhos com as mãos. Seu sonho já começava a se diluir em sua memória, bem como a lembrança da menina.
— Menos perguntas e mais café da manhã, não quero me atrasar para o compromisso com o Bobby e o Roier.
— Richarlyson, a gente vai lá para almoçar — ele se virou para observar o relógio barato na mesa de cabeceira ao seu lado — Não são nem nove da manhã ainda.
— Mas você precisa estar apresentável , se não vai me fazer passar vergonha. Eu conversei com o Mike e ele disse que poderia ajudar a dar um trato em você…
— DE JEITO NENHUM.
A criança desprezou o comentário com um aceno de mão.
— Só confia no processo, ok?
E então Richarlyson o apressou para trocar de roupa antes de arrastá-lo escada abaixo até o salão de refeições.
— Sem café hoje — anunciou Richarlyson diante da mesa cheia de alimentos — Deixa com bafo ruim e dentes amarelos.
— Pode ir parando por aí — censurou Cellbit — Existe escova de dente para isso.
— Nem pense! — Richas bateu na mão dele, levantada para pegar café.
— Richarlyson. Eu estou falando sério, se eu não tomar café, mais tarde eu fico com uma puta enxaqueca e não consigo me manter acordado. Para com isso.
O mais novo não ficou feliz, mas aceitou a contragosto. Para não decepcioná-lo completamente, Cellbit aceitou comer um pouco dos ovos mexidos, mesmo que nunca sentisse fome de manhã.
Depois do café, veio um pesadelo muito pior do que deuses ancestrais torturadores: Mike, ao lado de um Pac com os cabelos de volta à cor natural, o esperava no quarto, os dois com sorrisos malvados e barbeadores elétricos.
— Mike, não se atreva — Cellbit proferiu.
— Pô, confia em mim!
— E você, Pac? Teve que pintar seu cabelo de preto de volta e ainda assim está ajudando ele? Traíra.
— Ele não vai pintar seu cabelo, ele vai cortar as pontas e aparar a barba. Eu confio cem por cento nele para isso, ele corta meu cabelo há anos.
— Felps, faz alguma coisa! — Cellbit tentou um último apelo.
Felps estava deitado na cama, completamente acordado e com as roupas do dia-a-dia substituindo o pijama, usando seus braços como travesseiro.
— Você tem que confiar mais nas pessoas, Cellbit. Você não viu o que ele fez com o cabelo do Foolish? Vai ficar tudo bem.
— Eu vou me matar aqui e agora — ameaçou em vista da derrota iminente.
— Não, não vai. Você vai sair com o funcionário bundudo da loja de souvenirs e você vai estar arrumadinho para isso.
— Eu só vou levar o Richarlyson para brincar com o filho dele! E aliás, por que você estava reparando na bunda do Roier?
— Está com ciúmes? — Mike sorriu de lado.
— Sinceramente, algumas coisas são impossíveis de não reparar — Pac defendeu o amigo.
Cellbit foi arrastado até o salão improvisado no quarto ao lado, onde tudo já parecia pronto. Enquanto Mike colocava a capa de cetim preta ao redor do pescoço do amigo, Cellbit, ligeiro, agarrou o pulso dele no ar e falou:
— Se você fizer merda no meu cabelo e/ou na minha barba, eu vou literalmente te matar. Eu não estou brincando.
— Tenho certeza de que não está — Mike respondeu, sua confiança inabalada.
A coisa toda foi rápida e, mesmo assim, Cellbit sentiu o peso de cada segundo. Nada parecia errado nos movimentos de Mike, porém a hesitação de Cellbit não cessou até o bendito momento em que o espelho lhe foi entregue para analisar o resultado.
Ele imediatamente sentiu seus ombros relaxarem. Sabia que andava precisando de um corte de cabelo e uma aparada decente na barba, contudo não tinha se dado conta do quanto precisava até encarar seu novo reflexo.
— Eita. Ficou bom, mano, valeu!
Mike cruzou os braços e balançou a cabeça, indignado, antes de dar um peteleco em Cellbit.
— Só por causa do drama e da falta de confiança em mim, vai ter que pagar pelo corte. Você me deve vinte dólares, burrão.
Cellbit continuou sem ter paz. Depois do banho, teve de aturar muitas trocas de roupa, com Richarlyson escolhendo as peças e pedindo conselhos para Felps, antes de fazer Cellbit provar o “look”, só para receber os olhares desaprovadores dos dois logo depois. Enfim, quando vestiu por cima de uma camiseta branca lisa, uma camisa verde muito semelhante a várias outras que tinha, e uma calça cargo marrom comum, Richarlyson decidiu liberá-lo.
— Agora sim!
Em outras palavras, ele ficou satisfeito ao ver Cellbit usando o mesmo de sempre.
Os dois saíram pouco depois para tomarem o trem. Com as mãos suando, Cellbit segurava o papel em que anotara o endereço da casa de Roier e os pontos de referência pelo caminho — por mais que ele já o tivesse visitado uma vez, tinha sido levado até o lugar de carro por Maximus em tal ocasião, e não sabia chegar lá sozinho.
Mesmo que a ansiedade e pressão de Richarlyson para chegarem logo não ajudassem, Cellbit soube que tinha dado tudo certo quando viu as árvores com flores roxas e a pontezinha passando pelo lago. Aproximando-se do sobrado, sentiram o cheiro de carne no ar e viram Bobby andando de bicicleta.
— Finalmente! — foi tudo o que o menino disse, e então guiou os convidados até o quintal dos fundos.
Roier, cuidando da churrasqueira, segurava uma espátula e vestia um avental com os dizeres “Famoso Churrasco do Papai, relaxano e grelhano ”.
— ¡Hola! Venham, estou preparando hambúrgueres, está quase pronto!
Richas e Bobby foram brincar enquanto Cellbit, sem saber ao certo como agir, sentou-se à mesa externa para esperar. Roier, como prometido, não demorou para trazer um prato cheio de carne recém grelhada para juntar aos vários outros alimentos que já estavam ali, a postos. As crianças foram chamadas para que todos pudessem almoçar juntos.
— ¿Qué quieres en tu hamburguesa, mijo? — Roier perguntou enquanto cortava o pão.
— Quiero La Clásica — Bobby respondeu sem hesitar.
— E o que é um “hambúrguer clássico” para você? — Richarlyson perguntou.
— ¡Muéstralo, papá!
Roier foi colocando os ingredientes e listando-os:
— Carne… tomate… lechuga… cebolla… pepinillos… y el pan. Ahí está.
Todos estavam observando, atentos. Ao ver a grande mordida satisfeita de Bobby no hambúrguer, Richarlyson pediu:
— Quero um igual!
— Eu faço. Mas o que ia mesmo? — perguntou Cellbit.
— Puedo ayudarte — interveio Roier — Mira.
Enquanto preparavam o sanduíche, Cellbit percebeu que conseguiam se comunicar muito bem em suas línguas maternas — o espanhol de Bobby e Roier era, no geral, não muito difícil de entender, e desde que falasse em português devagar, eles também compreendiam razoavelmente. Com as duas crianças servidas, Roier começou a preparar um hambúrguer para si.
— Esto me recuerda de mi infancia — Roier contou, olhando para a comida e sorrindo com as lembranças — Burgers son fáciles de preparar, entonces mi abuelo le gustaba de hacerlos.
— Fazer para o seu filho a comida da sua infância, isso é muito fofo. Cute — Cellbit traduziu a última palavra para o inglês ao ver o rosto confuso de Roier.
— Fofo. Fofinho?
Português soava muito bonito e divertido quando pronunciado por Roier. Cellbit tentou não sorrir à toa.
— Exatamente.
— ¿Hay alguna comida que te recuerde tu infancia, Cellbo?
Cellbit sabia que a resposta era não, que encontrar qualquer coisa para comer em sua infância já era um alívio, e sabia dos meios terríveis aos quais havia recorrido para poder se nutrir… Porém, em meio às péssimas lembranças semi-reprimidas, a sensação ruim, o desespero, alguma outra resposta, algo positivo, parecia pairar em sua mente, lutando para ser lembrado… Algo com carne ou frango …
— Não. Não tenho nada específico.
— Me gustaría probar comida brasileña.
— A nossa culinária é muito boa, é que eu infelizmente sou um péssimo cozinheiro. Mas temos pão de queijo, brigadeiro, coxinha, feijoada, pastel…
— ¿Pastel? ¿Como de cumpleaños?
— Como assim?
— Pastel é bolo em espanhol — Richarlyson explicou. Cellbit esquecera que as crianças ainda estavam ali do lado, comendo enquanto se chutavam por baixo da mesa.
— Ah! Não, não como o de aniversário, pastel no Brasil é uma receita salgada. Salty . Bom, algumas pessoas colocam recheio doce, mas…
Cellbit lembrou-se de que precisava servir-se também, e preparou um hambúrguer para si. Decidiu provar a combinação de Roier e compensar sua própria falta de infância com o sabor da infância de outra pessoa, imaginando quão pacífica uma vida como aquela soava, tão inatingível, tão distante.
— ¿Te gustó? — Roier perguntou, com expectativa.
— Sim. Você tem bom gosto.
— La eminencia de las hamburguesas — Roier disse, engrossando a voz de um jeito engraçado.
Cellbit não sabia se tinha entendido exatamente o que ele queria dizer com aquilo, mas riu mesmo assim — fazia parte do charme e carisma de Roier, tornar as coisas engraçadas com facilidade.
Enquanto comiam e conversavam, Bobby falou algo de sua bicicleta, e Richarlyson acabou admitindo que nunca havia aprendido a andar sem rodinhas, o que deixou o filho de Roier completamente indignado. Por causa disso, assim que terminaram de almoçar, os dois saíram da parte cercada do quintal da casa, e Bobby se disponibilizou a emprestar o próprio veículo para que ensinasse “este pendejo” a andar de bicicleta.
De barriga cheia, Roier ofereceu a Cellbit que eles se sentassem embaixo de uma das árvores com flores roxas, para que ficassem de olho nas crianças confortavelmente e protegidos pela sombra. O tronco era um apoio confortável, e a sensação da grama na pele de Cellbit trazia quase uma familiaridade, por mais que ele não soubesse por quê. A paisagem, com o sobrado, a casinha na árvore, o lago e o céu azul, parecia, de certa forma, acolhedora.
Os assuntos fluíam facilmente com Roier e o silêncio nunca era desconfortável, pois o barulho das crianças ao fundo era suficiente para preencher o espaço. Quando Richarlyson conseguiu pedalar sem a ajuda de Bobby pela primeira vez, Cellbit sentiu-se orgulhoso e foi sua torcida, gritando em aprovação e batendo palmas, acompanhado de Roier, que parecia tão feliz quanto ele. O equilíbrio não durou muito tempo, todavia, e Richarlyson tombou, sendo imediatamente resgatado por Bobby, que ergueu dois polegares para os adultos indicando que estava tudo bem.
Cellbit olhou para o lado por um instante e viu Roier satisfeito com a amizade das duas crianças, pleno. Aqueles olhos castanhos realmente pareciam a entrada de sua alma, e em um suspiro, Cellbit concluiu que talvez felicidade fosse aquilo , fosse aquele momento.
Roier recebeu uma ligação pouco depois, e passou alguns minutos fora. Cellbit tentou voltar à calmaria de antes, porém parte da magia estava faltando. Quando o outro voltou, sentou-se novamente na grama, aparentemente um pouco mais próximo de Cellbit do que estava antes, mas talvez fosse impressão.
— Mi abuelo — ele explicou.
— Você fala bastante dele.
— Él me crió. Es como un papá para mi.
— Ahh, entendi.
— Pero ya es muy viejito — ele decidiu trocar para o inglês para ser bem compreendido — Ele está em uma casa de repouso agora, eu pago a melhor que pude encontrar para ele. É por isso que eu tenho que cuidar da loja dele praticamente sozinho. Digo, nossa loja, eu acho. Ele sempre diz que é minha e dele.
— Você está fazendo um ótimo trabalho, tem até aquela historinha para contar para os turistas. Digo, é meio exagerada, mas é divertida.
Roier instintiva e inconscientemente tocou a própria canela, onde ficava a grande cicatriz que ele mostrara no outro dia, enquanto contava a história sobre fugir de uma casa mal-assombrada. Então, olhou para frente, pensativo.
— Eu sinto que você sabe tanto sobre mim. E eu não sei muito sobre você.
Cellbit sentiu um repentino frio no estômago, contrastando com todo o calor agradável da tarde até então.
— É só que não aconteceu muita coisa na minha vida. Nada interessante, pelo menos.
— Duvido. Mas está tudo bem, se você não quiser compartilhar, eu posso falar por nós dois
Cellbit sentiu as palavras na ponta da língua. Ia impedi-las de saírem, mas…
— O que você gostaria de saber?
— Qualquer coisa que se sinta confortável em compartilhar.
— Eu genuinamente não sei o que eu poderia te contar.
— Onde você nasceu? Brasil, sim, mas em qual parte do Brasil?
— Eu não sei.
— Como assim?
— Eu não lembro de nada da minha primeira infância. Nunca tive essas memórias. Não tenho ideia do porquê.
— Então qual é sua memória mais antiga?
Confusão. Medo. Sangue. Morte. Desespero. E também muita…
— Solidão. Eu me lembro de estar sozinho.
— Ah…
Cellbit escolheu as próximas palavras com cuidado.
— Eu tive uma infância solitária. Mas Bad Boy Halo era meu amigo, conheço ele dessa época. Então, eu voltei para o Brasil e perdi contato com ele, mas conheci os outros pais do Richarlyson — incompleto, mas era tudo verdade.
— E aí?
— Aí, nada. Só vivi minha vidinha entediante — parcialmente verdade.
Roier encarou o céu, pensativo.
— Independentemente do que tenha acontecido, eu só fico feliz por você ter vindo parar em Hatchetfield por um motivo ou outro.
— Sabe… Eu também ando me sentindo feliz por isso.
Richarlyson, agora, conseguia andar de bicicleta sem rodinhas, sem a ajuda de Bobby e sem cair.
— ¡SOY LA EMINENCIA DE LOS ENTRENADORES! — Bobby comemorou, levantando os braços. Richarlyson virou a bike e começou a persegui-lo para atropelá-lo, fazendo com que o menino tivesse que sair da pose de triunfo para correr da outra criança.
Os filhos, àquela altura, estavam com fome novamente. Todos entraram na casa, o sol já começando a baixar no céu, e se contentaram com bolachas doces industrializadas e suco artificial de laranja.
Bobby tirou as migalhas da roupa quando se deu por satisfeito, e quis jogar videogame com Richarlyson em seu quarto. Os dois subiram as escadas correndo, e os pais se viram sozinhos.
Nenhum dos dois queria que o dia acabasse; facilmente viveriam para sempre naqueles momentos, se pudessem. Momentos que pareciam não realísticos para Cellbit, mesmo que os estivesse vivendo. Era uma existência tão simples e, ao mesmo tempo, tão completa…
Tudo indicava, porém, que logo as visitas teriam que ir embora e a vida teria que voltar ao normal.
— Quer ver o pôr do sol na minha varanda? A vista de lá é linda — ofereceu Roier.
E então os dois subiram também. Havia duas suítes no segundo andar, ambas estavam com as portas fechadas, porém era possível ouvir o piar de um pássaro vindo de dentro de uma delas. No corredor, portas duplas com janelinhas levavam a uma varanda cercada, no centro da qual ficava um banco de madeira, onde Cellbit e Roier sentaram-se para observar o céu alaranjado.
A vastidão era imensa e o calor ao seu lado era reconfortante. Cellbit disse a si mesmo que, a partir daquele momento, associaria o pôr do sol a Roier e Bobby, àquele dia, àquele momento. Recordaria.
O segundo sinal sobre o fim inevitável do dia foi o carro prateado chegando no jardim e sendo estacionado: Jaiden estava voltando para casa. A contragosto, Roier checou as horas e suspirou.
— Acho que… Bobby tem que ir para a escola amanhã, né?
— Provavelmente.
Os dois se olharam e não disseram nada — não era preciso. Só voltaram a si quando ouviram uma leve batida na porta da varanda antes de Jaiden abri-la.
— Oie… Ah! Me desculpa, eu não imaginei que o Cellbit ainda estaria aqui.
— Está tudo bem — Cellbit respondeu, por mais que cada fibra do seu ser dissesse que não estava tudo bem — Eu devia… Devia ir embora. Certo?
— Certo — respondeu Roier, insatisfeito.
As crianças estavam no terceiro andar, um sótão reformado para virar um quarto, todo de Bobby, com uma porta no canto que provavelmente levava a um banheiro.
No cômodo, uma cama de casal coberta por um cobertor azul estampado com vários toads do Mario Bros tinha sua cabeceira encostada no centro de uma das paredes, acompanhada de um abajur do espaço sideral ao lado.
Virada para uma das janelas, uma televisão estava ligada, e em frente a ela, um tapete xadrez azul e branco, em que Bobby e Richas estavam sentados, perto de um console de videogame jogado e um sofá, no qual havia uma enorme pelúcia de urso pardo.
Na outra janela, havia flores, e em frente a ela estava um pequeno cavalete próximo de telas em branco envoltas em plástico e uma mesinha com pinceis e várias tintas. Pinturas infantis enchiam as paredes, e vários brinquedos estavam por todo o quarto, alguns em caixas, outros em prateleiras e alguns pelo chão.
— É hora de voltar, Richarlyson.
— Ahhh, não! Só mais um pouco.
— O Bobby tem aula amanhã, a gente precisa ir.
Não foi fácil convencer as crianças, mas Jaiden ajudou, soando muito confiante ao dizer que qualquer dia podiam repetir o encontro. Mas será que existiria outro dia como aquele?
Antes que eles saíssem, Roier segurou o braço de Cellbit.
— Quando eu posso te ver de novo?
A respiração do brasileiro deu uma vacilada.
— Quando você quiser.
— Que tal terça-feira?
— Perfeito. Onde?
— Onde é um bom lugar para você?
— Talvez na cafeteria, o Beanie’s?
Roier sorriu.
— Te vejo lá, então. Dez da manhã.
Cellbit olhou para trás várias vezes conforme se afastava do sobrado, e Roier, de pé em frente à porta de entrada, o observou indo embora.
No trem, enquanto voltavam, Richarlyson adormeceu com a cabeça deitada no colo do cuidador. Ali, viajando de volta ao Egg Carton , Cellbit sentiu-se melancólico pela passagem rápida de tempo e inabilidade de reviver momentos. De repente, todo o resto do mundo pareceu muito bobo a ele; quem liga para investigações? Às vezes pesadelos eram só pesadelos, e grandes empresas têm atitudes questionáveis. Tudo era distante, mas a criança dormindo em suas pernas era real , a sensação do metal frio do trem era real . Cellbit era real, um fato do qual se esquecia constantemente, porém Roier fazia-o lembrar disso. Roier fazia Cellbit se sentir real, e da melhor maneira possível.
Ele carregou Richarlyson semi-acordado o quanto pôde, mas seus braços eventualmente cansaram, e ele precisou se contentar em apenas segurar a mão da criança sonolenta pelo resto do percurso, caminhando ao seu lado. E então chegou ao hotel e lá vamos nós de novo.
Todos estavam no lobby quando os dois entraram. Bad, no instante em que viu Cellbit abrindo a porta da frente, imediatamente correu até o amigo.
— Cellbit! Cucurucho acabou de sair daqui!
— O quê?
O cérebro de Cellbit fora incapaz de processar aquelas palavras, que soaram estranhas aos seus ouvidos — sua mente permanecia no jardim com flores roxas, nos olhos castanhos de Roier.
— Ele estava aqui! Eu tentei entrar em contato com você, liguei para o Roier mas ele disse que você já tinha ido embora, e agora o Cucurucho já foi embora também.
— Esse negócio branco aí quis fazer umas perguntas para a gente — explicou Mike — Ele falou só umas coisas, com uma voz fina, e o resto ele escreveu. Toma.
Mike colocou um papel branco, sem linhas, não muito grande, em suas mãos. Cellbit desdobrou-o e encontrou uma caligrafia redonda, em letra bastão toda maiúscula, escrita com caneta preta grossa.
VEJO QUE VOCÊ COMEÇOU SEU PRÓPRIO NEGÓCIO. SE PLANEJA FICAR NA ILHA, SAIBA QUE O CENSUS OF COMMUNICATION, RESEARCH AND POWER DE HATCHETFIELD ESTÁ SEMPRE AQUI PARA AJUDÁ-LO COM QUALQUER COISA QUE PRECISAR.
:)
— A risada dele era um pouco estranha — comentou Felps — Mas ele parecia ser um cara legal. Acho que gosto dele.
Os momentos de uma hora atrás se tornaram, de repente, acinzentados como velhas memórias, totalmente inacessíveis, inalcançáveis, uma completa anomalia na vida de Cellbit. A tarde na sombra das árvores do quintal de Roier fazia parte de um lugar inteligível além do céu, mas a realidade da caverna em que vivia em seu dia a dia estava batendo em sua porta novamente.
Cellbit sentiu em sua mochila o peso do bloco de notas completamente intocado e esquecido o dia inteiro.
— Mike — ele disse, já tirando a mochila das costas e abrindo-a — Eu quero todos os detalhes.
Notes:
Considerem a música Velha Infância a trilha sonora deste capítulo ;)
Algumas curiosidades:
- A receita de hambúrguer do Roier é realmente como ele mesmo descreveu o hambúrguer perfeito dele neste vídeo.
- O avental de churrasco que o Roier usa é inspirado em uma cena de uma das mídias oficiais de Hatchetfield que inspiram esta fanfic, é possível ver aqui a belezura do avental.
Chapter 10: Acidente
Chapter Text
A sensação era agridoce. Era impossível tentar convencer sua mente de que a tarde que passara com Roier, Bobby e Richarlyson fora negativa em qualquer aspecto. Ela sequer parecia real agora, honestamente, e o único motivo pelo qual Cellbit sabia que não fora tudo um sonho, era porque tivera apenas pesadelos desde que chegara a Hatchetfield. Aliás, nem se lembrava de já ter tido qualquer sonho completamente positivo em sua vida inteira, só tinha sorte quando não sonhava com nada.
De um jeito ou de outro, ele perdera a possibilidade de ficar cara a cara com o urso branco em que tanto pensava. Sentia-se amargurado, e falar com os Theory Bros na reunião de segunda não foi suficiente para baixar sua ansiedade.
Encarava as teorias em sua parede, sentindo seus neurônios queimarem, quando Richarlyson entrou de forma estrondosa no quarto.
— O Dapper acabou de me contar que existe um parque de diversões aqui em Hatchetfield! Como a gente ainda não foi lá?
Cellbit piscou pela primeira vez em muito tempo, e sentiu seus olhos arderem.
— Eu não sabia que Hatchetfield tinha isso — admitiu Felps, que lia calmamente em sua cama — Achei que se existisse algo assim na cidade, o Bad teria nos levado naqueles dias em que ele agiu como nosso guia turístico.
— Eu quero ir lá, podemos ir amanhã?
Felps hesitou.
— Não sei, Richarlyson…
— Por favor! Dapper disse que a montanha-russa mais alta do centro-oeste dos Estados Unidos fica nesse parque, e que alguém até já morreu nesse brinquedo! Bom, a pessoa tinha um “problema de coração pré-existente”, mas mesmo assim.
Foi preciso desconversar um pouco o assunto. Quando Richarlyson saiu para voltar a brincar com o amigo, Felps suspirou, largando o livro aberto em sua barriga.
— A gente não tem grana o suficiente para ficar gastando com isso, né?
— De jeito nenhum — Cellbit respondeu, sem focar totalmente na conversa, ainda encarando as teorias.
— Imaginei…
Felps parecia pensativo.
— Eu vou dar um jeito de levar ele lá um dia, Cellbo. Em breve. Você vai ver.
— Você não está pensando em roubar um banco ou algo assim, né?
— Nah, já cansei de ter que fugir. Mas eu tenho um plano, confia em mim.
Cellbit ficou intrigado, mas não disse nada.
Na manhã seguinte, Richarlyson acordou empolgado, ainda falando do parque de diversões. Seus pais tiveram de passar um tempo considerável lhe explicando que não seria possível visitarem o lugar, que ele teria de esperar um pouco. A criança não ficou nada satisfeita.
Quando desceram até o salão do café da manhã, Richarlyson foi falar com Bad, na completa cara de pau.
— Tio Bad, você pode levar eu e o Dapper para aquele parque? Qual é o nome do lugar mesmo, Dapper?
— Watcher World?
— Isso, esse mesmo!
— Richas, para com isso! A gente te disse que outro dia a gente te leva! — Mike o censurou.
Bad respondeu em tom apologético.
— Tá tudo bem, não se preocupa. Eu te levaria lá, Richarlyson, mas eu não acho que ninguém vai conseguir ir para o Watcher World por um tempo.
— Por quê?!
— É preciso passar pela Floresta Witchwood para chegar ao parque, e eu acabei de ouvir no rádio que um avião caiu lá durante a madrugada.
— Um avião caiu em Hatchetfield? — Pac chocou-se.
— Aham, estou conversando agora mesmo com o meu amigo que trabalha na estação de rádio, ele consegue as informações em primeira mão e está me mantendo atualizado sobre a situação. Aparentemente, há sobreviventes, e eles parecem estar bem, mas foram levados ao hospital.
Cellbit não deu muita importância ao fato. Tomou seu café em silêncio, lembrando-se de que era terça-feira e que logo precisaria pegar o trem para encontrar Roier no Beanie’s, como os dois haviam marcado da última vez em que se viram. As investigações ainda ocupavam sua mente, porém sabia que uma caminhada por Hatchetfield nunca era má ideia para coletar informações, de qualquer jeito.
Aproveitando que ainda tinha tempo, ele voltou ao quarto para trabalhar mais um pouco antes de sair. Tinha acabado de pegar seu bloco de notas para anotar uma ideia quando seu colega de quarto se aproximou.
— Cellbit — Felps tocou-lhe o ombro — Eu vou dar uma saidinha, ok? Volto logo.
Ele só assentiu, distraído, sem desviar o olhar de sua anotação, enquanto o amigo se afastava. Assim que terminou seu raciocínio, checou o horário, e constatou que também precisava se arrumar para sair. Relutantemente, ele deixou a parede de teorias para trás.
Cellbit estava quase aprendendo o caminho até a cafeteria sem precisar do mapa. Assim que entrou no Beanie’s, quase imediatamente encontrou o olhar de Roier, e seus ombros relaxaram.
— Oi.
— Bom dia! Eu já pedi o seu café — Roier avisou enquanto Cellbit tirava a mochila das costas e sentava-se no banco em frente a ele — Espero que não tenha ficado frio.
Cellbit hesitou, preocupado que ele tivesse pedido algo de que não gostava, mas então tomou um gole: era café puro. Significava que Roier vinha prestando atenção, aprendendo sobre ele, tomando tempo para recordar do que gostava. Perceber isso cobriu o brasileiro de uma sensação boa, apesar de estranha.
— Está perfeito, obrigado.
— De nada. Mas e aí? É muito bom te ver de novo, como você está? — ele perguntou, segurando seu próprio copo. Cellbit, diante de suas próprias observações sobre o gosto de Roier, tinha quase certeza de que a bebida dele era café com leite e açúcar.
— Estou… Sobrevivendo. Muitas coisas vêm acontecendo e eu não sei como conectá-las umas às outras, é meio frustrante.
— Tem alguma coisa que eu possa fazer para ajudar?
Cellbit pensou sobre. Roier sabia de algumas coisas, não apenas por morar em Hatchetfield havia anos, mas também porque Foolish aparentemente havia citado a existência dos Theory Bros a ele, e portanto poderia ter citado outras coisas também. Simultaneamente, o medo genuíno no rosto de Bad Boy Halo quando, semanas antes, falou dos perigos de investigar a ilha, era uma visão que não saía da mente de Cellbit. Ficar muito envolvido, questionar demais, era tudo arriscado, a Federação tinha muito poder naquele lugar, o lugar que era o lar de Roier. Pense nos seus amigos, no seu filho. Pense na segurança deles, ok?
— Não se preocupa com isso.
— Tem certeza?
— Tudo bem, sério. Eu vou tomar conta disso quando voltar para o hotel. Mas por agora, como você tem andado? — Cellbit indagou, dando um gole no café.
— O mesmo de sempre. Mas nós ficamos bem chocados com a queda do avião, não foi longe da nossa casa.
— Ah, é. Eu tinha esquecido do acidente.
— As notícias não falam de outra coisa. Aqueles coitados dos sobreviventes devem estar querendo descansar e se recuperar depois do que aconteceu, mas os repórteres estão atrás deles como se fossem celebridades.
— Ainda bem que o nosso barco não veio parar na costa de Hatchetfield. Bom, teria sido impossível de qualquer forma, já que a ilha fica em um lago, mas mesmo assim. Eu teria odiado se isso tivesse acontecido com a gente quando chegamos, tanta atenção e perguntas e tudo o mais.
— Você teve muita sorte, mano, ao invés disso você veio de ônibus e logo de cara já conheceu o vendedor mais gostoso da cidade.
Cellbit abriu um sorrisinho, pensativo.
— É muito doido pensar no que teria acontecido se o Richarlyson não tivesse gostado tanto da sua loja. E daquela maldita capivara.
— Eu provavelmente estaria deitado no sofá de casa ouvindo Adele agora.
— Eu sinceramente não tenho ideia de onde eu estaria, é provável que eu já tivesse enlouquecido a essa altura. É estranho tentar pensar em Hatchetfield sem Roier.
O mexicano deu uma risadinha.
— Hm, Hoier.
— O que foi?
— Você e o Richas sempre me chamam disso.
— Ué, e não é o seu nome? — Cellbit ficou confuso.
— É Roier. Você pronuncia como Hoier, tipo “haha, Hoier”.
— Caramba, eu nunca tinha notado isso. Desculpa, vou começar a falar certo.
— Ah, não se preocupa com isso, eu não me incomodo.
— Não não não! De agora em diante, eu só vou te chamar de Roier. Rrrroier — Cellbit repetiu o nome com um pouco de dificuldade.
— É sério, não tem problema! Eu acho meio fofo o jeito como você fala.
Cellbit sentiu o rosto esquentar, e baixou a cabeça tentando esconder a vermelhidão. Roier parecia estar se divertindo.
— Mas, se você quiser, pode me chamar de algo mais fácil de pronunciar, como “guapo”. Significa “amigo” em espanhol.
— Eu sei que não é isso que significa! Você quer que eu te chame de bonito?
— Eu não ia achar ruim ouvir isso — ele deu de ombros, ainda sorrindo.
— Bom, você é bem guapo.
— Agradeço! E como se diz guapo em português? É “gatinho” ou algo assim? Acho que ouvi falar disso em algum lugar.
— Bom, você não está errado. “Gatinho” é uma forma de dizer isso, mas é meio informal, costuma ser num contexto…
— Que jeito nerd de responder ao invés de só falar “sim”. Mas, bueno, aí está. Você pode me chamar de guapo e eu posso te chamar de gatinho.
— Se você for me chamar de gatinho, eu tenho que te chamar de guapito.
— Tudo bem, os dois jeitos funcionam para mim.
Cellbit sentia-se envergonhado e lisonjeado. Os dois deixaram-se perder nos assuntos, na companhia, e era bom. Cucurucho poderia esperar uma horinha ou duas.
Já fazia algum tempo que estavam no Beanie’s quando alguém entrou lá , como vários outros já o tinham feito no tempo em que os dois estavam ali. Essa pessoa em específico, entretanto, atraiu o olhar de Roier e fez seu sorriso se desmanchar completamente, como se ele tivesse visto um fantasma.
— ¿Estás bien? — indagou Cellbit, levando um susto pela mudança repentina.
— Yo, hm…
Cellbit ia virar-se para olhar, mas Roier segurou sua mão e negou com a cabeça. Em seguida, se levantou e puxou Cellbit para fora da cafeteria, sem dizer nada, e só parou quando estavam a alguns metros de distância do estabelecimento.
— Perdón — pediu ele.
— Sem problema. O que aconteceu? Está tudo bem?
Roier lançou um olhar para o local do qual haviam saído.
— Eu acabei de ver alguém que eu realmente não queria ter visto.
— Tudo bem. Você quer ir para casa ou…?
— A gente pode só ir para o meu carro?
— Claro!
Roier tinha um carrinho preto de duas portas, que estava estacionado ali perto. Os dois se sentaram nos bancos e Cellbit sentiu-se revivendo o dia em que dirigiu o carro de Quackity até a casa dele, acompanhado de Roier, que no momento mostrava um olhar triste semelhante ao daquele dia.
— Desculpa, eu sei que foi do nada, mas é que o meu ex tinha acabado de entrar na cafeteria.
Cellbit sentiu uma pontada.
— Ah.
— … É, e as coisas entre nós não terminaram no melhor dos termos.
Cellbit, sem saber se estava fazendo a coisa certa ou não, estendeu o braço e segurou a mão dele. Roier não o impediu, e deu uma risada nervosa.
— Uau, eu não esperava que isso ainda fosse me afetar tanto assim. Ok.
— Você quer que eu te leve para algum lugar?
— Eu não sei… Bom, talvez a gente possa ir para a loja de souvenirs. Eu dirijo.
— Ok.
───────•••───────
A Starkid Gift Shop parecia estranha com seu interior escuro e a plaquinha virada para indicar Fechado. Roier destrancou a porta de vidro e acendeu as luzes, ainda sem liberar a entrada para o público, e guiou o amigo até o fundo da loja. Era uma área exclusiva para funcionários, mas aquela já não era a primeira vez em que Cellbit entrava lá.
Roier sentou-se em um sofazinho desgastado, fazendo o assento afundar um pouco. Cellbit acompanhou-o, sentando ao seu lado, sem dizer nada, sem saber o que dizer.
— É tão estranho reencontrar o Spreen, sabe? Agora que eu consigo ver tudo em retrospectiva.
Spreen, aquele nome novamente. Dessa vez, ele lembrava onde já ouvira falar dele antes de Quackity citá-lo na Casualonas: era uma das pessoas da lista de suspeitos criada pelos Theory Bros. Cellbit olhou Roier atentamente, uma pergunta pairando no ar.
— Por acaso ele… te maltratou?
— Essa seria uma forma de descrever as coisas.
O brasileiro já começou a sentir raiva daquele desconhecido, e tentou controlar a voz ao perguntar:
— O que ele fez com você?
— É uma história bem longa.
— Eu tenho tempo. Se o que você quiser for falar sobre isso, claro.
Roier olhava para baixo.
— Acho que eu nunca recontei a história toda desde o comecinho.
“A gente se conheceu no ensino médio, quando ele veio para Hatchetfield pelo intercâmbio. Ele é argentino, então ele se deu bem com o meu grupo de amigos, que tem muitos falantes de espanhol. Depois de se formar, ele decidiu ficar por aqui, não voltar para a Argentina, então a nossa amizade foi se fortalecendo, mas por um tempo eu não… Eu não estava afim de ter nada sério ou oficial com ninguém, digamos assim.”
“Mas aí, depois de alguns anos, as coisas mudaram entre nós. Eu reconheço que ele sempre foi uma pessoa muito difícil de se lidar e, olhando agora, acho que os sinais sempre estiveram ali. Mas eu estava tão apaixonado que eu ignorei muitas red flags, sabe? Então a gente começou a namorar.”
“Quando já fazia uns meses que a gente estava namorando, começamos a fazer grandes planos para comemorar nosso um ano. A gente ia sair de Hatchetfield, passar alguns dias em um hotel legal na cidade grande… Já tínhamos pensado em tudo. Mas quando chegou a hora de reservar o hotel, nós dois estávamos passando por uns problemas financeiros, e o Spreen tinha acabado de perder um bom dinheiro em apostas. Ele tinha um verdadeiro problema com isso, não sei se ele foi atrás de tratar esse vício.”
Eles estavam na casa de Roier, já era de noite. Ele havia levado Spreen para seu quarto antes de trazer o assunto à tona, torcendo para que Jaiden e, principalmente, Bobby, não escutassem a discussão que ele sabia ser iminente. Roier apresentou os fatos, as finanças, e concluiu:
— Lo mejor es dejar el viaje para otro momento, Spreen.
“Ele não gostou disso. Ele claramente estava em negação sobre a seriedade das nossas situações, mas eu também acredito que parte do problema tenha sido que ele odiava ouvir que ele não podia fazer alguma coisa.”
— ¡Verga, Roier, ya está todo listo, hemos estado planeando este puto viaje durante meses! ¡Incluso pasaremos en una mierda de restaurante mexicano solamente por causa de ti!
“Ele ficou muito irritado, e nós passamos um tempo nesse vai e vem. Essa acabou sendo uma das piores discussões que a gente teve, e olha que não era incomum a gente discutir. A Jaiden eventualmente entrou no quarto para checar se estava tudo bem, e o Spreen foi embora batendo o pé.”
“Depois disso, ele sumiu por alguns dias. Eu tentei ligar para ele, eu tentei perguntar dele para outras pessoas, mas nada. Eu fiquei mega chateado, óbvio, mas eu achava que ele só continuava irritadinho, seria a cara dele algo assim.”
“Então, passam uns dias. Aí, completamente do nada, ele apareceu na minha casa, parecendo super feliz e empolgado, e nem um pouco chateado. Mas eu estava.”
— ¿Spreen? ¿Que verga, donde estabas, pinche pendejo, eh? ¿Perdiste tu puto teléfono o algo así?
“Mas ele calou minha boca com um beijo, e depois ele me acalmou. O Spreen nunca foi uma pessoa amorosa, de jeito nenhum, então aquilo era estranho, mas não de um jeito ruim. E, no fim das contas, eu só estava feliz de ver ele de novo, sabe? Enfim, depois disso, ele entrou na minha casa e me puxou para o sofá para a gente sentar um do lado do outro, e aí, sorrindo, ele disse:”
— Tengo una sorpresa para tí.
“Ele tirou do bolso duas passagens de avião para uma cidade na California. Preciso pontuar aqui que, antes, a gente ia viajar de ônibus , e a gente ia para a cidade grande mais próxima daqui de Michigan mesmo , porque assim dava para gastar o nosso dinheiro limitado em outras coisas.”
“Por isso, eu só fiquei ainda mais confuso, e comecei a questionar. Ele tinha ganhado aquilo em apostas? Porque se sim, ele devia ter apostado um montão . Ele me disse que era mais ou menos isso, que ele conseguiu um bom negócio, e ele me garantiu que tudo para a viagem estava resolvido, e que nós íamos ficar em um hotel cinco estrelas na praia, e que eu não precisava me preocupar com gastos porque daria para cobrir tudo.”
— ¿Pero por qué no me llamaste todo este tiempo? ¿No podrías haber contestado tu teléfono?
— ¿Qué importa?
— Spreen, desapareciste por días después que peleamos, ¡yo estaba preocupado! Ya ni siquiera sabía si aún éramos novios, o si tu estabas bien…
“Por mais que Spreen estivesse longe de ser a pessoa mais paciente no mundo, ele costumava ser pelo menos razoável … Bom, não dessa vez. Eu vi ódio real nos olhos dele quando eu insisti nisso. Parece que eu estou inventando desculpas para ele, mas sério, ele realmente parecia diferente do Spreen que eu conhecia. Tudo o que eu sei é que, depois disso, as coisas escalaram muito rápido.”
“Olha só, o que eu vou dizer agora vai parecer irrelevante e aleatório, mas acompanha aqui comigo: o Spreen nunca gostou muito do meu cachorro, Firuflais, e isso era uma das coisas que mais me incomodava sobre ele. Naquela noite, enquanto eu repetia que queria mais transparência, ele do nada começou a olhar ao redor, franzindo a testa, como se ele ouvisse algo que eu não estava ouvindo. Então eu parei de discutir e perguntei:”
— ¿Spreen, estás bien?
Ele forçou um sorriso.
— Mira, resolveremos nuestros problemas en el viaje, ¿sí? Pero ahora, ¿dónde está tu perro?
— ¿Qué tiene que ver Firuflais con la conversación, wey?
— ¿No crees que el perro te calmará? Voy a buscarlo, ¿dónde está?
— ¡Deja el perro, Spreen, estoy hablando contigo!
“Eu comecei a ficar frustrado. A discussão de repente passou a ser sobre o cachorro, que eu me recusava a entregar a ele e será que a gente podia por favor voltar ao tópico principal?, mas o Spreen continuou nessa. Ele levantou e começou a procurar pelo Firuflais, então eu fiquei de pé também e corri atrás dele pela casa. O Spreen às vezes olhava para cima e ao redor dele, preocupado, como se ele estivesse enxergando alguma coisa que eu não via, e aí ele gritava para mim:”
— ¡DAME EL PUTO PERRO!
“Bom, eventualmente, e eu não sei se ele só ficou estressado por toda aquela gritaria, mas o Firuflais começou a latir no quintal dos fundos. Eu e o Spreen olhamos um para o outro por um momento e aí a gente correu, seguindo o som. Quando chegamos na cozinha, eu consegui alcançar o Spreen, e eu segurei o braço dele.”
— Spreen, ¿que vergas estás haciendo? ¡Basta!
“A expressão no rosto dele parecia mais desesperada do que nunca. Ele soltou o braço dele da minha mão… e me empurrou com toda a força no armário da cozinha, o que fez vários pratos e copos caírem e quebrarem ao meu redor e em mim.”
Cellbit estava em choque. Queria consolar seu companheiro tanto quanto queria matar Spreen, arrancar os braços que empurraram Roier e comê-los na frente daquele filho da puta enquanto ele chorava de dor e…
— Lembra quando eu contei aquela história sobre ter visitado uma casa mal-assombrada e ganhar a cicatriz na minha perna? — Roier finalmente olhou para Cellbit novamente — Foi assim que eu realmente arranjei a cicatriz. Cacos de vidro. Eu estava de shorts, um dos cacos foi parar na minha canela e ficou preso ali.
“Bom, depois de me empurrar, o Spreen correu até o cachorro. Eu levei algum tempo para conseguir me recuperar o suficiente para ficar de pé, mas eu precisava encontrar eles e eu pegar o Firuflais. Aí, quando eu cheguei na parte do quintal em que estava o meu cachorro, como eu temia, eu não encontrei nem ele nem o Spreen, sem contar que o carro do meu ex não estava mais estacionado na frente de casa. Eu corri tanto quanto eu era capaz naquela situação e fui até o telefone para ligar para o Spreen, mas ele não atendia, e eventualmente ele simplesmente desligou o celular. Eu realmente não sabia o que fazer, a Jaiden estava no trabalho e o Bobby estava na escola, graças a Deus, então eu liguei para o Vegetta e ele me levou ao hospital. Depois, ele ficou lá comigo, me fazendo companhia o tempo todo, sem ir embora.”
“Quando eu finalmente fui liberado do hospital, com a minha perna toda fodida, o Vegetta foi trazer o carro mais para perto da saída para que eu não tivesse que andar demais. Enquanto eu esperava, o Spreen apareceu: ele estava esperando por mim com um buquê de flores. Eu até tropecei quando o vi, e ele me segurou para eu não cair. Assim que eu saí dos braços dele, ele disse, em uma voz baixa e contida:”
— Roier, venía… Venía pedirte disculpas. Estoy muy impulsivo.
“Eu respirei fundo para me conter.”
— ¿Sí?
— La verdad es que me dejé llevar por la situación y… No sé que me estaba pasando. Los platos cayendo, ¿sabes que fue un accidente , sí?
— Claro.
— Te quiero dejar estas flores como regalo.
— Gracias, no las quiero. No te preocupes, Spreen, luego tendrás el viaje para distraerte. Disfrútala.
“O Spreen ficou me olhando. Acho que minha voz calma assustou ele mais do que se eu tivesse gritado.”
— ¿Vendrás conmigo?
— Spreen, ¿donde está mi perro?
— Voy a darte otro.
— ¿Dondé está Firuflais, hijo de puta?
“Ele ficou em silêncio. Eu não levantei a voz quando falei:”
— Exactamente. Escucha, cabrón: no quiero volver a verte, jamás. Si lo encuentro después de hoy, no estaré tan calmado cómo ahora. Si te veo, lo mato, hijo de puta, te lo juro. Déja a mí y a mi familia en paz.
— Eu acho que ele realmente me evita, ou talvez eu esteja dando crédito demais para ele, mas é uma cidade pequena, então é difícil não dar de cara com ele uma vez ou outra. Mas o meu cachorro, Firuflais… eu nunca mais vi de novo, não tenho ideia do que o Spreen fez com ele.
— Que filho da puta!
Roier fora afundando, encolhendo no sofá, e estava agora tão torto que quase deitava nele. Parecia cansado, um cansaço que não tinha nada a ver com falta de sono.
— Eu sabia que acabaria te contando essa história em algum momento, mas eu realmente não queria ter que ver o rosto dele de novo.
— Se eu soubesse dessa história lá no Beanie’s, você teria visto o rosto dele com um olho roxo e alguns dentes faltando.
Roier deu uma risadinha fraca antes de voltar ao tom sério, com o olhar baixo, cutucando as próprias unhas para manter-se ocupado.
— Quando eu falei com o Quackity naquele dia, a questão toda é que… eu e o Spreen, a gente tinha meio que o mesmo grupo de amigos antes, como eu te disse, e depois do que aconteceu comigo, todos pararam de falar com ele. Todos, menos o Quackity. Eu fiquei bem magoado. Todo mundo sabia que o Spreen tinha problemas de raiva, por mais que eu não ache que eles jamais imaginaram que chegaria ao ponto de me fazer qualquer mal, mas todos acreditaram em mim quando eu contei. E eles viram a merda da minha perna. E, mesmo assim, o Quackity e ele continuavam saindo juntos; Uma vez, os dois estavam rindo em um bar em que eu estava, e o Quackity olhou bem para a minha cara e depois voltou para o Spreen de novo como se nada tivesse acontecido. Pelo menos o Quackity jamais namoraria ele, não por falta de querer, mas porque até onde eu sei o Spreen teria nojo dele nesse sentido.
Roier continuou jogado na poltrona, pensativo. Cellbit falou:
— Desculpa por sugerir que você conversasse com o Quackity para me ajudar com a investigação…
— Tudo bem, aquilo foi… terapêutico, de certa forma. Tinha muitas coisas que eu queria dizer para o Quackity e nunca tinha dito antes, mas eu consegui fazer isso naquele dia. Além disso, eu também ouvi o lado dele, mesmo que eu ainda não tenha certeza se vou perdoá-lo. Ainda estou pensando sobre.
Roier segurou a mão de Cellbit e a apertou. Em troca, o brasileiro acariciou-lhe a mão cuidadosamente.
— Obrigado por confiar em mim para ser vulnerável.
A resposta de Roier não veio imediatamente.
— Eu só… queria conseguir seguir em frente, mas as memórias ainda me aterrorizam, por algum motivo.
— Essa é a questão com memórias ruins: elas deixam cicatrizes em você, e elas vêm à tona o tempo todo, sem que você queira.
Dizendo aquilo, Cellbit precisou forçar a própria mente a voltar para o presente, a focar em Roier, e não levá-lo de volta às próprias lembranças ruins.
— É. Perdoar e esquecer? Quanta merda — Roier disse.
───────•••───────
Horas depois, quando Roier precisava buscar seu filho na escola, ele não se importou de desviar o caminho para poder deixar Cellbit no hotel, para que ele não precisasse tomar o trem novamente.
O Egg Carton estava mais vazio do que o comum: Bad havia saído, provavelmente para também buscar seu filho na escola, e Felps não parecia ter voltado de seja lá o que tivesse ido fazer. No quarto, Richarlyson estava jogado na cama, deprimido, enquanto Pac e Mike limpavam o salão improvisado do cômodo ao lado.
— Cadê o Felps? — Cellbit perguntou, só para ter certeza.
— Não sei — a criança respondeu com a voz arrastada.
— O que foi? Está entediado?
— Também. Queria ir ao parque de diversões — ele falou, virado de barriga para cima, com a cabeça jogada para trás na ponta da cama, fazendo-o ver tudo de forma invertida.
— Já falamos sobre isso, Richarlyson. Ó, vamos ver se encontramos alguma coisa passando na TV para te distrair, que tal?
Cellbit pegou o controle e ligou a pequena televisão velha do quarto.
“Este é o Hatchetfield Action News com Dan and Donna.”
“Boa tarde, eu sou Donna Daggit.”
“E eu sou Dan Reynolds.”
“Hatchetfield acordou hoje com a chocante notícia de que um avião vindo de Paris caiu na Floresta Witchwood. Nossos repórteres vêm nos atualizando pelo decorrer do dia, e nossas fontes afirmam que, aparentemente, os médicos do Hospital St. Damian acreditam que os sobreviventes serão liberados ainda hoje. Tudo indica que eles passam bem!”
“Isso é ótimo!”
“E a população vem fazendo o que pode para ajudar as vítimas neste momento de necessidade. Um dos donos de hotel em Hatchetfield veio ao público dizendo que permitirá que os sobreviventes utilizem suas acomodações de graça por quanto tempo precisarem. Este é um verdadeiro senso de comunidade!”
“Aposto que as pessoas da nossa cidade vizinha, Clivesdale, nunca teriam essa gentileza em seus corações.”
— Será que esse dono de hotel é o tio Bad?! — a criança levantou, atenta e levemente mais animada.
— Não tenho ideia.
“Em outras notícias, dois estudantes da escola de ensino médio Hatchetfield High foram brutalmente assassinados.”
— Só sei que a gente está precisando encontrar uma locadora de filmes em Hatchetfield — Cellbit comentou, desligando a TV novamente.
No final da tarde, Richarlyson se provaria correto: repórteres do canal de notícia seguiram até o Egg Carton os recém-chegados, as celebridades do dia em Hatchetfield. O grupo de franceses causava uma impressão e tanto, mas a verdade é que só queriam poder descansar depois de um dia tão estressante, e foram para seus quartos o mais rápido que conseguiram.
Dapper veio contar para Richarlyson que um dos novos hóspedes era uma menininha que devia ter a idade deles, e os dois decidiram se juntar para fazer um desenho para ela, a fim de animá-la e consolá-la.
O sol se pôs completamente pouco depois disso. Cellbit achou estranho que Felps ainda não estava de volta, então, começando a preocupar-se um pouco, foi perguntar a Pac e Mike.
— Vi ele não.
— Só conversei com ele no café da manhã.
Ele desceu até a recepção para perguntar a Bad, contudo ele também não sabia de nada.
— Não, Cellbit, eu não vi ele passando pelo lobby.
Chegou a hora do jantar, e os franceses escolheram ficar em seus quartos. Cellbit nunca havia notado como as vozes pareciam ecoar pelas paredes do salão de refeições vazio, bem como os sons dos talheres batendo nos pratos.
Richarlyson precisara ser chamado várias vezes para ir jantar porque ele “já estava indo, estava ocupado brincando com Dapper”. Já sentado à mesa, com o prato de comida à sua frente, a criança olhou ao redor, deitou a cabeça de lado no braço apoiado na mesa e encarou o alimento, desanimado, comentando:
— O Felps sempre janta com a gente…
Depois de comerem, todos se recolheram em seus quartos e trancaram as portas para em breve ir dormir.
As horas iam passando. Nove da noite. Onze da noite. Duas da manhã. Cellbit permaneceu acordado, olhando com expectativa para a porta de entrada e pela janela. Mas Felps não aparecia.
Eventualmente, Richarlyson acordou. Depois, as vozes de Pac e Mike foram ouvidas no quarto ao lado. Um pouco mais tarde, uma conversa em francês soou pelos corredores brevemente, antes de ficar mais baixa e então sumir.
Cellbit lembrou-se da última coisa que o amigo lhe havia dito:
Eu vou dar uma saidinha, ok? Volto logo.
Mas Felps não voltou.
Chapter 11: Perdido
Notes:
(See the end of the chapter for notes.)
Chapter Text
Cellbit saiu da delegacia colérico e frustrado. Claro que não se dá para confiar na merda da polícia . Ele voltou ao carro de Bad, pisando forte apesar de sentir o estômago embrulhado e uma forte dor de cabeça. Ao entrar no veículo, bateu a porta com força o suficiente para que tivesse ouvido “Sua geladeira é vermelha?” se Bad fosse brasileiro. Ao invés disso, o dono do hotel apenas levantou o olhar do jornal, que tinha manchetes como “Entrevista exclusiva com um dos sobreviventes do acidente de avião, confira!”
— Nada?
— Eles nem fingiram se importar! Eu preenchi a porra da papelada que pediram e eles só jogaram em cima de uma pilha com várias outras.
Bad suspirou.
— Como dizem, “É Hatchetfield, pessoas somem todos os dias.”
— É, bom, isso não está me ajudando muito no momento.
— Foi mal, eu sei que você está chateado. Mas não vou te dar falsas esperanças: duvido que eles priorizem o Felps. A polícia tem coisas que considera mais urgentes no momento.
Cellbit socou a parte acima do porta-luvas do carro. Bad tinha uma expressão compadecida no rosto.
— Eu vou falar com o povo das Reuniões de Churrasco. Vamos te ajudar a achar o seu amigo.
Ele sabia que Bad estava sentindo dó dele, e Cellbit odiava, odiava aquele sentimento. Por mais positivas que fossem as intenções do amigo, aquela forma de dirigir-se a ele, como se visse um pobre coitado que precisa de cuidados, apenas irritava mais Cellbit.
— Me leva para o hotel. Eu vou refazer os passos do Felps.
───────•••───────
Pac e Mike estavam no terraço do Egg Carton . Um cliente havia acabado de sair da barbearia, então Mike, já sem compromisso, quis ir tomar um sol, e o amigo o acompanhou. Pac aproveitou o momento e reclamou sobre um problema que notara em sua prótese de perna favorita, então, no terraço, ele a havia tirado, e Mike trouxera a pochete de ferramentas para fazer alguns ajustes.
— Mike… Estou preocupado com o Felps.
Com a coluna arqueada e o rosto bem próximo à prótese em cima da mesa, Mike ajustou os óculos no rosto, sem desviar o olhar de seu trabalho.
— É. Sei lá, é a cara dele sumir, mas por dois dias inteiros? Se ainda estivessemos em casa tudo bem, mas por aqui…
— Sim. Eu só espero que ele volte logo e diga “Foi mal, galera, estava em busca do macarrão perfeito!”, ou algo assim.
Pouco depois do diálogo, eles ouviram passos e vozes, vindos das escadas que levavam ao terraço. Logo em seguida, três crianças subiram rapidamente: Dapper, Richarlyson, e uma menininha loira de boina, e todos do trio usavam asinhas vermelhas de borboleta nas costas, uma parte de algum tipo de fantasia de fada, aparentemente. A garota, a criança que sobrevivera ao acidente do avião, parecia estar começando a se soltar um pouco mais e a conseguir distrair-se, em grande parte graças aos seus novos amigos.
Pac, na mesa mais distante da entrada do terraço, virou a cabeça em direção ao som. Observou como eles pareciam empolgados, e Richas gritou para as escadas:
— Vem logo, tonton! Eu quero ver suas manobras de ninja!
Então, mais uma pessoa apareceu, caminhando muito mais devagar que as crianças: um homem com cabelo verde escuro, barba e óculos, usando uma camiseta branca de pacman e segurando uma espécie de estojo comprido. As crianças sentaram-se no chão como uma plateia, ansiosas, o que fez o desconhecido sorrir de leve e, ó, que sorriso fofo, Pac pensou. Com uma voz suave e carregada de sotaque, o moço disse em inglês:
— Estou indo, crianças, não se preocupem.
O homem francês notou a presença dos dois brasileiros, e então gritou para eles:
— Boa tarde! As crianças querem que eu mostre uma coisa a elas, estamos atrapalhando vocês?
— Não estão, de forma alguma! — Pac apressou-se em responder — Pode continuar!
O francês, então, abriu o estojo que segurava e tirou de lá um nunchaku, uma arma branca de artes marciais, consistindo em dois bastões pequenos conectados por uma corrente. As crianças exclamaram “ohh!” ao verem o objeto, e a empolgação deles pareceu alegrar e empolgar o homem.
— Não cheguem perto! — ele advertiu, dando alguns passos para trás.
Em seguida, começou a girar a arma de várias formas, às vezes trocando-a de mão, exibindo várias técnicas. Era realmente impressionante, e Pac assistiu fascinado, quase hipnotizado — o moço fazia aquilo parecer fácil. As crianças, mais perto dele, sorriam, apontavam, se cutucavam e comentavam.
Enfim, o homem fez uma manobra final, parando com o nunchaku embaixo do braço, e se curvou para sua plateia. As crianças aplaudiram de pé.
— Que da hora!
— Igual nos filmes!
— Você pode me ensinar, Etoiles? — a menina pediu, esperançosa, e ele riu.
— Eu posso tentar, Pomme, mas vamos ter que começar pelo básico. Tu dois être patient, ok?
Ai meu Deus, ele acabou de falar francês ao vivo na minha frente, Pac pensou, e instintivamente apoiou o cotovelo na mesa e cobriu o queixo e uma das bochechas com a palma da mão aberta, ocultando parte de seu sorrisinho. O moço lhe parecia adorável, tinha um jeito calmo, apesar de ter acabado de manusear uma arma.
Richarlyson veio até seus cuidadores.
— Vocês viram aquilo?! Quando o Etoiles disse que sabia um monte de coisa de arte marcial, a gente pediu para ele mostrar. Ele é incrível!
O homem de cabelos verdes, se aproximou da mesa dos brasileiros enquanto guardava seu nunchaku de volta no estojo.
— Olá! Vocês são os pais do Richas?
— Dois deles — a criança explicou — Eu tenho vários cuidadores. Tem também o Cellbit, ele passa bastante tempo no quarto, e aí tem o Felps, ele sai bastante. Espero que ele volte logo para poder conhecer você!
Pac sentiu uma pontada no coração ao perceber que Richarlyson não entendia a possível gravidade da situação de Felps. Porém não queria ter aquela conversa no momento, então ao invés de tocar no assunto delicado, falou com o francês.
— Enfim, aquela coisa que você fez, foi super legal! Gostei muito.
— Agradeço. E oh! Estou vendo que você tem bom gosto — ele falou, apontando para o moletom de Pac que, assim como a camiseta de Etoiles, tinha desenho de pacman.
— Sim, estamos combinando!
— Qual é o seu record no jogo?
— Eu… An… Eu não jogo muito pacman. Só uso o moletom porque meu nome é Pac.
— Ah! Ok.
Pac sentiu suas bochechas corando e desviou o olhar. Não queria deixar o assunto morrer, apesar da vergonha.
— Então, hm, você entende de artes marciais?
— Sim, sou faixa preta em kung fu e em taekwondo, mas eu também sei uma coisa ou outra sobre karatê.
— Caraca!
— Mas eu também gosto de, sabe, só relaxar.
— Então é tipo, você parece de boa mas na verdade poderia me matar? — Pac perguntou, sorrindo de um jeito meio besta.
— Ah, não, eu sou mais um cara da autodefesa. Na maioria das vezes.
Mike, que estava quieto e concentrado até então, entregou a prótese de volta a Pac.
— Aqui, arrumei — disse, e então virou-se para Etoiles e trocou para o inglês — Ei, mano, cabelo legal. Se algum dia você quiser ajuda retocando a tintura, ou até se você quiser fazer algo diferente nele, é só vir para a minha barbearia. Eu trabalho aqui mesmo, no meu quarto do Egg Carton Hotel.
Mike pegou um de seus cartões feitos à mão, com suas informações acompanhadas dos desenhos feitos por Richas: um bigode e uma tesoura. Etoiles aceitou o papel.
— Valeu, bro, bom saber que tem um lugar aqui para isso.
Etoiles guardou o cartão no bolso e checou seu relógio de pulso, o que o fez arregalar os olhos. Ele virou para trás, na direção em que, a alguns metros dali, a menina francesa brincava com Dapper.
— Pomme, as-tu déjà déjeuné?!
— Non…?
— Merde. Ok, gente, foi bom falar com vocês, mas eu preciso ir alimentar a criança agora, vejo vocês depois. Pomme, vem!
— Tchau, Etoiles! — Pac falou alto e acenou.
Ele os observou saindo e suspirou antes de encaixar a prótese de volta na perna. Mike o observou de canto de olho.
— Sério, Pac? Tão fácil assim?
— O quê? Como assim?
— Esse olho de cachorrinho para cima do cabelo de pepino ali. Eu sei que francês é uma língua bonita, mas porra! ‘cês só trocaram umas três palavras.
— Ai, Mike, me deixa! Não posso nem achar o moço charmoso? Me deixa ser sonhador.
Richas olhou para Pac, olhou na direção da saída, e então olhou de volta para ele.
— Tonton Etoiles, Pac? Sei não.
— Por que com o Cellbit e o vendedor da loja de souvenirs você até já planejou um casamento e eu não posso me interessar pelo francês? Ninguém me leva a sério.
— Não é isso, é só que eu não acho que daria certo entre vocês. Eu sinto.
Richarlyson se afastou deles, caminhando até Dapper. Pac suspirou mais uma vez.
— Eu estou destinado a morrer sozinho mesmo.
───────•••───────
Cellbit re-assistia pela vigésima vez a filmagem da câmera de segurança do lobby do hotel, para ver o último registro que tinham de Felps. No vídeo, ele saía sem levar nada consigo, e nada em sua postura indicava que algo poderia estar errado — não estava tenso e sua expressão era neutra.
Como havia sido exatamente a última interação que tivera com ele? Cellbit forçou a memória. Felps estava quieto durante o café, pensativo. Ele não leu nenhum de seus livros nem o jornal, então o que fez antes de sair…? Cellbit não se lembrava, estava focado na investigação, pensando em Cucurucho. Seu ombro, Felps, o havia tocado…
Eu vou dar uma saidinha, ok?
A voz de Felps ecoava em sua mente. Merda, Cellbit nem ao menos o respondera direito.
Volto logo.
— Cellbit?
Bad estava de pé ao seu lado, com aquele maldito olhar preocupado de novo.
— Posso te levar para um restaurante? Qualquer um que você preferir.
Os olhos azuis continuaram presos na filmagem de segurança.
— Não, estou de boa.
— É sério, Cellbit. Você não comeu nada o dia inteiro!
Cellbit escolheu não responder nada, ignorá-lo. Sua mente girava, pulando de pensamento em pensamento tão rápido que algumas coisas se embolavam. Era meio esmagador, e a dor de cabeça que vinha sentindo o dia todo só piorava ainda mais a cada instante.
Enquanto isso, a preocupação de Bad só crescia, sem que ele soubesse o que poderia fazer pelo amigo. Eventualmente, não vendo outra opção, ele fez alguns sanduíches, como os que havia preparado para si e para Dapper no almoço, e deixou um prato ao lado de Cellbit, esperando que a praticidade de não precisar sair dali ao menos o fizesse se alimentar, pelo amor de Deus.
Mas Bad estava completamente errado. Cellbit não tinha apetite nenhum, muito pelo contrário: seu estômago ainda parecia revirar de nervosismo, como estava havia horas. Ele levantou-se, andou de um lado para o outro e seguiu os passos de Felps, porém as imagens só mostravam o que acontecera no interior do lobby. Eram poucos segundos, apenas Felps caminhando até a saída. Sem mais nenhuma referência, era impossível saber qual caminho o amigo havia tomado assim que se viu nas ruas de Hatchetfield.
Percebendo que não chegaria a lugar nenhum, e com as memórias e ideias o sufocando, Cellbit subiu até o quarto que compartilhava com o desaparecido. Àquela altura, o mundo todo parecia desfocado e em câmera lenta. Precisava checar as malas de Felps, procurar algo, alguma indicação de onde ele poderia ter ido.
Cellbit revirou as bagagens e armários no quarto até parecer que um furacão havia passado por lá. Ele sentou-se na cama, as mãos passando por seus cabelos desesperadamente. A voz de Felps ecoava em sua mente sem parar.
Vou dar uma saidinha.
Cellbit abriu a gaveta ao lado da cama do amigo com força e quase a desencaixou do móvel. Dentre outras coisas, havia ali um papel branco, amassado. Desdobrando-o, ele reconheceu a caligrafia do que estava escrito ali…
EU POSSO TE AJUDAR QUANTO A ISSO
VOCÊ PODE SE INSCREVER PARA PARTICIPAR DA NOSSA PESQUISA DE CAMPO
EXCELENTE. VOCÊ SERÁ CONTATADO EM BREVE.
Cellbit releu aquelas palavras tantas vezes que as decorou. Sentiu como se peças de quebra cabeça se encaixassem em sua mente. Primeiro, lembrou de Mike falando:
“O Cucurucho falou só umas coisas, e o resto ele escreveu.”
E então, Felps.
“A gente não tem grana o suficiente para ficar gastando com isso, né? Eu vou dar um jeito de levar ele ao parque um dia, Cellbo. Em breve. Você vai ver.”
“Eu tenho um plano, confia em mim.”
Cellbit estava tremendo. Ele precisou correr até o banheiro, onde vomitou tudo o que tinha no estômago: café. Mas o papel continuava firme em sua mão, tão firme que suas unhas furaram as palmas. A parte lógica do seu cérebro gritava para que ele não manchasse uma evidência de sangue e suor, porém essa voz da razão não era alta o suficiente para dar-lhe atitude no estado semi-animalesco em que Cellbit se encontrava. Quando ele levantou a cabeça da privada, viu algo de relance — seria Cucurucho?
“A risada dele era um pouco estranha, mas ele parecia ser um cara legal. Acho que gosto dele.”
Ele se levantou tão rápido quanto era fisicamente possível para alguém em suas condições, e viu pontos pretos em sua visão. Cellbit quase desmaiou, mas aguentou firme e saiu do banheiro, tirando a faca do bolso.
“Eu vou dar um jeito de levar o Richarlyson ao parque um dia, Cellbo. Você vai ver.”
— APARECE, CUCURUCHO, SEU MERDA! — Cellbit gritou, sua voz soando rouca.
— Haha.
Cellbit se virou bruscamente ao ouvir a risada robótica. O urso branco estava ali, sentado na cama de Felps, rindo da sua cara , da sua incapacidade de fazer alguma coisa para ajudar seu amigo.
— FILHO DA PUTA!
Ele correu até a figura, imobilizou-o entre suas pernas e começou a esfaqueá-lo, extravasando seu ódio engarrafado.
— SEU URSO DESGRAÇADO, O QUE VOCÊ FEZ COM O MEU MELHOR AMIGO?! O QUE VOCÊ FEZ COM O FELPS?
O urso não respondia, só sorria. Seu sangue espirrava pelo ar para todo lado.
E então, alguém chutou a porta do quarto para abri-la.
— O que está acontecendo aqui?! — perguntaram, em inglês.
Cellbit se virou para olhar, a mão segurando a faca com força no ar, logo antes de mais um golpe. Em frente à porta, de olhos arregalados pela confusão, estava uma mulher de cabelo loiro comprido, usando roupas amarelas e um chapéu colorido com hélice.
— Por que você está esfaqueando um travesseiro? — ela falou novamente. Dessa vez, Cellbit reparou em seu sotaque, o qual indicava que a língua materna dela não podia ser inglês.
— Mas o q…?
Ele olhou para baixo e viu o travesseiro branco de Felps destruído, as penas espalhadas ao seu redor, algumas ainda pairando no ar.
Bad correu até a porta e parou ao lado da mulher, parecendo ainda mais confuso e chocado do que ela.
— Cellbit, mas o que carambolas é isso?!
A faca escorregou da mão do brasileiro. Seu peito subia e descia rapidamente, seus ouvidos zuniam, e tudo parecia girar ao seu redor.
— Eu ouvi gritos e fiquei preocupada — disse a mulher, sua voz soando longe.
— Peço desculpas pelo distúrbio — o tom apologético de Bad ecoou, ainda mais distante. E então, o brasileiro desmaiou.
───────•••───────
Cellbit piscou devagar, sentindo que sua cabeça estava prestes a explodir. Vários rostos preocupados e embaçados o encaravam. Depois de alguns instantes, ele enfim pôde discerni-los: Bad Boy Halo, Pac, Mike e, na ponta da cama, Felps ? Não, obviamente não era ele, sequer se parecia com ele; era Richarlyson, vestido de um jeito estranho, se mexendo bruscamente ao vê-lo acordando.
— Bom dia, Bela Adormecida — disse Mike.
Ele tentou se sentar na cama, agitado, porém uma mão o segurou.
— Não não não! Você fica deitado aí — era a voz de Bad — Cellbit, acho que você está com febre.
— Não, não estou! — protestou, porque por mais que seu corpo gritasse por ajuda, alguém precisava socorrer Felps. Ele podia estar gritando por ajuda naquele exato momento, gritando de verdade.
— Fica aí, cabeça dura — Mike ajudou a segurá-lo, por mais que uma só pessoa já fosse suficiente para contê-lo no estado em que estava — Você destruiu o travesseiro do hotel do Bad, tem sorte dele gostar de você.
— Me solta você também, Mike! Eu estou bem, vocês que não entendem! Eu vi o Cucurucho, eu sei do que eu estou falando, eu não sou maluco!
Pac e Mike trocaram olhares.
— Eu estava segurando a prova. Onde está? Um papel branco, a letra do Cucurucho. Preciso achar, me deixa levantar, estava bem aqui!
Ele segurou a mão de Bad e a apertou com força.
— Bad, tinha um papelzinho. O Felps aceitou participar de alguma pesquisa da Federação, você precisa ligar para os Theory Bros!
O dono do hotel parecia dividido, em conflito sobre como se sentia sobre aquele relato.
— Eu prometo que vou falar com eles depois, ok? Mas você precisa descansar agora, estou falando sério. Você não dorme há sabe-se lá Deus quanto tempo.
Mas a mente de Cellbit estava incapaz de desligar. Richas, quieto até então, apenas observando, aproximou-se dele, vestindo — onde ele arranjou aquilo tudo? — um jaleco branco grande demais para ele, uma máscara descartável e um estetoscópio colorido falso, feito de plástico.
— Você precisa descansar, Cellbit. São ordens médicas.
— Richarlyson--
— Richarlyson não está aqui, eu sou um amigo dele. Meu nome é Dr. Charles, sou médico. Se você tentar sair da cama, vou ser obrigado a tirar seus órgãos para vender.
— Onde você ouviu falar disso?! — Pac arregalou os olhos. A criança o ignorou e continuou:
— Fica deitado, é uma ordem.
Cellbit não estava com tempo para aquilo, porém sabia que não conseguiria passar por eles todos sem ser barrado. Precisaria esperá-los se afastarem.
Richarlyson dormiu no quarto de Pac e Mike naquela noite. Bad fez canja de galinha e trouxe para Cellbit na cama, contudo ele mal tocou na sopa. Seus pensamentos continuavam, intensos, desorganizados, agitados e quase abstratos, o que só piorava sua enxaqueca. Ele sentia-se frustrado e furioso consigo mesmo diante do quanto estava debilitado.
Acordado na calada da noite, Cellbit, sem aguentar mais, decidiu tomar sua oportunidade. Ele ficou de pé, o que lhe trouxe tontura imediata, todavia aquilo não ia pará-lo. Vestiu três blusas, tentando cessar o frio que ia até seus ossos, e pegou a mochila que parecia ainda mais pesada do que de costume. Ignorou a tremedeira que notou em sua mão quando a estendeu para abrir a porta, e estava pronto para ir atrás de Felps, quando…
— Ei ei ei!
Ao lado da saída do quarto, um homem de cabelo verde o barrou.
— Quem é você? — Cellbit indagou, confuso.
O moço ajustou os óculos no rosto e pegou um papel em seu bolso; era possível notar de relance que parecia ter ali uma mensagem escrita à mão em português. Ele leu com alguma dificuldade, evidenciando que não falava o idioma de fato.
— Você non pode sair. Estou aqui para garantir que non vai tentar fugir. Mike pediu para eu te dizer “Vai descansar, arr… arrombado?, você está quase morrendo aí.”
Cellbit revirou os olhos.
— Eu só preciso esticar as pernas.
— Eles me disseram que você inventaria desculpas — em inglês, seu sotaque era ainda mais forte e notável do que quando falava português.
— Diga a eles para cuidarem da própria vida — ele se movimentou em direção às escadas, e foi imediatamente agarrado e imobilizado pelo homem.
— Eu não quero lutar contra um homem doente, bro. Volta para a cama.
Cellbit tentou lutar, de verdade. Mas era como colocar um pintinho em um ringue contra um tigre, chegava a ser patético. O homem de cabelos verdes o segurou pelo tronco e o colocou no ombro, para carregá-lo de volta ao quarto como se carregasse um saco de batatas.
O brasileiro encarou a porta fechada, irritado. Ficou de pé de novo e, dessa vez, foi até a janela, para sair por lá. Sentia que estava um passo à frente, porém, é claro, ao tentar abrí-la, percebeu que estava trancada. Os desgraçados pensaram em tudo.
A noite foi longa e torturante. Cellbit tremia de frio, e se enrolar em vários cobertores não parecia ajudá-lo. De vez em quando, sentia uma onda de calor e começava a suar, então agarrava as cobertas com suas mãos fracas e jogava-as longe, somente para dali a alguns minutos, o frio voltar com tudo, intenso. Ele foi, sim, capaz de dormir, e ter sonhos abstratos dos quais se esquecia assim que seu sono era interrompido pela febre, como muitas vezes aconteceu ao decorrer de toda madrugada.
No dia seguinte, Cellbit não conseguia encontrar adjetivos para descrever o quanto se sentia horrível em todos os sentidos. Ao menos deixaram-no tomar café.
Estava na cama, refletindo sobre sua existência miserável, quando Pac bateu de leve na porta já aberta e entrou no quarto exibindo um pequeno sorriso.
— Você tem visita!
Cellbit imediatamente entendeu, e soube que eles estavam apelando.
— Não me diga que…
Roier entrou.
— Cellbo, o que aconteceu com você?!
Cellbit encarou o amigo brasileiro e balançou a cabeça. Golpe baixo para me manter aqui.
— Eu estou sendo tratado como uma criança doente — ele se direcionou ao recém-chegado.
— Você parece péssimo, gatinho.
— Eles levaram o Felps…
— “Eles” quem?
— Cucurucho…
Pac, ainda de pé em frente à porta, balançou negativamente a cabeça para a visita e chacoalhou a mão na horizontal perto do pescoço: Corta esse assunto.
— Você pode me contar depois, vamos ter tempo — ele delicadamente cobriu a mão de Cellbit com sua própria. Amargurado, o brasileiro cedeu.
— Você não está em horário de trabalho?
— Relaxa, meu amigo voltou das férias, eu deixei ele tomando conta da loja para poder te visitar. Eu nunca desperdiçaria uma oportunidade de te ver.
Óbvio que Cellbit amava a companhia de Roier, só que nem mesmo ele iria distraí-lo. O tempo todo, só pensava em Felps, no peso de sua ausência, no vazio do quarto sem sua presença.
Já sozinho de novo, ele olhou para a cama bagunçada ao seu lado, o colchão afundado sentindo a falta do corpo cuja forma adquirira. Cellbit precisava encontrar Felps, precisava. As palavras da carta sumida de Cucurucho pareciam permanentemente gravadas em seus olhos: “Você pode se inscrever para participar da nossa pesquisa de campo.”
Ele faria o que fosse preciso para encontrar seu melhor amigo.
Notes:
Olá! Eu não garanto que vou conseguir postar toda semana nas próximas semanas, porque estamos chegando ao fim do semestre, então eu tô atolada de coisa da faculdade. Mas eu não desisti de Hatchet Town, de forma alguma! Ainda tenho muitas ideias pra esta fic, e já planejei e escrevi várias coisas. Vou tentar manter algum tipo de coerência nas postagens, ok?
E vou só reiterar como comentários significam muito pra mim e sempre me incentivam!!
Chapter 12: Filhos
Summary:
Um capítulo meio deprimente
Notes:
(See the end of the chapter for notes.)
Chapter Text
Era dia de visita.
Cellbit ficou ansioso ao ouvir seu nome sendo chamado, e passou para a salinha em que conseguiria encontrá-lo. O alívio ao ver Felps foi enorme, e ele o abraçou com força. Sabia que, diante da proximidade entre os dois, os outros detentos provavelmente pensavam que eles deviam ser um casal, e não se importava, por mais errados que estivessem. Sabia também que havia imposto respeito o suficiente na prisão para não ser questionado diretamente e para que não mexessem com ele.
A gratidão nutrida pelo amigo era imensurável. Desde que Cellbit conseguira escapar do lugar em que conhecera Bad Boy Halo e voltara ao Brasil, Felps sempre o ajudava. E, quando Cellbit foi preso, descobriu que o amigo não havia desistido dele, e ainda o visitava toda semana.
— E o Pac e o Mike? Estão bem? — perguntou, desembrulhando a bolacha barata que Felps trouxera para ele. Era como um banquete perto da comida que costumava ter que encarar.
— Estão, sim. Eles reclamam muito do chefe, mas o trabalho dá para o gasto, considerando tudo.
Cellbit assentiu. Quando ele conheceu Pac e Mike na cadeia, pouco depois dele mesmo ter sido preso, não havia sido nem um pouco amigável com eles; fazia parte de suas técnicas para manter-se seguro, respeitável, até temido. Mas, com o tempo, começou a se dar bem com eles, e tornou-se amigo dos dois, o que por outro lado também significava que vê-los sendo liberados por seus crimes muito mais levianos, enquanto Cellbit ainda tinha uma grande sentença pela frente, fora como um soco na cara. Realmente ajudava a dar ainda mais perspectiva às coisas.
— Você está se comportando aqui dentro, né?
— Fazendo meu melhor — Cellbit respondeu, a boca cheia de bolacha — Acho que melhorei muito, mas minha reputação não vai durar para sempre desse jeito, Felps. E ainda tenho muitos anos pela frente neste purgatório.
— Era sobre isso mesmo que eu queria falar com você. Pac e Mike são muito gratos pela segurança que você proporcionou a eles no tempo em que ficaram aqui e, além disso, você é um grande amigo meu, como sabe. Nós estamos juntando dinheiro e… Acho que logo vamos conseguir pagar a fiança.
Cellbit parou em meio à mastigação. Ele encarou Felps, achando que devia ter entendido errado.
— Vocês… Vão me tirar daqui?
Felps sorriu.
— Já estamos trabalhando nisso.
Em choque, sentindo-se esperançoso talvez pela primeira vez na vida, Cellbit largou a comida e abraçou o amigo novamente. Felps se adiantou:
— Você vai ter que fazer terapia, ok? E se manter na linha. Estou falando sério, Cellbit!
O amigo estava completamente sem palavras. Cellbit não soubera aproveitar a liberdade no pouco tempo em que a teve, então naquele momento, jurou para si mesmo que iria fazer de tudo para poder desfrutá-la assim que pudesse prová-la novamente.
Ao fim indescritivelmente doloroso da visita, Cellbit passou pelo pátio antes de voltar à sua cela e, olhando para o céu, pensou como, em breve, não teria hora contada para observá-lo.
Anos mais tarde, pela janela do Egg Carton Hotel, Cellbit encarava o céu novamente, céu este separado do de antes por milhares de quilômetros e pela distância do tempo. E Felps não estava lá com ele como deveria.
Cellbit não tirou o amigo da cabeça nem por um instante; nos dias em que ficou de cama, ficou planejando tudo o que poderia fazer. Então, quando começou a se recuperar, porém ainda era mantido em cativeiro no hotel por seus amigos irritantemente preocupados, ele reproduziu, da forma mais parecida possível, a conversa de Cucurucho com Felps, já que o papel oficial fora perdido — e sabia que aquilo não era coincidência. Ele rabiscou desenhos do urso branco e de Felps, analisou todas as informações que tinha para tentar descobrir o que poderia ser a pesquisa de campo da CCRP da qual o amigo aceitara participar…
Quando a segunda-feira finalmente chegou, os Theory Bros realmente não queriam deixar Cellbit participar da reunião; aliás, eles até mesmo pensaram em cancelá-la de uma vez. Iam utilizar o tempo livre na segunda-feira à noite para conversarem sobre suas preocupações com Cellbit, mas já que ele insistia tanto em juntar-se a eles, pensaram que seria melhor desmarcar o encontro mesmo e debater sobre o assunto em outro momento.
Só que Cellbit não desistiria tão facilmente. Ele perturbou Bad por horas, até mesmo ameaçando ir de táxi à casa de Maximus quando Etoiles, o homem de cabelos verdes que vinha agindo como seu segurança particular indesejado, estivesse dormindo. Sua teimosia foi tamanha, que o amigo acabou cedendo; a reunião estava de pé.
Bad dirigiu de cara fechada até a casinha de madeira de Max. Quando a dupla do Egg Carton entrou na salinha secreta de sempre, os outros dois membros já estavam lá. Os cabelos de Foolish, pintados de vermelho por Mike havia menos de duas semanas, já estavam quase completamente desbotados e de volta à cor dourada natural, enquanto Maximus parecia o mesmo de sempre, talvez um pouco mais cansado do que de costume.
— Wow, Cellbit. Tem certeza de que está tudo bem aí com você? — foi a primeira coisa que Foolish disse.
Foolish julgar alguém, essa era nova; será que Cellbit parecia tanto assim ter acabado de ser cagado por alguém?
— Sim, eu estou me sentindo muito melhor. Mas eu preciso discutir algumas coisas com vocês. Senta aí, gente! — ele pediu quando os outros três só ficaram parados encarando-o.
Cellbit limpou a garganta e ficou de pé em frente à mesa de reunião.
— Como vocês três provavelmente já sabem a esta altura, meu amigo Felps foi pego pelo Cucurucho.
— Estamos sabendo, sim — Max respondeu, sem energia.
— Eu encontrei um papelzinho no nosso quarto, dentro de uma gaveta, com a caligrafia do Cucurucho, e eu sei que ele não fala muito, ele mais escreve para se comunicar. Então foi fácil deduzir que isso fazia parte da conversa que ele teve com o Felps, mas só a parte “dita” pelo Cucurucho.
— Desculpa, mas… — Foolish interrompeu, falando em um tom cético — Você não viu esse papelzinho ao mesmo tempo que você alucinou que o Cucurucho era um travesseiro?
— Foolish! — Bad o censurou, e então cochichou a ele — Seja mais delicado!
Cellbit manteve a postura.
— Bom, eu comecei a alucinar depois de ver o papel.
— Claro…
— E eu reli ele tantas vezes que eu lembro de cabeça o que dizia lá.
— Quanta coincidência.
— Pois é, Foolish, é quase como se isso fosse super importante para mim, algo que eu levo muito a sério.
— Eu sei que leva! Mas, Cellbit, cara… Às vezes a nossa mente nos engana. Acontece.
— Você realmente vai descartar tudo o que eu vi só porque eu estava doente?
— Não é assim, Cellbit — Bad interveio — É só que, o Foolish tem um bom ponto.
— Eu não acredito que o Bad Boy Halo está concordando com o Foolish pela primeira vez na vida, só para não acreditar em mim!
— Não! Só acompanha o raciocínio, ok? Eu vi que você estava mal o dia todo, sua cabeça já estava esquisita até quando eu te levei para a delegacia.
— Inacreditável… — Cellbit deu as costas a eles, desistindo. Foolish levantou-se da cadeira e exclamou:
— Dá para ver que você é um cara esperto, ok? Você claramente é. Mas todo mundo comete erros. E é realmente triste o que aconteceu com o seu amigo, ele parecia um cara legal, mas a gente está em Hatchetfield! Pe--
— Foolish, se você disser “Pessoas somem todos os dias”, eu juro por Deus que eu vou perder toda a sanidade que ainda me resta e partir para cima de você.
A sala ficou em silêncio por um instante. Foi Bad quem decidiu voltar a falar primeiro.
— Eu prometi para você que a gente te ajudaria na sua procura pelo Felps, mas… Temos que considerar a possibilidade de que o Cucurucho talvez não tenha nada a ver com o desaparecimento dele.
Cellbit não aguentou e saiu da sala. Ele estava acostumado a ser considerado “louco”, tudo bem, muitas pessoas não entendiam. Porém ele realmente estava começando a acreditar que os Theory Bros entenderiam. E lá estavam eles, duvidando da sua palavra.
Ele subiu pelo elevador de vidro e depois até a sala de Maximus, até sair da casa e sentar nas escadas da entrada. A noite de primavera era abafada, o verão estava quase chegando, e o céu de Hatchetfield era muito mais estrelado do que o de São Paulo. Tudo em que Cellbit pensava, todavia, era na angústia, na frustração, no ódio…
— Hola.
Maximus veio de dentro da casa.
— Se você veio aqui para me falar o quão insano eu sou, então pode ir dando o fora, Maximus.
— Posso falar com você? Eu não sei se você notou, mas eu fiquei quieto o tempo todo. Minha opinião sobre isso é um pouco diferente da do Bad e do Foolish.
Cellbit ficou em silêncio, e o espanhol entendeu aquilo como um convite para que continuasse a falar.
— Isso é complicado. Eu estou vendo que você não está muito bem no momento, e tudo bem. Eu realmente entendo o porquê. Acredite, eu entendo.
Ele desceu alguns degraus, ajustou a calça, e então sentou ao lado de Cellbit, ainda mantendo uma distância entre os dois.
— Eu vou te contar uma coisinha para você entender o contexto e ver o que eu quero dizer com isso. Alguns anos atrás, a Federação decidiu patrocinar um tipo de… Caridade. Eu não sei exatamente como mais descrever. Eles basicamente disseram que queriam encontrar casas para órfãos de Hatchetfield, não necessariamente aqui na cidade, mas eles queriam ajudá-los a se adaptarem à “vida normal”, entende? Para ajudá-los se ou quando eles fossem adotados.
“Então eles começaram a patrocinar esse ‘evento’ experimental, vamos chamar assim, que seria como o Foster Care, o Acolhimento Familiar, mas ao invés de várias crianças em uma mesma casa, seria o contrário: uma criança com mais de um cuidador, alternando de casa de dias em dias. Durante os meses em que aconteceria a experiência, a Federação ajudaria financeiramente as pessoas que se inscrevessem para isso, além de cobrir um sistema de saúde para as crianças e para os adultos.”
“A questão é: com o passar dos meses, a maioria desses pais se apegou às crianças, e eles queriam realmente adotá-los, oficialmente.”
Cellbit levou alguns segundos para perceber a bomba que acabara de ser jogada em seu colo.
— Você está me dizendo que os filhos do Bad e do Foolish foram dados a eles pela Federação?!
Max não o olhava nos olhos.
— Basicamente.
— E nenhum de vocês pensou em me contar?! Isso muda muito as coisas, sabia?
— Eles não tinham certeza sobre como você ia reagir, se você ia querer investigar isso ou algo assim, então eles preferiram deixar os filhos deles fora disso, e eu entendo. Já faz anos, isso não é tão relevante quanto vai soar para você. E vou deixar claro desde já: eu não estou dizendo isso para você por achar que eles estão do lado do Cucurucho!
Mesmo assim, Cellbit sentiu-se completamente traído. Primeiro, era tachado de louco pelos Theory Bros; depois, descobria que havia um enorme segredo bem debaixo do seu nariz, algo que ninguém sequer cogitou lhe informar. Uma informação que mudava muito todas as perspectivas sobre a cidade, os habitantes e a Federação. Com um gosto amargo na boca, ele indagou:
— Então por que você está me contando isso agora?
— Porque você precisa de contexto para entender o que eu vou te mostrar. Eu não estou do lado do Bad e do Foolish na discussão que vocês tiveram agora há pouco, porque de certa forma, eu entendo como você se sente sobre o Felps. Lembra quando o Quackity revelou que o Cucurucho possivelmente teria acesso à filha perdida dele?
— Claro que eu lembro.
— Vale. Eu quero te mostrar uma coisa.
Maximus levantou-se e começou a andar, sem olhar para trás. Cellbit hesitou, e então o seguiu.
O dono da casa o guiou até uma parte mais ao fundo do terreno, onde havia uma estátua cujos detalhes eram indistinguíveis de longe e no escuro. Cellbit já reparara nela antes, mas nunca se aproximara para ver o que era e enxergar os detalhes, achando que provavelmente seria intrusivo de sua parte fazê-lo. Agora, percebia que sua suposição estava corretíssima.
A estátua de pedra retratava um menininho ajoelhado em flores, de olhos fechados e com um sorriso que mostrava um dente faltando, usando na cabeça um chapéu colorido com hélice. Suas mãos seguravam um trompete, como se ele estivesse prestes a tocar o instrumento.
Era óbvio o que o amigo estava prestes a revelar. Sentindo um peso repentino no peito, Cellbit desviou o olhar. Maximus tirou os óculos escuros, se aproximou da estátua e a tocou de leve, como se fosse frágil, enquanto olhava o rosto infantil de pedra.
— Este é o meu pequeno Trumpet.
Ele sorriu ao proferir aquelas palavras, porém sua voz saiu tremida, entregando que ele segurava lágrimas. Max então ficou de joelhos, como o menino, sem conseguir tirar o olhar da estátua.
— Vou admitir, eu me inscrevi para a coisa do Acolhimento Familiar pelo dinheiro e pelo plano de saúde, eu nunca me enxerguei virando pai. Mas o Trumpet… ele era um niño tão bonzinho. Era impossível não se apaixonar por ele.
“Cada criança do programa da Federação teria dois pais, duas casas diferentes para viverem — ou, pelo menos, essa era a ideia inicial. O outro pai do Trumpet era um cara chamado Dan, que… Bom, ele é história para outro dia. O ponto é que, quando acabou o programa da Federação, nós estávamos ficando tão tristes com a ideia de devolvê-lo…”
— Trumpet… Tienes que saber que yo te quiero mucho. Sea donde sea que vayas… Espero que seas feliz.
— ¡Pero lo que quiero es ser tu hijo! Te amo papá, por favor no me dejes…
“Nós lutamos muito na justiça para garantir que ele seria oficialmente adotado por nós. Levou meses, mas no fim, conseguimos o que queríamos, ganhamos a custódia dele. Tendo ele como meu filho, eu vivi alguns dos melhores momentos da minha vida…”
— Tienes que dormir, pequeño. Ya es tarde.
Maximus apagou a luz e já estava prestes a sair do quarto.
— ¡Papá! — a vozinha o fez parar com a mão já na maçaneta — ¿Me puedes cantar una última vez antes de irte?
— Por supuesto, hijo mío — Max sorriu apesar do cansaço, e sentou-se na cama ao lado das pernas da criança.
Ele limpou a garganta antes de começar a cantar novamente a canção de sempre, que criara especificamente para Trumpet: ♫Tram tram tram tram, salta salta sin parar, salta salta sin parar si te gusta, salta salta sin parar, salta salta sin parar…♫
A música lhe soava tão boba e, mesmo assim, a criança a amava. Maximus deu um beijo de boa noite na testa do filho, e então saiu de vez do quarto.
— Olhando para trás, eu deveria ter passado mais tempo com ele e menos tempo trabalhando. Mas a gente nunca sabe o quanto nosso tempo é curto. O que aconteceu com o Trumpet foi totalmente do nada: um dia, ele estava com o outro pai dele, para passar o fim de semana acampando. Era a primeira vez que meu filho ia acampar… Mas os dois nunca voltaram dessa viagem.
Maximus parou por um instante, assombrado pelas memórias.
— Eles estão desaparecidos, esse é o status oficial. Não mortos. Corpos nunca foram encontrados.
Cellbit olhou o rosto jovem imortalizado na pedra. A imitação de um sorriso que provavelmente nunca mais seria visto.
— O Cucurucho me visitou logo depois que isso aconteceu. Eu perguntei se ele sabia onde o meu filho estava e ele respondeu “Classified”. Isso… isso foi o que me fez criar as “Reuniões de Churrasco”, inicialmente sozinho. Eu precisava entender a Federação, saber o que eles estavam escondendo.
Maximus enfim tirou a mão da estátua.
— Quando o Quackity disse… Que o Cucurucho ofereceu um acordo a ele, uma criança pela outra, eu senti que eu ia enlouquecer. Isso significa que talvez outras crianças estejam vivas, talvez a Federação saiba onde elas estão! Mas já faz mais de um ano, então será que eu deveria criar qualquer tipo de esperança? O ponto é, Cellbit.
O espanhol se aproximou dele e, sem jeito, tocou-lhe o ombro.
— Se você está me dizendo que o Cucurucho está com o Felps, eu acredito em você. Completamente. E eu realmente espero que você consiga encontrá-lo. Eu espero que você tenha a sorte que eu provavelmente não vou ter.
Sem saber o que dizer ao amigo, Cellbit segurou a mão dele que estava em seu ombro. Maximus abriu um sorriso triste.
— A reunião acabou por hoje, Cellbit, eu estou bem cansado. Você precisa descansar também, senão… Quem vai trazer o Felps de volta?
───────•••───────
O caminho de volta até o Egg Carton Hotel se deu em um silêncio que parecia barulhento, carregado de tensão. Assim que Bad estacionou, ele chamou o nome de Cellbit antes de deixá-lo sair do carro.
— Espera! Podemos… falar sobre o que aconteceu?
Não, Cellbit não queria diálogo com Bad naquele momento.
— Quer falar o quê?
— Talvez eu tenha… me expressado mal.
Diante da falta de resposta do amigo, o dono do hotel continuou:
— Eu também não gosto do Cucur… Do urso. Eu não confio nele de jeito nenhum. Eu só acho que ter tanta certeza de que ele é o motivo para o Felps ter desaparecido poderia atrapalhar a investigação, a gente tem que considerar tudo.
Cellbit tinha o olhar fixo em um ponto do carro, se forçando a respirar devagar, inspira pelo nariz, solta pela boca, como aprendera na terapia.
— Cellbit? Pode falar comigo?
— Eu acho que não tem nada a ser dito.
— Mas você entende o meu ponto, né?
— Ah, eu acho que eu realmente entendo o seu ponto, Bad Boy Halo.
O motorista franziu a testa.
— Como assim?
O brasilieiro não respondeu, no entanto, e saiu de dentro do veículo para caminhar com pressa até seu quarto.
Ele meio que esperava encontrar Felps ali, deitado, subindo o olhar de um livro antes de perguntá-lo o que havia acontecido. Cellbit quase podia ouvir como a indagação soaria em sua voz. Mas o quarto estava tão vazio que parecia assombrado, os olhos nas fotos colocadas na parede de teorias parecendo olhar o fundo de sua alma.
Cellbit sentou-se à escrivaninha, como já estava acostumado, e pegou seu bloquinho de anotações para começar: Lista de crianças adotadas pelo programa da Federação.
───────•••───────
Mike saiu para comprar algumas coisas para seu salão. Pac, enquanto isso, ficou descansando no quarto, e se surpreendeu ao ver que Richas queria fazer o mesmo.
Minutos depois, ao ouvir batidas na porta, a criança se escondeu e pediu para que ele fosse ver quem era. Pac, na pressa de atender logo as batidas incessantes, pegou suas muletas para caminhar até a porta, sem ter colocado sua prótese.
— Oi, tio Pac! — Dapper o cumprimentou com um sorriso de criança travessa assim que a porta foi aberta.
— O Richas está aí? — a menina ao lado dele, a francesa Pomme, perguntou, tentando dar uma olhadinha dentro do cômodo. Pac nunca deixava de se surpreender com a capacidade linguística daquelas crianças poliglotas com quem andava convivendo.
— Ah, hm…
Richarlyson estava perto dele, dentro do armário semi-aberto, e negou com a cabeça veementemente.
— Ele está tirando um cochilo, crianças, foi mal — Pac disse aos pequenos à porta.
Os dois pareceram decepcionados, porém seguiram caminho mesmo assim, e Pac fechou a porta antes de voltar a se sentar e observar o guarda-roupa.
— O que aconteceu, Richinhas? — ele indagou, em voz baixa.
— Nada — a voz veio abafada do armário, agora fechado.
Pac fechou os olhos, pensando. Sim, ele gostava da ideia de ser pai, havia anos que chegara à conclusão de que aquilo fazia parte de seus planos — ou ao menos, de seus sonhos. Porém tudo aconteceu tão de repente, ele ainda não achava que estava pronto. Sequer tinha qualquer modelo a ser seguido sobre como deveria agir! Sua situação já seria difícil para quem cresceu tendo uma família, para Pac então…
E, mesmo assim, lá estava ele, vendo aquela criança evidentemente dependente dele, precisando de sua ajuda. Não havia sido chamado diretamente de pai ainda, mas…
— Posso ir aí?
— Não sei.
O adulto ficou de pé novamente e se equilibrou para andar até o guarda-roupa sem as muletas, mantendo as mãos nas paredes para dar-lhe maior estabilidade. Chegando lá, ele deu leves batidinhas no móvel de madeira.
— Com licença, eu gostaria de falar com o Sr. Richarlyson.
— Ele não está em casa.
— Ah, não? E o Dr. Charles?
— Também não.
— Com quem eu posso falar então?
— Aqui só está o Emocharlyson.
— Ahh, entendi! Posso falar com ele então?
— Sei lá. Tanto faz.
Pac abriu a porta do armário, e encontrou a criança sentada ali, encolhida, abraçando as próprias pernas.
— Caramba, Emocharlyson, onde você conseguiu essa touquinha?
Ao invés da usual touquinha vermelha de vaca, com manchinhas brancas e olhos pretos, Richarlyson usava uma touca de vaca marrom, com manchas cinzas e olhos que pareciam julgadores.
— Roubei do Bobby — ele resmungou.
— Saquei. Posso sentar com você?
Richas deu de ombros. Pac empurrou os cabides, muitos deles vazios, e sentou na parte de madeira do guarda-roupa em cima das gavetas, se acomodando ali.
— Eu percebi que você não quis brincar com seus amigos hoje — Pac comentou, tentando soar casual, e recebeu o mesmo levantar de ombros calado que antes — Está tudo bem, tem dias em que a gente não quer fazer algumas coisas mesmo. Mas eu queria saber se aconteceu alguma coisa, sabe?
— Eles não são o problema — Richas murmurou, com o olhar baixo, puxando alguns fios soltos da costura da própria calça para manter as mãos ocupadas.
— Certo. Bom, então o que aconteceu? — Pac tocou o joelho da criança de leve.
Richarlyson enfrentava uma batalha interna, sem saber se deveria ou não falar sobre. Enfim, depois de alguns momentos, explicou:
— É o Felps.
— … Ah.
Pac precisou se segurar para não dar um tapa na própria testa. Aquilo era óbvio, claro que tinha a ver com o Felps, como ele não fizera aquela conexão?! Estava sem palavras, sem ideia nenhuma de como responder, porém diante da tensão do silêncio, acabou balbuciando:
— Bom, é, hm, o Felps…
— Ele não vai voltar, né?
— O quê? Vai, vai sim!
— Não mente para mim, Pac.
A criança agora o encarava com grandes olhos castanhos, tristes e marejados, e aquilo quebrou o coração de Pac.
— Richas, olha… A gente não tem certeza de nada, ok? Mas você não pode perder as esperanças assim! É o Felps, eu conheço ele faz tempo, ele sabe se virar muito bem!
— Eu sei que ele está bem — Richas disse como se afirmasse o óbvio, parecendo genuinamente acreditar naquilo. Pac ficou confuso.
— Oh, então…
— Eu espero que vocês não fiquem sem ver o amigo de vocês nunca mais por minha causa — a voz de Richarlyson saiu agora trêmula — Eu posso pedir para o tio Bad me esconder, e aí quem sabe o Felps acha que eu não estou mais com vocês e…
— Do que você está falando, Richarlyson?
Ele agora não conseguiu mais conter lágrimas.
— Não seria a primeira vez. Que alguém cansa de ficar comigo e quer me devolver.
Assim que a ficha caiu, Pac começou a chorar junto com o mais novo. Imediatamente, ele segurou seus ombros e falou em tom intenso:
— Richinhas, ninguém aqui vai te devolver para lugar nenhum, nunca. Você é nosso filho, entendeu? E o desaparecimento do Felps não tem nada a ver com ele não te querer, o Felps te adorava! Quer dizer, adora, o Felps te adora!
Pac o balançava enquanto falava, e então o puxou para um abraço apertado.
— Você… Está me apertando — Richas observou, com a voz levemente sufocada. O homem não relaxou os braços; Pac estava, agora, chorando intensamente e fungando o nariz.
— Vai ficar tudo bem Richinhas, vai ficar! — ele exclamou, muito para reforçar para si mesmo. E Richarlyson apenas aceitou o abraço apertado em silêncio, parecendo menos emocional e afetado do que seu pai estava.
Pac havia decidido: precisava garantir o bem estar de Richarlyson, dar-lhe o mundo se fosse preciso. Depois de tantos anos em que aquela criança não tivera nada, ele merecia cada luxo e capricho. Pac sentiu um forte instinto paterno naquele momento: faria qualquer coisa pelo seu filho.
Notes:
Eu tava sentindo que assim como o !Cellbit eu tava prestes a enlouquecer, então decidi me dar alguns minutos de descanso e postar Hatchet Town antes de voltar a estudar.
Sobre o capítulo:
- Eu assisti uns vídeo deprimentes sobre dia de visita na cadeia, tudo pra ajudar no realismo da cena, porque às vezes é sobre isso
-É super difícil achar o clipe dos últimos momentos do Maximus com o filho dele, mas eu consegui encontrar e foi de grande inspiração pra cena daqui. Caso vc esteja curioso, tá aqui, acho que dá pra entender de boa o espanholEnfim, muito obrigada a todos que vêm comentando e lendo minhas fanfics <3 ver isso tem sido o alívio do meu dia nesse fim de semestre tão estressante
Chapter 13: Watcher World
Summary:
Os brasileiros decidem visitar o parque de diversões de Hatchetfield, mas as coisas não parecem certas por lá. Um capítulo meio diferente dos outros e provavelmente o único assim.
Notes:
(See the end of the chapter for notes.)
Chapter Text
Pac se lembrava muito bem dos efeitos que o abandono tinha sobre a mente de uma criança, porque ele vivera aquilo em primeira mão, e ainda carregava as cicatrizes emocionais.
Ele lembrava de pensar que, se estava no abrigo, era porque sua família o deixou lá, e a primeira suposição de sua mente infantil foi de que o abandono aconteceu por não lhe quererem. Pac não sabia as condições reais de sua família de sangue, porém a ideia de não ser querido, não ser amado, o perseguiu por muitos e muitos anos, e ainda voltava de tempos em tempos.
Esses sentimentos voltaram à tona com tudo e assombraram Pac desde o momento em que vira Richarlyson chorando pelo medo do abandono. E agora que a criança estava sob seus cuidados, ele lhe daria tudo o que pudesse. Tudo o que ele jamais teve a chance de ter. E foi por isso que, de manhã, ele acordou determinado e anunciou:
— Vamos levar o Richas ao parque de diversões!
E foi um pouco decepcionante perceber que ele era o único realmente animado. Mike insistiu que tinha clientes na barbearia, que desmarcar de última hora seria péssimo para a reputação ainda não estabilizada do novo negócio; Richarlyson ainda estava um pouco apático, insistindo na touca de vaca marrom para ajudar a expressar seus sentimentos negativos; e Cellbit…
— Eu não posso largar toda a minha investigação para ir a um parque, Pac. A polícia não vai fazer nada e alguém precisa encontrar o Felps.
Pac entendia, entendia de verdade. Mas também discordava profundamente. E não ia continuar na passividade de sempre.
— O Richarlyson está DEPRIMIDO, Cellbit, você já olhou para ele? É do nosso FILHO que estamos falando, caramba!
— Exatamente. Eu estou trabalhando para trazer o Felps de volta para que ele possa ficar feliz de novo.
— Não não não, você não entende? Não percebe, Cellbit? O Richas está aqui e agora precisando da nossa atenção e cuidado! Você sabe que o Felps não vai ser encontrado hoje, de qualquer jeito, então que mal tem?
Cellbit sentiu o calor da raiva. Respirou fundo e controlou o tom de voz, não querendo piorar a discussão com Pac.
— Nem dá para ir nesse parque aí, o caminho está interditado por causa do avião caído!
— Eles já deram um jeito de liberar passagem pela estrada da floresta para não atrapalhar o fluxo, eu vi nas notícias.
— Não temos dinheiro!
— Eu gasto tudo o que tenho, pego emprestado, arranjo um emprego!
— Pac, esquece isso, ninguém liga para essa merda de parque!
— O Richas, o Richas liga! Você está tão preocupado em resolver isso que está deixando o momento presente passar, focando em ficar parado sem saber o que fazer ao invés de aproveitar o tempo que tem com o Richarlyson!
Cellbit se afastou do amigo antes que o ódio se tornasse explosivo. Pac não entendia, era preciso ficar tentando até finalmente achar Felps! Sem descansar!
Mesmo assim, as palavras ficaram na sua cabeça. “Aproveitar os momentos que tinha com Richarlyson”… As cenas da noite anterior ainda eram completamente vívidas em sua mente: Maximus, a estátua da criança, a dor. “Eu deveria ter passado mais tempo com ele e menos tempo trabalhando. Mas a gente nunca sabe o quanto nosso tempo é curto.”
───────•••───────
Duas horas depois, Pac, Richarlyson e Cellbit estavam entrando no ônibus quase vazio em direção ao parque de diversões de Hatchetfield. Felps vendera sua alma para poder levar a criança àquele lugar, então porra, que se foda.
O trio estava em um silêncio desconfortável. Pac e Mike discutiram por causa do passeio, e o cabeleireiro mesmo assim havia decidido não ir, deixando seu amigo evidentemente muito incomodado e, de certa forma, abalado. Richas mantinha-se quieto, porém tinha dificuldade de esconder que, agora que estavam de fato indo para o maldito parque, a empolgação começava a bater um pouquinho. Cellbit remoía sua própria existência, atento a tudo e em completo alerta, sua perna balançando em um ritmo constante, ansiosamente.
Eles passaram pelo local do bosque em que o avião caíra e a área estava cercada por fitas zebradas, com alguns trabalhadores sem rosto ainda vasculhando e guardando a cena. Cellbit manteve os olhos neles, grudado na janela do ônibus até perdê-los completamente de vista quando o se afastaram demais de lá.
Pouco depois, eles chegaram ao destino. Descendo do veículo de passeio, a primeira visão foi o portão de entrada, em cima do qual havia uma enorme placa de “Bem-vindo” com a imagem de Blinky, o mascote do parque Watcher World. Os brasileiros passaram por baixo daquele grande olho amarelo-alaranjado com íris roxa, e Cellbit sentiu uma sensação estranha. Sua mente parecia anormalmente nublada, semelhante a quando estava chegando em Hatchetfield pela primeira vez.
— Acho que estou tendo um déjà vu… — murmurou, olhando ao redor — Onde eu já vi algo assim antes…?
Na bilheteria, não havia fila. Um funcionário com um sorriso cheio de dentes exclamou animadamente:
— Olá, senhores! Bem-vindos ao Watcher World! Prontos para assistir todos os seus sonhos se tornarem realidade?
— Claro! — Pac respondeu, forçando um sorriso para tentar convencer a si mesmo de que estava animado — Pode nos dar três ingressos? Duas entradas inteiras e uma meia.
Ele nervosamente tirou as notas do bolso e contou-as com cautela, assistido de perto pelo funcionário ainda intensamente sorridente. Ao receber o pagamento, o moço da bilheteria entregou-lhes os ingressos.
— Aqui está! Podem entrar, e tenham um dia assistidor! — o funcionário olhou para Richas — E lembre-se, amiguinho: tome conta dos seus papais hoje. O Blinky está de olho em você!
O moço deu uma piscadela. Pac franziu a testa para ele e segurou as costas de Richas para tirá-lo de perto dali.
Dentro do parque, centenas de olhos esculpidos cobriam a loja de souvenirs e as barracas de comida perto da entrada.
— Nem chega perto da loja de souvenirs, Richarlyson — pediu Cellbit — Olha aquilo na vitrine: pelúcia do Blinky por $49,95 DÓLARES. Deus me livre.
— Este lugar é meio bizarro — Pac comentou baixinho, olhando ao redor.
Surpreendentemente, o lugar não estava tão vazio quanto eles imaginaram que estaria em uma terça-feira de manhã, principalmente depois de verem a bilheteria sem fila. Mas também, as férias de verão estavam muito próximas, um fator que provavelmente deveria ser considerado.
Os três iniciaram o processo de passar um tempão na fila para um brinquedo velho em que ficariam por menos de cinco minutos. Havia certa tensão no clima: a ausência dos outros dois pais pesando, Richarlyson ainda usando sua touca emo, Cellbit com uma aparência que deixava evidente suas muitas noites sem dormir, e Pac fingindo estar mais feliz do que de fato estava, tentando animar o grupo.
Richas eventualmente pousou os olhos no “passeio no trenzinho do Blinky”, e para lá eles foram. Ao entrarem, contudo, descobriram que era só um passeio por trilhos em miniatura em um veículo muito devagar, passando por um túnel com figuras de papelão e animatrônicos velhos e quebrados, enquanto uma música infantil meio distorcida pelos alto-falantes antigos tocava ao fundo. Foi realmente péssimo e, sinceramente, estava mais próximo de uma atração de terror do que qualquer outra coisa.
Pelo menos, a atração seguinte foi um pouco melhor. O barco viking era pequeno e rangia sempre que balançava, mas pelo menos entregava o mínimo do que prometia — e, afinal, não dava para esperar nada muito além disso. O problema foi que Pac saiu de lá esverdeado, passando muito mal pelo balanço constante. Sem conseguir disfarçar uma careta, ele pediu:
— Richas, podemos ir em algum brinquedo um pouco mais parado agora? Enquanto eu me recupero.
— Olha, tem um teatrinho ali — Cellbit apontou, querendo ajudar o amigo.
No chamado “Teatro de Watcher World”, um cartaz exibia a “Blinky’s Watch Party”, uma apresentação musical para crianças. Soava como tortura, mas era necessário naquele momento.
— Não sei… — disse Richas — Parece ser meio de bebezinho.
— Que nada, aqui, olha: recomendado para crianças a partir dos três anos. Não fala nada sobre limite de idade — Pac apontou para o cartaz.
No fim, conseguiram convencê-lo. A próxima atração começava em cinco minutos, então eles já foram entrando no pequeno teatro apertado, cheio de crianças barulhentas e pais cansados ocupando os velhos bancos. Os brasileiros conseguiram um lugar que dava boa visão do palco, e sentaram-se para esperar.
Quando as luzes foram escurecendo, a plateia foi aquietando e as coxias se abriram. Uma voz anunciou pelas caixas de som:
— Ahoy, criançada! Bem-vindos ao Blinky’s Watch Party, um espetáculo musical pela Cidade do Soninho, a Drowsy Town! Por favor silenciem seus celulares e, se forem tirar fotos, desliguem o flash; você não vai querer cegar o Blinky! Ele está sempre assistindo… Agora, sem mais delongas… Que o show comece!
O silêncio prevaleceu por mais alguns segundos depois daquilo. De repente, uma mulher, vestindo shorts e camisa branca comuns, tropeçou para a frente do palco, como se tivesse sido empurrada ali de dentro dos bastidores. Ela olhou para frente e colocou as mãos em frente aos olhos diante das fortes luzes na sua cara, e fez uma expressão confusa ao ver a plateia na sua frente.
— Que porra…? — ela murmurou, como para si mesma.
Cellbit ergueu uma sobrancelha. Não esperava muito daquele parque velho, mas um erro grande como aquele logo antes da apresentação deixava os funcionários parecendo realmente muito incompetentes e não preparados. Então, como se a mulher não estivesse ali, uma batida de música animada, como de um programa infantil, começou a tocar.
— Venham, sniggles! — disse uma voz dos bastidores.
De trás da plateia, surgiram várias pessoas vestindo camisetas roxas que diziam “Blinky”, usando algo semelhante a uma polaina peluda nos braços e tiaras com anteninhas na cabeça. Eles atravessaram o auditório, pulando ao som da batida, e uma das moças desse grupo, que usava maria-chiquinhas, sorriu de forma estranha e anunciou:
— E aí, pessoal, nós somos os sniggles! Não tenha medo.
Seguida por ela, outro dos artistas perguntou aos seus colegas de palco:
— Ei, sniggles, vocês sabem que horas são?
— É hora da Música do Blinky, claro!
A mulher normal do palco os observou horrorizada, enquanto os outros a cercaram e começaram a cantar e dançar. Ela, no entanto, apenas olhava de um para o outro, confusa.
A letra da canção era enjoativa, uma propaganda do parque disfarçada (mas nem tanto) de apresentação, e Cellbit apoiou a cabeça em uma das mãos, preparado para um tédio iminente. Se perguntou se havia entendido o “que porra” errado, porque logo percebeu a ideia do teatrinho ali sendo representado, e era tudo muito infantil mesmo: era fácil supor que a historinha mostraria a mulher confusa do começo aprendendo alguma lição sobre amizade e se juntando aos seus amigos felizes, ou algo assim.
Quando a música acabou, os dançarinos deram as mãos e se curvaram para a plateia. A mulher do começo, no entanto, havia caído no chão na frente deles em algum momento da performance, e se levantou naquele momento ainda parecendo assustadíssima. Ela se aproximou da plateia, falando com eles por cima dos aplausos.
— Licença! Licença, alguém pode me ajudar, por favor?!
Seu rosto mostrava verdadeira aflição. Ela gesticulava para o público, que continuava fazendo barulho para a música acabar.
— Pode me emprestar seu celular? — ela olhou ao redor e bradou visceralmente — POR QUE VOCÊS ESTÃO APLAUDINDO?!
A música de fundo ainda tocava, ninguém parava de aplaudir. Até chegar outro homem ao palco, barbado, também com a fantasia roxa caricata, e ele fez um gesto com a mão como um maestro que pede para encerrar a música. O silêncio se instaurou no mesmo instante.
— Por que você quer ir embora? — ele perguntou à moça.
Ela o mirou, os olhos arregalados.
— Por favor, senhor, eu só preciso sair daqui--
— Quer saber? Acho que chegou a hora, criançada!— ele sorriu para a plateia — É hora de caçar coelhinhos!
— O quê??
O homem deu uma passada rápida na coxia e voltou com uma grande marreta. Os outros artistas comemoram, YAY!, e o homem arrastou a marreta até o centro do palco, onde a moça o encarava, com a boca aberta em choque e confusão.
— Oh, você é um grande coelhinho! — exclamou o homem barbado. Então, ele desceu sua marreta na mulher, acertando-a na mandíbula com força, fazendo-a grunhir de dor. Dentes e sangue voaram de sua boca enquanto ela caía no chão, uma poça de sangue formando-se ao redor da sua cabeça. Cellbit franziu a testa, de queixo caído.
— O que que é isso?!
O teatro continuava em completo silêncio, e os artistas se olharam sem saber o que fazer. Um homem sem fantasia correu de dentro dos bastidores e checou a moça caída e imóvel.
— Emma? Emma, você está bem? Ugh, alguém chama o médico! Porra, Henry, olha o que você fez! Ela está perdendo pulso!
Cellbit se levantou da cadeira.
— O que está acontecendo aqui?!
Um segurança se aproximou dele e o fez sentar novamente.
— Senhor, por favor mantenha-se sentado durante a apresentação.
Um dos atores cutucou o homem que segurava a inconsciente moça, Emma.
— Tem algo que eu possa fazer para ajudar?
— Você pode calar a porra da boca!
As luzes escureceram e a coxia fechou. A voz que fizera o anúncio do início do show voltou a soar pelos auto-falantes:
— Oh-oh, criançada, o Blinky está com problemas nos bastidores! Pedimos que tenham paciência enquanto resolvemos algumas questões!
Alguns segundos depois, as luzes foram todas acesas novamente e uma baixa música ambiente soou: era o fim do show. As pessoas na plateia começaram a se levantar e ir embora.
— Que merda foi essa?! — Cellbit perguntou, assustado.
— É, achei meio chato — anunciou Richarlyson, dando de ombros — Acho que eu já estou velho demais para essas coisas.
— Do que você está falando, Richarlyson? O que aconteceu com aquela moça?
— Que moça? — ele perguntou, confuso.
Cellbit esfregou os próprios olhos. Pac estava cochilando, e acordou com uma cotovelada da criança.
— Oi, oi! — ele abriu os olhos rapidamente — Já acabou?
Eles começaram a sair do teatro. Cellbit olhou ao redor, confuso.
— Tudo bem aí? — Pac tocou-lhe o ombro.
— Eu… acho que também caí no sono — respondeu, ainda fortemente incomodado.
Os três caminharam, se afastando do teatro. Cellbit virou a cabeça para trás várias vezes para olhar aquele lugar. Ah, como precisava de um café.
— Olha, tem churros! — Richarlyson apontou para um carrinho que oferecia o alimento — Podemos comprar churros?
Pac comprimiu os lábios, pensando Ai, merda.
— Eu trouxe coisas do café da manhã do hotel, olha só! Tem… pão com manteiga! E frutas.
— Mas eu quero churros. Ou algodão doce. Ou bolo de funil, seja lá o que isso for.
Talvez eles pudessem pagar, pensaram. Ao se aproximarem, entretanto…
— Como assim um algodão doce custa cinquenta dólares?! — Cellbit indignou-se — Eu tenho certeza absoluta de que esse não é o preço, mesmo em um parque de diversões careiro que só existe para pegar dinheiro de turista!
O vendedor fez bico e falou para Richarlyson:
— Oh, não! Parece que os papais não querem comprar doce para você, amiguinho. Sinto muito.
— Qual é o seu problema? — Cellbit indagou, afastando a criança dali.
— Por que vocês não querem comprar doce pra mim?! — Richarlyson questionou, decepcionado.
— Richas, cinquenta dólares é dinheiro pra caramba — Cellbit explicou — É muito, muito absurdo eles quererem cobrar tudo isso.
— Mas cobram! E eu quero doce! — insistiu.
Eles tentaram outras barracas: todos davam-lhe preços estupidamente elevados, e Richas ficava cada vez mais e mais frustrado pelos “nãos” de seus cuidadores. Pac, eventualmente, tentou outra abordagem:
— Richinhas, olha… Essas coisas de parque, elas podem até parecer gostosas, mas na verdade são bem ruinzinhas — falou, soando nada convincente — E olha só, esta maçã aqui está… Só um pouquinho murcha!
— Eu não quero a comida xoxa do hotel, Pac!
Cellbit sentia-se revoltado pela situação, e Pac estava de coração partido.
— Depois… Depois a gente pede pro tio Bad comprar algodão doce pra você, pode ser?
Richas lançou-lhe uma expressão de ódio silencioso e cruzou os braços.
— Não estou mais com fome.
Cellbit já não aguentava mais aquele parque; sentia-se como se estivesse preso em um pesadelo, com elementos da realidade misturados com fatos que não faziam sentido. Ao mesmo tempo, tudo parecia real demais para cogitar que estava dormindo. A confusão de como nada fazia sentido apenas aumentava cada vez mais sua frustração.
Pac, apesar de suas angústias e sensações ruins, focava em se redimir com Richarlyson. Foi quando teve uma ideia:
— Richas, lembra que você tinha dito que queria ir naquele brinquedo do barquinho na trilha de água?
— Que vocês não me deixaram ir para eu não ficar andando por aí molhado — ele falou com desprezo.
— Ainda quer ir? Eu vou lá com você. Está calor, a roupa vai secar rápido.
A carranca de Richas oscilou.
— Taaaa, pode ser.
Os dois entraram na fila do Eye Drop, enquanto Cellbit esperaria por eles fora da fila. Ele se afastou dos dois e sentou em um banco, a sensação enervante de que algo estava errado apenas crescendo.
Ao lado do lugar em que Cellbit esperava, havia uma parede enfeitada com uma estação de trem coberta em olhos, tudo feito com papelão em 3D, para as pessoas tirarem fotos. Em cima, lia-se “Estação Drowsy Town”, e uma pessoa vestida do mascote do parque sentava-se no trem falso, a cabeça de sua fantasia um grande olho amarelado, ficou encarando-o ininterruptamente ao longe por longos minutos. Incomodado, o brasileiro decidiu se afastar e esperar em outro lugar.
Andando, foi parar em uma área de barracas com joguinhos e prêmios: havia tiro na garrafa, o teste de força com martelo, algo semelhante a boca do palhaço…
— O que você quer, querido?
Cellbit se virou e encontrou a alguns metros de si uma senhora velha e baixinha usando um capuz, em uma barraca de adivinhação do futuro. Ela olhava diretamente para o brasileiro e, por causa da quantidade de luzes roxas naquele parque, seus olhos pareciam ter essa mesma cor — um fenômeno que, ele notou, vinha acontecendo com muitas pessoas ali em Watcher World.
— Você está falando comigo?
A senhora exibiu um sorriso desdentado.
— Madame Iris sabe, Madame Iris vê tudo!
— Valeu, mas eu não quero. Só estou esperando minha família voltar de um brinquedo.
— Você não quer ouvir o que eu tenho a dizer? Por quê? Do que você tem medo, Cellbit?
Ele parou, atento — não havia revelado seu nome a ela.
— Desculpa, o quê?
— Talvez seja porque você tem medo que eu possa revelar como aquele charmoso vendedor da loja de souvenirs está só brincando com os seus sentimentos, e você não quer ouvir isso, quer? Ou você tem mais medo do seu passado?
Cellbit, se aproximou dela, e sua voz soou mais irritada do que ele pretendia demonstrar:
— Eu não tenho ideia do que você está falando.
— Você pretende contar algum dia para o Roier, o Bad, ou mesmo para o Richarlyson, o motivo pelo qual você e seus amigos fugiram do Brasil? Eles sabem como você conheceu o Pac e o Mike?
Cellbit não foi capaz de responder, as palavras morrendo em sua boca. A arma branca em seu bolso parecia pesar, sua mão coçando para pegá-lo.
— Você não pode fugir da verdade para sempre. O que você acha que eles vão pensar quando descobrirem sobre o Sr. Marrone? Você acha que o Roier ainda vai querer alguma coisa com você?
Foi um reflexo, honestamente. Os instintos de Cellbit foram mais rápidos que a lógica e, antes que percebesse, ele pegou a faca em seu bolso e a apontou para a cartomante. A velha riu.
— Você nunca muda, Cellbit. Você não consegue. Vá em frente, me esfaqueie. Tenho certeza de que o Richarlyson ia adorar isso.
Cellbit sentiu-se sendo observado: havia câmeras nas pupilas dos olhos que estavam espalhados por toda parte.
— Não se preocupe, querido, não é real. Nós só fazemos suposições gerais que poderiam ser verdade sobre a vida de qualquer um.
— Olha ele ali! Cellbit!
Ele virou para trás com um olhar maníaco. Pac e Richas se aproximavam dele, suas roupas e cabelos molhados. O céu, atrás deles, parecia estar tomando um tom arroxeado.
— Me dá sua bexiga? — Richarlyson pediu a ele.
Cellbit olhou para sua mão direita, e ela segurava uma bexiga roxa com gás hélio. Rapidamente ele levou a mão ao bolso, e sentiu que sua faca ainda estava lá, como se nunca tivesse sido tirada dali.
— Você quer um balão também, querido?
A velha desdentada segurava agora várias bexigas, e entregou uma para a criança. Cellbit piscou, confuso.
— Que cara é essa, Cellbit? — Richarlyson indagou.
Pac franziu a testa, preocupado com o amigo.
— Tudo bem aí?
— Acho que a gente devia ir embora. Chega de parques de diversão por hoje.
— Ah, não, eu quero ir no Tear Jerker! — protestou Richarlyson — Lembra? Montanha-russa mais alta da região.
— Richas, eu não estou me sentindo bem…
— Mas…
O mais novo não parecia tão decepcionado quanto indignado por ser contrariado.
— Achei que você ia me dar tudo o que pudesse, Pac. Tudo o que você jamais teve a chance de ter — ele falou, olhando no fundo dos olhos do dito cujo.
Aquilo era exatamente o que Pac havia prometido a si mesmo mais cedo, palavra por palavra, porém Richarlyson não havia ficado sabendo. Ele se sentiu assustado quase tanto quanto culpado.
— Eu… a gente…
— Eu vou lá! — a criança declarou, antes de sair correndo.
— Richarlyson!
Ele se perdeu na multidão. Os adultos tentaram seguir na direção dele, aflitos.
— O que deu nele?! — Cellbit perguntou enquanto os dois procuravam a criança — O Richas não está parecendo ele mesmo. Ele é teimoso, mas…
— Eu sei do que você está falando, senti isso também — Pac foi honesto — Mas ele estava triste ontem, o desaparecimento do Felps realmente afetou ele de muitas maneiras…
Pac parou de falar quando chegaram à maldita montanha-russa, o Tear Jerker. Por algum motivo, não havia fila nenhuma lá, como parecia haver das outras vezes em que passaram ali em frente durante o passeio. Richarlyson se aproximava do funcionário que cuidava das entradas e saídas do brinquedo.
— Oi, moço, eu quero ir aí.
— RICHAS!
Os cuidadores o alcançaram. Ao vê-los, a criança apenas revirou os olhos e continuou o assunto com o funcionário, que o liberou para passar do portãozinho de metal e medir sua altura na fita métrica que marcava o tamanho mínimo para entrar no brinquedo; Richarlyson não a alcançava.
— É, Richas, acho que não era para ser — Pac lamentou — Vem, vamos embora.
Só que o funcionário responsável pela atração sorriu de lado e ajeitou sua gravata borboleta.
— Quer saber de uma coisa, amiguinho? Eu posso abrir uma exceção para você
Ele imediatamente se animou de novo; seus pais, contudo, trocaram olhares.
— Isso é seguro?— Cellbit perguntou.
— Não se preocupe, senhor. Aqui no Watcher World, nós estamos sempre assistindo os nossos clientes.
As luzes trouxeram a ilusão de novo, a ilusão de que o funcionário tinha olhos roxos. Cellbit se prontificou:
— Não, eu não acho que será necessário. A gente devia ir embora.
Mas o homem se colocou entre eles e Richarlyson.
— Parece que alguém aqui está bem anti-diversão hoje! Vão ser só alguns minutos, senhor, e ele volta aqui para baixo.
Richarlyson correu até o carrinho sozinho, colocou o cinto de segurança, e logo em seguida o funcionário ativou o brinquedo. Cellbit o empurrou e correu, pulando em um dos carrinhos antes que acelerasse. Ele rapidamente colocou seu cinto também, e os dois começaram a subir. Pac, lá de baixo, os observava assustado, enquanto o funcionário sorria para eles.
— Richarlyson! — Cellbit gritou para ser ouvido, dois vagões atrás da criança — O que é que você está fazendo?!
Mas o mais novo não respondeu, apenas permaneceu quieto em seu banco. O céu parecia escurecer cada vez mais.
— Ei!
Quando a montanha russa chegou no ponto mais alto dos trilhos, os carrinhos fizeram sons estranhos e pararam. Cellbit se preparou para a adrenalina, preocupado se o cinto seguraria Richas direito. A descida, porém, não veio, e no lugar dela, a mesma voz de anúncio do show no teatro soou por um alto falante:
— Oh-oh, criançada, o Blinky está com problemas nos trilhos! Pedimos que tenham paciência enquanto resolvemos algumas questões!
Cellbit olhou para baixo: eles estavam a centro e trinta metros do chão.
— Richarlyson, você está bem?
Mas ele ainda não respondia. Cellbit hesitou por um segundo e então tirou seu cinto para ir até o carrinho da criança. Apenas não estava esperando que Richas também soltaria seu próprio cinto.
— RICHARLYSON!
Ele correu até o filho, e chegou lá quando o mais novo estava de pé no carrinho, olhando para baixo. A criança moveu uma perna, prestes a se jogar… Mas Cellbit o segurou a tempo.
— O que você está fazendo, Richarlyson?!
Cellbit finalmente conseguiu ver o rosto dele, pois até então só andava vendo a parte de trás de sua cabeça: Richarlyson estava com os olhos amarelo-alaranjado e as íris roxas, assim como do mascote de Watcher World. Foi então que o mais velho sentiu a mente clareando, acordando, ao lembrar onde já ouvira falar de olhos como aquele: a história de Quackity sobre o sumiço de Tilín. Tanto Tilín quanto a filha de Slime estavam sentadas com as colunas bem eretas e com olhares vazios em seus rostos. E seus olhos… Eles estavam brilhantes e laranjas, exatamente como a lua!”
Quando Richas falou, não soava como ele mesmo — a voz, o jeito de falar, os maneirismos, tudo mudado.
— Estou entregando-me. Eles estavam assistindo o tempo todo, eles sabem. Nenhum de vocês está em posição de cuidar de uma criança, Cellbit. Pense sobre seu passado. Qual referência você tem de como ser um bom pai?
— O Richarlyson jamais diria isso — Cellbit constatou, tentando soar convincente.
— Você não acredita.
— Não, eu não acredito.
As nuvens acima deles pareciam passar rapidamente pelo céu, escuro demais para aquela hora da tarde, e artificialmente roxo. Cellbit sentia-se como em seus pesadelos, e percebeu de repente que não era incomum a visão em seus sonhos que fosse torturado por uma criatura semelhante demais ao mascote daquele parque.
— Escuta aqui, seu olho roxo filho da puta. Sai de perto do meu filho. Pode brincar com a minha mente o quanto você quiser, mas com o Richarlyson não!
Richas abriu-lhe um enorme sorriso cheio de dentes, completamente macabro.
— Nós vamos nos encontrar novamente, Cellbit. Não há escapatória. E não importa onde você esteja, eles vão olhar de volta para você.
Então, o corpo da criança se contorceu e ele gritou, antes de ficar mole no braços do pai, desacordado. Cellbit deitou a cabeça no tórax do pequeno e ouviu: o coração ainda batia. Suspirando de alívio, porém ainda altamente estressado pela situação, ele olhou ao redor, pensando como caralhos eles poderiam sair dali.
Lá embaixo, Pac esperava por eles, com um dos mais fortes sentimentos de preocupação que já sentira na vida — e ele já passara por situações bem estressantes antes. Seu corpo inteiro relaxou um pouco ao ver Cellbit e Richarlyson se aproximando, os dois descendo em uma espécie de elevadorzinho com espaço para uma pessoa, as laterais com grades de metal, claramente uma saída em caso de emergências.
— O que foi isso? O que aconteceu? — Pac perguntou, correndo até eles.
— Vamos embora desta merda, Pac, agora.
— O Richas desmaiou? Espera, Cellbit!
Ele foi andando o mais rápido que pôde até a saída do parque, Pac o seguindo logo atrás. Todos os funcionários pareciam ter os olhos colados neles, e o segurança em frente às catracas da saída parou à frente deles.
— Já estão indo?
Pac levantou a cabeça para vê-lo e quase deu um pulo: o segurança tinha a exata aparência de alguém que ele e Cellbit conheciam muito bem… mas o Sr. Marrone estava morto! Sentiu-se congelar no lugar diante daquele rosto sangrento como da última vez que ele o vira, com a única diferença de que agora, sorria.
— Estamos indo, sim — Cellbit conseguiu responder, e passou pelo homem, seus ombros batendo nos dele. Pac encontrou coragem dentro de si para segui-los, e os dois atravessaram as catracas para fora do parque.
Quando Richarlyson abriu os olhos, eles estavam castanhos novamente. Cellbit o abraçou, aliviado, antes dos três apressadamente se afastarem de Watcher World.
Pac virou a cabeça uma última vez, e o segurança foi a última coisa que viu enquanto se afastava. Ele relembrou de como vinha achando que Cellbit poderia estar enlouquecendo, mas depois de tudo o que acabara de presenciar, Pac sentiu o tecido da realidade sendo puxado. Entendia o amigo agora: havia mesmo algo de errado em Hatchetfield.
Notes:
Espero que vocês tenham gostado, eu tenho uma verdadeira relação de amor e ódio com este capítulo, mas ele realmente é muito, muito importante pro plot.
- Eu constantemente faço referências às mídias de Hatchetfield, mas neste capítulo em específico foi ainda mais. Ele foi altamente inspirado na leitura do enredo de uma historinha feita pelos criadores originais de Hatchetfield (começa no 48:12). Um fã também animou essa história original, o que é bem legal!
- Outra coisa que me deu inspiração pra uma das cenas foi The Guy Who Didn’t Like Musicals, outra história original de Hatchetfield, que tá disponível no youtube de graça e é no geral uma das minhas coisas favoritas já feitas. Um fato interessante é que, alguns anos atrás, o Tubbo e Ramboo, um amigo dele e de outras pessoas do QSMP, reagiram a esse musical, e foi a primeira vez que eu ouvi falar dele antes do QSMP
Chapter 14: O que for preciso
Summary:
Aviso: Este capítulo tem descrições de violência e uma breve descrição superficial sobre um personagem machucando a si mesmo como uma reação de estresse.
Notes:
(See the end of the chapter for notes.)
Chapter Text
Cellbit não conseguia dormir.
Desta vez, não era por causa de pesadelos — pelo menos, não diretamente. Os acontecimentos enervantes do parque de diversões pareciam queimados em sua mente, que buscava por validações de sua experiência.
Eu realmente acredito que existam coisas aqui que são, como eu disse, meio sobrenaturais.
Você provavelmente vai pensar que somos loucos, Cellbit. Mas achamos que existem forças sobrenaturais agindo sobre Hatchetfield.
Cellbit viu, bem na sua frente, os olhos de Richarlyson ficaram roxos e amarelos como os da filha de Quackity antes de ela sumir, de acordo com a história que o professor contara. E a CCRP, eles sabiam como trazer Tilín de volta, então eles tinham no mínimo conhecimento a respeito do sobrenatural e como lidar com ele. Sem contar os trabalhadores sem rosto, cujas fotos saíam desfiguradas sem explicação lógica… O que caralhos essa Federação poderia estar fazendo com Felps em uma “pesquisa de campo”?!
A cabeça de Cellbit estava a milhão, os pensamentos borbulhando sem parar enquanto ele, deitado, encarava o teto do quarto escuro. Richarlyson estava ao seu lado, porque havia pedido para dormir na cama dele aquela noite, e o pai aceitara, óbvio. Os dois haviam se espremido na cama de solteiro e a criança caiu no sono rapidamente, ainda bem. Quando Cellbit decidiu levantar-se no meio da madrugada devido à sua agitação, ele precisou ser extremamente cuidadoso para não acordar o pequeno, e conseguiu sair com sucesso.
Cellbit começou a reler tudo o que tinha, para pensar nos fatos com novos olhos. Ao mesmo tempo que não podia guardar aquilo só para si, não sabia a quem recorrer. Andava com o pé bem atrás em relação a Bad desde a noite da última reunião dos Theory Bros, em que essencialmente fora taxado de louco logo antes de descobrir que muitos fatos haviam sido escondidos dele. Tampouco confiava tanto assim em Foolish agora, talvez Maximus… Mas não tinha certeza quanto a isso também. Não ainda.
Ele andou de um lado para o outro naquele quarto e nada fazia sentido. Sentiu-se arranhando a própria pele e mordendo seus braços, tudo para tentar extravasar a mais pura aflição. Uma das coisas que mais odiava em todo o mundo era sentir que não conseguia chegar à resposta de algo, que tinha tantas pistas na sua frente mas não sabia como juntá-las em algo coerente, ou ao menos expressar-se direito para ser compreendido.
Aos poucos, ele foi percebendo que a pequena ideia maluca que havia surgido em sua mente de repente talvez acabasse sendo algo a se considerar. Uma possibilidade de como conseguir o que queria.
As horas passaram lentamente naquela noite. Quando enfim começou a ser passado o café da manhã, Cellbit saiu do quarto. Bad lançou-lhe um daqueles olhares preocupados que o irritavam muito, e ele não conseguiu segurar uma grande virada de olho ao ouví-lo perguntando se estava tudo bem. Cellbit nem se deu ao trabalho de responder; engoliu o café em poucos goles e saiu, ignorando completamente a insistência do dono do hotel em repetir a pergunta.
Caminhando pelas ruas de Hatchetfield, meio alucinado, Cellbit mal percebeu o que estava fazendo, mas alguma parte de sua mente, consciente ou não, o levou até aquele lugar específico. Se fosse mesmo seguir com o plano que martelou sua mente durante a madrugada, precisava resolver algumas coisas antes de possivelmente se colocar em risco.
Ele entrou em um comércio vazio: era uma LAN house cujo desenho que acompanhava o logotipo mostrava um urso… Na recepção, havia um funcionário rabugento e cansado, com os olhos escondidos atrás de óculos escuros e com seus cabelos pretos cobertos por um boné da mesma cor, o qual era parte do uniforme do estabelecimento, como evidenciado pelas orelhas de urso enfeitando o chapéu e o nome da loja estampado ali.
— Ainda estamos fechados — disse apaticamente, em inglês, seu sotaque carregado.
Mesmo por trás dos óculos, foi possível vê-lo arregalando os olhos, pego de surpresa, quando o brasileiro o empurrou contra a parede com força e o prendeu ali.
— Você é o Spreen, não é? — perguntou entredentes.
— Por que você quer saber?! — ele respondeu, respirando rápido, parecendo muito mais irritado do que assustado.
— Acho que você vai me ajudar.
Cellbit o empurrou para levá-lo até alguma área mais ao fundo do estabelecimento, onde as chances de serem vistos por algum pedestre passando ali em frente seriam menores. Spreen, entretanto, percebeu uma brecha em meio aos movimentos e a aproveitou: conseguiu virar-se e chutar o abdômen do brasileiro.
Cellbit sentiu a adrenalina de uma briga, algo com que estava acostumado, por mais que não colocasse isso em ação havia tempos. Rapidamente, ele pegou sua faca e segurou o argentino por trás, posicionando a arma no pescoço dele.
— Não vai ser tão fácil assim.
— Você é louco, me solta! — Spreen tentava se debater.
— Ah, eu sou louco? EU SOU LOUCO?! NÃO FUI EU QUE EMPURREI MEU NAMORADO, SEU MERDA! — gritou, empurrando ele no chão.
Dessa vez, Spreen pareceu, sim, assustado, conforme a sombra daquele homem desconhecido crescia acima dele, os olhos azuis naquele rosto maníaco olhando diretamente para ele.
— É por isso que você está aqui? — Spreen questionou, caído no chão, se arrastando para trás cada vez mais — Para tentar se envolver em uma situação que não é da sua conta? Uma coisa que você não sabe de nada sobre?!
— Ah, é sim da minha conta — ele deu uma risada seca, breve, sem humor — Isso parou de ser sobre você agir de um jeito suspeito o suficiente para ir parar na lista de suspeitos no momento em que eu descobri o que você fez. Isso agora é pessoal.
— Lista de suspeitos?! Do que caralhos você está falando??
Cellbit deu-lhe um chute no rosto, fazendo com que Spreen cobrisse o nariz e a boca com as duas mãos.
— Você só vai falar quando eu deixar.
Spreen descobriu seu rosto e olhou as próprias mãos, para encontrá-las com respingos de sangue.
— Eu sei que tem tanto de errado com esta cidade… — o loiro desabafou, sua respiração rápida demais — Imagino que você saiba algumas coisas sobre o assunto. Eu estava disposto a ter uma conversa educada com você sobre isso, até eu descobrir que você é um covarde nojento. Agora, eu vou forçar essa informação para fora de você.
— Você não acha que eu me arrependo de como as coisas aconteceram com o Roier, porra?! — Spreen desesperou-se, meio encolhido contra a parede — Você não tem ideia de quantas vezes eu tentei entrar em contato com ele, para arrumar tudo. Eu escrevi cartas pedindo desculpas, mas eu sempre acabo queimando elas porque eu lembro que ele não queria me ver.
— Eu não estou interessado em ouvir suas desculpinhas, principalmente porque eu não posso dizer nada pelo Roier. Não foi por isso que eu vim. Como eu falei, eu vim para te interrogar. Eu quero que você me fale sobre as suas experiências com o sobrenatural em Hatchetfield.
— Quê?! Eu não sei do que você está falando…
Spreen mal havia terminado de falar quando foi interrompido por um soco no na mandíbula, que balançou sua cabeça o suficiente para fazer seus óculos escuros caírem no chão. Cellbit, então, pegou a gola de sua camiseta e o levantou, novamente colocando-o contra a parede, e dessa vez, tinha certeza que ninguém conseguiria vê-los lá de fora.
— Eu tenho certeza de que você sabe sim. Eu sei que você fez coisas suspeitas.
O argentino cuspiu nele, sujando a bochecha do outro de saliva sangrenta. Cellbit sacou sua faca novamente.
— ‘Cê já esqueceu o que eu tenho aqui comigo? Eu não estou de brincadeira aqui, arrombado. Fala sobre o sobrenatural!
— Se eu te falar, você vai achar que é mentira!
— Tenta. Eu já vi muitas coisas. Fala a verdade.
Com a faca perigosamente perto de seu rosto, Spreen fechou os olhos, pensando no que dizer e em como abordar seu relato.
— Você já foi para o Shopping Lakeside?
— Quê?
— Foi lá onde tudo começou…
— Hm, ok. Continua.
— Não dá, você vai me esfaquear! Vai parecer que eu tô zoando com a tua cara.
— Eu vou te esfaquear se você não falar logo! — Cellbit respondeu, apertando a faca no pescoço dele o suficiente para fazer um pequeno corte. A pressão na garganta fez Spreen tossir um pouco.
— OK, OK! — ele balbuciou enquanto tentava se recuperar. Então, falou com a voz um pouco rouca — Olha, por um tempo, quando eu ia para o Shopping Lakeside, eu sentia… Alguma coisa. Eu me sentia diferente, é difícil explicar. Era a energia do lugar, só isso. Até que… Um homem, vestido todo com roupa jeans, me ofereceu uma maçã verde.
Ele olhou para Cellbit, buscando em sua expressão alguma indicação sobre o quanto acreditava ou não em suas palavras.
— Tá, e? — ele o pressionou, impaciente. Spreen continuou:
— Eu aceitei a maçã, não sei o porquê. Eu nunca aceito comida de gente que eu não conheço, e foi tudo tão aleatório! Mas algo estava diferente… E, depois disso, as coisas mudaram. Começou a ser mais do que uma energia, eu comecei a ouvir uma voz também. E não tinha como ter droga no negócio, porque eu ouvia a voz todo dia, por muitos dias e semanas. Eu ainda ouço às vezes, e isso aconteceu meses atrás. Mas essa voz falava comigo, e ficava tipo, dizendo coisas como uma consciência. Daí, alguns dias depois de eu discutir com o Roier porque ele queria cancelar a nossa viagem, eu tive que ir ao shopping de novo, de manhã, porque eu tinha uma entrevista de emprego lá.
No shopping praticamente vazio, ainda não aberto ao público, Spreen passava em frente à loja de brinquedos Toy Zone — estava fechada, claro, e as luzes lá dentro todas apagadas. Bem naquele momento, Spreen sentiu um arrepio fortíssimo, conforme o mundo pareceu congelar ao seu redor e os ponteiros em seu relógio de pulso pararam. A televisão bem na frente na vitrine ligou sozinha, com o jingle de uma propaganda de brinquedo sendo exibido.
♫Um amiguinho
Que te faz rir!
Uma criatura aquática
De outro mundo
Um melhor amiguinho
Pra criançada ir fundo!♫
— Hola, Spreen.
Levando um susto, ele imediatamente virou a cabeça para frente, desviando a atenção da televisão. Diante dele estava uma figura semi-humanoide, da altura de uma pessoa bem alta, com mantos verdes e uma máscara aterrorizante de olhos esbugalhados e tentáculos.
“Ele era tipo… tipo um pulpo, sabe? O bicho com tentáculos. Isso, um polvo! E ele tinha aquela voz, a voz da minha nova consciência.”
— ¡¿O que você é?! — Spreen perguntou, assustado.
— Alguém que quer te ajudar. Acredito que você saiba disso.
De alguma forma, ele sabia. Sentia-se familiarizado com aquela presença, por mais ameaçadora que fosse.
“Ele começou a falar tantas coisas da minha vida… Eu não tenho ideia de como ele sabia aquilo tudo. Tudo o que eu estava sentindo, ele colocou em palavras. Eu me senti tão estranho, mas ele me entendia, e ele disse que poderia resolver tudo.”
— Você brigou com o seu namorado, ¿não é? ¿Ele não entende que você só quer o melhor para os dois?
— ¡Exactamente!
“Ele disse que confiava em mim e que gostava de mim. Então ele me fez uma oferta.”
— Vou te dar sua viagem e tudo o que você precisar… Por um preço. Um simples sacrifício. Se eu te der essas coisas, você vai ter que matar o cachorro do Roier.
“Tão simples. Só matar aquela porra de cachorro insuportável. Eu sabia que o Roier não ia gostar disso, mas a viagem ia arrumar o nosso relacionamento. Eu sabia disso, e o polvo também sabia, ele me contou. Alguns dias sozinhos, só nós dois, em um lugar bacana… Isso é tudo que eu e o Roier precisávamos.”
— Me parece um bom trato — Spreen concluiu — Mas você precisa me dar tudo da viagem. O hotel, a passagem de avião…
— Vou te dar tudo.
— Bueno. Me dá a minha parte agora e eu cumpro o resto.
— Será feito. Mas você deve saber que, se não cumprir…
A entidade levantou o braço e Spreen sentiu-se sendo puxado para algum lugar no além — um abismo de escuridão sem fim, um mar turbulento de energia psíquica, um vazio frio eterno. Sentiu-se não apenas morto, mas quase como se nunca tivesse estado vivo.
Até, poucos segundos depois, ser puxado de volta ao seu mundo. Tonto, Spreen agarrou-se à vitrine ao seu lado, tentando — e falhando — manter-se de pé, sentindo sua pressão baixando e uma falta de ar.
— Você tem exatamente vinte e quatro horas para matar o cachorro — declarou a voz retumbante.
— … Me parece correto — ele conseguiu balbuciar.
A criatura foi embora, e os ponteiros do relógio de pulso de Spreen voltaram a rodar. Ele se levantou, ainda enjoado e com frio. Olhando para a vitrine ao seu lado, a televisão estava desligada, porém uma pelúcia verde com tentáculos era exibida logo abaixo do aparelho, com uma plaquinha identificando-o como Tickle-Me Wiggly.
— Soa tão idiota, eu sei! — Spreen admitiu, rindo um pouco pelo desespero.
A única coisa ali que soava estúpida a Cellbit era o próprio Spreen, por ver lógica alguma no acordo que fez. Mas ele acreditava na história, ah, como acreditava… Se encaixava perfeitamente em tudo.
— Uma criatura verde chamada Wiggly… — assim como uma criatura roxa chamada Blinky.
— É verdade, eu juro!
— Eu sei que é. Mas você ainda é nojento — Cellbit concluiu, batendo as costas de Spreen contra a parede uma última vez e dando alguns passos para trás; havia terminado por ali. Porém o argentino, com a testa franzida em desespero, ainda queria se justificar.
— Eu ia matar o cachorro em segredo, eu não sou idiota! O problema foi que o Roier ficava fazendo perguntas! Como eu poderia dizer a verdade? E tudo só piorou quando eu comecei a ouvir a voz do polvo de novo, fazendo uma contagem regressiva das minhas vinte e quatro horas…
— El perro. Seis minutos — a voz disse em sua mente.
— Roier, te lo digo, simplemente dame el perro por amor de Dios y hablamos del viaje después.
— Spreen, ¡basta! — Roier pediu.
— Dame el perro, por favor. ¡Por favor!
— ¿Pero por qué quieres mi pinche perro?
— Cinco minutos y cuarenta y siete segundos — era a voz novamente.
— ¡Quiero el perro ya! Roier, por favor, te lo pido. Si no me das el perro, algo malo va a pasar…
— Eu não queria machucar o Roier, mas eu acabei precisando!
— O que você precisava era ser um ser humano minimamente decente para começar a tratar seu namorado bem. A viagem não teria resolvido seus problemas, mesmo se o seu plano estúpido tivesse funcionado.
Spreen não conseguiu esconder sua fúria.
— Você não sabe de porra nenhuma! Você se acha tão melhor que eu, mas você veio aqui me bater. Não é tão diferente assim.
Aquilo fez o sangue de Cellbit ferver o suficiente para ele voltar a agarrar a gola da camiseta do funcionário, que riu maliciosamente para ele, mostrando dentes manchados de sangue.
— Tá bravinho porque sabe que é verdade.
— Eu nunca machucaria o Roier!
— Será?
Cellbit agarrou o pescoço dele com as duas mãos e começou a apertá-lo, enforcando-o. Spreen se debateu e tentou arranhá-lo, mas ele não cedeu. Os olhos do funcionário se arregalaram em uma expressão agoniada, e o corte superficial que acabara de ser feito em seu pescoço voltou a sangrar diante da pressão feita na área.
Assistindo àquilo, Cellbit, por um momento, sentiu a antiga satisfação, como quando era jovem… Até perceber que estava voltando a um lugar muito sombrio de sua mente, o qual havia jurado deixar para trás — por Pac e Mike, por Roier, por Richarlyson, merda, por Felps!
Ele largou Spreen, cujo rosto foi voltando à cor normal conforme o ar voltava aos seus pulmões e ele tossia, caído no chão, uma das mãos segurando levemente o próprio pescoço machucado e sangrento. Cellbit deu as costas para ele e saiu da loja sem olhar para trás, limpando o sangue em suas mãos com um pano que levava no bolso.
Uma vez de volta às ruas de Hatchetfield, o brasileiro sentiu os olhos ardendo pela luz do sol depois de tantos minutos naquela escura LAN house. Sentia calor, e não sabia se era por causa da adrenalina da briga ou pelo contraste ao sair do ar condicionado. Uma coisa, no entanto, ele sabia: para onde iria a seguir.
───────•••───────
No trem, a caminho de seu destino, Cellbit estava próximo de duas jovens mulheres conversando alegremente entre si. Uma delas, sorrindo, fez um comentário sobre algum musical que assistira, e colocou uma mecha de seu longo cabelo atrás da orelha, enquanto a segunda lançava-lhe um olhar apaixonado. Quando ela olhou para Cellbit por um momento, entretanto, a que tinha cabelo mais curto e usava uma touca murmurou algo como “Ei, Alice, acho que talvez a gente devesse… sentar em outro lugar?”. Em resposta, a fã de musicais virou a cabeça para olhá-lo discretamente e fez cara de assustada, então o casal mudou de vagão. Cellbit mal notou ou se importou com a imagem que deveria estar passando.
Depois de sair da estação, andou apressadamente em direção à Starkid Gift Shop. Ao abrir a porta de vidro abruptamente, no entanto, o brasileiro ficou surpreso de encontrar não Roier, mas um moço que nunca havia visto antes, bem alto, de cabelos castanhos, usando óculos e vestindo o uniforme vermelho da loja.
— Cadê o Roier?!
— What?
Cellbit ajustou o idioma e a pronúncia. Roier, não Hoier.
— Onde está o Roier? — perguntou, dessa vez em inglês — Preciso falar com ele.
O rapaz o encarou com uma sobrancelha erguida, não escondendo o quanto o achou suspeito.
— Espere aqui, senhor — ele falou em um inglês com sotaque carregado e foi para os fundos da loja.
Roier arrumava o estoque distraidamente, ouvindo música com seus fones de ouvido conectados a um MP3 .
— Piensa que, por ti estaré esperando… Hasta que tú decidas regresar — ele cantarolava baixinho, acompanhando a letra da música lenta.
O outro funcionário aproximou-se dele e parou ao seu lado. Roier tirou o fone de seu ouvido para ouvi-lo.
— Fala, Mariana.
Ele cochichou:
— Roier, tem um maníaco querendo conversar com você, ¿o que eu digo a ele?
— ¿Qué? ¿Quem é, o Spreen?
— Não, mien, se fosse ele eu tinha falado. Não conheço o wey que está aí.
— Espera. ¿Ele tem olhos azuis?
— ¿Acho que sim? Mas eu não estava prestando atenção nisso, ele parece um animal selvagem.
Roier atravessou até a frente da loja, a área para clientes, e encontrou Cellbit andando de um lado para o outro.
— Gatinho, você está bem?
Ao ouvir a voz dele, Cellbit virou a cabeça rapidamente, revelando seus olhos arregalados.
— Guapito! Guapito, eu preciso falar com você!
— Claro. Você ainda está doente?
— Não, eu já estou bem melhor.
Roier franziu a testa, sem tentar esconder a preocupação. Ele ofereceu que os dois fossem ao fundo da loja, onde o funcionário o colocou sentado enquanto preparava um café. Mariana observava a cena, e se aproximou do amigo para perguntar em tom de julgamento:
— ¿Esse é o wey de quem você tanto fala?
Roier respondeu em um tom baixo:
— Na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, culero.
Como homem casado, apesar de ter passado minutos reclamando de seu marido logo antes da chegada do cliente, Mariana ficou calado. Se contentou em apenas revirar os olhos e voltar à frente da loja para deixá-los a sós. Roier, levando consigo a xícara de café recém-passado, sentou-se ao lado de Cellbit e entregou-lhe a bebida.
— Eu preciso te perguntar uma coisa, Roier, uma coisa bem séria — falou, mal dando atenção ao café antes de apoiá-lo em uma mesinha ao seu lado.
— Ok, diga — Roier respondeu, ansioso.
— Quando você me falou, semanas atrás, que você acreditava que forças sobrenaturais agiam sobre Hatchetfield, estava falando sério?
— É isso o que está te incomodando?
— Eu preciso saber, Roier.
O funcionário da loja hesitou.
— Sim, eu estava falando sério. Por quê? O que aconteceu?
— Eu…
Cellbit encarou Roier, no fundo de seus olhos preocupados. Sua voz saiu em um sussurro:
— Eu só preciso encontrar o Felps.
— E o que isso tem a ver com as suas perguntas?
— Guapito… Eu vi coisas. Meu amigo está em perigo — seu tom de voz permanecia baixo — Eu preciso encontrar um jeito de salvar ele.
— Cellbit… Quer que eu ligue para os seus amigos? Você não parece bem.
O coração do brasileiro apertou.
— Você também acha que eu estou louco…?
Roier imediatamente respondeu, em tom bem sério e cheio de convicção, pronunciando cada palavra claramente:
— Não foi isso que eu disse. Eu não penso isso de você, Cellbit, de forma alguma. Eu só estou preocupado, olha: você está tremendo.
Cellbit baixou o olhar para as próprias mãos, calejadas e cheias de cicatrizes, e constatou que ele estava certo. Delicadamente, Roier segurou suas mãos, em um toque quente e macio.
— Cálmate, ¿sí? Eu estou aqui. Está tudo bem.
Ele respirou fundo, tentando clarear as ideias pelo menos um pouco para soar minimamente razoável.
— É só que, tem tanta coisa na minha cabeça…
— Eu sei, eu sei…
— E você é tão especial para mim, tipo, pra caralho — Cellbit desabafou — Então eu preciso deixar avisado desde já que eu… Talvez eu dê uma sumida por um tempo, mas você precisa confiar em mim. E pode ser difícil entender minhas ações, mas eu juro que elas vão valer a pena. Ok?
— Do que você está falando?
— Você vai entender.
— Eu só quero que você seja honesto comigo, Cellbit, me diz o que está acontecendo.
Como poderia explicar aquilo? Ele tentou organizar suas ideias, e então olhou ao redor para garantir que estavam sozinhos e em um lugar seguro.
— Eu sinto que tem algo… bizarro acontecendo em Hatchetfield. E eu sei que isso vai parecer loucura, e nem um pouco assustador, mas é assustador! Se você considerar as implicações disso. Me promete que vai considerar as implicações! O Felps está na Federação no momento, o que me preocupa muito por causa de informações que eu fui juntando sobre eles. Acho que eles podem estar envolvidos com o sobrenatural, e eu estou com medo do que poderiam estar fazendo com o Felps.
Cellbit apertou as mãos dele.
— Roier, eu… Eu vou fazer qualquer coisa para trazer o Felps de volta, o que for preciso. Eu não vou parar até ele estar de volta ao meu lado.
Roier o observava de perto, o olhar ainda preocupado. Ele respirou fundo.
— Ok… Ok.
— Desculpa. Por tudo.
— Gatinho, respira. Aqui — Roier voltou à bancada em que havia preparado o café, mas desta vez pegou uma garrafa de plástico — Bebe um pouco de água, vai ser bom para você.
Cellbit obedeceu. Não lembrava há quanto tempo não ingeria água diretamente.
— Obrigado.
— Viu? Sua voz até ficou menos rouca agora. Olha, eu só quero ter certeza de que você vai ficar bem. E… Eu acredito em você, tá?— Roier tocou delicadamente a bochecha dele — De verdade, em tudo o que você disse, em todas as suas teorias. Como eu te disse, eu acredito no sobrenatural, e se as suas investigações te levaram a isso… Eu confio nas suas conclusões.
Cellbit segurou a mão dele em seu rosto. Roier voltou a sentar ao seu lado antes de dizer:
— Mas tudo isso é muito complexo. Agora eu quero fazer o que vá ser melhor para você neste momento. Eu devo te levar de volta ao hotel?
A resposta foi imediata:
— Não.
— Imaginei — assim que o funcionário da loja recolheu a mão, franziu a testa em preocupação, notando a roupa do outro — Espera. Cellbit, isso é sangue na sua camisa?
O brasileiro baixou o olhar.
— É sim. Mas não é meu.
Roier pareceu aliviado.
— Ah, ainda bem. De quem é o sangue, então?
Cellbit jamais cogitaria esconder aquela verdade dele.
— Do seu ex.
Aquilo o surpreendeu.
— É sério?
— Sim. Eu precisava de informações, então eu matei dois coelhos com uma cajadada só: eu fui onde ele trabalha para questionar ele e eu desci o soco nele também.
— Ay, pendejo, e se alguém tiver te visto? Você pode se meter em problema! — Roier se preocupou, acariciando-lhe o ombro.
— Relaxa, ninguém viu.
Cellbit o encarou, percebendo que ele ainda queria dizer mais alguma coisa. Momentos depois, em tom sério, Roier perguntou:
— Como ficou?
— O estrago, você diz?
— Uhum.
— Acho que ele vai ficar com a cara inchada por uns dias. Eu também fiz um corte superficial na garganta dele porque eu estava ameaçando ele com a minha faca. E eu enforquei ele.
Roier assentiu de leve, absorvendo as informações.
— Hm. É bom saber.
Mariana abriu a porta da salinha, fazendo os dois virarem a cabeça em sua direção. O funcionário tinha uma expressão apática no rosto.
— Roier, ¿cuándo volverás a trabajar? Hay clientes aquí hoy.
— Ahí vengo.
Os dois foram deixados sozinhos novamente. Roier virou-se para Cellbit.
— Vamos fazer assim: eu vou voltar ao trabalho aqui na loja, mas você fica aqui, nesta sala, e eu venho te fazer companhia sempre que puder. Aí, na hora do almoço, a gente vai comer alguma coisa junto. Pode ser?
— Você não precisa se preocupar com isso…
— Ah, mas eu me preocupo. Deixa eu cuidar de você, pelo menos por hoje.
Por algum motivo — e, por mais que não quisesse pensar a fundo sobre aquilo, sabia muito bem que motivo era esse —, quando era Roier quem estava se preocupando com o bem-estar dele, Cellbit não se sentia nem um pouco irritado; pelo contrário, fazia-o sentir-se seguro, de certa forma.
Roier voltou à frente da loja, colocando no rosto seu melhor sorriso corporativo para agradar o público. Depois que ele e Mariana atenderam aquela leva de clientes e viram-nos indo embora, Roier aproveitou a privacidade para falar com o amigo:
— Oye, ¿tudo bem se você almoçar sozinho hoje?
Mariana observou a porta para os fundos, garantindo que estava fechada antes de falar para o amigo:
— Tira esse vestido de noiva, Roier. Lembre-se que você ainda nem namora o bonitão doido ali.
Roier estalou a língua, impaciente.
— ¿Quem é tu para me julgar, Mariana? ¡Tu briga com o teu marido todo puto dia!
— Não, mien, mas…
— Mira — ele o interrompeu — Yo sé que ahora mismo Cellbit no está en su mejor estado mental, pero yo sé que él no es malo.
Enquanto isso, alheio e agitado, Cellbit, na sala dos fundos, rabiscava em seu bloquinho de anotações, sentado no velho sofá. Ele sentia os olhos pesados pelo sono, mas por mais que soubesse que Roier não se importaria dele cochilar ali, se recusava a abrir a mente para que aquelas entidades invadissem seus sonhos de novo, ainda mais agora que ele estava começando a descobrir um pouco mais sobre elas.
Embaixo de seus desenhos da criatura do olho e a do tentáculo, duas figuras que ele reconheceu de pesadelos seus, Cellbit anotou: parecem atacar em momentos de fragilidade emocional.
Então, Spreen havia entrado em contato com uma entidade, que lhe ofereceu algo em troca de um sacrifício. Enquanto isso, Cucurucho disse para Quackity que poderia trazer seu filho de volta se ele lhe entregasse um de seus alunos, “uma criança pela outra”. A ideia de que a Federação tinha contato com as forças sobrenaturais só fazia cada vez mais sentido…
O brasileiro acabou não ficando muito tempo remoendo suas teorias sozinho naquela sala; Roier, como prometido, vinha fazer-lhe companhia o tempo todo, e o obrigou não somente a se alimentar direito na hora do almoço, mas também a se hidratar. Aqueles momentos com Roier foram revigorantes, uma boa calmaria antes da tempestade que Cellbit estava prestes a causar, porque sabia que enfrentaria um mal necessário em breve.
À tarde, Cellbit foi tomar um pouco de ar fresco. Parou em frente à loja, e não havia muito movimento nas ruas — pelo menos, não para seus padrões de cidade grande.
— Gatinho.
Roier saiu da loja também. Apesar do calor lá fora, ventava um pouco, o que tornava a temperatura agradável e bagunçava um pouco os cabelos dos dois.
— A aula do Bobby já está acabando. Eu preciso trazer ele para cá, mas eu posso pedir para o Mariana buscar ele, se você quiser.
— De jeito nenhum, eu já me aproveitei até demais da sua bondade por hoje. Além disso, eu… Eu provavelmente já devia ir.
— Imaginei que você fosse dizer isso — Roier caminhou em direção a ele lentamente até os dois estarem cara a cara. Tinham quase a mesma altura, mas ele era alguns centímetros mais baixo que Cellbit — Você vai ficar bem?
— Vou tentar.
— Você vai começar a fazer “o que for preciso” quando sair daqui?
— Isso mesmo.
Roier assentiu, apoiando a mão afetuosamente no tórax de Cellbit e quebrando contato visual apenas por um momento antes de voltar a encarar seus olhos azuis.
— Quando eu posso te ver de novo? — o moreno perguntou.
— Não tenho certeza… Tomara que em breve, mas eu não sei o que esperar.
Roier suspirou.
— Bom, então deixa eu te dar um presente.
Ele deu alguns passos para trás para abrir a porta da loja, onde pegou um objeto sem nem sequer precisar entrar, apenas esticando o braço: era um boné. Em seguida, ele voltou a ficar bem próximo de Cellbit, e colocou o chapéu na cabeça dele.
— O que é isso? — Cellbit indagou suavemente, pegando o boné para vê-lo: era escuro e enfeitado com o desenho de um pássaro acompanhando as palavras Hatchetfield Nighthawks.
— Eu não sei se você vai lembrar disso… Logo quando a gente se conheceu, eu te disse que esse era um dos nosso bonés mágicos — ele abriu um pequeno sorriso triste — E eu disse que enquanto essa coisinha está na sua cabeça, nada pode te machucar.
— Claro que eu lembro — Cellbit lançou-lhe um sorrisinho de volta, recolocando o boné na própria cabeça. Em seguida, ele segurou as mãos de Roier — Agora eu vejo que esse é um ótimo amuleto.
Os dois estavam muito próximos, fazendo com que se esquecessem de tudo à volta e enxergassem somente um ao outro. Cellbit gostava tanto daquele rapaz que quase lhe doía… Pensativo e escolhendo suas palavras com cuidado, ele disse:
— Guapito… Você estava certo. Tem tanto que você ainda não sabe sobre mim, ou, pelo menos, sobre o meu passado, mas eu quero mudar isso. Depois de eu resolver o que eu preciso resolver, eu vou te contar tudo. Eu prometo.
— Tudo bem — respondeu, com sinceridade, movendo uma das mãos para acariciar-lhe o braço, enquanto ainda mantinha a outra entrelaçada à de Cellbit — Eu vou te esperar, então.
— Gracias por todo, guapito — Cellbit arriscou falar em espanhol.
Em resposta, Roier deu-lhe um leve beijo na bochecha.
— Te vejo em breve, gatinho.
E com aquela deixa, cada um precisava seguir para um lado. Roier se afastou devagar e entrou em seu carro, e Cellbit, sentindo-se amolecido, olhou para trás enquanto caminhava na direção oposta, vendo Roier se afastar. Apesar do quanto não queria fazer aquilo, Celbit continuou em frente. Pelo Felps…
A mente de Cellbit estava a milhão quando ele chegou ao seu destino. Como esperava, dois trabalhadores sem rosto — e não tinha ideia se aqueles eram os mesmos de antes ou não —, guardavam a porta do prédio da CCRP - Census of Communication, Research & Power.
— Eu preciso falar com o Cucurucho — Cellbit foi direto ao assunto.
Os seguranças se entreolharam, sem saberem como deveriam reagir. O brasileiro falou novamente:
— Vamos lá, traz ele aqui, eu sei que ele está aí dentro.
— Good morning.
Ele virou-se para trás. O urso branco antropomórfico estava ali, ao vivo, sorrindo como sempre, fazendo daquela a primeira vez em que os dois se viam fora dos pesadelos de Cellbit.
— Bom dia — respondeu.
Cucurucho estendeu o braço e entregou-lhe um papel.
DO QUE VOCÊ PRECISA?
Cellbit encarou-o no fundo de seus olhos pretos e vazios.
— A CCRP está contratando?
Notes:
Oficialmente to de férias da faculdade, vou ter mais tempo de escrever yayy
Caso tenha curiosidade:
- Como muitas vezes acontece, eu tentei deixar em espanhol partes que eu tirei de diálogos reais do QSMP, por mais que algumas coisas eu mesma tenha criado com meu espanhol quebrado
- O jingle da propaganda de brinquedo que o Spreen vê neste capítulo é uma tradução que eu fiz de uma estrofe de uma música real da mídia oficial de Hatchetfield, então é possível assistir o que ele canonicamente viu na televisão da loja, bem aqui
- O que o Roier tá cantarolando enquanto ele arruma o estoque da loja é uma música do Luis Miguel chamada La Barca
Espero que gostem do rumo que a história tá tomando. Novo capítulo na semana que vem!!
Chapter 15: Investigação
Chapter Text
Bad Boy Halo, de pé na sala mal iluminada, curvou-se um pouco para apoiar as mãos na mesa à sua frente enquanto olhava para seus companheiros, de um rosto para o outro.
— Então… — ele suspirou, tentando manter a compostura. Esperou alguns segundos antes de continuar a falar — A gente meio que tá ferrado.
— Ah, não me diga! — Foolish respondeu, sarcástico, sentado meio torto na cadeira, de braços cruzados.
— Eu ainda estou confuso — Maxo, também sentado à mesa de reunião do esconderijo embaixo de sua casa, inclinou-se mais para perto, a testa franzida — O que aconteceu, exatamente?
— Bom, eu ainda não elaborei direito, já que certas pessoas chegaram atrasadas para esta reunião super importante…
— Pois é, idiota, porque certas pessoas têm vida fora daqui, sabia? — Foolish devolveu, falando mais alto do que o necessário.
— Dá para vocês dois pararem de brigar como a porra de um casal de velhos por dois segundos? — Maximus irritou-se, fazendo os outros ficarem quietos — A gente está em um momento crítico aqui! Conta o que aconteceu, Bad.
O dono do hotel ajustou os próprios óculos, que escorregavam em seu nariz. Ele suava bastante no momento, não somente por causa do calor, piorado pelo capuz que ele nunca tirava da cabeça, como também pelo nervosismo diante do que estava prestes a relatar.
— É oficial, o Cellbit está completamente fora da casinha. Eu não queria acreditar que isso estava acontecendo mesmo, mas já faz dias, e ele não deu sinal nenhum de que vai parar. Quer dizer, ele está meio esquisito já faz um tempo, desde que o Felps desapareceu, mas nessa última semana… As coisas realmente escalaram.
Para Bad, era difícil falar sobre Cellbit e entender sua amizade, não apenas pelas atitudes questionáveis dele nos dias atuais, mas também pelo contexto em que a amizade havia começado em primeiro lugar, mais de uma década antes.
Quando se conheceram, os dois eram crianças em uma situação perturbadora de dimensões que mesmo no presente Bad ainda não compreendia direito. Mesmo assim, eles fizeram companhia um para o outro durante o processo de se tornarem as piores versões de si mesmos para sobreviverem naquele ambiente hostil, uma terra de ninguém em que os dois tinham sido jogados para morrerem. Cellbit chegou lá antes do que ele e, mesmo assim, por Bad ser dois anos mais velho, sempre tomou uma posição protetora em relação ao brasileiro… E, quando finalmente tiveram a oportunidade de fugir, os dois acabaram se separando.
Ao se reencontrarem em Hatchetfield, os dois eram pessoas diferentes. Bad gostava de pensar que, além do amadurecimento pela idade, suas verdadeiras personalidades tiveram a oportunidade de florescer agora que não se encontravam mais em condições extremas. Afinal, as partes mais humanas do adolescente que ele conhecera ainda eram visíveis no adulto investigativo, determinado e teimoso que era Cellbit.
E então, Felps sumiu… Aquilo fez Cellbit espiralar, e Bad assistiu de perto, tentando ajudar o quanto podia, porém são poucas as coisas que se pode fazer por alguém que te evita. Até que tudo culminou na quarta-feira passada.
— O Cellbit saiu do hotel na quarta de manhã e simplesmente não voltou no fim do dia, sem nenhum aviso. Exatamente como aconteceu com o Felps, ou pelo menos, foi o que eu pensei no começo…
Bad vinha percebendo certa animosidade na maneira como Cellbit o estava tratando nos últimos dias, e naquela manhã da quarta-feira em que sumiu, não havia sido diferente. O brasileiro apareceu no salão de refeições no exato horário em que o café da manhã começava a ser servido, e parecia quase tão mal quanto quando ficou de cama. Ele engoliu o café puro rapidamente e saiu, ignorando Bad completamente quando este perguntou se o amigo estava bem.
O dono do hotel, obviamente, ficou preocupadíssimo, e queria correr atrás dele; ao mesmo tempo, Dapper estava em suas últimas semanas de aula antes das férias, e precisava ser deixado na escola. No ânimo do momento, Bad acabou apressando o filho para saírem logo e, com sorte, encontrarem Cellbit, que não poderia ir tão longe se estava a pé.
E, no entanto, exigir que uma criança de nove anos ande rápido para não se atrasar é pedir demais. Ainda levou algum tempo até que Dapper estivesse pronto, e quando finalmente estava, Bad correu para colocá-lo no carro, e então saíram de casa mais cedo do que de costume e vagaram pelas ruas da cidade em busca de Cellbit. Bad, todavia, não obteve sucesso, e logo chegou a hora de levar o filho à aula.
Depois de se despedir de Dapper e assistí-lo entrando na escola, Bad abriu seu flip phone em busca do número de Roier. Ele não tinha o contato dele até pouco tempo, só o conseguiu quando o mexicano ligou querendo falar com Cellbit certa vez, depois de ter encontrado o número de Bad em uma lista telefônica.
“O Cellbit tá aí?”, perguntou por torpedo, e encarou a tela do celular roendo as unhas, aguardando uma resposta. Mas ela não veio de imediato, e Bad não podia esperar o dia inteiro, então precisou voltar ao hotel para continuar os afazeres do dia. Para o seu alívio, Roier eventualmente lhe escreveu: “Sim, tô tomando conta dele”, e Bad relaxou, sabendo que o amigo ficaria bem.
À noite, o estresse voltou: o céu escuro, as horas passando, e nada de Cellbit. Bad mandou mensagem a Roier novamente, mas dessa vez não obteve resposta, então, eventualmente, ligou para ele. Nada. Ligou de novo. Nada. Ligou pela terceira vez…
E Roier atendeu, desanimado. Disse que Cellbit havia saído da loja antes das três da tarde e não sabia onde ele tinha ido. A ligação foi encerrada pouco depois. Os outros brasileiros tampouco sabiam do paradeiro do amigo. Aquela acabou sendo uma péssima noite de sono para Bad.
— Só que, no dia seguinte, o Cellbit apareceu sim no hotel: ele veio pegar as coisas dele para sair de novo. Eu tentei ter uma conversa, mas ele ficava me dizendo que eu menti para ele a respeito da verdade sobre Hatchetfield… Ele disse que a CCRP na verdade só quer deixar todos na ilha felizes, e que não tem nada de errado com isso.
— Mas ué? — Foolish franziu a testa — Não foi ele que fez a maior birra semana passada porque ele tinha tanta certeza de que foi a CCRP que sequestrou o Felps?
— Exato! — Bad assentiu, gesticulando com os braços enquanto falava, indignado — Foi isso que eu falei para o Cellbit, que eu tinha entendido que a CCRP tinha pegado o Felps, de acordo com ele, e sabe o que ele respondeu? Ele disse: “Todos cometem erros, inclusive eu. Mas eu vejo a verdade agora: a Federação só faz o bem. Eu me arrependo de ter confiado em vocês um dia.”
— Mas ué? — desta vez, foi Maximus quem falou.
— SIM, EU SEI!
— Aquele filho da puta! Eu conto os motivos para eu confiar nele, eu me abro sobre a minha vida, tudo para ele nos esfaquear pelas costas? — Maximus indignou-se, seu olhar perdido em pensamentos enquanto ele balançava a cabeça levemente, incrédulo.
— Podemos ser sinceros? — Foolish se manifestou — Mesmo se a gente desconsiderar toda a coisa sobre a Federação, o Cellbit vem agindo como um crianção. Pronto, falei. Eu entendo que ele passou por muita coisa, tipo, mudar de país já deve ser estressante o suficiente, aí o seu melhor amigo some, é foda, mas não justifica tudo. Ele não só traiu nossa confiança, como também, se a gente for pensar no jeito como o Bad vem tratando ele, só para ele agir assim? E você sabe que a coisa está feia quando sou eu dizendo que alguém devia tratar o Bad Boy Halo um pouco melhor.
— Bom, é um pouco mais complexo do que isso…
— Não, o Foolish está certo — Max concordou — Você nos disse que o Cellbit vem te ignorando toda vez que você tenta falar com ele, ele sempre é grosso contigo mesmo que tenha sido você quem cuidou dele quando ele ficou de cama…
— Gente, vocês sabem que eu conheço ele há um tempão. A gente passou por muita coisa junto na nossa adolescência, mais do que vocês dois conseguem imaginar. Estou falando de situações de vida ou morte, todos os dias, por anos.
— Ok, eu entendo isso, mas o cara já tem vinte e tantos anos, né? Ele devia pelo menos ter a decência de não te ignorar bem na sua cara. Eu sempre estou zoando com você, Bad, mas você sabe que é diferente, porque no fim das contas, é assim que a gente se trata. Além disso, você nunca precisou ficar tomando conta de mim como se eu fosse seu filho ou algo assim.
— Você chegou a ver o Cellbit depois dessa vez que você nos contou? — Maximus questionou o dono do hotel.
— Depois dele ter pegado todas as coisas dele e ter saído do hotel, você diz? Bom, teve um dia em que eu decidi passar de carro em frente ao prédio do escritório da CCRP, para ver se tinha algo ali que me ajudaria diante de tudo o que vem acontecendo… E eu vi o Cellbit cumprimentando os guardas sem rosto e depois entrando no prédio. E ele ficou por lá, então ele não pode ter só pedido para usar o banheiro deles de novo. Realmente parecia que… que talvez ele esteja trabalhando para eles.
— ‘Cê tá maluco — Foolish comentou — Você acha que ele simplesmente foi até eles, perguntou se podia falar com o Cucurucho, e eles deram um emprego para ele? Simples assim?
— Eu disse que parecia ser isso.
Depois de momentos de silêncio tenso, com o trio ponderando, Maximus ficou de pé.
— Amigos, eu estou achando que é hora de voltarmos aos velhos tempos. Precisamos parar de ficar só falando sobre as coisas nesta sala, precisamos mesmo é ir lá fora e investigar de verdade.
Foolish sorriu, animado.
— Isso, Max! Por favor me diga que você pensou na mesma coisa que eu…!
Bad coçou os próprios olhos com uma das mãos, estressado.
— Ai, Deus…
— Theory Bros! — Maximus se colocou de pé em uma das cadeiras — Por mim, devíamos ir amanhã seguir o Cellbit por aí e descobrir o que ele vem fazendo! Vamos abrir o armário de novo… Vamos nos disfarçar para investigar!
───────•••───────
Na manhã seguinte, Bad acordou seu filho mais cedo do que de costume, e depois da correria da rotina diária, os dois ficaram esperando em silêncio na frente do hotel.
— Pai, estou cansado.
— Eu sei, Dapper, desculpa. É só por hoje, eu prometo. E logo logo chegam as férias de verão, de qualquer forma, então fica tranquilo que vai passar rápido, meu bem.
— Se você não consegue me levar para escola hoje e eu não posso faltar, por que o tio Fit não pode me dar carona? Você disse que ia resolver as coisas com ele logo e já faz, tipo, séculos.
Bad suspirou.
— Eu te disse, é complicado. Eu vou tentar falar com ele, tá? É só que, tem muita coisa acontecendo ultimamente, está difícil achar tempo para isso.
— Eu quero poder ver o Ramón durante as férias! Por favor, resolve isso…
O silêncio na rua vazia foi quebrado quando um carrão roxo virou a esquina e, segundos depois, estacionou em frente aos dois. O vidro do passageiro foi abaixado, fazendo com que a música que tocava no rádio no interior do veículo fosse ouvida, e um rapaz sorridente olhou para o pai e filho.
— Andem logo, otários.
— Não me chama assim, tio Foolish! — Dapper reclamou, cruzando os braços enquanto se aproximava do veículo.
— Bom dia para você também, Foolish — Bad murmurou, sem energia, abrindo a porta de trás e deixando o filho entrar primeiro. Leonarda tirou o cinto e moveu-se no banco para dar espaço para eles, enquanto o motorista, Vegetta, batia os dedos no volante ao ritmo da música da rádio.
Com todos acomodados no carro, Vegetta deu partida novamente. A canção a que ouviam terminou, dando espaço para o radialista falar:
Bom dia, Hatchetfield! O Maximus, que costuma apresentar o programa de manhã, não pôde vir hoje por razões pessoais, então eu vou cobrir para ele. Logo mais seguiremos com as notícias do dia, mas por enquanto, eu vou deixar vocês com o Tears For Fears - Everybody Wants To Rule The World!
— Foolish, mi amor — Vegetta o chamou, pousando sua mão que não estava no volante na coxa do namorado, enquanto forçava a mente para tentar encontrar os termos certos em inglês para o que queria perguntar — Onde… eu deixo vocês?
Foolish entendeu, e precisou de alguns momentos para pensar, tentando lembrar as palavras para responder em espanhol.
— Ah, dejar… Nosotros… La casa de Maximus.
— Ok!
Poucas músicas depois, eles haviam chegado. Bad e Foolish se despediram dos outros antes de saírem do carro e assistí-lo se afastando, Vegetta indo levar as crianças para a escola.
Ao se aproximarem da casa de Maximus, diferente de como estavam acostumados, não foram até a salinha escura onde aconteciam as reuniões semanais; ao invés disso, desceram apenas para o primeiro subsolo, a sala ampla, meio vazia e bem iluminada, onde Max estava mantendo os disfarces que os Theory Bros usariam para conseguirem investigar mais furtivamente.
— O Roier me emprestou isso tudo aqui. Acho que é uma ótima forma da gente se disfarçar.
O trio se vestiu com roupas vendidas no Starship Gift Shop, tornando-se propagandas ambulantes da cidade e parecendo verdadeiros turistas.
Maximus usava shorts e uma camisa vermelha florida por cima de uma camiseta preta simples com as palavras Eu sobrevivi a Hatchetfield e tudo o que ganhei foi esta camiseta; também colocou um chapéu e substituiu seus óculos escuros habituais pelos óculos escuros de armação vermelha com o nome da cidade esculpido nas hastes largas, e o qual tinha de uma etiqueta que ele precisou tirar, em que lia-se Em promoção.
Bad colocou um moletom preto, com as mangas e capuz cinzas, enfeitado pelo desenho de um pássaro e os dizeres Saudações de Hatchetfield Michigan, Lar dos Nighthawks!, acompanhando calças de moletom que também exibiam o nome da cidade em letras pequenas na horizontal.
Foolish, apesar dos shorts simplórios, estava com uma camiseta rosa justa em que lia-se Keep Calm and Disfruta La Isla embaixo de um pequeno desenho simples de machado. A habitual touca de tubarão foi substituída por uma mais comum, simples e de cor neutra, na qual, assim como no cachecol listrado que ele insistiu em colocar, o nome da cidade estava bordado. Não só isso, ele estava também com uma pochete preta estampada com o repetido padrão por todo o tecido das letras que abreviavam “Hatchetfield”, HTF.
— Achei que era para a gente tentar não ficar muito chamativo, Foolish — Bad comentou ao ver sua roupa, lançando-lhe um olhar cético.
— Nop, é para gente ficar irreconhecível, e eu estou: eu jamais vestiria nada assim. A partir de agora, pode me chamar de Jeffrey Bacon, um entregador de pizza que vem economizando para vir a Hatchetfield e enfrentar seus medos do sobrenatural. Se alguém vier falar comigo, eu já sei toda a história de vida dele.
— Ninguém vai sair por aí perguntando sua história de vida, as pessoas vão só viver suas vidas normalmente e nos ignorar. Além disso, o seu personagem chama Jeffrey Bacon, sério?
— É um ótimo nome! E criar uma história de vida para ele me ajuda a entrar no personagem. Agora vem, para de reclamar, vamos começar a missão.
Os Theory Bros saíram da casa de Maximus e seguiram caminho até o principal edifício da Census of Communication, Research & Power. Em horários normais, alguns turistas de verdade já eram notáveis pelas ruas naquele período do ano, porém tão cedo de manhã, não era o caso. Mesmo assim, o grupo tentou igualar sua energia à dos visitantes e torceu para que desse tudo certo.
Chegando à rua desejada, o trio foi se escondendo atrás de carros e arvorezinhas conforme se aproximavam do prédio. Na calçada oposta à entrada da CCRP, monitorada por seguranças vinte e quatro horas por dia, havia uma larga caçamba de lixo, e foi atrás dela onde os Theory Bros se esconderam para observar.
Enquanto Maximus mirava a entrada com seus binóculos, Foolish ajustou sua pochete pela décima vez, visivelmente insatisfeito com o acessório. Bad deu uma risadinha ao observar a cena.
— Você está tão esquisito, Foolish. Acho que a pochete é um pouco demais.
O loiro mantinha o olhar baixo, decidindo como estilizar a pochete para deixá-la minimamente ok e confortável.
— Não sei com quem você está falando, meu nome é Jeffrey.
Bad de repente teve uma ideia de como provocar o amigo.
— Ah, é, verdade. Jeffrey, o entregador de pizza da cidade vizinha, Clivesdale.
— QUÊ? EU NUNCA DISSE QUE O JEFFREY ERA DE CLIVESDALE, EU ODEIO AQUELE LUGAR!
Bad riu, e Foolish desistiu de arrumar a pochete. Depois disso, foi preciso esperar.
Alguns pedestres passavam vez ou outra, e por mais que fosse fácil perceber que o grupo investigava algo, visitantes curiosos não chamavam atenção em Hatchetfield — aliás, era o tipo mais comum de turistas que a cidade recebia. Finalmente, depois de algum tempo, Maximus soltou uma exclamação:
— Gente, olha! — falou em um sussurro alto, apontando — Acho que eu vi o Fit!
Os outros dois levantaram as cabeças um pouco para observar. Era realmente inegável que se tratava do pai de Ramón, cumprimentando os seguranças sem rosto antes de entrar.
— Ai, droga. O Dapper não vai ficar nada feliz comigo… — Bad comentou, meio que para si mesmo, concluindo que seria muito difícil de atender aos desejos do filho de confiar novamente em Fit.
Minutos depois, outra figura destoante da maioria dos outros funcionários que vinha chegando para o expediente, se aproximou da entrada: era Cellbit, vestindo uma camisa ciano por baixo de um colete, e suas olheiras estavam piores do que nunca.
— Por que ele está usando umas roupas formais feias? — Maxo ponderou — Ele não está nem usando branco…?
Os Theory Bros agacharam atrás da caçamba de lixo novamente, debatendo sobre o que deveriam fazer: tentar entrar na Federação pagando de turistas, como o próprio Cellbit havia relatado ter feito? Ir atrás de descobrir os horários de trabalho na CCRP para saberem quando Cellbit sairia do expediente para poderem segui-lo?
Só que não muito depois de ter entrado, o brasileiro saiu novamente, dessa vez levando consigo uma bolsa semelhante às de carteiro, e seguindo caminho pelas ruas. O trio que o investigava rapidamente se recompôs para seguir a mesma direção, acompanhando-o ao longe.
Cellbit caminhou pelas áreas mais frequentadas por turistas em Hatchetfield, e toda vez que via um daqueles cartazes da CCRP, com propagandas positivas em relação à ilha e a Federação, se o papel estivesse desgastado pela chuva e pelo tempo, ele o arrancava e o substituía por um novo em folha, com a mesma mensagem de antes, tirado de sua bolsa de carteiro. Vez ou outra, ele colava um panfleto novo em uma área que anteriormente não exibia propaganda alguma.
— Que hipócrita! — Foolish murmurou enquanto o observava.
Depois de algum tempo repetindo aquele processo, Cellbit chegou à rua do Beanie’s, e entrou na cafeteria.
— A gente devia seguir ele?
— Não sei, me parece meio arriscado… — Bad opinou.
— Mas e se a gente estiver perdendo contexto? — Maximus argumentou — Devíamos ir. Só precisamos tomar cuidado.
Foolish tirou de sua pochete dois pares de óculos escuros da promoção na Starkid Gift Shop, idênticos aos que Maximus usava no momento. Ele cobriu seus olhos com um dos pares e entregou o outro a Bad, que fez o mesmo, colocando os óculos de sol por cima dos seus de grau. Então, o trio entrou no Beanie’s.
Eles esperaram até que outras pessoas entrassem na fila, para que não ficassem diretamente atrás de Cellbit. Foolish tirou da pochete um mapa da cidade, que quando desdobrado ficava grande o suficiente para que todos os Theory Bros pudessem se esconder atrás dele caso fosse necessário.
O brasileiro pagou por seu café puro e, depois de receber a bebida, sentou-se em uma parte isolada da cafeteria, a qual, para a sorte dos investigadores, não dava uma boa visão da fila em frente ao balcão de pedidos. Quando chegou a vez do trio de ser atendido…
— Foolish? Que roupa é essa? — a funcionária do caixa perguntou, confusa.
Era Tina, uma amiga de infância do dito cujo.
— Shhh, eu estou investigando! — ele respondeu em um cochicho — Prazer, Jeffrey Bacon, sou um entregador de pizza visitando Hatchetfield para enfrentar meus medos do sobrenatural.
Tina, meio cética, passou os olhos por ele e depois por Bad e Maximus, que sorriam nervosamente.
— Jeffrey Bacon? Que tipo de nome é esse?
— Foi o que eu falei para ele! — Bad concordou com ela, sua voz baixa.
— Me deixem em paz. Gente, o que pedimos?
— Sei lá, tanto faz — Max respondeu.
Os olhos de Foolish passaram do menu para o pote de vidro no balcão, ao lado do caixa.
— Dê gorjeta e ganhe uma canção ? — ele leu a plaquinha que acompanhava o pote e riu um pouco — Quero ver.
E ele colocou uma nota de cinco dólares no pote, sem perceber os protestos da amiga antes que fosse tarde demais.
— Não, burrão! — Tina exclamou — Agora eu vou ter que cantar e vai chamar atenção para vocês!
— Merda, é verdade.
Foolish enfiou a mão no pote, atrapalhadamente tentando pescar de volta seu dinheiro.
— Foolish, para! — Tina pediu.
— Rapidinho, estou quase conseguindo…
Uma mulher com mais de trinta anos, usando um avental verde como o de Tina, apareceu de uma área detrás do balcão.
— Tina, qual é o problema aqui?
A amiga de Foolish abriu um sorriso forçado para sua chefe.
— Não é nada não, Nora.
— Senhor, aconteceu alguma coisa?
— Ah, não! — Foolish tirou a mão do pote de gorjeta — Eu só coloquei a nota errada aqui.
— Olha, a gente vai te recompensar por isso, pode ser? — Tina disse, tentando manter-se calma enquanto abria a caixa registradora e tirava uma nota de cinco dólares para entregá-la ao amigo.
A chefe, Nora, observou toda a cena com olhos de gavião, e ao constatar que o problema havia sido resolvido, sumiu novamente pela porta atrás do balcão. Tina suspirou e massageou as têmporas.
— Foi mal! — Foolish cochichou.
— Com licença! — um jovem usando óculos, gravata borboleta e suspensórios, que estava atrás dos Theory Bros na fila, reclamou com uma voz meio esganiçada — Eu estou esperando há um tempão! Vocês três podem fazer o pedido logo?
— Vamos, gente, estamos começando a chamar atenção demais — Maxo observou, preocupado — Só pede qualquer coisa.
— Tá, tudo bem, só me dá uma garrafa d’água ou algo assim. Por favor — Foolish pediu.
Tina virou-se e rapidamente entregou-lhe o pedido, enquanto negava de leve com a cabeça, meio indignada. Foolish aceitou a garrafa enquanto dava-lhe o dinheiro para pagar.
— Foi mal mesmo, fica com o troco, te amo, tchau!
Enquanto eles se afastaram rapidamente do balcão, Bad, meio estressado, comentou:
— Carambola, Foolish, você é péssimo em ser furtivo!
Ocupado demais em chamar a atenção do amigo, Bad não prestou atenção direito para onde estava indo, e acabou esbarrando em uma cadeira vazia e se desequilibrou e caiu. Nesse mesmo momento, Cellbit havia terminado seu café, e levantava-se para ir embora, o que o faria passar em frente a eles.
Maximus agiu rapidamente: ele pegou o mapa da cidade da mão de Foolish, enquanto este ajudava Bad a levantar, e o espanhol conseguiu esconder os três atrás do grande papel desdobrado. Se Cellbit notou a presença daquelas três pessoas, não foi capaz de identificá-las apenas tendo a visão de suas pernas, e logo saiu da cafeteria para voltar ao trabalho.
Max abaixou o mapa novamente e suspirou.
— Foi quase. Ok, vamos.
Eles saíram do Beanie’s, desengonçados. No final da rua, era possível ver Cellbit colando um panfleto no poste e, quando ele se afastou e o trio passou ali em frente, viram que dizia “Lembre-se: Sorria! E disfruta la isla :)”
Ele novamente passou por várias áreas turísticas, que começavam a ficar mais cheias conforme as horas da manhã corriam. Eventualmente, Cellbit pareceu encontrar um ponto conveniente, porque parou em frente à praia e ficou ali de pé, entregando panfletos para as pessoas que passavam.
Os Theory Bros sentaram-se em um banco que dava visão para ele, e o observaram, atentos. Só foram interrompidos quando uma mulher, claramente uma turista, se aproximou dos três, sem tirar os olhos do celular em suas mãos.
— Oi, licença…
Mas então, ela parou em frente a eles e os observou direito, o que imediatamente a fez desistir do que ia pedir.
— Ah, esquece. Eu ia pedir ajuda para me localizar, mas vocês também são turistas.
Antes que ela se afastasse, Bad decidiu fazer uma coisa. Sem conseguir conter um sorrisinho, ele disse:
— Bom, o Jeffrey aqui é da cidade vizinha, Clivesdale, então é possível que ele saiba um pouco sobre Hatchetfield. Talvez ele possa ajudar.
A boca de Foolish formou um “o” diante daquela audácia. A turista olhava para eles com expectativa.
— Bom, meu amigo, acho que você entendeu o que eu disse errado, eu não sou de Clivesdale — Foolish forçou uma risada — Eu não tenho ideia do porquê de você pensar isso, eu nunca estive naquele lugar horrível. Eu sou um modesto cidadão de Ohio.
— Espera, você consegue me ajudar ou não? — a turista ficou confusa.
— Não, senhora, não consigo. Somos todos turistas aqui — Foolish afirmou, e a mulher se afastou novamente, sem entender.
Maximus massageou as têmporas com uma das mãos.
— Estos dos son tan estúpidos…
Enquanto isso, Bad ria, e Foolish o estapeou.
— Porra, mano! Sério mesmo?
— Você é muito dramático, sabia? Eu não entendo por que as pessoas de Hatchetfield odeiam tanto a cidade vizinha.
— Não, mas o Foolish tem um bom ponto. Dizer que ele é de Clivesdale é maldade.
— Tá vendo, o Maximus entende. Diferente de você, ele é um verdadeiro cidadão de Hatchetfield. Foda-se Clivesdale.
— Primeiramente, olha a boca. Em segundo lugar, vamos parar de ofender Clivesdale agora, parece que o Cellbit está saindo da praia.
A distração havia tirado um pouco do peso da situação, de espionar alguém por quem tinham consideração e que os traíra, mas precisaram voltar ao trabalho. Cellbit voltou a caminhar pela cidade e, desta vez, acabou retornando ao seu ponto inicial e entrando de novo na CCRP. Bad finalmente tirou os óculos escuros que estava usando por cima de seus óculos de grau, observando o prédio e suspirando.
— O que a gente faz agora?
— Vamos esperar, ver se ele sai de novo ou algo assim — Foolish propôs.
Maximus andava de um lado para o outro, pensativo. Notando o estresse dele e a derrota de Foolish, Bad opinou:
— Olha, algo me diz que a gente já viu tudo o que tinha para ver aqui. Eu não acho que ele vai sair por agora.
— Mas poderia ser interessante descobrir o horário que ele sai o trabalho — Maximus notou.
— Espera, você quer que a gente fique aqui por horas? — Foolish, sentado na calçada, levantou a cabeça para olhar os amigos — Nem ferrando, mano, eu falei para o Vegetta que voltaria até a hora do almoço!
— E eu não vou ter tempo de fazer o jantar dos hóspedes se a gente ficar tanto tempo assim aqui.
— Tá, que seja! Mas então, Bad, você vai ter que falar com o Fit. Pergunta para ele os horários de trabalho dele, pede ajuda…
— Ah, por que eu?!
— Você conhece ele melhor! E você tem coisas a conversar com ele de qualquer jeito, não é?
Bad passou a mão pelo próprio rosto, estressado.
— Tá. Vou ver o que eu vou fazer.
— Então a gente vai embora agora, né?
— Sim, Foolish, a gente vai.
— Ah, ainda bem.
O clima foi tenso enquanto voltavam à casa de Maximus para pegarem suas roupas normais de volta. Quando estavam novamente na segurança do subsolo da residência, Maximus botou para fora algo que o estava incomodando:
— Me digam: por que diabos o Cellbit mudaria de lado de um jeito tão radical de um dia para o outro? Qual poderia ser a motivação dele?
Eles ficaram quietos por algum tempo.
— Isso só faz sentido… Se ele quiser se infiltrar na Federação para trazer o Felps de volta.
— Exatamente, Bad! Venham, vamos para a sala de investigações.
Lá embaixo, o dono da casa se aproximou da parede de teorias, pronto para atualizá-la com a situação de Cellbit. Ao se aproximar, no entanto, ele arfou.
— Minhas evidências! Onde estão as minhas evidências?!
Os outros dois se aproximaram. O quadro estava consideravelmente mais vazio do que de costume, com todas as coisas mais importantes tendo, aparentemente, sumido.
— Como isso aconteceu?!
— A única outra pessoa que pode acessar este lugar é o Cellbit… — Foolish disse o que os outros estavam pensando.
— Mas como?!
— Você não passa muito tempo em casa, passa? Você trabalha bastante. Se ele souber como abrir fechaduras…
Maximus se jogou em uma das cadeiras, derrotado. O silêncio na sala ficou incômodo. Depois de alguns segundos, o espanhol colocou o punho embaixo no queixo, pensativo.
— Então a nossa situação é ainda mais complexa do que a gente pensou. Se ele pegou as nossas evidências, então ou ele fez isso só de raiva porque ele está do lado do Cucurucho, ou, se ele estiver se juntando à Federação por causa do amigo dele, isso significa que eles sabem de informações importantes sobre nós e pediram para ele fazer isso.
— Talvez o Cellbit só seja um cuzão — Foolish opinou — Que vem trabalhando para a Federação desde o princípio, e que se juntou a nós como um agente duplo. Tipo, um cara chega aqui de repente lá do Brasil, sem nenhuma explicação para isso? E convenientemente é alguém que o Bad conhece de anos atrás, e que portanto conseguiria a confiança dele com maior facilidade?
— Você acha que os outros brasileiros podem estar envolvidos nisso também?
Bad negou com a cabeça.
— Olha, eu vejo eles no hotel todos os dias, e eu duvido muito. Agente duplo ou não, eu percebi que o Cellbit estava investigando as coisas desde o começo, mas os outros só vivem suas vidas normalmente.
— Talvez o Cucurucho tenha vindo falar com o Cellbit logo quando ele chegou aqui na ilha e tenha convencido ele a se juntar à Federação logo de cara — Foolish teorizou.
— Bad, e quanto ao amigo do Cellbit que sumiu? Você acha que ele pode estar envolvido nisso também?
De repente, o trio voltara à estaca zero. O número de possíveis explicações só aumentava, e era impossível ter certeza de alguma coisa. Aquele assunto ainda daria muito o que falar…
───────•••───────
Quando Bad finalmente voltou ao Egg Carton Hotel, estava suado e exausto tanto física quanto emocionalmente. Foi até o salão de refeições para conferir se, dessa vez, os hóspedes tinham visto o aviso que ele colocara, pedindo para que se servissem do café da manhã que estava, sim, pronto, Bad apenas não estaria lá para servi-lo.
Ficou aliviado ao ver que havia funcionado, por mais que ele não pudesse deixar de pensar que provavelmente era péssimo em administrar tudo aquilo, e que deveria se preocupar em contratar logo funcionários para a alta temporada que vinha chegando; tinha inaugurado o Egg Carton havia pouquíssimo tempo, e ainda estava navegando como dirigi-lo direito.
Ele levou um grande susto ao ser repentinamente tirado dos seus devaneios enquanto recolhia a louça, já ponderando sobre o jantar que aconteceria dali a algumas horas. Baghera, uma das hóspedes de cortesia por ter vindo parar na cidade depois do acidente de avião, entrou estrondosamente no salão de refeições.
— BAD BOY! — ela o chamou enquanto corria até ele — Que bom que você voltou, eu precisava falar com você!
— Isso é sobre o serviço ruim? Porque se for, eu estou ciente, o Mike já reclamou disso, e eu sinto muito, logo mais vou resolver isso e--
— O quê? — ela franziu a testa — Não, não é sobre isso. Eu só queria fazer umas perguntas.
— Como assim?
— Eu venho percebendo algumas coisas sobre Hatchetfield — Baghera pontuou, sentando-se em uma das cadeiras do salão e repassando a lista na sua cabeça — Sabe, tem todos esses… panfletos pela ilha, com um logo de sorrisinho neles, e é muito estranho. Eu sinto que tem algo de errado com esta cidade. Você sabe alguma coisa sobre isso?
Bad largou a louça que segurava e cobriu o rosto com as mãos, frustrado.
— Ah não, lá vamos nós de novo…
Chapter 16: Sendo sincero
Notes:
(See the end of the chapter for notes.)
Chapter Text
Mike varria o chão do quarto, que estava cheio de cabelos cortados por causa da barbearia, enquanto Pac levava para o banheiro a bacia que usavam para lavar os cabelos dos clientes. Então, o despertador do quarto tocou, mesmo que já fosse de tarde e eles já estivessem acordados fazia um tempo. Pac voltou apressado do banheiro, enxugando as mãos na própria roupa, para desligá-lo.
— Preciso ir, Mike, volto daqui a pouco.
— Vai encontrar o francês de novo? Parece que você se deu bem mesmo, hein?
— Sim, vou ver o Etoiles, mas não é nada do que você está pensando. Pelo menos, não por enquanto… Espero que isso mude algum dia, mas não consegui nada ainda. Também não ando com muita energia para tentar flertar, por causa de tudo o que vem acontecendo.
— Você quer mesmo que eu acredite que você tem horário marcado mais de uma vez por semana para ver o francês só para vocês dois ficarem conversando?
Pac abriu o guarda-roupa, procurando uma boa roupa para vestir.
— Já falei que não é isso. O Etoiles aceitou ser meu Sensei, ele vai me ensinar a me defender. Eu sei que o Cellbit… Bom, é complicado. Mas, mesmo assim, ele não estava totalmente errado nas “loucuras” dele. Coisas estranhas acontecem em Hatchetfield, e eu quero saber me defender e defender o Richas, ainda mais agora que de quatro pais ele passou a ter só dois.
— Não se você perguntar para ele — Mike se abaixou, segurando uma pazinha para pegar os cabelos do chão e jogar no lixo — Ele disse que “Confia no Cellbit”, por algum motivo… Sério, a gente precisa levar essa criança para a terapia. Além de todo o passado dele em que sabe-se lá o que ele viveu, agora que ele achou uma família, um dos quatro pais dele some e o outro enlouquece…
— Eu acho uma boa achar um psicólogo para ele, a gente pode ir atrás disso depois — Pac concluiu, logo antes de se fechar no banheiro para trocar de roupa.
Minutos depois, Pac reapareceu no quarto, vestindo regata, calças azuis e luvas sem dedos. Ele fez uma pose com os braços, cheio de expectativa sobre a opinião do amigo. Mike ajustou os óculos para olhá-lo bem.
— Está ótimo, o francês vai adorar “treinar” com você. Tenho certeza também de que ele vai adorar o cheiro do seu melhor perfume.
— Mike! Se eu vou me exercitar, preciso ir cheiroso, logo logo vou ficar suado.
— Claro, sei que você vai suar bastante com as coisas que vai fazer com o francês.
Pac sentiu seu rosto esquentando.
— Para com isso, Mike!
Ele atravessou o quarto, pegou uma garrafinha plástica e abriu a porta para sair.
— Tchau, até depois.
— Até! Usa camisinha, hein?
— VAI SE FERRAR!
Pac caminhou pelos corredores, envergonhado e um pouco desnorteado. Claro que achava Etoiles atraente, e adoraria tentar algo com ele, só que a verdade era que ainda não havia conseguido decifrá-lo — o francês era gentil e atencioso, mas também meio misterioso e discreto. Mas Pac não queria aquelas aulas de luta só para passar tempo com Etoiles, por mais que não achasse essa parte da coisa ruim, também.
O fato, porém, era que, depois de ter tido visões inexplicáveis naquele parque de diversões da cidade, Watcher World, Pac realmente passara a se sentir vulnerável. Foi quando ele lembrou das habilidades marciais do outro hóspede, que aceitou de bom grado ajudá-lo. Estaria mentindo a si mesmo se dissesse que não juntou o útil ao agradável, mas o jeito como Mike era direto e sem filtro, além de ser constrangedor, também não representava bem a realidade: Etoiles havia agido de forma completamente platônica até então. Bom, Pac também não havia sido direto sobre suas segundas intenções, então pensava que talvez fosse a hora de tentar algo.
Quando o brasileiro chegou no terraço do hotel, o homem de cabelos verdes já o esperava. Pac sorriu para ele quando o cumprimentou, e Etoiles foi educado e energético.
— Olá, Pac!
Etoiles era um bom professor. Ele havia perguntado o que exatamente Pac queria aprender — autodefesa, Pac respondera —, para saber qual rumo tomar com as aulas, e era muito compreensivo sobre a necessidade de abordar alguns exercícios diferentemente de como estava acostumado, visto que Pac usava uma prótese em uma das pernas.
— Certo. Está pronto para começar?
— Estou!
Aquela era apenas a terceira aula, então ainda estavam bem no começo das coisas. Etoiles era paciente e explicava bem o que fazer, mesmo que tivesse um pouco de dificuldade de se expressar em inglês e encontrar os termos que queria usar. Muitas vezes, gestos acabavam sendo suficientes, de qualquer jeito, e Pac realmente sentia que estava aprendendo a se defender bem.
A aula seguiu normalmente. Quando deram uma pausa, Pac sentou-se em uma das cadeiras, suado, e bebeu um gole d’água. Etoiles se alongou um pouco, ainda meio próximo a ele.
— Obrigado por me ajudar, Etoiles. Suas aulas são ótimas.
— Ah, que bom! Fico feliz em ajudar.
— Você… Você é um cara incrível.
— Valeu, bro, você também.
Pac viu uma deixa, a oportunidade perfeita para abordar o assunto. Aquele parecia o momento certo.
— Eu estive pensando, sabe…
Etoiles parou para olhá-lo, fazendo a pressão parecer mais real, porém ele continuou de qualquer jeito.
— Eu realmente quero continuar com os nossos treinos, mas eu também gostaria de… Te conhecer um pouco melhor. Não com as aulas de auto-defesa ou algo assim, só… passar tempo juntos. Só nós dois. Talvez sair para almoçar.
Etoiles hesitou. Então, parecendo incerto e nervoso, perguntou.
— Você está falando de um encontro?
Pac sentiu-se corando e não conseguiu evitar de desviar o olhar.
— É, tipo um encontro!
— Oh! Oh… — Etoiles coçou a nuca — Pac, eu me sinto honrado, mas… Hm, como eu posso te dizer isso?
— Ai não — Pac arregalou os olhos e se encolheu — Ai meu Deus, Etoiles, você é hétero? Me desculpa!
— O quê? Não, eu não sou hétero! — ele garantiu, dando uma risadinha breve e cuidadosamente sentando-se mais próximo de Pac. Depois de alguns instantes buscando a forma certa de abordar o assunto, ele continuou — Não, é que… Bom, toda vez que eu conheço uma pessoa, o que eu sinto é platônico, mesmo se for alguém que eu amo. Eu nunca amo pessoas de outro jeito. Eu costumava pensar que eu era o problema, e tentei namorar algumas vezes… Nunca funcionou, eu amava as pessoas só como amigas. E a parte física também não faz muito por mim. Há alguns anos, percebi que é assim que eu sou e que estou feliz. Amo minha família, amo meus amigos, amo proteger as pessoas, mas isso é tudo.
Pac se sentiu um idiota e não sabia onde enfiar a cara. Etoiles deve ter percebido, porque falou:
— Não se sinta mal, está tudo bem! Não estou ofendido. Espero que ainda queira ser meu amigo, não é nada pessoal.
— Eu sei, só me sinto um pouco idiota — Pac foi honesto, soltando uma risadinha nervosa.
— Não, isso é normal!
O brasileiro curvou-se para frente, ainda sentado, e acabou admitindo em voz alta:
— Desculpa. Só… Às vezes eu sinto que vou ficar sozinho para sempre, sabe? Não é culpa sua, é muito legal que você esteja feliz sozinho.
— Tenho certeza de que vai encontrar alguém, você é um cara legal. E eu ainda posso te ensinar a lutar, assim você vai poder impressionar qualquer homem que quiser com as suas habilidades.
Pac riu novamente, confortado por como Etoiles estava sendo fofo.
— Valeu, bro.
Etoiles deu tapinhas reconfortantes no ombro dele, sem saber o que mais fazer. Pac suspirou, pensando: o que devia fazer agora? Sair mais cedo? Tentar voltar à aula? Ele não queria deixar o clima mais estranho do que já estava, mas também não queria fazer parecer que Etoiles era culpado por aquilo.
— A gente devia… Voltar para o treinamento? — acabou perguntando, a incerteza transbordando em sua voz.
— Quer continuar outro dia? Se você preferir assim, não tem problema.
— Ah, ok. Sim, eu prefiro assim. Valeu, Etoiles.
— Não se preocupa. Te vejo no próximo treino, certo?
Pac abriu um sorrisinho sem graça.
— Certo.
Os dois se despediram e Pac seguiu de volta para o seu quarto. Lá, encontrou não só Mike, como também Richarlyson, que ajudava a organizar os shampoos e cremes de cabelo.
— E aí, como foi lá? — o amigo perguntou, sorrindo de um jeito sacana.
— Pode esquecer isso, Mike. Você errou feio. O Etoiles disse que não quer nada romântico comigo.
— Ai meu Deus. O Etoiles é hétero?!
— Nop. Na verdade, acho que ele é arromântico. E provavelmente assexual. Foi isso que eu entendi, pelo menos. Enfim, vou para o banho agora, e talvez eu chore um pouquinho no chuveiro… Mas é. Vai ficar tudo bem.
Pac entrou no banheiro e fechou a porta. No momento seguinte, Richarlyson sorriu para Mike e estendeu a mão a ele, cobrando sua parte na aposta. Com um suspiro, o mais velho tirou uma nota de cinco do bolso e entregou-a à criança.
───────•••───────
Com Richas indo ajudar Mike, Pomme, que vinha brincando com ele até então, foi até o lobby e começou a conversar com o dono do hotel. Bad Boy Halo saiu de seus devaneios para escutá-la enquanto a menina lhe explicava a história de um de seus desenhos favoritos, Três Espiãs Demais, enquanto ele, com tantas preocupações lhe assolando, tentava acompanhar, um pouco confuso.
Os dois só foram interrompidos quando Etoiles apareceu, e Bad sentiu um enorme alívio por ter sido ele a vir buscar Pomme ao invés de Baghera, já que ele a vinha evitando.
— Etoiles? — a menina se virou para ele — Seu treinamento já acabou?
— A aula foi mais curta hoje.
Bad olhou o horário e constatou:
— Ah, que bom que você veio fazer companhia a ela, eu preciso ir buscar o Dapper na escola. Volto daqui a pouco.
Assim, Bad se despediu deles e seguiu até seu carro, os nervos à flor da pele, o peso das preocupações parecendo ainda mais reais agora que não tinha nem distrações, nem uma uma desculpa para fugir das obrigações.
Para começar, não sabia quanto tempo suas desculpas esfarrapadas e enrolações enganariam Baghera agora que ela começara a fazer perguntas sobre a ilha, e ele realmente não estava empolgado para ver a história com Cellbit se repetindo já tão cedo, especialmente tendo em vista o caminho que este vinha tomando depois de tudo. Diante desse nervosismo de topar com a hóspede suíça, ficar no hotel estava sendo mais tenso do que o comum, mas sair de lá também não foi mil maravilhas…
Afinal, depois da última reunião dos Theory Bros, Bad Boy Halo ficara responsável por descobrir mais sobre como funcionava trabalhar na Federação, e precisaria falar com Fit para encontrar essas respostas. O problema era que ainda não tinha certeza sobre como abordá-lo.
Não bastasse tudo isso, ele também também tinha as preocupações burocráticas que vinham com a responsabilidade de dirigir um hotel: precisava contratar funcionários para ajudá-lo com as tarefas, e rápido.
Com tudo isso assombrando-lhe a mente, ele foi até a escola de ensino fundamental. Chegando lá, estacionou e esperou. Logo mais, conseguiu ver Fit chegando para esperar o filho, e aquela era sua deixa. Suspirando, Bad Boy Halo saiu de dentro do carro e se aproximou dele.
Fit estava de pé, a alguns metros da saída, de braços cruzados. Ao ouvir Bad cumprimentando-o, ele o olhou intrigado.
— Ei, Bad, não te vejo faz um tempo. Como você está?
— Estou bem! — Bad respondeu, tentando soar natural — É, você está certo, a gente não se vê faz um tempo mesmo. Sabe como é, está uma correria lá no hotel, especialmente agora que a alta temporada está se aproximando e tudo o mais…
— Ah, entendi.
O assunto não podia acabar ali. Pensando em muitas possíveis formas de se estender na conversa sem soar suspeito, Bad acabou optando por dizer:
— Mas e você? Tem encontrado trabalhos avulsos ultimamente?
Fit respondeu casual e calmamente:
— Às vezes encontro, sim.
— Claro. Porque a pensão que o governo dá para veteranos de guerra não é tanto dinheiro assim — Bad disse, soando pouco convencido.
Fit o encarou de canto de olho, alerta, mas manteve-se firme e calmo, como se não existisse nada além dos motivos que Bad acabara de apontar.
— Exatamente, como eu já te disse antes.
— Ah, não, sim, exato. Aham. Com o que você costuma trabalhar quando encontra essas vagas?
— Por que todas essas perguntas de repente? — ele perguntou, mas soava bem humorado. Bad precisou usar sua desculpa de emergência:
— Ah, só curiosidade. Eu tenho que contratar pessoas para me ajudarem com o hotel, sabe, então estava só checando com você.
Se a explicação plausível de Bad para tocar naquele assunto fez Fit relaxar, ele não demonstrou. Mantinha a mesma postura desde o começo da conversa.
— Está tentando me oferecer um emprego?
— Talvez, quem sabe? Se você estiver interessado.
— Bom, eu agradeço, Bad. Vou pensar sobre, não tenho certeza se tenho porte para isso, ou se isso se encaixaria na minha rotina e na do Ramón, mas talvez a gente possa discutir isso depois.
Bad sentiu uma gota de suor escorrendo pelo seu rosto e o estômago meio embrulhado quando, tomando coragem, decidiu falar:
— Tem certeza? Eu realmente estava precisando de ajuda… Talvez eu vá precisar de um zelador…
A única reação de Fit foi levantar as sobrancelhas levemente por um momento, mas ele rapidamente se recuperou. O gesto foi discreto o suficiente para que, se Bad não soubesse do que sabia, jamais o estranharia ou pensaria duas vezes sobre. Então, rindo, Fit comentou:
— Está querendo que eu vá limpar seus banheiros, Bad?
— Ah, não! Só dando alguns exemplos.
Naquele momento, Dapper e Ramón saíram da escola juntos, conversando alegremente. Ao ver seu pai conversando com Fit, no entanto, o filho de Bad segurou o amigo para não deixá-lo se aproximar, dando espaço para os adultos se resolverem. Fit não os notou, mas Bad sim, o que o fez se apressar.
— Sabe, Fit, você devia vir à minha casa para a gente botar a conversa em dia. O que acha? Deixamos as crianças brincando e aí conseguimos bater um papo, acho que eles vão gostar. Você não veio para cá de carro mesmo, veio?
— Espera, você quer que a gente te visite hoje?
— É! Por que não?
— Wow, calma aí, eu não sei se posso. A gente não planejou nada, você devia ter falado sobre isso comigo antes.
— Ah, vamos lá, Dapper está querendo brincar com o Ramón faz tempo.
— Bom, sim, mas o motivo para eles não terem feito isso antes foi porque você começou a me evitar de repente.
— Já te disse, eu não estava te evitando, eu estive ocupado! Olha só, Dapper! Ramón! Venham aqui!
— Espera, Bad…
As duas crianças se aproximaram, felizes, e Fit suspirou. Bad, fazendo-se de tonto, curvou-se com as mãos nos joelhos para falar com os mais novos e animadamente propôs sua ideia. Os dois pequenos mal se aguentaram de empolgação.
— Pai, por favor! Podemos visitar eles? — Ramón imediatamente pediu.
— Ramón, hoje não é um bom dia para isso. É quarta-feira, meu garoto, você tem aula amanhã, eu tenho que trabalhar amanhã…
— Mas por favor! Eu não visito o Dapper há tanto tempo, e a gente estava falando dos nossos planos justo agora!
Se Bad sabia algo sobre o misterioso e indecifrável Fit, era de seu carinho pelo filho. Depois de semanas sem visitar seu amigo como estava acostumado, oferecer-lhe aquela oportunidade só para negá-la em seguida era como arrancar doce de criança. Bad havia jogado baixo, e sabia. Fit suspirou, pensativo, e então concluiu, a contra-gosto:
— Certo, ok…
— Ótimo! — Bad se apressou em dizer — Venham, vou dar carona para vocês. O Fit pode ficar no hotel enquanto vocês dois brincam um pouco, o que acham?
— SIM! — Dapper respondeu. Fit permaneceu quieto, visivelmente incomodado pelas atitudes evasivas de Bad, mas consciente de que havia sido capturado pela armadilha e não tinha muito o que fazer no momento.
Por sorte, não houve muito espaço para desconforto na viagem de carro. Com o rádio ligado e as crianças conversando energicamente, Bad Boy Halo apenas precisou se concentrar no volante e ignorar a tensão que causara com Fit até eles chegarem ao destino.
No hotel, as crianças imediatamente foram brincar, enquanto Bad agia cordialmente e fingia não perceber a dessatisfação de Fit. Guiou-o até o salão de refeições, onde sentia-se mais à vontade para pressioná-lo sobre o assunto Federação do que se sentia a céu aberto, na saída da escola.
— Sinta-se em casa! — Bad forçou um sorriso.
Sem desviar a atenção dele, Fit cuidadosamente sentou-se em uma das cadeiras. Bad, se achando esperto, ofereceu:
— Você quer beber alguma coisa? Eu posso fazer um chá!
— Estou bem, obrigado.
— Ah, achei mesmo que você não ia querer… Afinal, sabe o que dizem, né? Pessoas que trabalham com limpeza por muito tempo enjoam de chá.
Fit o encarou, completamente confuso.
— Espera, o quê?
— É, algo sobre o cheiro de produtos de limpeza lembrá-los de chá… Tenho certeza de que li isso em algum lugar.
— Isso… Não faz o manor sentido. E eu não lembro de te falar algo sobre trabalhar com limpeza.
— Espera, você não disse? — Bad sentou-se em frente a ele — Caramba, eu podia jurar que tinha dito… Ah, eu lembro agora! É uma história engraçada, na verdade, haha… Tipo, um dos meus hóspedes me disse que vinha visitando a CCRP ultimamente, e que por algum motivo tinha só uma pessoa trabalhando lá que não usava o uniforme branco deles: o zelador. E a descrição dele batia certinho com você, então eu pensei “Uau, que coincidência! Mas eu sei que meu amigo Fit não trabalha lá!” Desculpa, eu devo ter confundido as informações na minha mente, sabe como é!
Depois de alguns instantes de pura confusão, Fit colocou a mão na testa e deu uma risadinha, enquanto Bad o olhava com expectativa. Então, o visitante disse:
— Bad, da próxima vez que você quiser me perguntar algo, pode ir em frente e perguntar, você não precisa me arrastar até o seu hotel para fazer isso. Sim, eu de vez em quando trabalho no Census of Communications, Research & Power, se é isso que quer saber.
Bad definitivamente não esperava que ele fosse tão franco e direto. Agitado, ele gaguejou:
— E-espera, então por que você não se veste como eles?
— Porque eu não fui oficialmente contratado, trabalho meio período e nunca assinei nenhum contrato. Eles podem me pedir para não vir mais trabalhar a qualquer momento se quiserem, e eu sei que existem outras pessoas na equipe de limpeza que têm contrato e que usam aquelas máscaras.
Bad ficou encarando-o, ainda surpreso.
— … Ah. Espera, por que você não assinou o contrato, então?
— Gosto da ideia de poder sair quando eu quiser. Não é o trabalho ideal, mas a oportunidade apareceu para mim no lugar certo e na hora certa. Você sabe como o urso é, ele quer sempre garantir que as pessoas da ilha estão satisfeitas, então ele me ofereceu um trabalho quando eu precisava.
Bad processava as informações. Fit cruzou os braços, despreocupado.
— Tem mais alguma coisa que você queira me perguntar?
— Bem, eu… — Bad chacoalhou a cabeça, tentando focar. Sentiu-se sob pressão de lembrar tudo o que deveria lembrar de perguntar, ainda mais porque não acreditava que chegaria àquele ponto tão facilmente — Você viu um cara chamado Cellbit lá?
— Normalmente, eu não converso muito com os meus colegas. Eles não são muito faladores, se é que me entende.
— Mas ele não é um trabalhador sem rosto, ele ainda usa roupas normais.
— Hm… Tem um cara novo que eu vi, ele parece estar treinando para se tornar um trabalhador sem rosto. Acho que isso significa que ele não assinou um contrato ainda, mas eu tenho certeza de que ele vai ter que usar o uniforme padrão assim que terminar o processo de contratação.
— E você sabe como esse processo é? Tipo, por que eles não falam nada?
Negando com a cabeça, Fit deu de ombros com as palmas das mãos para cima.
— Desculpa, não sou oficialmente contratado, como te disse, então não sei os detalhes. Eles são bem sigilosos por lá, eu sei pouco mais do que você.
Bad suspirou, pensativo: aquilo não ajudava em nada quanto ao veredito de Cellbit ser ou não um traidor. Fit o encarava com expectativa.
— Isso é tudo, Bad?
— Acho que sim. Por que você não me falou antes que você trabalha na CCRP?
— Bom, você nunca perguntou. Eu não saio falando sobre isso para a ilha inteira, especialmente considerando a natureza sigilosa deles, mas eu não necessariamente tento esconder isso.
Ao dizer aquilo, a porta do salão de refeições foi aberta e quatro crianças entraram: além de seu filho e o amigo dele, havia duas outras crianças que Fit não reconheceu, uma loira com boina e outra de cabelos escuros e cacheados cobrindo os olhos. Ramón e Dapper se aproximaram dos adultos, agitados.
— Precisamos de ajuda!
— Claro, está tudo bem?
Os dois responderam positivamente e trocaram olhares. Então, Dapper falou:
— Então. A gente queria brincar de restaurante, mas ninguém quer ser cliente. Vocês podem ser os nossos clientes para que nós quatro possamos ser os cozinheiros e garçons?
Bad respondeu primeiro.
— Sinto muito, crianças, preciso fazer o jantar na vida real. Mas ei, Fit, você devia ficar e jantar com a gente, é o mínimo que posso fazer. O que acha?
— SIM, PAI, POR FAVOR! — Ramón imediatamente pediu, sorrindo. Fit deu de ombros, cansado.
— Claro, por que não.
Os dois celebraram, e Bad se afastou até a cozinha. A menininha que Fit não conhecia se manifestou:
— Ei, a gente não pode ter um restaurante com um cliente só! O que a gente faz?
A outra criança desconhecida teve uma ideia:
— Oh, eu posso pedir para os meus dois pais virem!
— Boa ideia! Vou fazer o mesmo!
Eles saíram do cômodo. Ramón reiterou para o pai que esperasse ali, e então se afastou junto com Dapper. Sem ter mais o que fazer, Fit esperou.
Enquanto isso, em outro andar do hotel, Pac estava no quarto vazio de Cellbit e Felps, para poder assistir à TV enquanto Mike cortava o cabelo de alguém no quarto ao lado. Buscando algo para se distrair, ele acabou encontrando um canal em que passava o filme musical infantil Papai Noel vai pro Ensino Médio, que era tão ruim em todos os sentidos quanto era de se esperar e, mesmo assim, Pac acabara entretido e investido na história.
“Sininho, Belém, se alguém vir dois elfos no meu armário, vou ser expulso da escola! O que estão fazendo aqui?”
“Queremos garantir que você não vai estragar o natal, chefe!”
Justo naquele momento de grande tensão do filme, a porta do quarto em que Pac estava foi aberta estrondosamente e Richarlyson entrou, demandando ajuda e sua presença no salão de refeições.
— Richas, estou assistindo filme!
O mais novo olhou para a tela.
“Relaxa, chefe, ela não pode nos ver. Mas se descobrirem que você é o Papai Noel, o feitiço do Papai Inverno vai ser quebrado!”
— Ah, o do Papai Noel no ensino médio? Isso aí reprisa o tempo todo, desde que a gente chegou em Hatchetfield eu já vi passando na TV umas três vezes. Vem, outro dia você assiste! — Richas disse, desligando a televisão e segurando o pai pelo braço.
— Meu Deus, Richarlyson, calma! Deixa eu pelo menos colocar minha prótese antes.
Saindo do quarto, a francesa Pomme os esperava. Ela disse alguma coisa sobre ter que levar a comida no quarto para seus cuidadores, o que só deixou Pac mais confuso, e então Richas o puxou para o salão de refeições. Guiou seu pai até uma cadeira e o fez sentar lá, anunciando:
— Fica aí, Pac, você vai ser cliente do nosso restaurante.
— Restaurante?
Mas Richarlyson saiu, deixando-o sozinho com um outro homem que ele nunca vira antes. Pac sorriu nervoso para o desconhecido, puxando assunto.
— Ai, essas crianças…
— Nem me diga — o homem respondeu, simpático.
— Espera, não acho que te conheço. Você é algum novo hóspede?
— Ah, não, estou aqui pelo meu filho, Ramón. Ele é amigo do filho do dono.
— Ah, amigo do Dapper? Legal!
Fit se levantou para sentar ao lado do moço.
— Então você conhece a criança.
— Meu filho brinca com ele o tempo todo.
— Entendi. Por acaso você e seu parceiro estão na cidade faz tempo?
— Espera, o quê? Meu parceiro? — Pac o olhou confuso.
— Seu filho falou que ia “chamar os dois pais dele”.
— Ah! — Pac riu — Não, não somos parceiros, é que só dois de nós estão no hotel agora, mas eu e meus três amigos adotamos o Richarlyson juntos, se é que dá para acreditar.
— Na verdade, acredito sim. Co-parentesco platônico é mais comum nesta cidade do que você pensa.
— É o que ouvi falar. Eu sou o Pac, aliás.
— Prazer em te conhecer, meu nome é Fit.
As quatro crianças apareceram de novo, levando consigo em uma bandeja real que Dapper devia ter pegado na cozinha sem seu pai perceber, comidinhas de plástico super coloridas e massinha modelada em formato de diferentes alimentos.
— Aqui está o jantar dos senhores — Dapper disse, parecendo orgulhoso de si mesmo. Ele e seus três amigos olharam cheios de expectativa para os adultos, e Fit fingiu uma mordida caricata de uma das comidinhas falsas.
— Hmm! — ele disse, mastigando o ar com gosto — Uau, meus parabéns aos chefes, que comida deliciosa!
Pac fez a mesma coisa, arregalando os olhos, impressionado.
— Ai meu Deus, essa é a melhor coisa que eu já comi! Quem cozinhou isso?
Aquilo agradou as crianças. Pomme disse que ia levar um pouco a seus cuidadores, enquanto Dapper correu até a cozinha do hotel para servir a comida de brinquedo a seu pai também. Bad aproveitou a oportunidade para discretamente dar uma espiada no salão de refeições, onde viu Fit e Pac conversando casualmente, junto com seus respectivos filhos. Ele tinha a sensação de que tinha alguma coisa que esquecera de perguntar a Fit, algum detalhe que não se encaixava na história… Mas talvez tivesse que deixar isso para lá agora.
───────•••───────
Quando Ramón e Fit voltaram para casa à noite, a primeira coisa que o menino fez foi ir tomar banho, e enquanto isso, Fit sentou-se na sala e pegou o laptop. Esperando o computador ligar, ele olhou ao redor, atento, por mais que logicamente soubesse que não havia ninguém mais ali. Então, rapidamente, abriu um arquivo intitulado RELATÓRIO #64, o qual achava que já havia concluído, porém os acontecimentos do dia deram-no muito mais do que falar.
31 de maio: Cidadão de Hatchetfield Bad Boy Halo me abordou na saída da escola de Ensino Fundamental I da cidade e iniciou uma conversa comigo. Ele exibiu comportamento estranho, balbuciando sem sentido enquanto tentava encobrir o tom investigativo por trás de suas perguntas sobre a veracidade da minha situação de trabalho e da minha posição como veterano de guerra. Baseado no que ele revelaria posteriormente, tudo indica que suas suspeitas surgiram devido ao fato de que ele conhece Cellbit, o atual treineiro no Census of Communications, Research & Power (como já mencionado em outras instâncias do RELATÓRIO #64).
Depois de Bad Boy Halo insistir firmemente no assunto e se recusar a aceitar respostas mais vagas, concluí que a melhor forma de acabar com quaisquer suspeitas por parte dele seria revelando pequenas parcelas da verdade e agindo da forma mais casual possível, como se sua hesitação quanto a trazer o assunto à tona fosse não justificada e/ou inexplicável para mim. Isso o fez se acalmar e ele eventualmente se deu por satisfeito pelas minhas respostas.
Acredito que não há necessidade de se preocupar quanto a essa ocorrência, dado que nada foi revelado além da minha posição como zelador não contratado e trabalhando meio período, além de informações básicas a respeito da burocracia presente no Census of Communications, Research & Power. Foi, ao mesmo tempo, suficiente para ele, como alguém que desconfia da Federação, acreditar nas informações que lhe foram passadas, e suficiente para que ele deixasse de suspeitar de mim.
Foi possível ouvir o som do chuveiro sendo desligado. Fit fechou o arquivo, tomando todas as precauções de sempre de mantê-lo secreto, e abriu seus e-mails casualmente; finalizaria o relatório mais tarde. Pouco depois, ouviu os passos se aproximando, acompanhados da voz:
— Pai, podemos jogar videogame antes de ir dormir?
Fit se virou para ver Ramón, que segurava uma de suas pelúcias favoritas: um gato branco com um olho de cada cor. Fechando a tela do laptop, ele sorriu para o filho e acariciou-lhe os cabelos.
— Claro que podemos, meu garoto.
Notes:
Com QSMP se aproximando do seu aniversário de 2 anos (o que parece mentira, não acredito que já passou tanto tempo) e a minha demora tão incomum para postar considerando a rapidez com que eu costumo atualizar Hatchet Town, fiquei com medo de perder os poucos possíveis leitores que nem sei se tenho. Mas se alguém ainda está interessado pela história, saiba que eu não abandonei a fanfic! Só tive muita dificuldade de juntar minhas ideias em algo coerente para formalizar este capítulo, e com o natal e ano novo, me enrolei ainda mais. Mas é isso, agradeço por quem ainda está aqui :) Não sei se vou continuar sendo tão rápida para postar novos capítulos, mas serão postados com certeza
Chapter 17: Semana cheia
Notes:
(See the end of the chapter for notes.)
Chapter Text
Roier movia-se no modo automático.
Sentado em frente ao amplo espelho com lâmpadas que ajudavam a iluminar o camarim escuro, usando uma wig cap para cobrir os cabelos, ele já havia selecionado a paleta de cores para sua maquiagem, e agora só passava os pinceis e esponjinhas no rosto, rotineiramente. Não precisava pensar muito a fundo nos movimentos repetitivos, o que abria espaço para sua mente navegar pelas preocupações.
Cellbit havia avisado que daria uma sumida, que faria o que fosse preciso para encontrar seu amigo, que Roier deveria acreditar nele apesar de tudo… E ele acreditava, mas ver Maximus vindo contatá-lo para compartilhar que “Cellbit era um traíra”, “Cellbit foi filho da puta”, aquilo tudo o abalava. Ele esperava que estivesse tudo bem com o homem de quem tanto gostava, mas não era como se tivesse uma maneira de ter certeza no momento. Roier precisava esperar, e a espera pesava.
— ¡Melissa! ¿Como estás, mi amor?
Roier virou a cabeça ao ouvir seu nome drag sendo chamado pela voz tão facilmente reconhecível: era uma de suas melhores amigas nas Casualonas, Mouse. Apesar de saber que aquele era o nome real dela, no meio drag existia o costume de referir-se às respectivas performers pelos seus nomes artísticos, de forma que ele respondeu:
— ¡Te extrañe, Iron Maiden! — e os dois se cumprimentaram com um beijo na bochecha, a moça inclinando-se para que Roier não precisasse se levantar.
Mesmo quando não estava montada como Iron Maiden, Mouse passava grande energia de drag, na opinião de Roier. Talvez fosse por seu cabelo colorido e volumoso, talvez pelas roupas extravagantes que costumava usar até mesmo no dia a dia. No momento, entretanto, ela vestia camiseta simples e calça jeans, para que, quando trocasse de roupa para se montar, não estragasse a maquiagem que ainda não havia começado a fazer.
— Tudo bem, diva? — ela perguntou, de pé ao lado dele, sua mão no ombro do amigo enquanto o encarava através do espelho — Você parece meio pra baixo.
— Estou bem, só… Essa foi uma semana cheia, sabe?
— Hm, sei.
A alguns metros deles, outra drag queen, Chris Meletricity, entrou na conversa, enquanto colocava cílios postiços.
— Não, a Melissa tá meio estranha mesmo hoje. Tá tão quieta, ela não costuma ser assim não.
Perdido nos próprios pensamentos, Roier quase havia esquecido de quantas pessoas estavam ao seu redor. Mouse se agachou ao seu lado, para poder ser ouvida por ele quando falasse mais baixo.
— Se você não estiver com cabeça para performar hoje, pode ir para casa. Não tem problema, a gente te cobre.
— Não, eu vim aqui justamente por isso, para me distrair. Achei que ficar em casa seria pior — Roier disse, inclinando-se um pouco para frente para se enxergar melhor no espelho enquanto passava contorno.
— Tem certeza? Quer que eu chame o Vegetta?
— Não, sério, tá de boa. Se eu não conseguir me distrair hoje, eu vejo de cancelar minha apresentação de amanhã.
Depois de lançar-lhe um último olhar preocupado, Mouse se acomodou na cadeira ao lado dele e começou a procurar o que precisava em sua bolsa de maquiagem, ainda mantendo a conversa com ele.
— Hoje você só vai fazer as lip syncs normais? — ela perguntou.
— Isso.
— Mas você não vai usar as músicas de sempre não, né? Se você estiver sentindo algo, precisa descontar na performance. Já que você disse que está tendo dias meio difíceis, talvez algo mais lento ou sentimental vá ser bom.
— Eu pensei sobre isso, mas será que já não está muito em cima da hora para mudar?
— Amiga, melhor mudar do que ser obrigada a fazer lip sync de uma música que você não está na vibe.
Roier não podia discordar daquilo.
— Quem está de DJ, o Maximus?
— Não, hoje é Lilia DeLusion. Eu tenho tempo ainda, deixa que eu falo com elu lá rapidinho enquanto você termina a maquiagem. Já tem ideia de alguma música?
— Eu estava pensando, tipo… — Roier bateu o pincel na embalagem para tirar o excesso de maquiagem, pensando — Bom, eu pensei em Your Song do Elton John, mas eu não consegui ter ideia nenhuma para as duas outras músicas que eu vou ter que apresentar…
— Ah, beleza, saquei a vibe. Deixa comigo, volto já já.
Roier relaxou um pouco. A parceria de sua amiga foi uma ótima lembrança de como ele gostava da Las Casualonas, de seus colegas, de performar. Realmente havia feito a escolha certa ao decidir ir fazer o show, ao invés de remoer suas mágoas na calmaria de casa. Decidiu focar sua atenção nas várias conversas paralelas que aconteciam no camarim, para se deixar distrair por elas e tentar se descontrair um pouco das tensões da vida real.
— Bicha, cadê minha peruca? Becka Topp, você viu?
— Meu Deus, como esse lugar está abafado, minha maquiagem já está começando a derreter!
— ‘Cê acredita, menina? A Daisy Summers simplesmente escorregou e caiu no meio da lip sync. O pior pesadelo de qualquer drag queen…
Ah, como Roier adorava aquele lugar…
───────•••───────
De madrugada, o carro roxo se aproximou do terreno cujas flores das árvores tinham essa mesma cor. Roier vinha acompanhando as músicas do rádio, cantando alto com elas e se embolando na maior parte das letras, muitas vezes substituindo as palavras por murmúrios como “ta-nã-nã-nã”. O veículo estacionou, e ele demorou alguns segundos para perceber que precisava descer.
— Gracias por la aventón, Foolish — Roier disse, alcoolizado e alegrinho, abrindo a porta para sair do carro.
— Wait, what? — ele respondeu.
Ele não havia percebido a língua que usara. Forçando o cérebro um pouco, ele se ajustou ao inglês que o amigo que entenderia.
— A carona. Valeu pela carona — Roier traduziu.
— Ah, de nada. Se cuida, tá bom? Se precisar de qualquer coisa, pode ligar para mim ou para o Vegetta a qualquer hora.
— Não se preocupa. Eu só estava… precisando de distração. A Casualonas foi perfeita para isso. Enfim, te vejo amanhã, daddy!
Foolish sentiu as bochechas corando e, enquanto Roier se afastava, ele abriu o vidro para gritar:
— CARA, EU JÁ TE DISSE, ISSO SOA ESQUISITO PRA CARALHO! EU SEI QUE EU ESTOU NAMORANDO O SEU PADRINHO, MAS MESMO ASSIM!
Roier riu e seguiu o caminho até a construção principal, cantarolando a última música que tocara no rádio. Foolish só deu ré e se afastou para ir embora quando teve certeza de que o mais novo conseguira atravessar a ponte de pedra em segurança, sem cair no laguinho.
Enquanto Roier lutava para encontrar a chave certa no molho de chaves para entrar em casa, sentiu uma sombra se movendo na escuridão do quintal. Meio paralizado pelo medo, ele moveu-se devagar para pegar o celular no bolso, e acendeu a tela para que a luz o ajudasse a enxergar. Então, virou-se para o lado e…
— Roier? — uma voz conhecida veio daquela direção, a pessoa cobrindo os olhos com as mãos diante da luz em seu rosto — Espera, você está usando batom e lápis de olho?!
— PUTA MADRE, QUACKITY, VOCÊ ME DEU UM PUTA DE UM SUSTO, SEU ESTÚPIDO!
— E como é que eu ia sair da porra do escuro no meio da noite sem te dar um puta de um susto?!
Roier se curvou dramaticamente, respirando rápido e colocando a mão no peito, sentindo o coração disparado.
— Por que caralhos você está aqui, de qualquer jeito? Está tão tarde!
Quackity, que estava até então deitado no banco externo, sentou-se.
— É, eu percebi. Eu vim porque eu precisava falar com você, mas você não estava aqui! Eu perguntei para a Jaiden se eu podia esperar lá dentro, mas ela disse para eu ir embora e voltar amanhã, então eu decidi te esperar aqui.
— E por que não voltar amanhã como ela te disse para fazer?
— ERA URGENTE! E COMO EU IA ADIVINHAR QUE VOCÊ VOLTARIA TÃO TARDE? Ugh, olha, não importa mais, só me deixa falar o que eu precisava te falar.
— Mañana, Quackity, estoy cansado — Roier respondeu, sem energia, se abaixando para pegar as chaves que derrubara no chão. Quando fez isso, o mundo inteiro pareceu girar à sua volta, e ele precisou se apoiar para não cair.
— O quê? Não, eu não vou esperar até amanhã, e eu não ligo se você está cansado, eu também estou! Até caí no sono esperando por você.
— Eu não sou responsável pelas suas decisões ruins — ele disse, grunhindo, lutando para conseguir pegar as chaves.
— Puta merda, você está bêbado?
— Estou. Talvez da próxima vez você devesse escutar a minha colega de quarto quando ela te diz para voltar no dia seguinte para conseguir falar comigo.
Impaciente, Quackity se curvou e pegou as chaves para ele. Roier se segurou na porta para, com dificuldade, deixar o corpo ereto novamente, pegando as chaves com Quackity em seguida.
— Vai, Roier, é importante!
— Quackity, olha para mim. Você realmente acha que eu estou em condições de te ouvir reclamando na minha orelha por meia hora?
O professor gaguejou, tentando criar argumentos na hora e falhando.
— É, mas, bom, hmmmm…
— Vai para casa.
Quackity desistiu da fachada sarcástica e deixou o rosto expressar seu desespero.
— Por favor, não faz isso. Eu vim de trem, não dá mais para eu voltar para casa agora, a estação já está fechada faz tempo a essa altura.
Roier o encarou sem paciência. Seu velho amigo parecia quase patético, implorando para não ter de encarar as consequências das próprias ações irresponsáveis, teimosas e impulsivas. Roier não lhe devia nada e, mesmo assim…
— Tá. Pode dormir no sofá, a gente conversa amanhã.
— Valeu, mano…
Os dois entraram, tentando fazer silêncio. Quackity olhou ao redor, curioso, pois não visitava aquele lugar já havia algum tempo. Mesmo na madrugada, quando tudo parece um pouco mais assustador do que o comum, o ambiente ainda passava a sensação de agradável, por algum motivo: algo sobre a lâmpada amarelada, o cobertorzinho infantil no sofá grande e confortável, o cheiro amadeirado dos móveis, as grandes janelas com visão para o céu estrelado e lua brilhante…
Roier segurou no corrimão da escada e se apoiou nele como se aquilo fosse uma corda de escalada para subir os degraus até o segundo andar, e era difícil dizer se ele fazia aquilo por causa de uma ideia impulsiva de sua mente bêbada, ou se era uma forma dele se segurar para não cair. Sem dar atenção a ele, Quackity sentou-se cuidadosamente no sofá, olhando ao redor, e tentou não pensar em todos os seus arrependimentos — o que já era quase impossível na maior parte do tempo, mas de alguma forma, o ambiente tão confortável parecia, paradoxalmente, ampliar aquele sentimento ainda mais. Para piorar, ele notou que alguns dos quadros nas paredes tinham fotos em que Tilín aparecia… É, aquela seria uma longa noite.
───────•••───────
Jaiden levantou de bom humor na manhã de sábado: era ótimo acordar naturalmente, e não com um despertador apitando na sua orelha como nos dias de semana. Ela cumprimentou seus dois papagaios, Ari e Hatsune Miku, e alimentou-os antes de sair do quarto.
A primeira coisa que Jaiden fez depois disso foi abrir de leve a porta do quarto mais próximo, o de Roier, para garantir que ele havia chegado em segurança na noite passada. Ao constatar que ele estava lá, jogado na cama, dormindo como uma pedra, ela fechou a porta com cuidado e se afastou.
Seu próximo passo foi subir até o sótão, onde ficava o quarto de Bobby. Ela encontrou o filho deitado de bruços na cama, brincando com alguns bichinhos de pelúcia.
— Buenos días, Bobby. Está acordado faz tempo?
— Não, acabei de acordar. Estou com fome.
— Vem, vamos tomar café da manhã.
Os dois desceram juntos até o térreo, Jaiden indo na frente, alegre e descontraída. Mas assim que chegaram à sala, ela deu um grito.
No sofá, Quackity acordou em um pulo, confuso e desnorteado, e deu de cara com dois rostos conhecidos encarando-o, uma mãe assustada e seu filho irritado.
— Como caralhos você entrou aqui?! — Jaiden indagou.
— Bom dia para você também, eu hein. O Roier me deixou entrar.
— Como assim ele-- Quackity, por acaso ontem você ficou no nosso quintal esperando ele voltar?
— Não! — ele cruzou os braços e desviou o olhar — … Talvez.
Bobby revirou os olhos.
— Dios mío, cabrón, como eres imbécil…
— ¡Chingas a tu madre, Bobby pendejo!
— Ei, eu entendo espanhol o suficiente para saber que você está xingando meu filho! Se comporta, cara, ou te expulso daqui e digo para o Roier que ele vai precisar te encontrar em outro lugar para você falar com ele.
— Ugh, tá bom.
Jaiden deu as costas a ele, se afastando. Bobby mostrou-lhe a língua antes de seguir a mãe.
— JAIDEN, CONTROLA O SEU FILHO, POR FAVOR!
— Você entrou na casa dele para incomodá-lo, então vai ter que lidar com isso! — ela gritou da cozinha.
Apesar de tudo, quando mãe e filho voltaram à sala, levando o café da manhã até a mesa, Jaiden disse, à contra-gosto:
— Olha, Quackity, a gente tem cereal, leite e frutas, e eu fiz uns waffles também. Pode se servir.
Bobby encarou seu professor de espanhol, de cara fechada, enquanto colocava leite em sua tigela de cereal. Hesitante, Quackity pegou um waffle puro e deu uma mordida.
— Sabe, acho que eu devia ir acordar o Roier.
— Ele está cansado, Quackity, deixa o cara dormir.
Bobby virou a cabeça para olhar Jaiden, parecendo um pouco confuso.
— Mas, mãe… O papai não trabalha hoje?
Jaiden arfou em meio à mastigação e arregalou os olhos.
— Puta merda, é verdade! — ela exclamou, falando com a boca cheia e cobrindo-a com uma das mãos antes de levantar-se da mesa — Esqueci que ele trabalha de sábado. Volto já!
Enquanto Jaiden se afastava, Quackity olhou para ela e depois para Bobby, e hesitou por um instante. Então, decidiu segui-la escada acima.
Jaiden bateu na porta do quarto do amigo e então entrou lá, falando com ele para acordá-lo. Roier grunhiu, sem se mexer na cama, enquanto Quackity observava de fora do cômodo.
Ao abrir os olhos com relutância, sentindo-se desnorteado, cansado e com dor de cabeça, o humor dele não pareceu melhorar quando viu a cara de Quackity logo depois de acordar. Roier foi até a cozinha em um andar arrastado, e lá pegou um remédio para ressaca e um café, ainda sem falar nada. Depois que ele largou seu peso em uma das cadeiras, parecendo um sonâmbulo, o ansioso Quackity parou de pé ao seu lado, segurando no encosto de outro dos assentos, um de seus pés batendo no chão em um movimento repetitivo.
— E então? Podemos conversar? A sós, de preferência — ele cobrou. Roier o encarou com os olhos semicerrados.
— A gente realmente precisa fazer isso agora, né? Ok, vamos lá.
Eles voltaram aos bancos no exterior da casa, onde o visitante havia ficado esperando na noite passada. Roier ajustou o roupão que usava como pijama e tomou um gole de café, enquanto Quackity tirava um cigarro do maço e acendia um isqueiro. Com as mangas mais curtas em sua roupa, Roier pôde notar que ele ainda mantinha um laço vermelho no pulso, o mesmo laço, mesmo depois de todos aqueles meses. Quackity deu uma tragada nervosa antes de começar a falar.
— Olha, eu sei que você acha minha presença irritante. Quando você veio me procurar umas semanas atrás, dizendo que queria “colocar o assunto em dia”, sabe, por um momento eu fiquei muito aliviado. Achei que eu ia ter meu melhor amigo de volta. Mas aquilo não nos levou a lugar nenhum, você mal falou comigo desde aquele dia, então eu entendi sua mensagem perfeitamente: você não me quer por perto, tudo bem. Mas eu prefiro ser um peso do que ficar sozinho agora, porque tem algo acontecendo comigo e eu não sei o que é, e sinceramente, eu estou assustado e confuso. Eu não sabia a quem mais recorrer.
Sua perna tremia ansiosamente e ele ajustou a touca em sua cabeça com a mesma mão que segurava o cigarro, a outra abraçando o próprio corpo. Roier apenas o encarava em silêncio, a fumaça que saía de sua xícara misturando-se à fumaça do tabaco.
— Algo não está certo, Roier. Eu sinto que tem alguém tentando assumir o controle da minha vida.
Roier levantou uma das sobrancelhas, sem saber se havia entendido corretamente ou não.
— Como assim?
Quackity mudou de posição no banco, virando-se mais para o lado e dobrando um pouco uma das pernas.
— Aconteceu mais de uma vez. Houve dias em que… eu não conseguia sair da cama. Mesmo que eu precisasse ir trabalhar, eu não conseguia me forçar a fazer isso. Eu ficava pronto para a escola me ligar exigindo uma explicação para eu não ter aparecido, mas nada acontecia. Aí, quando eu voltava para o trabalho no dia seguinte, as pessoas me tratavam como se eu tivesse estado lá…? Eu abria o livro de espanhol para começar uma atividade e os alunos diziam que “nós já fizemos esse exercício ontem”. Colegas faziam referências a conversas que aparentemente nós tivemos, mas das quais eu não tinha memória alguma. Pessoas me perguntavam se estava tudo bem, porque eu parecia muito mais energético no dia anterior…
Os dedos com que Quackity segurava o cigarro pareciam tremer um pouco, mas poderia ser apenas impressão, ou um gesto para afastar o excesso de cinzas na bituca.
— Não são só os dias em que eu não saio de casa, eu também tenho rombos aleatórios na minha memória, em que eu esqueço dias inteiros. Tipo, às vezes, eu estou só vivendo a minha vida normalmente, aí minha mente apaga e eu acordo em casa, e quando vou checar o horário, vejo que dias se passaram. É assustador pra caralho… E de novo, ninguém nota que eu sumi, o que, bem… Nisso eu acreditariam se não fosse pela porra da escola em que eu trabalho, onde tem registros de que eu estive presente nesses dias, e as pessoas agindo como se eu tivesse estado lá!
Roier não sabia o que dizer; mal conseguia alinhar os próprios pensamentos.
— Como você acha que isso é possível? — acabou perguntando.
— Eu não tenho ideia! Mas você entende o porquê de parecer que tem alguém tentando tomar o meu lugar? Eu nem sei por que alguém ia querer fazer isso, viver a minha vida — ele riu sem humor — Precisa ser bem idiota para querer ser eu.
— Mas quando isso começou?
Antes de responder à pergunta, ele inconscientemente tocou na fitinha em seu pulso, sem olhá-la.
— Acho que a primeira vez que eu acordei e descobri que dias tinham se passado foi, hm… Quando o incidente com Tilín aconteceu. Mas ficou um tempão sem acontecer nada depois disso, só mais recentemente que isso vem ficando mais e mais frequente. Alguns dias atrás mesmo isso aconteceu, Roier!
Quackity amassou sua bituca de cigarro e imediatamente pegou outro no maço, sem perder tempo antes de acendê-lo.
— Eu realmente não sei o que fazer…
Roier fechou os olhos com força e os coçou, tentando colocar os pensamentos no lugar.
— Merda, Quackity, eu também não sei o que fazer! Como eu deveria responder a isso?
Ele engoliu em seco e olhou ao redor, uma ruga preocupada entre as sobrancelhas.
— Bom, se algo acontecer comigo, pelo menos você sabe o que pode ter acontecido.
Nas condições em que Quackity estava, seria plausível assumir que tudo o que narrara não passava de delírios, porém considerando que estavam em Hatchetfield, uma explicação sobrenatural para aquilo era também bem possível. Roier tentou pensar em uma sugestão que ajudaria em qualquer um dos casos.
— Ok, eu tive uma ideia. Quer faltar no trabalho de propósito para que quando eu vá à escola buscar o Bobby eu possa ver se tem alguém lá tomando o seu lugar…?
— Ontem foi o último dia antes das férias de verão
— Merda.
Quackity bateu os dedos livres no apoio do banco de madeira, pensativo.
— Bom, vamos ter uma última reunião de professores na semana que vem, mesmo que as crianças não tenham mais aulas… Talvez a gente possa tentar com isso. Não teria motivo para você aparecer na escola porque o Bobby não vai estar lá, mas…
— Perfeito, é isso. Então você falta na reunião, mas a gente aparece lá depois juntos, enquanto ela estiver rolando, e a gente vê o que está acontecendo. O que acha?
— Ok. É. Isso pode funcionar — ele assentiu, pensativo.
Em seguida, Quackity se levantou para andar de um lado para o outro, o corpo recolhido. Depois de alguns instantes ponderando entre tragadas, ele se irritou:
— Mano, por que toda coisa estranha fica acontecendo comigo?! Porra, cara, eu não posso nem ser miserável em paz.
— Quackity, acho que você precisa de ajuda.
Ele virou a cabeça para encarar o amigo. Roier continuou:
— Você realmente devia fazer terapia. E eu não acho que você devia ficar sozinho agora — concluiu, se levantando também. Quackity suspirou, soltando fumaça.
— Estoy tan cansado, carnal. Soy un puto pendejo que jode con todo.
Roier segurou a caneca de café em suas mãos com força.
— Eu realmente fiquei chateado com você depois do que aconteceu com o Spreen, você sabe disso. Mas saiba também que eu ainda me importo com você.
Roier parou por alguns segundos, remoendo e pensando em tudo, inclusive na história que ele e Quackity tinham juntos. Percebeu que a conexão mais pessoal que sentia com sua língua materna parecia mais apropriado para o que queria dizer.
— Yo te perdono, Quackity, sólo no es fácil que las cosas vuelvan a la forma en que estaban — ele engoliu em seco. Não querendo soar mais tão pessoal, porque sabia que não tinha tempo de se emocionar no momento, ele voltou ao inglês — Mas me dói ver você se remoendo tanto assim.
Os dois ficaram em silêncio por algum tempo. Quackity não conseguia olhá-lo direito, apenas o espiava timidamente, inseguro. Enfim, Roier checou o horário no celular.
— Mira, necesito ir a chambear ahora. Voy a dejarte con uno de nuestros amigos, ¿ok?
Ele assentiu de leve, e Roier o deixou ali enquanto entrava para se arrumar para o trabalho. Jaiden estava em uma ligação no telefone que soava importante, de forma que ele não a incomodou e apenas caminhou até o banheiro enquanto mandava um torpedo para Missa, perguntando se ele conseguiria fazer companhia a Quackity. Quando guardou o celular no bolso, levantou o olhar, e foi a primeira vez que se viu no espelho desde a noite anterior: a visão o fez perceber que não havia tirado sua maquiagem tão bem quanto achou que tinha antes de sair bêbado das Casualonas.
Depois de lavar o rosto direito, ele vestiu o uniforme da loja enquanto escovava os dentes, para depois quase se desequilibrar ao tentar calçar seu tênis apressadamente. Jaiden desligou a chamada, e fez um comentário à família sobre coisas da vida de advogada, enquanto sentava-se ao lado de Bobby no sofá da sala. Roier se despediu dos dois e enfim saiu, ainda ajustando sua headband na cabeça, para encontrar Quackity ainda esperando-o no quintal. Ao vê-lo se aproximando, ele amassou sua bituca de cigarro e os seguiu até o carro.
Antes de ligar o motor do veículo, Roier conferiu o celular e viu que Missa havia respondido sua mensagem, dizendo que poderia sim abrigar o amigo. Enquanto guardava o telefone de volta no bolso, viu que Quackity abriu o vidro ao seu lado e já estava pronto para voltar a fumar.
— ¿Mais cigarros, Quackity? ¡Basta! — Roier chamou sua atenção.
— ¡Me deixa! Isso me dá uma acalmada.
— ¿Quantos você já fumou?
— Não sei…
— Basta, cabrón. Tranquilo, sem exagero.
Roier manobrou o carro e iniciou o percurso, enquanto o silêncio era preenchido pela rádio. Depois de alguns instantes sem falar, Quackity, apoiando o cotovelo na janela aberta e deixando o vento refrescá-lo, deu uma risadinha seca e sem humor.
— Fazia tempo que não me chamavam atenção por isso. Sabia que eu já tentei parar? Desisti disso há algum tempo, mas teve uma época em que eu estava progredindo, fumando menos a cada dia. Tilín odiava o cheiro, e sempre me dizia que isso ia me deixar doente e que ele não queria isso. Ele vinha correndo, bravo, toda vez que me ouvia acendendo isqueiro — contou, pensativo, e finalmente devolveu o cigarro ao maço, o qual guardandou de volta.
Roier demorou para pensar em uma forma de responder.
— Se te ajuda, eu gostaria que você parasse de fumar. Todos os nossos amigos gostariam.
Aquilo não pareceu afetá-lo. Os dois seguiram caminho sem conversas.
Missa morava no topo de um morro em uma casinha, junto com o marido psicólogo e dois filhos. Ele já os esperava do lado de fora quando estacionaram o carro, e ele acolheu o amigo com um sorrisinho, recebendo em resposta uma encarada vazia. Uma rápida troca de olhares com Roier trouxe a compreensão mútua entre eles sobre a situação: e lá vamos nessa novamente. Então, Missa levou a visita para dentro.
Antes de se afastar, Roier lhe mandou outra mensagem: tenta convencer ele a dar uma conversada com o Phil. Em seguida, ele deu partida no carro e foi até sua loja. Precisaria passar um cafézinho logo que chegasse — aquela longa semana ainda não havia acabado, e à noite, teria mais Casualonas.
Notes:
O elemento drag é uma das minhas partes favoritas em Hatchet Town, e me diverti muito criando os nomes dessas personagens!! A maioria deles veio como referências a diferentes músicas de diferentes musicais feitos pelo Team Starkid, os criadores originais do universo de Hatchetfield. Aos curiosos: Chris Meletricity = Christmas Electricity; Becka Topp = Back On Top; Daisy Summers = Days Of Summer
Chapter 18: You are part of the Hatchetfield Census Bureau
Notes:
(See the end of the chapter for notes.)
Chapter Text
Um dos motivos principais para Phil ter decidido construir sua casa em um dos pontos mais altos de Hatchetfield foi pela belíssima vista de lá, mas a calmaria por ficar um pouco mais isolado do resto da cidade também era um fator que ele considerava excelente sobre a moradia. Vivia uma vida que considerava tranquila, com seus dois filhos e o marido mexicano semi-platônico, além de ter flexibilidade o suficiente no ponto em que estava da carreira de psicólogo para conseguir investir tempo em seus hobbies, em especial a jardinagem: o solo fértil do seu jardim, combinado com sua determinação e tempo investido na atividade, traziam a garantia de que nunca lhe faltariam batatas e abacates.
E, apesar de tudo, sua rotina habitual foi interrompida com o hóspede que a família vinha acomodando nos últimos dias.
Phil entendia o porquê de precisarem abrigar Quackity, de verdade; não apenas porque sua compreensão sobre a psique humana deixava evidente a instabilidade dele naquele momento, mas também por não ser a primeira vez que Missa sentia a necessidade de ajudar o amigo daquela forma. Ao mesmo tempo, conviver com Quackity — principalmente com Quackity e Chayanne —, vinha com uma série de desafios.
Na terça-feira, no final da manhã, Phil vinha achando que a casa andava silenciosa demais, o que lhe trouxe grandes suspeitas. Ele foi ao jardim para checar se estava tudo bem e, como esperado, encontrou a comoção que não vinha ouvindo de dentro de casa: o filho mais velho da família ameaçava seu professor de espanhol com uma espada de madeira, querendo derrubá-lo no laguinho. Phil conseguiu chegar a tempo de chamar atenção do filho e de pedir para Quackity parar de insistir em tentar vencer discussões com uma criança de dez anos.
Foi bem nesse momento que Roier chegou para buscar Quackity, conforme o combinado, e todos pareceram aliviados que ele finalmente havia chegado. A conversa fiada foi curta antes de ele se despedir e levar o amigo embora, visto que os dois tinham um compromisso com hora marcada naquele dia.
— A reunião de professores provavelmente tá começando agora — Quackity disse, já dentro do carro, checando as horas — Acho que vamos chegar na escola num bom horário.
Verdade seja dita, nenhum dos dois sabia exatamente o que estava fazendo. Sabiam da teoria de Quackity de que alguém vinha “roubando sua vida”, assumindo seu lugar quando ele não estava presente, e ambos acreditavam que fazer Quackity faltar à reunião de propósito poderia atrair o suposto impostor para que pudessem vê-lo com os próprios olhos; contudo, não sabiam como se esconder, como deveriam reagir caso o vissem, nada disso, então a coisa toda não deixava de ser um verdadeiro tiro no escuro.
Quackity e Roier concordaram que estacionar o carro a algumas ruas de distância e ir andando até o edifício da escola seria uma boa ideia para maior discrição, mas os dois discordaram quando Quackity quis dar uma passadinha na loja da esquina para comprar cigarro.
— Não tem porque chamar tanta atenção assim pra você e ainda arriscar da gente não chegar lá a tempo, pendejo! — Roier lhe chamou atenção.
— Ainda tem bastante tempo!
Mesmo assim, eles acabaram passando reto pela vendinha.
Chegando à escola de ensino fundamental de Hatchetfield, uma árvore antiga no estacionamento foi suficiente para esconder os dois até a reunião de professores acabar. A vibe esquisita pairando entre os dois podia ser levemente constrangedora, porém acabava também sendo útil, porque os dois não conversando muito trazia menos risco de serem notados.
Então, lhes bastou esperar. Quackity se mantinha atento ao relógio, e acabou calculando bem o horário em que a reunião acabaria: pouco depois de ele cutucar Roier para lhe avisar que em breve os professores começariam a sair, a primeira pessoa chegou até o estacionamento. Em poucos minutos, vários a seguiram.
— Eu acho que a gente não tá mais bem escondido aqui agora… — Roier cochichou.
— Quackity?! — uma voz levemente esganiçada disse, vindo da esquerda deles.
Os dois amigos imediatamente olharam. Parada, encarando-os, estava uma moça de óculos, colete e saia, com seus cabelos ruivos presos em um coque: Roier imediatamente a identificou como Sra. Mulberry, que não apenas era a professora de música na escola de Ensino Fundamental, como também dava aulas na Hatchetfield High, de Ensino Médio, onde Roier havia estudado. Moral da história: além de Sra. Mulberry dar aula para Bobby, ela também havia sido professora de Roier alguns anos antes.
— Quackity, você não acabou de me dizer que precisava fazer uma coisa na sua sala antes de ir pra casa? — Sra. Mulberry perguntou, franzindo as sobrancelhas.
Roier improvisou rapidamente:
— Oi, pois é, eu vim buscar meu filho aqui na escola e fiquei bem confuso quando eu reparei que o estacionamento tava tão vazio. Por sorte, o Quackity é meu amigo, então quando eu liguei pra perguntar o que tinha acontecido, ele me lembrou que as férias de verão já começaram. Eu tinha esquecido, ops!
Acreditando ou não na história, a mulher continuava confusa.
— Como o Quackity veio pra cá tão rápido? Eu vi ele indo na direção oposta à saída menos de dois minutos atrás!
Roier olhou para o amigo, sem ter certeza do que dizer a seguir. Apesar de assustado com a situação toda, Quackity conseguiu balbuciar:
— É, eu vim rápido. Pra ajudar meu amigo.
O silêncio a seguir deixou a situação ainda mais tensa. Conforme mais e mais professores iam saindo e o nervosismo de Quackity aumentava, Roier percebeu que precisaria tomar uma atitude se quisesse que o plano não fosse por água abaixo.
— Desculpa, ahn, Sra. Mulberry, eu só queria dizer que acho muito louco te ver de novo, ainda mais pensando como você é professora do meu filho! Lembra que você também me deu aula no Ensino Médio?
Ela o encarou, buscando em sua memória quem seria aquele rapaz dentre os tantos estudantes a quem ela já havia dado aula. Em poucos segundos, uma lâmpada pareceu acender em cima da cabeça dela.
— Eu lembro sim de você! Perdão, qual é o seu nome mesmo? Ro… Roger?
— Roier.
— Roier, claro! Ah, você era bem falador, mocinho! Eu demorei pra te reconhecer porque eu não achei que alguém tão novinho como você teria um filho com idade pra ser meu aluno. Você não se formou faz poucos anos?
Ok, assunto era o que não faltava. Roier se aproximou dela e, mantendo aquela conversa viva, foi guiando a mulher para mais além no estacionamento, depois de lançar um olhar significativo para Quackity, indicando o óbvio: ele devia aproveitar a distração e se esconder antes que mais alguém o visse.
A conversa com a Sra. Mulberry acabou sendo mais difícil de ser encerrada do que Roier gostaria, com a moça curiosa sobre a vida de seu antigo aluno e com muito a dizer sobre o filho dele. Eventualmente, Roier precisou inventar a desculpa de que precisava voltar para o trabalho, e se despediu da professora sem muita pressa, para não parecer suspeito demais.
Ao se afastar dela o suficiente para que não mais estivesse sendo observado, Roier ligou para Quackity, e o amigo atendeu logo depois do primeiro toque.
— Tô vendo ele — Quackity imediatamente disse, cochichando.
— Onde você tá?
— Não muito longe de onde a gente tava antes. Cara, isso é tão bizarro, ele igualzinho a mim. Acho que ele chamou um táxi e… Bosta, ele tá entrando no carro! A gente tem que ir logo pra não perder ele de vista, só corre até a saída do estacionamento!
Roier apressou o passo e acabou chegando ao mesmo tempo que o outro, a tempo de ver o carro amarelo virando a esquina.
— Vamos! — Quackity disse, e os dois correram, ainda tendo tempo de ouvir murmúrios confusos de um dos professores:
— Quackity?! Eu podia jurar que vi ele entrando naquele táxi!
Os amigos acabaram se separando: Roier correria para buscar seu carro, estacionado a algumas ruas de distância, enquanto Quackity faria seu melhor para seguir o táxi do suspeito, e ambos permaneceram em uma chamada de telefone.
Por sorte, pouco depois de eles se separarem, Roier conseguiu alcançar seu veículo. Com o telefone no ouvido, ele ouviu os grunhidos de Quackity:
— Puta merda, eu vou desmaiar aqui! Essa é a maior quantidade de exercício físico que eu faço em anos!
— Calma, eu já tô no carro — ele disse, ligando o motor — Só me fala em qual rua você tá e eu já chego aí.
Com uma mão no volante e outra no celular, Roier pisou forte no acelerador, os olhos vidrados nos pontos de referência e atentos a qualquer táxi. Mas ele encontrou o amigo antes de ver qualquer carro amarelo, e Quackity, ao avistá-lo, se arrastou em sua direção e se jogou no banco do passageiro.
— Acabei de perder ele — Quackity disse, ofegante — Acho que ele virou à direita…
Uma perseguição de carros real não era tão divertida quanto parecia nos filmes, principalmente em uma cidade pequena, mas o lado bom foi que eles conseguiram encontrar o táxi novamente, e Roier tentou não deixar óbvio que o estava seguindo.
Quando notou que o carro amarelo estava estacionando, ele desacelerou para parar seu carro também. Até que, cerca de um minuto depois…
Como era possível?
A alguns metros deles, estava alguém que, mesmo de longe, inegavelmente só poderia ser Quackity, mesmo que Roier soubesse que aquilo seria impossível, porque Quackity estava bem ao seu lado.
— Puta que pariu.
— Eu te disse, Roier! Esse é o filho da puta que tá roubando a minha vida!
— Você já tinha visto ele antes?
— Não, a primeira vez que eu vi ele de fato foi quando ele tava entrando no táxi. Olha, ele tá indo pra algum lugar! Rápido, vamos atrás dele!
Os dois desceram do carro para seguir o clone a pé, em uma caminhada que durou alguns minutos — aparentemente, eles não eram os únicos que queriam ser discretos sobre o lugar para onde estavam indo. Quando eles viraram a última esquina, Roier rapidamente entendeu o motivo da discrição daquele segundo Quackity: foram parar na rua da Census of Communication, Research & Power, o que, pelo que Roier vinha notando ultimamente, não podia significar coisa boa.
Para a surpresa de ninguém, aquele homem misterioso entrou no prédio da Federação, sem provocar comoção alguma por parte dos guardas. Roier e Quackity observaram, atônitos, mal prestando atenção às outras coisas ao redor.
— Com licença! — uma voz surgiu por trás deles, assustando-os.
Ambos viraram ao mesmo tempo, e encontraram uma mulher que nunca tinham visto antes, de cabelos loiros compridos, vestida com roupa de camuflagem e maquiagem no rosto combinando com o padrão. Ela falou novamente, e Roier pensou ter notado um sotaque, por mais que não fosse muito bom em reconhecer esse tipo de coisa.
— Eu gostaria de entender como o seu gêmeo entrou naquele prédio — ela disse, olhando para Quackity.
— Meu… quê? — ele respondeu, completamente confuso: não esperava que uma moça aleatória e desconhecida estivesse de olho no que estava acontecendo ali.
— Isso mesmo. Eu vim notando que a maioria das pessoas que entra lá usa máscara, e seu irmão é só a terceira pessoa que eu vejo passando de boa mesmo estando vestido de um jeito normal.
Quackity a encarava como se visse um alienígena na sua frente.
— Desculpa, eu te conheço?!
— Espera, você viu outras pessoas normais entrando lá? — Roier sentiu uma onda de ansiedade cobrindo-no.
— Sim, e eu venho tentando entender por que existem essas exceções.
— Por que você tá aqui? — Quackity continuava confuso — Quem é você?!
— Me chamo Baghera, prazer — a moça falou, sorrindo. Roier, ignorando Quackity, perguntou:
— Você viu um cara de cabelo loiro escuro, com óculos de elástico na cabeça, que parecia bem cansado?
— Claro, eu vejo ele o tempo todo. Pelo que eu entendi, ele é um turista, mas… Bom, talvez ele esteja planejando se mudar pra ilha? Mas por que ele faria isso…? O Bad sempre evita esses assuntos quando eu tento tirar mais informações dele… — ela pensou alto.
Com a menção a Bad, Roier teve certeza de que se tratava de uma turista gringa. Mas, antes que pudesse fazer mais perguntas sobre ela ou sobre o que ela sabia a respeito de Cellbit, Quackity notou alguém saindo da Federação e chamou a atenção dos outros dois.
— Se escondam!
Todos se abaixaram, tentando se esconder atrás de um arbusto da rua. A certa distância deles, saiu da CCRP uma figura conhecida: Cellbit, vestido todo de branco, caminhando na calçada e atravessando a rua. Roier o observou, preocupado, sentindo um aperto no peito que só poderia ser descrito como saudade, por mais que tal palavra não existisse em seu vocabulário, como alguém que não sabia mais do que algumas frases em português.
Cellbit, encolhido e atento, caminhou até o telefone público mais próximo, ali naquela mesma rua, na direção oposta à do grupo que o observava sem que ele soubesse. O brasileiro entrou na cabine de vidro, tirou um papel do bolso em que deixava o contato anotado para emergências como aquela, e discou os números com o telefone já no ouvido. Foram poucos os toques antes dele ser atendido.
— Egg Carton Hotel, como posso ajudar?
Cellbit ficou tão aliviado ao ouvir aquela voz familiar que fisicamente sentiu seus ombros relaxando um pouco. Estivera irracionalmente irritado com o velho amigo até poucos dias antes, e o arrependimento veio com tudo naquele momento, quando a perspectiva de tudo abriu os olhos que a raiva vinha cegando. Cellbit conseguira reprimir seus sentimentos e engolir a verdade em prol de seguir com o plano, conseguira dizer para o amigo que acreditava na Federação quando precisou sair do hotel, porém depois do que vinha passando nos últimos dias, sua energia e determinação estavam no limite.
— … Olá? — a voz do outro lado disse, depois dos instantes em silêncio.
— Ah, hm, oi, Bad Boy Halo?
— Espera, Cellbit?!
— É, oi.
— Mas que carambola! — Bad reclamou, abaixando o tom de voz para que ninguém no hotel o ouvisse, e Cellbit conseguia enxergar a cena com clareza em sua mente, como se o amigo estivesse bem na sua frente: o rosto surpreso, a mudança de postura, a maneira como devia estar agarrado ao telefone, com raiva e preocupação.
— Bad, me escuta, preciso falar com você.
— Precisa falar comigo?! Cellbit, foi você quem me acusou de coisas, você que disse que "agora finalmente entendia a verdade", e foi por escolha sua que você foi embora!
— Eu sei, é que… Olha, eu absolutamente ainda estou firme e forte no que disse sobre a Federação — Cellbit disse, pronunciando cada uma das palavras claramente, o que o fazia querer vomitar — Mas… Acho que eu preciso usar o banheiro. Posso passar aí?
— Usar o banheiro? Que carambolas, não!
Porra, Bad, me entende, me entende!
— Desculpa, é que eu acho que eu deixei umas coisas minhas aí, posso passar pra buscar? — Cellbit tentou de novo.
— Não se preocupa, você levou todas as suas coisas quando abandonou seus amigos e seu filho, você não esqueceu de nada.
— Não, eu tenho certeza de que esqueci. Foram meus produtos temáticos do Barbecue Monologues, eles significam muito pra mim. Você conseguiria trazer eles aqui?
Aquilo fez Bad parar para pensar por um momento. Ele sabia que o amigo não conhecia nada a respeito do musical citado, nada a não ser que ele servira de inspiração para o codinome dos encontros dos Theory Bros. Cellbit acreditava que sua mensagem estava bem clara dessa vez.
— Cellbit, onde você tá?
— Eu preciso ir, tchau! — ele finalizou a ligação, batendo o telefone com força de volta no gancho.
Cellbit caminhou de volta para a CCRP, mal se sentindo uma pessoa real. Depois de dias passando pelo processo de treineiro da Federação, aquele seria o dia em que deveria assinar o contrato, o que significava que era também sua última chance de encontrar Felps. Ele sabia dos riscos e, por isso, queria ter certeza de que Bad estaria ciente de seu paradeiro caso as coisas não dessem muito certo. Ainda assim, não pôde dizer muita coisa ao telefone, e precisou escolher suas palavras com cuidado, para não arriscar revelar demais justo ali, em frente à Federação.
Até então, vasculhar o perímetro daquele edifício se provara extremamente desafiador, visto que as tarefas que lhe eram designadas pelo Cucurucho via os trabalhadores sem rosto, sempre aconteciam em pequenas áreas específicas ou do lado de fora do prédio, espalhando propaganda pela cidade. Ele vinha se mantendo cauteloso em suas ações para não levantar suspeitas, porém estava agora em seu último dia, sua última oportunidade de fazer alguma coisa. Depois daquele turno, seu posto seria oficializado, e Cellbit se recusava a chegar ao extremo de assinar o contrato — só o fato de que o filme das câmeras era incapaz de capturar os funcionários já era red flag suficiente , e isso ainda nem levava em conta todos os outros riscos. Ele principalmente temia perder a própria autonomia caso vendesse sua alma para eles de vez.
Estava claro que seria preciso se arriscar um pouco mais dessa vez, que seria agora ou nunca. Cellbit precisaria descobrir o paradeiro de Felps antes de dar a hora de assinar o contrato, então não podia perder tempo. Ainda assim, não permitir que seu comportamento suspeito fosse notado até o fim do dia já era um desafio em si. Ele tentou caminhar por algumas áreas do prédio como quem não quer nada, torcendo para ser ignorado.
Andando por aí e procurando, ele finalmente encontrou um corredor completamente vazio, e decidiu arriscar entrar em uma das portas. Se aproximou cuidadosamente, estava levando a mão à maçaneta… Quando uma pessoa entrou no corredor também. Cellbit tentou disfarçar sua tensão, torcendo para o rosto não estar vermelho para entregá-lo, mas mesmo assim o trabalhador sem rosto caminhou na sua direção.
— Boa tarde! — Cellbit se apressou em dizer — Tudo bom?
O rosto mascarado o mirava, agora bem perto dele. A pessoa lhe estendeu o braço e, baixando o olhar devagar, Cellbit percebeu que estava lhe entregando um documento intitulado Treinamento W0038 - DIA FINAL.
— Ah — murmurou, tentando fazer seu alívio parecer empolgação — Obrigado, chefe!
O trabalhador sem rosto, que ocupava um cargo um pouco mais alto na hierarquia da Federação, fez um cumprimento de cabeça antes de se afastar. Ainda em alerta, Cellbit observou a própria mão trêmula abrindo a pasta que listava suas tarefas diárias, e constatou que a da vez o designava a trabalhar no depósito.
A melhor maneira de fazer as coisas, pensou, seria ir vasculhando tudo o que pudesse enquanto caminhava até o depósito, usando a desculpa de ter se perdido no caminho caso fosse de fato pego. Então, foi isso que Cellbit fez.
A execução do plano, no entando acabou sendo… apenas repetitiva e desanimadora.
Não sabia o que estava esperando que fosse acontecer exatamente, mas Cellbit não encontrou nada sequer remotamente conectado a Felps; se não tivesse visto aquelas evidências no hotel semanas antes, ele certamente nem teria como ligar o desaparecimento do amigo à Federação.
Já se sentindo meio derrotado, Cellbit seguiu até o elevador para checar outros andares. Estava perdido nos próprios pensamentos, focado em ter ideias de como seguir caso as coisas não dessem certo, quando foi repentinamente tirado de seus devaneios por uma das visões mais confusas que já tivera naquele edifício: a porta do elevador se abriu, e entrou para parar ao lado do brasileiro ninguém menos do que Quackity.
Cellbit subiu o olhar para ele por meio segundo e voltou a baixar os olhos, para então perceber o que acabara de presenciar e olhar novamente. Quackity parecia inabalado, mantendo uma postura confiante nada parecida com o seu estado usual e uma expressão estoica. Cellbit chegou a considerar se poderia estar confundindo-o com outra pessoa, tão diferente era maneira como se portava, contudo a aparência e as roupas não deixavam dúvida sobre a identidade.
Quackity desceu no andar seguinte, deixando para trás um Cellbit profundamente confuso. A quebra de expectativa lhe tirou a concentração, tornando difícil voltar à mesma mentalidade de segundos antes, o que por um lado lhe deu maior perspectiva sobre sua situação e seus planos: de fato, não estava chegando a lugar algum, e os ponteiros do relógio rodavam rápido. Cellbit olhou para cima, suspirando, e encontrou, claro, uma câmera de segurança lhe encarando de volta, o que era mais uma lembrança: mesmo que desse tempo, seria possível que até o fim do dia eles desconfiassem de suas ações, porque estão assistindo cada passo seu. Era preciso agir naquele exato momento.
Assim que desceu em seu andar, Cellbit teve uma ideia impulsiva, e que cortaria significativamente seu tempo de ação, porém também lhe daria acesso a áreas que ele no momento não conseguia acessar. Ele caminhou pelos corredores até encontrar um alarme de incêndio, o qual acionou antes de sair correndo.
O caos rapidamente se espalhou pelo edifício. O silêncio usual foi substituído pelo alto alarme e o som de passos correndo quando os trabalhadores saíram de suas funções às pressas. Cellbit se escondeu em um dos banheiros por alguns minutos, torcendo que o lugar que queria acessar seria esvaziado nesse tempo.
Depois de esperar, ele, como quem não quer nada, caminhou em direção a uma escadaria afastada da que levava para fora do prédio, uma que dava acesso a uma área protegida, de acesso extremamente limitado. Assim, Cellbit conseguiu se infiltrar na sala das câmeras.
A escadaria até lá embaixo era escura e dava arrepios. Por sorte, ninguém parecia estar naquele ambiente gelado, cuja única fonte de iluminação eram as televisões que mostravam as filmagens ao vivo. Cellbit soltou do metal frio do corrimão quando viu que chegara ao último degrau e, devagar, se aproximou das muitas telas, hipnotizado.
A primeira coisa que notou foi que a imagem dos trabalhadores sem rosto não parecia distorcida ali. Seria por algo de especial naquelas câmeras específicas? Seria por causa do meio de filmagem ao invés de fotografia? Ou será que dentro da CCRP aquele efeito de borrar o rosto dos funcionários não se aplicasse?
Cellbit esfregou os olhos, tentando se concentrar: seu tempo estava acabando. Ele passou o olhar pelas filmagens das diferentes salas e corredores, tentando buscar algo que ajudasse em sua investigação, e ciente de que ainda teria que tentar apagar as evidências filmadas de que fora ele quem acionara o alarme de incêndio sem motivo nenhum. Sua mente vagava na intensidade do momento esmagador, intenso, com tanto a ser feito e o cronômetro invisível diminuindo cada vez mais… E então, chegando a uma tela específica, Cellbit não pôde acreditar no que achou. Sentiu seus olhos se arregalando e sua boca formando um “o”…
Bom, pelo menos ele encontrou Felps. Ou o que sobrou dele. Lá estava seu melhor amigo, preso em uma espécie de cápsula, parecendo congelado. Cellbit ouviu murmúrios sem sentido saindo da própria boca, “wha-?” “wh…” “o quê?!”, e sua visão ficou turva. De alguma forma, tudo parecia ainda menos real do que antes. Ele deu as costas para aquela imagem, sentindo que podia vomitar, e foi quando ele viu.
Bem atrás dele, o observando, estava o Cucurucho em pessoa — se é que ele era uma pessoa de fato. O urso branco, parecendo ainda maior do que de costume, tinha seus olhinhos vidrados em Cellbit.
— You are part of the Hatchetfield Census Bureau.
Aquelas palavras da voz robótica foram a última coisa que Cellbit ouviu antes de tudo ficar preto e ele perder a consciência.
Notes:
Queridos, o bloqueio criativo é REAL. Não quero repetir o que já disse, mas meus problemas têm sido os mesmos de antes: ter ideias, mas não conseguir sentar e transformar elas em um capítulo completo e coeso. Eu ainda penso sobre Hatchet Town todo dia e guardo a fanfic no meu coração, então espero que dessa vez eu realmente consiga fazer os capítulos um pouco mais rápido, pra eu continuar esse projeto que me deixa tão feliz. É isso <3
Chapter 19: As coisas que eu vi
Chapter Text
Era apenas mais uma manhã normal em Hatchetfield.
Richarlyson acordou com a visão de Pac encaixando a prótese na perna e Mike entrando no banheiro para tomar banho. Depois de se espreguiçar e coçar os olhos, o pequeno se levantou e foi se preparar para o café da manhã, já morrendo de fome. Na gaveta ao lado de sua cama, havia duas touquinhas de vaca, e ele optou por pegar a marrom, seu look de Emocharlyson. Não que ele estivesse se sentindo particularmente triste naquele dia; não, estava mais ansioso. No entanto, estava decidido a só voltar a usar sua touquinha vermelha quando Cellbit e Felps voltassem, algo que ele tinha certeza de que ia acontecer eventualmente.
Quando desceram para o salão de refeições, ele correu para ir falar com seus amigos enquanto seus pais restantes escolhiam uma mesa. As outras crianças, contudo, não deram a Richarlyson a resposta que ele esperava às suas propostas, de forma que ele logo voltou para perto dos cuidadores e sentou-se torto na cadeira, meio desleixado, já com pose de tédio.
— Que foi, Richas? — Mike perguntou.
— É que a Pomme vai ir passear com os franceses e o Dapper vai pra casa do amigo dele. Não vou ter nada pra fazer hoje, que chato — suspirou.
Logo em seguida, a porta que dava na cozinha foi aberta abruptamente: seria servido aos hóspedes o café da manhã. Quem vinha trazendo a comida não era Bad, como Richarlyson havia se acostumado, mas seus dois novos funcionários.
— Bom dia, desculpa pelo atraso — o mais novo deles falou ao se aproximar da mesa dos brasileiros, equilibrando a bandeja na mão com certa dificuldade — Ainda estamos nos ajustando à rotina.
— Sem problemas — Pac se apressou em dizer.
Richas foi pegando o leite com achocolatado enquanto o moço que os servia colocava na mesa o resto dos alimentos, com a velocidade de alguém inexperiente naquele trabalho. Ao provar a bebida, a criança fez careta.
— Qual é o problema? — o jovem funcionário perguntou ao notar aquela reação, achando que pudesse ter feito algo de errado.
— Ugh, eu não gosto do leite com chocolate daqui. Eu sempre tomo pra ver se o sabor melhora, mas nunca melhora.
— Oh. Quer que eu pegue outra marca de achocolatado pra você?
— Tem outra marca?! — o pequeno se chocou.
— Acho que sim. Só um segundo.
O funcionário sumiu atrás da porta para a cozinha e voltou um minuto depois, trazendo a bebida na embalagem original ao invés do recipiente de vidro costumeiro que ocultava a marca do produto. Ele colocou um pouco em um copo e observou a criança provando, esperando sua reação. Richarlyson analisou o gosto por alguns instantes.
— Esse aqui é um pouco melhor.
— Richas! — Pac lhe chamou a atenção, disciplinando-o em português, em um cochicho — Agradece o moço, né, filho, ele teve todo o trabalho de pegar o negócio de outra marca e trazer lá da cozinha pra você.
— Quer dizer, ehr, obrigado! — Richarlyson corrigiu o comportamento, falando em inglês para o funcionário.
— Ah, eu entendo se você não gostar, king. Eu não sei se as marcas que o Bad anda comprando são muito boas… Hm, só não deixa ele saber que eu te disse isso.
Antes que a conversa pudesse se estender, o outro funcionário recém-contratado entrou de volta na cozinha, só para correr para fora logo em seguida; estava meio desesperado, mas aquilo não revelava muito, pois ele parecia agir de maneira intensa todas as vezes que Richas o havia visto até então.
— TUBBO! — ele gritou — A GENTE ESQUECEU DE DESLIGAR O FORNO?!
O rapaz que lhes servia se virou para olhá-lo, assustado.
— É SÉRIO?! PUTA MERDA, SLIME! — disse, antes de correr para acompanhar o outro.
Richarlyson voltou sua atenção ao café da manhã novamente, ouvindo murmúrios preocupados vindos da cozinha e sentindo um cheiro de queimado aos poucos tomando conta do ar.
Poucos minutos depois, Bad Boy Halo apareceu no salão de refeições perguntando pelos funcionários. Ao ouvirem-no, os dois, atrapalhados, saíram da cozinha discretamente, tentando fingir que nada havia acontecido. Bad não pareceu notar o comportamento suspeito deles e, se notou, não se importou; estava agitado, a mente em outro lugar.
— Certo, Tubbo, Slime: vocês conseguem cuidar do hotel por algumas horas? Eu preciso fazer umas coisas, resolver uns problemas.
— Claro, ok — o mais novo respondeu, surpreso pelo pedido inesperado.
— Ok — Bad suspirou, aliviado — Se acontecer alguma coisa, vocês podem me ligar, eu vou estar no Starkid Gift Shop…
O funcionário de olhos verdes e óculos reagiu expressivamente:
— Espera, você vai pro Starkid Gift Shop? — ele perguntou, e então abriu um sorriso — Diz pra minha família que eu mandei um oi! Assim o Mariana vai saber que eu não tô mais bravo com ele.
— Claro… Eu acho…
De onde estavam sentados, os brasileiros observavam a conversa, que acontecia a alguns metros de distância deles.
— Ele vai pra loja do Roier… — Richas comentou, pensativo, e então pegou uma garfada de ovos mexidos.
Mike teve uma ideia:
— Seu amiguinho fica por lá durante a tarde, não fica?
— Quem, o Bobby? Fica sim, pelo menos quando a mãe dele tá trabalhando e o pai também.
— Quer ir brincar com ele? A gente pede pro Bad aproveitar que ele tá indo lá e te levar junto.
A ideia o animou, fazendo-o até mudar de postura para responder:
— Eu quero!
Richarlyson assistiu ansiosamente Mike indo falar com Bad, e viu o hoteleiro lhe encarando por um momento antes de concordar com a ideia, como se levar a criança até lá fosse a menor das suas preocupações naquele momento.
Assim, alguns minutos depois, ele e Dapper estavam no banco de trás do sedan vermelho, batendo papo enquanto Bad dirigia em silêncio. A primeira parada do motorista foi para deixar seu filho na casa de Ramón, e a criança de cartola se despediu antes de se aproximar do amigo e o pai dele, os quais estavam esperando-no na porta de casa.
— Tio Bad — Richas o chamou quando os dois estavam sozinhos no carro, em silêncio — Você tá bem?
— Huh? — ele saiu de um transe e olhou pelo retrovisor para encarar o mais novo — Perdão, o que você disse?
— Eu disse “você tá bem?”
— Ah, hm, tô — Bad forçou um sorriso nada convincente.
— Você não parece bem.
— Tá tudo certo, Richas, não se preocupa, é coisa de adulto. Aqui, vamos ouvir um pouco de música.
Ele ligou o rádio e imediatamente voltou seu olhar preocupado para a estrada, exatamente como estava antes. A criança permaneceu incomodada, mas não disse mais nada.
Chegando à Starkid Gift Shop, a dupla encontrou o lugar mais cheio do que o comum: além de alguns clientes, havia também moradores da cidade, que aparentemente vinham esperando Bad, visto que sua chegada causou comoção entre eles. Esse grupo era composto por Roier, por Foolish (que Richas reconheceu como alguém que já tinha passado pela barbearia de Mike), e por um homem de coque samurai e óculos escuros, que a criança não conhecia.
— Richarlyson? — Roier imediatamente notou sua presença, que o confundiu. Bad olhou para o pequeno ao seu lado e explicou.
— Ah, sim. Ele quis vir aqui pra brincar com o seu filho.
— É o seu dia de sorte, o Bobby realmente tá aqui hoje. Mas, Richas — o mexicano se aproximou da criança para conversar diretamente com ela — Eu não consigo ficar aqui por agora, então vai ser o Mariana que vai tomar conta de vocês. Se comportem, hein? Se não vocês enlouquecem ele e ele vira um bicho papão. Tô falando sério, ele morde.
Richarlyson olhou para Mariana e depois voltou a encarar Roier, que confirmou com a cabeça. Antes que pudessem fazer mais alguma coisa, o homem de óculos escuros se aproximou dizendo que precisavam ir logo para “discutir assuntos importantes” e “decidir como agir”. Roier pareceu murchar de novo, e se aproximou do outro funcionário da loja para cochichar alguma coisa antes de ir embora.
— ¿Tiene esto algo que ver con Cellbit? — Mariana questionou, tentando cochichar e falando um pouco alto demais.
Ah. Richas finalmente entendeu o porquê de toda aquela comoção.
Ele sabia que os adultos pensavam que aquele assunto deveria lhe ser doloroso, que achavam que deveriam protegê-lo daquilo, e viu Roier dando um tapinha no braço do amigo diante de sua falta de discrição antes de gesticular discretamente para Richarlyson. Porém, para o pequeno brasileiro, as coisas eram muito menos complicadas do que as pessoas pareciam pensar que eram.
Em seu âmago, por mais que estivesse com saudades, Richarlyson sentia-se também esperançoso. Sim, Cellbit havia saído do hotel em circunstâncias misteriosas, contudo, ele havia se aproximado do filho antes de ir embora e lhe entregara uma carta, em silêncio e discretamente. Nela, ele explicava o que estava fazendo e por que estava o fazendo: era tudo parte de um plano para trazer Felps de volta. Richas acreditava completamente em tudo o que havia lido ali — até porque, ao fim da carta, Cellbit jurou de dedinho que dizia a verdade, que ia mesmo voltar. E promessa de dedinho não se quebra.
Depois que aquele grupo de adultos foi para fora da loja, deixando apenas Mariana por lá, foi quando Richarlyson decidiu que a melhor coisa a fazer seria ir atrás de seu amigo de uma vez; não tinha mais nada para fazer ali e também não queria arriscar ficar sozinho com Mariana depois do alerta de Roier. Assim, ele logo foi para o fundo das lojas, que já conhecia.
Para a surpresa de Richarlyson, não era apenas Bobby quem estava lá; o filho de Roier, na verdade, jogava Uno com uma menina que devia ter a idade deles, de óculos, duas trancinhas e roupa rosa. A criança brasileira se encolheu um pouco ao encontrar uma desconhecida, enquanto Bobby largava as cartas na mesa e se aproximava.
— ¿Cómo estás, culero? — o menino o cumprimentou, dando um soquinho no braço de Richas um pouco forte demais — Espera, você tá usando a minha touquinha de vaca? Então foi isso que aconteceu com ela!
— Quem é essa? — foi a primeira coisa que Richas falou, ignorando todo o resto.
A menina também parecia um pouco envergonhada. Bobby se encarregou de apresentar os dois.
— Ah, essa é a Juana Flippa, ela é filha do Mariana. Você conheceu o Mariana? O cara bem alto que trabalha com o meu pai.
— Sim, eu vi ele hoje quando eu cheguei.
— E, Flippa, esse é o Richarlyson, ele é filho do cara que é quase namorado do meu pai e que sumiu.
— Ele só tá em uma missão pra salvar o meu outro pai — Richas rapidamente explicou.
— Se os seus dois pais sumiram, quem tá tomando conta de você? — Juana Flippa indagou, curiosa.
— Ah, meus dois outros pais. Eu tenho quatro pais.
— Que da hora — Juana Flippa respondeu, genuinamente impressionada.
Com a chegada de Richarlyson, as outras duas crianças perderam um pouco o interesse no jogo de cartas, o que, no entanto, não era problema, visto que a sala dos fundos da Starkid Gift Shop estava equipada com muitas possíveis atividades para ajudar a passar o tempo das crianças, com brinquedos, jogos de tabuleiro e uma velha televisão.
A dinâmica dos três rapidamente se estabeleceu, todos se dando bem. Richarlyson só se sentiu incomodado quando o tópico da conversa chegou em um assunto que, por associação, acabou lhe trazendo à tona memórias e pensamentos ruins.
— Ah, sim, Richas, semana passada a gente entrou de férias! — Bobby contou, entusiasmado, quando se lembrou que o amigo ainda não sabia daquele fato.
— Eu tava tão empolgada que eu comecei uma lista de todas as coisas que eu quero fazer pra aproveitar as férias — Juana comentou, ajustando os óculos em seu rosto — Ah, mas eu esqueci a lista em casa…
Até aí, nada demais. Porém, quando Flippa e Bobby começaram a falar sobre lugares aos quais gostariam de ir na cidade, Richarlyson teve uma lembrança que lhe fez arrepiar. Hesitante, apertando seus punhos fechados nervosamente e evitando contato visual, ele disse:
— Se faz parte do plano de vocês ir pro Watcher World, acho que vocês deviam cancelar isso.
Os sorrisos dos outros dois imediatamente deixaram seus rostos.
— Ah, mas eu com certeza não quero ir lá — Bobby respondeu — Eu já fui nesse lugar uma ou duas vezes, e ele pode até parecer legal, mas tem alguma coisa estranha sobre lá.
Flippa pareceu muito quieta e retraída de repente, abalada, mas os outros mal notaram.
— Então vocês também acham aquele lugar esquisito? — Richas ficou aliviado.
— Ele é bem esquisito. E bem assombrado.
— Eu sei! Eu fui lá uma vez e me senti tão estranho. Eu não me lembro muito bem, mesmo que não faça muito tempo desde que eu fui lá, mas… Não ri de mim… Eu não me sentia como eu mesmo. Acho que tinha alguma coisa mexendo com a minha cabeça.
A menina arregalou seus olhos verdes. Ela imediatamente segurou uma das mãos de Richas e lhe lançou um olhar intenso enquanto perguntava em um sussurro:
— Você se sentiu sendo controlado?
— … Sim!
— Controlado… pelo olho roxo?
Richarlyson assentiu. Bobby olhava de uma criança para a outra, sem entender.
— O que você disse? Eu não consegui ouvir, você falou muito baixinho. Olho roxo?
— Sim. Que nem aconteceu naqueles acidentes — foi tudo o que Flippa lhe disse, e Bobby pareceu entender na hora. Richas, por outro lado, foi quem ficou confuso dessa vez.
— Acidentes?
Juana Flippa se encolheu na cadeira, abraçando as próprias pernas. Seu olhar se tornou vazio.
— Eu odeio o Watcher World porque eu sinto a presença também. Mas é pior pra mim porque o olho roxo já me pegou duas vezes. Eu quase morri e… — seus olhos marejaram e sua voz saiu baixa de novo — Essa coisa pegou Tilín.
Surpreendentemente, Bobby não pareceu seguro e confiante como sempre estava. Naquele momento, a ficha de Richarlyson caiu pela primeira vez de que o amigo que ele tanto admirava, era também nada mais que uma criança — mesmo que uma criança grande, já com seus nove anos.
— Tilín era nosso amigo — Bobby explicou, sem olhar o mais novo nos olhos.
— Mas o que aconteceu? — Richarlyson ainda não entendia completamente.
Os outros dois ficaram envergonhados e não disseram nada. Depois de algum tempo com as palavras presas na garganta, Richas decidiu dar o primeiro passo:
— Quando eu tava no Watcher World, eu me sentia com muita raiva, mas era diferente de como eu sou. Eu fui pra uma montanha russa muito alta sem meus pais deixarem, e eu quase pulei lá de cima, por causa do que o olho roxo fez com a minha mente.
A menina assentiu, parecendo, de certa forma, aliviada por encontrar alguém que entendia a sensação. Diante do relato, ela ficou mais segura e, respirando fundo, explicou para Richarlyson o que havia presenciado no ano anterior: uma ligação de Tilín dizendo estar sozinho em casa, Flippa indo com seu pa Slime buscá-lo em casa, a tempestade repentina, o olho roxo se apoderando das duas crianças, o acidente de carro, Tilín não conseguindo sair do transe e sumindo na floresta para sempre.
— E vocês nunca mais viram o amigo de vocês depois disso?
Bobby negou com a cabeça em sincronia com a garota. Flippa tirou seus óculos cor-de-rosa, que estavam agora molhados e embaçados por causa das lágrimas.
— O Pa Mariana não acreditava de jeito nenhum na história, mas o pa Slime tava lá quando aconteceu, então ele sabia que era verdade. Foi o pior dia da minha vida.
— Espera, Flippa — Bobby disse, em um tom calmo que não usava quase nunca, mal soando como ele mesmo — Você disse que o olho roxo causou acidentes. Foi isso que causou o outro também?
Ela assentiu. Mais uma vez, Richas pediu para que lhe explicassem a que se referiam, mas Flippa pediu um tempo para ir assoar o nariz. Bobby tomou as rédeas, falando baixo.
— Não foi muito depois de Tilín. O Señor Quackity, nosso professor, que era o pai de Tilín, se sentia ainda pior do que ele se sente hoje, então os amigos dele ficavam fazendo companhia pra ele pra garantir que ia ficar tudo bem. Às vezes ele vinha pra nossa casa, por exemplo, pro meu pai tomar conta dele mas ele também ia pra casa da Flippa, pro tio Mariana ficar com ele.
— Meus pais tavam brigando muito nessa época — Juana disse, voltando com um rolo de papel na mão — Tipo, eles ainda brigam, mas tá bem melhor agora. O pa Mariana tava bravo porque o pa Slime deixou Tilín ir, e falava que ele devia ter sido mais responsável, e ele falava assim “Olha pro Quackity, mien! Olha como ele ficou!”
Ela fez uma pequena pausa para assoar o nariz, e então dobrou o lenço e o colocou no meio do rolo de papel.
“Mas o problema foi quando o segundo acidente aconteceu. O Quackity tinha ficado na nossa casa por um dia inteiro, e o pa Slime foi ficar esse tempo em outro lugar, pra não estressar o Quackity. Eu fui com ele, pra não ter que ficar ouvindo o meu professor falando da minha amiga que morreu o dia inteiro. Mas à noite, a gente tinha que voltar pra casa, certo? Pra ir dormir, mas o Quackity ainda tava lá, e deu uma bagunça tão grande quando ele viu meu pa…”
Slime sabia que deveria ter avisado para o marido antes de voltar, para ter certeza de que a visita já havia ido embora, porém sua filha já reclamava de cansaço havia horas, coçando os olhos e bocejando de tempos em tempos. Estava tarde e Mariana não atendia o telefone, então ele decidiu arriscar.
O som da chave na tranca da porta de entrada atraiu os olhares de Quackity e Mariana lá dentro, de forma que, quando Charlie entrou, a visita já estava a postos e se levantou do sofá, vindo em sua direção com sangue nos olhos.
— Você. Seu filho da puta! SEU FILHO DA PUTA!
Por sorte, Mariana foi rápido, e conseguiu segurar o amigo antes que ele partisse para cima de Slime, que gritava.
— WOAH WOAH WOAH WOAH!
— Tá querendo brigar, é, arrombado?
— ¡Quackity, no! — Mariana bradou, lutando para impedi-lo.
— Brigar com você? Eu nem sabia que você ainda ia estar aqui! Você não tem nem um pouquinho de noção, porra? Quer cair na briga comigo bem na frente da sua aluna? Minha filha?!
“Foi aí que o pa Mariana finalmente me viu. Antes, ele tava ocupado tentando parar a briga.”
— Déjame poner a mi hija en la cama, Quackity, no hagas nada estúpido. Slime, toma cuidado, por favor!
— EU NÃO TÔ FAZENDO NADA!
“Então o pa Mariana soltou o Quackity e, depois de conversar um pouco com ele, veio até mim. Ele segurou na minha mão e correu pra me deixar no quarto, enquanto o pa Slime e o Quackity ficavam gritando um com o outro.”
Mariana colocou a filha na cama, tirando os óculos dela para colocá-los na cômoda ao lado e ajustando o cobertor.
— Pero no me lavé los dientes, pa.
— Haga eso mañana, Juana. Tienes que ir a dormir.
— No sé si puedo, hay tanto ruido…
O homem franziu a testa, sem saber como exatamente deveria estar agindo diante da situação. Ele pegou a caixinha de música da cômoda, a que Flippa havia visto uma vez na loja e que disse que lhe trazia paz, e por isso eles compraram. Mariana girou a manivela o máximo que pôde e devolveu o objeto ao móvel.
— Buenas noches, cariño.
Ele fechou a porta do quarto devagar, apressado e distraído com a discussão do outro cômodo, e não viu a expressão aflita da filha que o observava.
Voltando para a sala de estar, Mariana encontrou seu marido e seu amigo discutindo um na cara do outro, alterados.
— PAREM DE GRITAR, OS DOIS! — falou, nervoso.
— QUIERO UNA PELEA CON ÉL — Quackity respondeu, dando um empurrão no homem de olhos verdes e traduzindo para inglês o que disse para que ele entendesse — Slime, eu quero te descer o cacete!
— Por quê?! — a voz de Slime exalava desespero e confusão.
— ¡Basta, Quackity!
— Porque tu mataste… — ele virou para Mariana, como se quisesse que ele entendesse seu ponto — Ele matou meu filho!
A frustração de Charlie se manifestou da pior forma possível naquele momento de tensão pois, tão nervoso ele estava com tudo, a reação involuntária de seu corpo acabou sendo uma risada desesperada enquanto se justificava.
— Cara, você não me deixa nem explicar o que aconteceu! Por favor, só ouve o meu lado…
Mas Quackity o interrompeu com um soco no rosto.
“Eu não vi isso, mas dava pra escutar tudo. Eu não conseguia dormir, e eu não conseguia parar de pensar em Tilín por causa de tudo que o Quackity ficava dizendo, e eu me sentia tão mal, tão mal…”
No quarto, a criança se encolheu debaixo das cobertas. Aquela música… Flippa realmente gostava muito dela antes, mas depois de tanto caos, tantas brigas, a tática de ouvi-la para tentar abafar discussões, sem sucesso, já havia sido usada vezes demais, e agora a menina só conseguia associar a melodia a coisas ruins.
“E aí, eu não sei como, mas eu senti. O olho roxo, ele tomou controle de mim.”
— Quackity, acho que você devia ir embora — Mariana falou, certificando-se de usar a língua inglesa para que o marido machucado, a quem ele agora acolhia nos próprios braços, entendesse também.
— Mariana, tu puto marido…
Respirando fundo e fechando os olhos, o amigo o interrompeu.
— Quackity, por favor.
“O olho roxo me fez sair da cama e abrir a janela do quarto. A gente mora em uma casa de um andar só, então eu saí por ali e fiquei lá fora, mas a minha memória é toda embaçada, e eu não sabia o que eu tava fazendo.”
Indignado, o professor de espanhol balbuciou algumas coisas, porém logo desistiu. Ele pegou o casaco apoiado na cadeira e saiu dali, batendo a porta.
— Eu meio que mereci, sinceramente — Charlie comentou, limpando o sangue na beirada da boca.
— No digas mamadas, pendejo. Vem, vamos lavar seu rosto.
Enquanto entravam no banheiro, o casal pôde ouvir o som do carro de Quackity, o motor roncando enquanto ele se afastava com velocidade. Slime abriu a torneira e, limpando o sangue, fez um pedido.
— Meu bem, você pode dar uma olhada na Flippa? Ela tava tão cansada, mas eu não sei se ela conseguiu dormir com tudo isso acontecendo.
— É mesmo, né? Vou lá.
Com passos leves, ele foi se aproximando do quarto, torcendo para ver a filha já em um sono pesado. Para o seu espanto, no entanto, a cama estava vazia, o cobertor bagunçado, e as cortinas voavam com o vento forte entrando pela janela aberta. Enquanto a melodia da caixa de música tocava, cada vez mais devagar, ele pôde ver pela janela a visão que seu cérebro não conseguiu processar logo de cara: a filha, de costas para ele, com sua camisolinha infantil de estrelas esvoaçante, estava no meio da rua, os pezinhos protegidos do asfalto áspero somente pelas longas meias de listrinha.
— JUANA FLIPPA!
Mas antes que conseguisse se mover, ele viu a criança virar a cabeça para encará-lo com olhos amarelo-alaranjados de íris roxas, segundos antes de um carro atropelá-la.
“Eu lembro de abrir meus olhos e ver que eu tava deitada na rua, e tudo doía. Eu vi o rosto dos meus dois pais, mas minha visão começou a escurecer de novo, e eu quase não conseguia ouvir a voz deles.”
— Mariana, eu achei que você tinha colocado ela na cama!
— Mas-- mas eu coloquei! Isso não faz sentido!
— Por um tempo eles achavam que o Quackity era o motorista, que fugiu antes de pegarem ele, mas a polícia concluiu no fim que era outra pessoa — a menina fungou, limpando as lágrimas — Pelo menos depois disso o pa Mariana começou a acreditar na história sobre Tilín.
Ao terminar o relato, Juana Flippa se levantou da cadeira e encarou as duas outras crianças com seus olhos molhados.
— Acho… acho que eu cansei de brincar. Eu quero o meu pai — declarou, e então deu as costas a eles e correu para a frente da loja.
Os outros dois ficaram em um silêncio sem graça, sem mais o ânimo para qualquer brincadeira. Sem conseguir olhar Richarlyson nos olhos, Bobby comentou:
— Hatchetfield pode ser um lugar estranho, Richas. Você precisa tomar cuidado, por si mesmo e pelos seus pais.
───────•••───────
Na viagem de volta para o hotel, Richarlyson deitou a cabeça no vidro do carro e observou a paisagem, em silêncio. Apesar da história de Flippa validar suas próprias experiências, o aviso de Bobby o deixava preocupado com Cellbit e com Felps, fazendo-o se perguntar se de fato estavam bem.
Bad, enquanto isso, também parecia estar tão perdido nos próprios pensamentos quanto estivera horas antes. Foi só depois que um carro quase bateu nele que o dono do hotel conseguiu sair do transe, e foi quando ele olhou pelo retrovisor e conseguiu notar quão cabisbaixo o pequeno brasileiro estava.
— Hey, Richas, como foi o seu dia? Você e o Bobby brincaram bastante?
— Tipo isso — ele respondeu, não desviando o olhar da paisagem.
— Certo, hm… Tá tudo bem? Alguma coisa aconteceu lá?
Richarlyson deu de ombros.
— É coisa de criança, não se preocupa.
Ele é esperto. Sentindo que não tinha neurônios o suficiente no momento para pensar em como contornar a situação, Bad Boy Halo se contentou em responder com um cansado:
— … Touché.
A apatia de Richarlyson prevaleceu por mais alguns minutos, até um farol vermelho fazer o piloto parar em frente à escola de Ensino Médio, de onde a criança pôde jurar que viu grandes monstros coloridos e mascarados, um azul, um rosa, um verde, um amarelo, os quatro acompanhando aquele mascote roxo de Watcher World que já o havia aterrorizado antes e sobre o qual Juana Flippa havia acabado de contar histórias de terror. Assustado, Richas foi olhá-los melhor, mas em um piscar de olhos, todos já tinham desaparecido.
Cellbit e Felps precisavam voltar logo para casa.
Chapter 20: Invocação
Summary:
Aviso: O capítulo contém um pouco de body horror
Notes:
(See the end of the chapter for notes.)
Chapter Text
Depois de alguns minutos caminhando entre árvores, uma moça, de sobretudo e com um chapéu cobrindo os longos cabelos loiro-escuros, encontrou a clareira com uma única casinha de madeira, velha e abandonada: era exatamente o que ela vinha buscando. Tinha que ser ali, certo? Ela se aproximou, determinada, e entrou lá.
No primeiro andar, nada além de ervas daninhas e musgo, que prosperaram naquele ambiente úmido, porém o que a mulher queria não estaria naquela sala, de qualquer forma. Uma escadaria levava até o porão, e ela desceu sem hesitar.
O porão era escuro e vazio, fazendo cada passo dela na escada ecoar. Por enquanto, nada parecia diferente de todos os outros lugares que ela tentara das outras vezes, mas a coisa toda era um tiro no escuro de qualquer forma, e ela estava disposta a arriscar. Aquela, entretanto, seria sua última tentativa; se ali não fosse de fato um Altar Obscuro, ela não conseguiria contatar Eles, e então consideraria isso o seu sinal para desistir de vez e tentar seguir em frente.
De pé, no meio do cômodo, ela tirou do bolso uma folha velha e amassada, então limpou garganta e começou a pronunciar os nomes:
— Pokotho.
Ela se arrepiou ao falar aquilo, não somente pelo poder por trás da palavra, como também por uma brisa que sentiu passando por si, mesmo que estivesse em um lugar completamente fechado, sem espaço para que vento algum passasse.
— Bliklotep.
Ela pôde jurar que ouviu sussurros, como se trazidos pelo vento, vozes fracas cochichando coisas que ela não compreendia.
— T'noy Karaxis.
A sala pareceu ficar menos escura do que antes — e, mesmo assim, muito mais horripilante.
— Nibblenephim.
A energia estava diferente; a mulher sentiu agonia, aquilo não parecia certo… a lógica dizia para que parasse, porém era tarde demais para desistir, e ela precisava, precisava, jurou para si mesma que tentaria aquela última vez. Ela umedeceu os lábios antes de mirar o papel novamente e chamar o último.
— Wiggog Y'rath.
Estava feito. Os nomes todos ecoaram pelo porão, enquanto sombras pareciam crescer ao seu redor. O sentimento ruim dentro de si piorou, seus cabelos balançavam ao vento, seu coração parecia prestes a implodir…
E então, como se o lugar prendesse a respiração, tudo parou: sem luzes, brisa ou vozes. A mulher murmurou para si mesma, sua voz quase sumida:
— Será que funcionou…?
— Olá, amiguinha.
A moça arfou quando sentiu o chão se desintegrar embaixo de si. Uma confusão multicolorida passou enquanto ela caía no sinestésico abismo sem fundo: rosa, amarelo, verde, azul, roxo. Um milhão de vozes ecoavam ao seu redor, tão altas que seus ouvidos sangraram:
Dos fundos do inferno, vêm e vão
Nós, crias do Preto e Branco
Cobrindo as almas de escuridão
A noite vai abraçando
Ela tentou gritar, mas sua voz não saiu. Aflita, ela percebeu que era porque olhos nasciam em todo seu corpo — na língua, nas mãos, braços, pernas, barriga, bochechas… Somente suas órbitas em si é que ficaram vazias, pois seus dois olhos originais derreteram e escorreram, deixando traços azuis pelo rosto. Quando ela tocou a própria pele, horrorizada, percebeu que as partes do corpo ainda intactas começaram a rachar como vidro quebrado.
Nibbly quer seu sacrifício
E Wiggly quer rancor
No pentagrama dançamos
Aos nossos reinos de horror
Pelo corpo inteiro da mulher, ela sentiu uma dor excruciante. Sua pele rachada começou a murchar, os cabelos foram embranquecendo, os ossos se fragilizaram — ela estava envelhecendo rapidamente, enquanto caía no infinito. Então, algo finalmente a segurou no ar: eram tentáculos, os quais começaram a apertá-la, sufocá-la, tornando impossível respirar. Sem saber como ainda podia ter qualquer resquício de consciência, como poderia estar viva — se é que não havia sido puxada ao inferno em si —, uma enorme boca apareceu para mastigá-la, triturá-la e devorá-la.
Murmure o feitiço essencial
Murmure o que falamos
Derramamos o sangue, é vital
Lordes do Obscuro, mandamos
De um segundo para outro, ela foi trazida de volta ao porão. Tocando em si mesma com as mãos tremendo, percebeu que tudo havia voltado ao normal, como se nada tivesse acontecido: ela era ela mesma, seu corpo estava em ordem, exatamente como antes, sem nenhum arranhão a mais. Mas o que vivera momentos antes havia sido completamente real, e suas pernas fraquejaram e cederem, fazendo-a cair de joelhos e vomitar.
Se nos convocar, vai ter que lidar
Jogue os dados, hora de apostar
O demônio ganhou, está feito, acabou
O livro da vida ainda não vai fechar
Quando a mulher levantou a cabeça, se viu cercada de cinco… pessoas? Não, aquela não era a palavra certa para descrevê-los. Eles eram altos, passando dos dois metros de altura, e pareciam humanos fantasiados e mascarados, por mais que a energia exalada pela presença deles deixasse claro que não eram.
Um, de mantos azuis, escondia o rosto atrás de uma máscara branca, arredondada, meio rachada e de órbitas vazias.
O segundo tinha seu rosto inteiro coberto por uma máscara em forma de boca, e trajava rosa.
O terceiro estava de verde, e sua máscara tinha olhos esbugalhados e tentáculos.
As vestes do quarto eram roxas e cheias de olhos, combinando com sua máscara: um enorme olho meio amarelado, meio alaranjado.
O último vestia amarelo, e sua cabeça estava coberta por um crânio de bode.
— Nós andávamos te assistindo — retumbou o olho. A mulher não conseguia colocar-se de pé, então permaneceu ajoelhada, virando a cabeça constantemente para ver todos os cinco.
— Lordes do Obscuro. Finalmente consegui contatá-los — a mulher arfou.
— Não seja tão formal, Bagi, somos todos amiguinhos aqui — a figura de tentáculos vociferou — Até mesmo nos adaptamos à sua língua para nos comunicarmos com você.
— E escolhemos formas que não derreteriam sua mente — completou o das órbitas azuis vazias.
Bagi engoliu em seco. Então, colocou uma mecha de cabelo atrás da orelha e forçou-se a falar mais alta e claramente.
— Eu chamei vocês aqui porque preciso saber se meu irmão está vivo.
— Não tente nos convencer de que invocou a nós somente para respondermos a uma simples pergunta, Bagizinha — o de crânio de bode baliu.
— Não, não foi só para isso, mas eu preciso de confirmação pra poder seguir com o resto. Ele está? Está vivo?! — ela podia ouvir o desespero na própria voz.
— Se chegou a nos convocar, é porque acredita que sim.
— Só preciso ouvir o sim ou não. Por favor.
— Podemos sentir a presença pulsante dele nesta Terra, sim — exclamou a boca — Mas não podemos garantir que ele está seguro.
Bagi cerrou os olhos, absorvendo a notícia. Seu irmão, depois de todo aquele tempo, realmente ainda estava por aí. Não era loucura sua, não era imaginação; sua crença esperançosa estivera certa aquele tempo todo. Bagi umedeceu os lábios antes de voltar a falar.
— Eu quero encontrá-lo, o mais rápido possível. E quero garantir a segurança dele. Vocês vão me ajudar?
A confusão de vozes simultâneas voltou a assombrar seus ouvidos.
Os Lordes vão te ajudar, vão sim
Menininha boba
O mundo inteiro poderia salvar
Mas o irmão ela não abandona
— Mas você está nos pedindo muitas coisas — o de verde bradou — Não está nos parecendo muito vantajoso. As coisas já estão tão divertidas do jeito que estão… O que você oferece para fazer o acordo valer a pena?
— Eu dou qualquer coisa que quiserem! — Bagi implorou.
O que a gente quiser, quiser, quiser
Quanta paixão fraterna
O que você quiser, quiser, quiser
Sua dívida será eterna
— Sua barganha está começando a ficar interessante, Bagizinha.
— Digam logo, o que querem de mim?! Meu sangue? O sangue de outra pessoa? DIGAM!
TOME CUIDADO COM O TOM QUE USA CONOSCO
— Você já esperou por treze anos de sua efêmera vida mortal nojenta. Não nos apresse.
— Me perdoem! — ela curvou-se.
— Aqui vai o nosso preço: queremos aquilo que você mais estima.
Os olhos dela se arregalaram e ela levantou o torso.
— O que eu mais estimo? Como assim?
— O que você deseja, Bagi? — a criatura azul de olhos vazios perguntou retoricamente, parecendo estar se divertindo.
— Você deve abrir mão do que valoriza acima de tudo — reformulou o que tinha a máscara de tentáculos.
— O que lhe é mais importante, mundano ou não — elaborou o monstro com crânio de bode.
— Faça, ou nunca mais verá o seu irmão — o olho exigiu.
— Cumpra o acordo, ou deixe de nos incomodar e retire-se daqui — o que vestia máscara de boca deu o veredito final.
— Mas eu não sei qual é o meu bem mais precioso…
O de mantos amarelos com crânio de bode deu um passo à frente.
— Deixe-me refrescar sua memória.
Ele levantou suas garras para a moça e tocou-lhe a cabeça. No mesmo instante, lembranças começaram a passar diante dos olhos dela, como um filme — memórias de sua infância, de quando era feliz. Viu sua mãe, seu pai, seu irmão, sua avó, seu gato… saudade não era o suficiente para descrever o que sentia. Se pudesse voltar no tempo, ah, Bagi voltaria sem pensar duas vezes. E que se foda os paradoxos temporais, porque tudo e todos com quem ela se importava, tudo e todos que já amou e continuava amando tanto, não estavam mais lá.
A criatura recolheu a mão novamente. Bagi baixou a cabeça, sentindo as lágrimas escorrendo, e quando seus cabelos caíram no rosto, ela notou que, de repente, tinham se tornado brancos. Ela passou os dedos pelos fios, confusa.
— Seu bem mais precioso nesta vida são suas memórias do passado.
Bagi o encarou diretamente, e aquilo fez seus olhos arderem.
— São tudo o que me restou.
O caprino vestido de amarelo se afastou novamente, voltando à posição original na roda. Bagi olhou ao redor.
— Então é isso? Vocês pegam minhas memórias e eu consigo meu irmão de volta e em segurança? Mas como eu vou saber que é ele se não vou poder lembrar dele?
— Acordo é acordo, e nós garantiremos que Cellbit ficará vivo e que você vai encontrá-lo em breve.
Ela fechou os olhos com força, lembrando o rosto do irmão, ainda infantil quando o vira pela última vez. Recordava tão perfeitamente dele que quase podia imaginá-lo ali, bem na sua frente. Como será que ele estava nos dias atuais? Esperava descobrir logo.
— Fechado — ela exclamou, determinada.
Bagi sentiu uma força invisível erguendo-a até que ela estivesse fora do chão, levitando, puxada pelo torso. Assustada, ela olhou ao redor uma última vez antes de ser cegada pelas luzes.
───────•••───────
Bagi acordou na cama de seu apartamento, agitada e suando, e imediatamente se sentou, respirando rapidamente. Olhou ao redor, confusa e perdida. Na cômoda ao seu lado havia comprimidos de remédio para dor de cabeça, um despertador e uma foto em família, mas o rosto de todos estava borrado, tirando o de uma menininha — ela mesma, bem mais nova.
Ao se levantar, deu de cara com o espelho, e mal se reconheceu; desde quando seus cabelos eram quase inteiramente brancos? Até onde se lembrava, todos os fios tinham a cor daquela única mecha da frente, loiro-escura. Mas, parando para pensar, ela poderia muito bem estar enganada, porque, assustada, ela percebeu que, na verdade, havia muitas coisas das quais não se lembrava. Salvo alguns momentos específicos e triviais, suas memórias pareciam nubladas e inacessíveis.
No meio de tanta confusão mental, tanta informação a ser absorvida, Bagi sabia de apenas uma coisa, um pensamento insistente, a única certeza que tinha naquela vida: ela precisava dar um jeito de chegar o mais rápido possível na pequena cidade de Hatchetfield, no Michigan.
Notes:
A inspiração da vez foi uma cena de Nerdy Prudes Must Die, uma das minhas peças favoritas do Team Starkid, e os visuais dessa animação de fã também me deram ideias! As frases ditas pelos "Lordes do Obscuro" foram traduções que eu mesma fiz do texto original, adaptando algumas coisas pra caberem aqui, e eu me diverti demais criando esse capítulo
Chapter 21: Tempo Perdido (Parte 1)
Chapter Text
“Preciso saber se meu irmão está vivo.
Eu quero encontrá-lo.
E quero garantir a segurança dele.
Cellbit?”
Quando Cellbit abriu os olhos, estava deitado em uma sala desconhecida, fria, bem iluminada e completamente branca. Confuso e assustado, ele rapidamente se sentou, sua respiração acelerada, e foi imediatamente atingido por uma enxaqueca terrível.
Treze anos atrás, acordei em um lugar desconhecido, quente, mal iluminado e com um céu vermelho. Eu estava confuso e assustado, não me lembrava de nada, não sabia quem eu era, e logo de cara quase fui atingido por uma flecha na cabeça. Essa é a minha lembrança concreta mais antiga da vida inteira.
Cellbit levantou da maca em que estava e olhou ao redor antes de, com cuidado, explorar o ambiente. Não lembrava de nada, de como tinha ido parar lá, do que poderia estar fazendo naquele lugar frio com cheiro de hospital, vestindo aquelas roupas que, assim como o ambiente como um todo, se encontravam impecavelmente brancas.
A sala era minimalista e monocromática. Em uma mesinha, poucos metros à frente de onde acordara, encontrou uma bandeja com uma maçã, um sanduíche embalado em plástico e uma garrafa d’água, acompanhados por uma plaquinha, a qual ele pegou nas mãos para analisar de perto: tinha o desenho de um sorrisinho. Levantando o olhar, ele percebeu as câmeras de segurança: Cellbit estava sendo assistido.
Como fui parar lá, claro, eu não tenho ideia. Mas por que um lugar como aquele existia? Bom, em algum momento eu perceberia que estava sendo assistido. As pessoas lá eram submetidas a joguinhos de sobrevivência para entretenimento de alguma força maior.
Cellbit decidiu devolver a plaquinha com o sorriso à bandeja. Havia duas portas naquele quarto: uma delas, no canto à esquerda, era de metal e precisava de um cartão para ser aberta; a segunda era muito mais simplória, parecia ser de madeira pintada de branco, e tinha uma fechadura comum. Cellbit girou a maçaneta da segunda e, surpreendentemente, ela abriu.
A sala que encontrou ao passar era muito mais ampla e ainda mais vazia. Mas o que cativou sua atenção lá foi a grande parede de vidro, que parecia dar visão para o interior de uma espécie de prisão.
Lá, era matar ou morrer. Então eu tive que aprender a me virar sozinho logo, a me esconder, e eventualmente… eu precisei aprender a me defender também. Por muito tempo, tirando inimigos tentando me matar, eu fiquei completamente sozinho lá.
Ao se aproximar, Cellbit percebeu que não estava sozinho lá: atrás da parede de vidro, ele viu ninguém menos do que…
— FELPS! — ele gritou, correndo naquela direção.
Seu melhor amigo estava de costas, mas se virou ao ser chamado. O rosto estava mais magro, porém o sorriso ao vê-lo continuava o mesmo.
— Cellbit! Eu acabei de acordar, o que tá acontecendo? O que eu tô fazendo aqui? — ele disse, sua voz soando bem abafada, apesar das palavras serem discerníveis.
Felps usava uma roupa de hospital, e se aproximou do vidro para colocar as palmas nele, como se aquilo fosse fazer com que suas mãos tocassem as do amigo, que estava no mesmo lugar só que do outro lado.
— Eu não sei! — Cellbit falou, e não conseguiu conter um grande sorriso — Que saudade, caralho, eu tô te procurando há semanas!
— Semanas? Mas eu cheguei ontem!
— Literalmente faz semanas, Felps — ele declarou, tirando as mãos do vidro e olhando ao redor mais uma vez — A gente tá na Federação?
— Federação?
— A Census of Communication, Research & Power. Em Hatchetfield. É onde aquele urso branco trabalha.
— O Cucurucho… — Felps franziu as sobrancelhas, pensativo — Ele tinha dito que ia me ajudar…
— EU SABIA! Urso maldito… Eu vou dar um jeito de te tirar daí, Felps.
— Tá frio…
Cellbit se aproximou da porta de metal que dava entrada para a cela do amigo, ignorando as câmeras de segurança que sentia seguindo cada um dos seus movimentos.
— Precisa de uma senha… — concluiu depois de examiná-la.
— O quê? Eu não te ouço direito por causa do vidro.
— Uma senha, Felps. Quatro algarismos. São dez mil combinações possíveis.
— Não tem algo por aí que ajude a quebrar o vidro? Acho que seria mais fácil.
Não tinha. A sala era realmente bem vazia, e a vidraça, extremamente resistente. Cellbit procurou por todo canto, até voltar ao quartinho em que estava antes.
Eu tentei de tudo, mas era impossível fugir de lá. Não havia escapatória, não existia esperança. Depois de um tempo vivendo assim, você para de pensar muito sobre o futuro a longo prazo, porque só consegue se preocupar com aquilo que precisa neste exato momento, ou que pode precisar amanhã. Nem a semana seguinte passava pela minha cabeça, porque eu nunca sabia se ainda estaria vivo até lá.
Ao lado da cama em que Cellbit acordara, havia um calendário básico, sem desenho algum, pendurado na parede, e nele, estavam riscados todos os dias antes de 16 de junho. Cellbit levou um susto, como tantos dias podiam ter passado…? Claramente, não havia sido só o Felps a perder a noção do tempo ali.
Independentemente daquilo, a presença do calendário, acima de tudo, o intrigava. Se aquilo era uma pista para a senha, significava não apenas que o responsável por colocá-los ali já estava contando com a escapatória deles, mas também com o momento exato em que ela ocorreria…
Incerto, porém sem nenhuma outra ideia, ele voltou até a porta eletrônica, perto da qual Felps esperava, do outro lado, abraçando os próprios braços, arrepiado, e roendo as unhas. Cellbit subiu os dedos até as teclas e digitou: 1606. Nada. Antes que o desespero bastasse, ele percebeu seu erro. Porra de estadunidenses. Tentando de novo, ele dessa vez teclou 0616, e uma luz verde acendeu acima da porta.
O Bad Boy Halo… Ele foi meu único amigo no lugar de céu vermelho. Eu não confiava em ninguém, aprendi essa lição do jeito difícil, mas ele salvou minha vida mais de uma vez, e acabamos virando uma dupla. Às vezes eu acho… que se eu consegui manter algum resquício de humanidade dentro de mim naquele lugar, ele teve um papel importante nisso. Em situações assim, a gente percebe a diferença que uma amizade faz.
— FELPS!
A porta da cela de vidro se abriu e Felps correu para abraçar o amigo com força. Depois de tanto tempo de busca, tanta preocupação, finalmente se reunir a ele fez os olhos de Cellbit marejarem, um alívio indescritível e quase anestésico invadindo seu corpo. Por um momento, havia considerado a possibilidade de que não veria mais seu amigo, que tudo fora em vão. Mas no fim, valeu a pena não desistir de Felps, assim como Felps nunca havia desistido dele.
Quando o abraço se desmanchou, Felps pôde olhá-lo mais de perto, e pareceu intrigado.
— Achei que tinha sido impressão minha… Cellbit, o que aconteceu com o seu cabelo?
— Como assim?
— Tem uma mecha branca na sua franja.
— Tem?!
Confuso, ele se reaproximou do vidro, tentando enxergar seu reflexo. Felps comentava.
— Sortudo, ficou com uma mecha estilosa. Tudo o que eu ganhei foi esse negócio bizarro no braço.
No mesmo momento, Cellbit desviou a atenção do vidro para ver a que o amigo se referia: em seu antebraço, Felps tinha uma enorme mancha escura, arroxeada em volta, parecendo mais funda em algumas áreas, como se parte da carne estivesse faltando.
— QUE NEGÓCIO É ESSE?! — Cellbit arregalou os olhos.
— EU NÃO TENHO IDEIA! Mas dói quando eu encosto.
— Puta que pariu. Vamos logo meter o pé daqui.
Sem nenhum outro lugar para ir, os dois voltaram ao quartinho do calendário, e caminharam até a porta de metal no canto, que parecia precisar de um cartão para ser destrancada. Ao reparar no lanche simplório que Cellbit havia ignorado, Felps olhou os alimentos com interesse e se aproximou.
— Agora a gente só precisa dar um jeito de abrir isso aqui… Felps, o que você tá fazendo?
Ele segurava o sanduíche, suas mãos prontas para tirá-lo da embalagem.
— Eu tô com fome! Você disse que eu tô aqui há semanas, e eu realmente sinto como se eu não comesse há semanas! Você não tá com fome não?
Só depois daquela pergunta foi que Cellbit ouviu sua barriga roncar. Até então, ele nem havia reparado que sentia fome…
Achar o que comer, essa era uma das partes mais complicadas. A gente gastava muita energia todo dia, mas era impossível encontrar alimento o suficiente. Eu não vou mentir para você, porque jurei ser sincero… Já tive que recorrer a coisas terríveis para conseguir me nutrir. Não vou dizer as palavras, mas pense na pior coisa que puder imaginar. Sim, isso mesmo. Ou era isso, ou eu não estaria vivo aqui hoje.
— Felps, a gente não tem tempo!
— A gente vai comendo enquanto pensa em como passar por essa porta aí. Vamos lá, ninguém pensa direito quando tá com fome. Fica com a maçã — ele insistiu, jogando a fruta para ele, que a segurou no ar.
— Para, não come isso, a gente não sabe se dá pra confiar em quem deixou isso aí!
— Ah, Cellbo, relaxa! — Felps o tranquilizou, e deu uma mordida no sanduíche antes que o amigo pudesse impedi-lo.
— NÃO!
Enquanto mastigava, Felps fez uma careta.
— Tem algo de estranho nesse negócio.
— É VENENO? REMÉDIO PARA DORMIR?
— Não…
Felps levou os dedos aos lábios e tirou um pedacinho de plástico da boca. Então, abriu o sanduíche e o mostrou para ele: protegido por uma embalagem plástica parcialmente mastigada, havia um cartão cinza sem nada escrito. Sem delongas, Cellbit pegou o sanduíche, ignorando os protestos do outro, tirou o plástico dali e desembrulhou o cartão para usá-lo na porta, que abriu com um bip.
A passagem dava em uma escadaria estreita e mal iluminada. Enquanto Cellbit observava o caminho, curioso e intrigado, Felps aproveitou sua distração, pegou o sanduíche de volta e voltou a comer, indiferente sobre terem encontrado um cartão ali. Só então se aproximou para também observar a única possível saída deles para fora em toda aquela área; os dois trocaram olhares por um instante antes de começarem a subir as escadas.
A forma como saímos de lá, bom, foi tudo muito confuso… Já tínhamos aceitado nossa realidade lá, ninguém nem se lembrava de como era a vida do outro lado, quando um dia, de repente, depois de ANOS, um grupo de soldados apareceu e disse que podia nos tirar dali. Eles se identificaram como sendo da Unidade Especial de Problemas Paranormais, Interdimensionais e de Outros Mundos, um grupo sobre o qual eu nunca tinha ouvido falar antes e do qual nunca mais ouvi falar depois disso. De um jeito ou de outro, eles cumpriram com a promessa e nos tiraram do lugar de céu vermelho.
Ao fim da escadaria, havia mais uma porta. Cellbit, que vinha na frente, abriu-a com cuidado e colocou a cabeça para fora, tentando se localizar. O reconhecimento foi imediato: o corredor era exatamente igual a todos os corredores pelos quais já passara na CCRP; só podiam estar dentro do prédio da Federação.
— Puta merda…
— Onde a gente tá? — Felps perguntou, amassando a embalagem do sanduíche que acabara de comer.
— Em um lugar onde as pessoas não vão ficar felizes de nos ver. A gente precisa tomar cuidado. Merda, as câmeras…
Do outro lado do corredor, Cellbit encontrou sua única esperança, a única área que não era filmada dentro da Federação: o banheiro. O único problema: para chegar lá, seria preciso, justamente, passar pelo corredor que estava sendo filmado.
— Fica aqui — cochichou para o amigo.
Cellbit caminhou cuidadosamente, por onde imaginou ser o ponto cego da câmera — ou, pelo menos, era o que ele esperava. Mantinha-se de olho nas portas que davam acesso a outras salas, preocupado que um funcionário pudesse aparecer a qualquer momento. Então, quando acreditou estar no ângulo certo, ele, com um movimento rápido, pegou no bolso da roupa a maçã que Felps lhe entregara e a jogou na câmera, quebrando a lente.
— CORRE, FELPS, BANHEIRO!
Ele obedeceu sem hesitar, e os dois entraram e fecharam a porta com rapidez. Felps se manteve ali, impedindo a passagem de qualquer um, e se deixou deslizar um pouquinho até estar sentado no chão, enquanto Cellbit arfava:
— Ok, vamos lá. Agora a gente só precisa pensar num jeito de sair daqui e…
— Hello?
Os dois se encararam com olhos arregalados e, devagar, viraram o rosto para a direção da terceira voz. De uma das cabines, segurando um esfregão e um balde, saiu o zelador de quem Cellbit havia tirado foto na primeira vez que entrara na Federação. Os brasileiros ficaram congelados, sem saberem o que dizer ou fazer, enquanto o homem se aproximava deles.
— Tá tudo bem, eu não vou fazer nada com vocês — o zelador os acalmou, e então se direcionou a Cellbit — Espera, você. Você é amigo do Bad Boy Halo, não é?
E você é o pai de um amigo do filho dele, Cellbit pensou, lembrando-se da reação dos Theory Bros quando lhes mostrara a foto do zelador.
— Sim, eu sou — respondeu simplesmente.
— Caraca, ele tá super preocupado com você! — o homem disse, mudando completamente sua postura dura, quase militar, para um tom mais acolhedor — Ninguém sabe o que te aconteceu, mas o Bad achava mesmo que a CCRP devia ter algo a ver com isso, então ele me disse pra ficar de olho por aqui. Mesmo assim, ninguém sabia exatamente o que fazer…
Eu não sabia o que fazer. Sim, eles tinham me salvado, mas o que fazer com um adolescente perdido que nunca aprendeu a viver em sociedade? Não havia registros sobre mim, mas eu sabia que era brasileiro porque me lembrava da língua e reconhecia alguns aspectos da cultura. Mas estávamos nos Estados Unidos, ninguém tinha ideia de como eu fui parar lá nem de quem era minha família.
— A gente pode explicar… — Felps começou, mas Cellbit o impediu com um gesto de mão que sinalizava para que parasse.
— Você vai nos ajudar a sair daqui? — questionou, ainda em alerta, pronto para dar o bote, se fosse necessário.
O zelador hesitou.
— Olha… Eu não quero perder o meu emprego, mas… Eu também não vou só largar vocês dois aqui. Então vão ter que tomar muito cuidado. Eu sei como tirar vocês daqui.
Não havia motivo algum para confiar naquele cara, contudo, realisticamente, que chances eles teriam sem aquela ajuda? Estavam encurralados, exaustos e vulneráveis. Enquanto o zelador saía do banheiro, dizendo que voltaria em breve com algo que poderia ajudá-los, Cellbit andava de um lado para o outro.
— Droga, queria estar com a minha faca aqui… Vem cá, Felps, me ajuda a quebrar o espelho pra gente se defender, se for o caso.
— Do que você tá falando, caralho?
— Quem garante que ele não vai voltar aqui com reforços pra nos prenderem? A gente precisa estar preparado para contra-atacar se for preciso.
— E você acha mesmo que a gente vai ter alguma chance se isso acontecer? Primeiro que quebrar o espelho ia fazer o maior barulho, segundo que nós dois, no estado em que estamos, não vamos conseguir lutar contra um grupo de gente pra se salvar.
— Então o que você acha que a gente devia fazer, confiar nele?
— Ele não é amigo do Bad?
— Em teoria…
— Cara, a gente não tem chance sem ele. O negócio é esperar, o pior que pode acontecer é pegarem a gente de novo, mas eu realmente não acho que isso vai acontecer. Deixaram tudo pra gente escapar!
— Eu não sei não, Felps, isso tudo tá muito estranho pra mim…
— Sinceramente, acho que o estranho é o normal pra mim.
— Nessa eu não vou ter como discordar.
Quando o zelador voltou, pouco depois, trazia algo escondido em seu carrinho de limpeza.
— Eu trouxe um uniforme completo da Federação pra cada. Eles cobrem os próprios rostos, então ninguém vai reparar muito em vocês. Se vistam rápido e dêem o fora daqui o quanto antes.
Os brasileiros obedeceram e entraram nas cabines. Cellbit sentiu-se estranho colocando, por cima das roupas que já usava, o traje que por pouco não se tornara seu real uniforme de trabalho. Quando saiu da cabine, olhar-se no espelho lhe trouxe grande desconforto. O zelador limpava o banheiro como se nada tivesse acontecido e, sem levantar a cabeça, lhes deu instruções sobre quais corredores seguir para conseguirem chegar ao lado de fora.
— Ei, muito obrigado — Felps disse, se aproximando um pouco do moço — Você salvou a gente com essa.
— Não me agradeça até que os dois estejam no Egg Carton reunidos com a família de vocês.
Enquanto os dois amigos saíam do banheiro apressados, Fit os observou, sem que notassem, desejando que tudo desse certo; torcia para que eles acabassem menos enrolados naquilo tudo do que ele próprio.
Cellbit e Felps passaram pelos corredores, tentando se mesclar para não serem notados. Enquanto ainda estavam sozinhos, Cellbit sussurrou algumas instruções: não fale absolutamente nada, copie a minha postura porque eu fiquei muito tempo observando como esses trabalhadores se portam. Quando verdadeiros funcionários sem rosto passaram por eles, os dois fingiram que não os viram, antes de acelerarem o passo.
Enquanto eles se concentravam em manter as aparências, as câmeras de segurança focaram neles. Na sala escura em que eram exibidas as imagens gravadas, uma figura branca lhes assistia. Tudo ia de acordo com o planejado.
A dupla passou por corredores e elevadores, e se perdeu algumas vezes, até que eles finalmente encontrassem a recepção e a saída. Mesmo por trás das máscaras, que escureciam um pouco a visão deles, os olhos dos amigos doeram ao ver a luz do sol pela primeira vez em tanto tempo. Foi difícil, com a empolgação de terem saído daquele prédio maldito, porém mantiveram a postura até encontrarem uma rua deserta, onde puderam tirar as máscaras e respirar ar fresco.
— A GENTE CONSEGUIU, CARALHO!
Os dois se abraçaram, suados e aliviados, sentindo-se como se tivessem acabado de voltar da guerra. O lado de fora, ao contrário do interior da CCRP, estava abafado e ensolarado, no auge do verão, o que tornou as roupas ainda mais desconfortáveis, porém aquela era a menor das preocupações deles no momento.
— Ok, mas o que a gente faz agora? — Felps ponderou — Não temos um tostão pra táxi ou passagem de trem, vamos ter que andar até o hotel? Não é meio longe daqui?
Com os olhos semicerrados e respirando alto, Cellbit pensou a respeito, olhando ao redor. Eles estavam fracos, muito fracos, e tinham acabado de fazer uma fuga aparentemente impossível de uma empresa poderosa, que a qualquer momento poderia perceber a ausência da dupla e tentar procurá-los. Repassando na mente as possibilidades e lugares próximos de onde estavam, Cellbit acabou tendo uma ideia, que pareceu o mais lógico a se fazer naquele momento.
— Eu sei onde podemos ir pra pedir ajuda.
Chapter 22: Tempo Perdido (Parte 2)
Chapter Text
♫And I’ll bring iiiiit
And I’ll bring iiiiit
Right, right, riiiiight
And I’ll bring it right up!♫
Tina encerrou a música de gorjeta na pose final, forçando um sorriso claramente falso e entregando a bebida ao homem bigodudo do outro lado do balcão, que comentou:
— Mas por que essa música fala sobre entregar um “copo de café” se o que eu pedi foi um frappuccino de caramelo? Vocês precisam atualizar essa música aí pra ela sempre encaixar no que foi de fato pedido.
— Pode deixar que eu vou mencionar sua sugestão com a gerente.
Para o enorme alívio de Tina, o homem pareceu satisfeito com sua resposta, apesar do tom levemente sarcástico que ela não foi capaz de evitar, e ele saiu da fila para dar espaço ao próximo cliente. Ela fechou os olhos, já exausta, mesmo ainda de manhã, pensando como precisava encontrar um novo emprego; não sabia por quanto tempo mais aguentaria ter que cantar aquela maldita música a cada nova gorjeta, como se aturar sua chefe e clientes babacas já não fosse humilhação o suficiente.
Ao abrir os olhos de novo, ela ficou um pouco mais relaxada em ver quem era o próximo a fazer o pedido: o moço caladão de olhos azuis que chegara à cidade havia algumas semanas, e que frequentava o Beanie’s com certa frequência, mesmo que tivesse sumido nos últimos dias. Tina gostava de atendê-lo porque, além dele sempre pedir algo simples — café puro, toda santa vez —, ele, quando dava a gorjeta, dizia que não queria que ela cantasse em troca.
— Olá, qual vai ser o seu pedido?
O moço, ela percebeu, usava uma roupa semelhante ao uniforme dos trabalhadores sem rosto, e vinha acompanhado de outro homem que Tina nunca tinha visto antes, se vestindo igual a ele. Quem respondeu foi aquele que ela já conhecia.
— Bom dia. Tem algum problema se eu usar o telefone fixo daqui?
O pedido a surpreendeu. Tina olhou para trás, checando se sua chefe estava ali por perto.
— Bom… eu acho que tudo bem? Desde que você só use pra uma ligação rápida.
— Obrigado — ele suspirou, aliviado, e correu para trás do balcão com seu acompanhante. Tina mostrou a eles onde ficava o telefone fixo do Beanie’s e voltou à sua posição, em frente ao caixa.
Enquanto a funcionária os observava de canto de olho, Cellbit colocou o telefone no ouvido, pronto para começar a discar o número, quando levantou o olhar das teclas e encarou o amigo, falando baixo.
— Felps, eu não lembro de cabeça o número de lá.
— Puta que pariu.
— Hey! — Cellbit aumentou o tom de voz, e conseguiu atrair a atenção da barista. A plaquinha de identificação presa em seu uniforme fez com que ele recordasse seu nome — Tina, certo? Qual é a chance de você ter aí em algum lugar o número do Egg Carton Hotel?
— Egg Carton? — ela franziu a testa — Esse é o hotel do Bad, não é?
— Sim, exatamente!
— Foi mal, eu não tenho não.
Os brasileiros arfaram, aflitos, porém Tina, parecendo pensativa, logo em seguida completou:
— Mas eu tenho o número de um amigo dele. Tenho quase certeza de que ele consegue entrar em contato com o Bad rapidinho, já que eles participam de um clube juntos ou algo assim.
Uma onda de emoções mistas cobriu Cellbit, e ele se segurou no ombro de Felps, que acompanhava cada movimento dos dois com os olhos, tentando entender.
— Um clube?
— Sim…?
— Qual é o nome do seu amigo?
— Foolish…
— Ai meu Deus, você é amiga do Foolish — ele confirmou suas suspeitas e deixou um leve e fraco riso de alívio escapar — Diz pra ele que o Cellbit precisa de ajuda, e que eu juro que vou explicar tudo.
— An… Ok…
Incerta e confusa, Tina pegou um celularzinho rosa de dentro do bolso de seu avental e, depois de clicar em alguns botões, levou o aparelho ao ouvido. Não demorou muito para que a pessoa do outro lado atendesse, e a barista explicou, hesitante, a história que lhe fora contada. Quando seu nome foi mencionado, Cellbit pôde ouvir de longe os ruídos desafinados da voz de Foolish gritando, o que fez a moça afastar o celular de si com uma careta.
— Ai, meu ouvido! — ela reclamou para o amigo, voltando a aproximar o aparelho do rosto — Ok, vou falar pra ele.
Desligando o telefone, ela anunciou o que Cellbit esperava: seu resgate estaria a caminho, era só esperar.
— Obrigado, Tina, sério — ele agradeceu e se virou para ir sentar.
— Vocês não vão pedir nada?
Os amigos se viraram.
— A gente não tem dinheiro nenhum aqui — foi Felps quem respondeu.
Tina olhou para a dupla. Não sabia o que havia acontecido, mas definitivamente tinha algo estranho por trás de tudo aquilo, e aqueles dois pareciam super abatidos, fisicamente falando. Pressionando seus lábios juntos enquanto se apoiava no balcão, Tina tomou a decisão, e espiou mais uma vez para a porta que dava na cozinha, o que lhe deu a visão de que sua chefe conversava distraidamente com outras funcionárias.
— Eu posso dar um copo d'água pra cada um, só pra vocês não ficarem de mãos vazias — ela se inclinou para perto deles e cochichou.
— Isso não pode te trazer problemas?
— Tá de boa, só achem um lugar pra sentar.
Então, foi o que os dois fizeram, e, meio minuto depois, Tina levou até a mesa deles a água, como prometido. Felps rapidamente pegou seu copo e engoliu em grandes goles até esvaziá-lo, enquanto Cellbit bebericava, parando para observar a porta a todo momento. Sentava-se na ponta da cadeira, sem descansar de fato, balançando uma das pernas ansiosamente.
— Agora é esperar os Theory Bros virem nos buscar. E torcer pra que não tenha acontecido coisa demais pra fazer eles terem desistido da gente.
— Cellbit, cara, relaxa. Eles vão vir, sim.
— Aconteceu muita coisa no mês que você esteve fora — Cellbit disse, e então agarrou um dos guardanapos da mesa e começou a picotá-lo para manter as mãos ocupadas — Foi um mês, Felps, exatamente um mês, eu vi pela data marcada no calendário de onde a gente acordou.
— Mas quanto tempo você ficou lá? — Felps indagou, roendo as unhas.
Cellbit balançou a cabeça negativamente, baixando o olhar, para o papel que rasgava.
— Pra mim tá muito confuso, tem coisa que eu não lembro…
Depois de alguns instantes de silêncio, Felps pegou um dos guardanapos intactos e o colocou na mesa entre os dois. Então, aproveitando-se das unhas que não eram aparadas havia tempos, ele usou uma das poucas que não havia roído desde que fora resgatado e a utilizou para marcar o papel, desenhando nele um formato de #. Em seguida, marcou um X em um dos espaços e esperou, mantendo a conversa completamente paralela ao jogo da velha que estava improvisando.
— Como você descobriu onde eu tava? — perguntou.
Cellbit fez um meio círculo com a unha em um dos espaços do padrão marcado pelo amigo.
— Eu encontrei os papeis com as ofertas do Cucurucho pra você e conectei as coisas. Tinham papeis mesmo, né? Eu não imaginei isso não, certo?
Felps parou por um momento, forçando a memória. As coisas pareciam voltar para ele aos poucos.
— Tinham, tinham papeis. Eu fui conversar com o Cucurucho porque ele disse que tava disposto a ajudar a gente, e ele tinha sido muito de boa comigo, então eu tava vendo com ele o que eu teria que fazer pra conseguir a ajuda financeira que ele ofereceu. Ele perguntou se eu podia ajudar ele com uma coisa, aí eu segui ele, ele me levou até um lugar todo branco… E aí a última coisa que eu lembro foi que eu entrei numa sala, ele me fechou lá e eu dormi.
— Aquele arrombado…
Felps pegou outro guardanapo para um novo jogo da velha depois de um empate.
— Mas ele parecia tão legal…
— Eu nunca acreditei nas mentiras dele — Cellbit disse, fazendo sua jogada no guardanapo e enfim vociferando o que ele teve que manter em segredo por tantas semanas — Eu já tinha começado a investigar essa ilha, mas eu fiquei obcecado em conseguir te trazer de volta e em entender o que tinha acontecido com você. Só que aí, tanta coisa estranha aconteceu, Felps, coisas que não dá pra explicar pela lógica e razão… Tem coisas sobrenaturais acontecendo por aqui, e eu posso te provar. A Federação com certeza tá envolvida. E, no meio disso, eu percebi: mano, eles nunca vão dar a informação, a gente nunca vai conseguir nada contra eles… O único jeito de tentar descobrir alguma coisa do que aconteceu com o Felps e sobre essa Federação e essa ilha, é metendo o louco.
— E o que exatamente você quer dizer com “meter o louco”?
— Eu tive que brigar com todo mundo, fui um cuzão com todos, e aí a Federação me aceitou… Não me aceitou, eles falaram que tinham missões pra me testar, certo? Eles começaram a pedir pra eu pegar informações, colecionar coisas pra eles, espalhar propaganda falando bem da CCRP… Ninguém podia saber o que eu tava tentando fazer de fato, porque a Federação sabe de tudo, eles até devem estar olhando a gente agora, esses cornos. Eu só deixei um recadinho pro Richarlyson, pra ele não ficar preocupado, explicando a situação e pedindo segredo…
— Inclusive, que saudade que eu tô dele!
— Eu também, nossa senhora. Não vejo ele há tanto tempo… Mas ele foi uma das únicas pessoas pra quem eu não consegui mentir.
— “Uma das”? E quem foi a outra pessoa?
Antes que precisasse responder, a porta da cafeteria foi aberta com força e, por mais que o local não estivesse vazio nem silencioso, não foi difícil perceber que seus salvadores tinham chegado, um grupo de dois.
— CELLBO! — disse uma voz que sempre o fazia amolecer.
Cellbit desviou o olhar do jogo do velha e mal teve tempo de se levantar antes que Roier se jogasse em seus braços, o que o fez se desequilibrar um pouco, e ele precisou usar uma das mãos para se apoiar na mesa. Já estável de novo, ele deu uma risada de alívio e felicidade, enquanto se encaixava no abraço mais confortável do mundo.
— Roier! — suspirou, em tom íntimo, apreciando o som do nome e a pessoa que ele evocava. Acariciou-lhe os cabelos e sentiu seu cheiro, o que o fez pela primeira vez no dia acreditar que estava de fato seguro — Guapito…
— Gatinho — Roier disse, e foi possível perceber em sua voz que sorria. Eles saíram do abraço para poderem se olhar, ainda bem próximos um do outro.
— É tão bom te ver de novo — Cellbit admitiu, tímido. O sorriso de Roier aumentou.
— É muito bom te ver também, eu tava esperando por você.
— Desculpa por te deixar esperando. Posso fazer uma coisa pra te compensar por isso?
Roier virou levemente a cabeça, intrigado.
— Como assim?
De certa forma, era egoísta, Cellbit sabia, dar aquele passo sem antes ser honesto com Roier sobre seu passado. Ao mesmo tempo, deixá-lo esperando também não seria justo, e ele sabia que, assim que tivesse como fazê-lo, abriria o jogo. Naquele momento, no entanto, tudo parecia perfeito demais, e portanto, Cellbit deixou o coração falar mais alto: segurou o rosto dele com delicadeza e levou seus lábios de encontro aos dele. Roier hesitou por meio segundo, surpreso pela atitude, antes de se entregar totalmente, retribuindo o beijo.
Cellbit relaxou, a ansiedade rapidamente se dissipando e dando lugar à satisfação, esquecendo qualquer tipo de estresse ou incerteza. Roier, Roier, Roier . Fazia tempo que Cellbit não se arriscava nos misteriosos e complicados mares do romance, o que ficou perceptível para Roier em seu toque, mas ele não se importou nem um pouco. Gostava de Cellbit e de seu jeito pelo que era, e o mais importante foi que, acima de tudo, beijá-lo pareceu certo, e o fez ter ainda mais certeza de que tinha valido a pena esperar por ele.
Mesmo perdidos no momento, nos sentimentos e na gratificação de quebrar a tensão do desejo que há algum tempo já vinha pairando entre os dois, Cellbit e Roier foram trazidos à realidade quando ouviram alguém atrás deles pigarreando audivelmente. Devagar, os dois cessaram o beijo e, com os rosto ainda próximos, olharam na direção do som, onde encontraram Bad Boy Halo, que já parecia arrependido de como chamara a atenção deles.
— Desculpa! Eu não quis interromper. Ai meu Deus, me desculpa mesmo — Bad exclamou, seu rosto ficando quase tão vermelho quanto os detalhes da sua roupa, desviando o olhar e dando alguns passos para trás.
— Não, eu entendo — Cellbit respondeu com sinceridade, suspirando. Tinha ciência de como havia deixado as coisas quando foi embora, e achava mais do que justo que lhe cobrassem explicação. Relutante, ele deixou Roier ir, e viu com o canto de olho que se sentou, sem deixar de prestar atenção no que Cellbit fazia.
Olhar para Bad, depois de tudo, foi doloroso. Cellbit sentiu o peso de toda a história dos dois juntos e, por um momento, sentiu que tinha dezessete anos de novo.
Naquela confusão de ser resgatado do lugar com céu vermelho, eu tinha me perdido do Bad. Mas como existia uma filial da Unidade Especial de Problemas Paranormais, Interdimensionais e de Outros Mundos no Brasil também, eu seria encaminhado pra lá, pra verem o que fariam comigo. Consegui ver meu amigo, a pessoa que tinha me acompanhado durante todo aquele tempo, uma única vez antes de me transferirem. E, quer dizer, considerando tudo pelo que passamos, o que exatamente eu deveria falar pra ele naquela situação?
— Bad, me desculpa por trair sua confiança assim e agir como um babaca… Foi a única forma que encontrei de fazer o urso acreditar em mim. A única forma de trazer o Felps de volta.
— Eu não acredito que você conseguiu… Mas você não tem ideia do quanto eu venho estado preocupado com você! Pelo amor de Deus, nunca mais faz isso.
— Vou tentar — Cellbit riu de leve, meio envergonhado — Olha, eu acho que eu no geral de devo desculpas por muitas coisas, na verdade. O que aconteceu com o Felps me afetou muito, e eu descontei toda a minha raiva em você. Você não merecia isso.
Acho que acabei nem falando muita coisa pra ele. A situação já falava por si.
— Ah, você que eu aceito suas desculpas, seu bobão — Bad falou, meio emocionado. Então, tentando disfarçar a voz levemente chorosa, brincou — Acho que você merecia ficar de castigo depois de tudo isso, mas infelizmente você já é velho demais pra isso, então vou ter que deixar passar.
— Não, mas é sério, se você me vir agindo como um filho da puta de novo, por favor, me dá um toque.
— Olha a boca.
Era bom estar de volta em casa , Cellbit pensou, reconfortado. Bad se virou, tentando se recompor, e chamou os outros para acompanhá-lo, guiando-os para fora da cafeteria. Roier se colocou prontamente ao lado do loiro, Felps andando um pouco mais à frente dos pombinhos.
— Você ainda tem muito a explicar. Vocês dois, na verdade — Bad reforçou, olhando para os brasileiros — Todos estão esperando por vocês no Egg Carton, a gente conversa lá. Sua presença vai ser uma surpresa tão boa, Felps!
───────•••───────
Havia várias pessoas no salão de refeições do hotel, todos ali esperando a volta de Cellbit, apesar de não haver nenhuma criança presente. Quando viram que Felps o acompanhava, as pessoas mal podiam acreditar que era verdade, que o loiro realmente havia conseguido.
— Esse é o…?
— SIM! MAS COMO?!
Em meio à comoção e surpresa, os primeiros a tomarem alguma atitude, correndo até os dois, fazendo festa, puxando os recém chegados para um abraço coletivo, foram os brasileiros.
Fui mandado de volta pro Brasil, mas o pessoal da Unidade Especial de Problemas Paranormais, Interdimensionais e de Outros Mundos não sabia muito bem o que fazer comigo. Acabei sendo mandado pro mundão, pra tentar viver uma vida normal, e, claro, não me adaptei muito bem. O Felps foi uma das primeiras pessoas que eu conheci, e ele me acolheu logo de cara, mas não foi o suficiente. Digamos que a minha mentalidade ainda era a mesma de antes, e isso fez com que eu acabasse na cadeia. Foi lá que eu conheci o Pac e o Mike. A vida que os dois levavam não era fácil também, mas eles só foram presos por roubo mesmo.
— E num é que ele trouxe o Felps de volta? — Mike comentou.
— Felps do céu, o que aconteceu com você, moço?! — Pac questionou, impressionado.
Enquanto Felps respondia, Cellbit notou, olhando por cima do ombro deles, que os Theory Bros olhavam para ele, curiosos e muito intrigados. Sabia que também lhes devia muitas explicações, então deixou os velhos amigos conversando e se aproximou dos outros sem saber o que esperar como reação. O primeiro a se manifestar foi Foolish.
— Gostei do seu pijama — disse, apontando. Cellbit olhou para baixo para ver as próprias roupas.
— An, valeu…?
Maximus observava seu rosto de queixo caído. Quando Cellbit retribuiu seu olhar, o espanhol finalmente falou:
— QUE PORRA É ESSA? TEM GOZO NO SEU CABELO?
Cellbit, surpreso, não conseguiu conter uma risada, acompanhado de Foolish. Bad, por outro lado, corou muito, e disse-lhe em tom indignado:
— É isso que você tem a dizer pro Cellbit, sério mesmo?
Antes de qualquer resposta, outra figura se aproximou dos Theory Bros e se juntou à roda: uma moça loira que usava chapéu de hélice, a qual Cellbit reconheceu como sendo uma das pessoas que chegara na cidade por causa do acidente do avião que vinha de Paris. Ela estendeu a mão para o brasileiro, que hesitantemente aceitou.
— É bom finalmente te conhecer direito, você não tem ideia do quanto eu te investiguei de longe — ela falou em tom animado, dando um aperto de mão forte.
Cellbit lembrava-se de tê-la visto, sem nunca ter conversado com ela, justo na época em que mais estava surtado.
— Ah, é. Sinto muito que você tenha me conhecido naquelas condições.
— Sem problemas, eu fiquei bem intrigada. E minha curiosidade abriu portas pra mim… Digamos que os “Bros do Churrasco” ganharam uma sister.
Cellbit olhou para os outros, surpreso, e eles assentiram.
— Ah, bem-vinda! Mal posso esperar pra ouvir suas… Dicas de churrasco, por assim dizer.
— Eu também, eu também. Mas sinto que antes você devia explicar pra todo mundo o que aconteceu com você.
Com isso, Cellbit reparou que todos na sala o observavam, cheios de expectativa: estava na hora de se explicar. Ele pediu para que todos sentassem e, sendo o único a se manter de pé, explicou o que havia feito, seu plano, suas mentiras, com Felps confirmando os detalhes que sabia.
Depois de botar tudo para fora, ele pôde ver que as pessoas ainda tinham algumas dúvidas e suspeitas, o que era compreensível. Porém, antes que discussões e debates pudessem ser formados, Cellbit ouviu algo que o fez esquecer de todo o resto: uma voz infantil gritava animada.
— EU SABIA QUE VOCÊS IAM VOLTAR!
Na porta do salão, estava a criança mais sorridente do mundo. Richarlyson tirou a touquinha marrom de sua cabeça e a jogou em qualquer lugar antes de correr para Cellbit e Felps, abraçando-os e chamando os outros brasileiros para se juntarem.
— Agora todos os meus quatro pais estão reunidos de novo!
Cellbit olhou para os outros, surpreso; não lembrava de Richarlyson chamá-los diretamente de pais até então e, pela reação de Pac à palavra, não foi só ele quem reparou.
Claro, nada disso explica como o Richarlyson chegou a nós. Porque isso, Guapito, aconteceu quando estávamos fugindo do Brasil. E essa é a última parte que falta eu te contar: o que nos fez sair do nosso próprio país, com uma mão na frente e outra atrás. É a história que vou te contar a seguir, e que acho muito importante você saber isso antes de decidir se quer mesmo me ter na sua vida.
A comoção no salão ainda permaneceu por um tempo, muitas conversas e abraços, a sensação de que tudo estava voltando ao normal, ou o mais normal que poderia ser considerando tudo. Mesmo as dúvidas pendentes foram deixadas de lado por enquanto, guardadas para um momento mais adequado do que um retorno tão esperado.
Quando Cellbit viu uma brecha, foi até um canto do salão para sentar-se, um pouco mais afastado, observando os outros ao longe: os Theory Bros teorizando sobre o que a CCRP poderia ter feito com eles, os brasileiros batendo papo em português, com Richas sentado no colo de Felps.
— Gatinho.
Roier se aproximou, segurando uma sacola de papel, e, devagar, sentou na cadeira ao lado dele.
— Guapito.
O moreno lhe entregou a sacola de papel, que Cellbit abriu no mesmo momento: havia comida nela.
— Eu entrei escondido na cozinha e fiz sanduíches pra você.
— Obrigado — Cellbit sorriu. Teve enorme vontade de puxar Roier para um abraço, beijá-lo, senti-lo de alguma forma, mas se controlou e apenas pegou o alimento que lhe fora entregue — Eu preciso agradecer por tudo, na verdade. Eu fiquei tão feliz quando te vi lá…
— O prazer foi meu. Fico feliz de ver que as coisas parecem estar se encaixando — ele comentou, distraidamente pegando na mão de Cellbit, trazendo um calor que se espalhou da área tocada para o resto do corpo do loiro — Espero que a gente possa continuar logo o que a gente começou lá no Beanie’s.
Cellbit deu uma risadinha, mas logo ficou tenso. Sabia que aquele deveria ser o momento, e então olhou-o nos olhos e exlamou:
— Roier… Não existe nada que eu queira mais do que isso… a gente, ficando junto. Eu quero estar ao seu lado o tempo todo.
— Isso é um pedido de namoro indireto? — Roier era todo sorrisos.
O brasileiro queria poder simplesmente se entregar, mas ao invés disso, disse:
— Pode ser que seja — respondeu, a ideia maravilhando-o tanto que sentiu um aperto no peito ao completar a frase — Mas primeiro… Eu prometi que depois de resgatar o Felps eu te contaria tudo o que você precisa saber antes da gente mover pro próximo passo. Eu tenho um passado complicado, e eu não acho que seria justo da minha parte me inserir oficialmente na sua vida sem antes ser honesto.
Roier se ajustou na cadeira, ainda sem largar a mão dele.
— Ok, estou ouvindo.
— É uma história bem longa.
— Eu tenho tempo.
Cellbit suspirou e sentiu-se tremendo um pouco. Desviando o olhar para mirar um ponto aleatório em sua frente, ele deu uma mordida no sanduíche e então tomou fôlego para iniciar.
— Vamos começar pelo começo. Treze anos atrás, acordei em um lugar desconhecido, quente, mal iluminado e com um céu vermelho…
Chapter 23: Álibi (Parte 1)
Summary:
Aviso: O capítulo contém uma breve menção a homofobia, bem como descrições sobre canibalismo e sobre os horrores do capitalismo.
Notes:
Eu sei que o último capítulo já foi dividido em duas partes E já incluía aspectos sobre o passado do Cellbit, mas o capítulo de agora vai ter isso de novo (eu tenho que aproveitar o gancho que eu deixei, afinal). O meu plano inicial era deixar toda essa backstory em um só capítulo, mas ele ainda incompleto tava com mais de 25 páginas no google docs, então eu achei melhor dividir as quatro partes em dois capítulos mesmo.
Fico meio assim de gastar tanto tempo em uma backstory, mas ela cobre um mistério que é citado na história desde o prólogo, e que agora finalmente terá sua conclusão. Essas cenas vêm passando por inúmeras reescritas há mais de um ano, por serem algumas das primeiras ideias que eu tive pra uma fanfic de QSMP. Depois desses dois capítulos, voltaremos para o “presente” em Hatchetfield.Boa leitura!
(See the end of the chapter for more notes.)
Chapter Text
Claro, nada disso explica como o Richarlyson chegou a nós. Porque isso, guapito, aconteceu quando estávamos fugindo do Brasil. E essa é a última parte que falta eu te contar: o que nos fez sair do nosso próprio país, com uma mão na frente e outra atrás. É a história que vou te contar a seguir, e que acho muito importante de você saber antes de decidir se quer mesmo me ter na sua vida.
Parte 1: Rotina
Que des mélo mélo dans ma tête (tout est)
São Paulo, 9 de fevereiro
O barulho que o relógio-despertador fazia era agudo, repetitivo e insuportável. Cellbit abriu os olhos para ver os ponteiros marcando cinco da manhã, antes que ele batesse com força no aparelho e o silenciasse. Não sabia como o reloginho continuava funcionando mesmo ao ser esmurrado quase diariamente, parcialmente por uma tentativa quase inconsciente de que, um dia, talvez não tocasse.
Cellbit sentou-se na cama, as costas arqueadas, encarando o chão com os olhos semi-abertos, não se sentindo nem um pouco descansado. Guiado pela rotina, pôs-se de pé automaticamente, saiu do quarto completamente escuro para chegar a uma pequena sala sem cortinas, dando visão à cidade cinzenta, e então virou para encarar a cozinha anexada ao cômodo e colocou água para ferver. O cachorro do vizinho já latia incessantemente, mesmo àquela hora da manhã.
Cellbit entrou no banheiro onde ele mal cabia, lavou o rosto na pia e, ao levantar a cabeça novamente, levou um susto se vendo no espelho. Demorou um segundo para se reconhecer, pois ver o próprio reflexo o fez lembrar-se de si e da própria existência; ele tinha esquecido que era real, e a lembrança acabou completamente com o ritmo da sua rotina automática. Ele tentou se afastar antes que pensasse demais sobre a própria vida e tivesse outra crise.
Assim que a água terminou de ferver, ele preparou uma caneca cheia de café puro e não demorou muito para beber apesar da quentura. Depois, tentou se arrumar para o trabalho evitando o espelho, e quando já estava do lado de fora do apartamento, trancando a porta, uma rápida espiada em seu relógio de pulso assegurou-lhe que não estava atrasado. Ele desceu dois lances de escada e apressou-se até o ponto de ônibus mais próximo, onde encontraria os mesmos desconhecidos de sempre.
Chegando lá, enquanto esperava o transporte público — e teve de esperar bastante —, alguns pensamentos cruzaram-lhe a mente, memórias violentas de um passado que o assombrava, porém Cellbit tentou afastá-las o mais rápido que pôde. O ônibus chegou atrasado, e estava cheio a ponto de quase não caber mais ninguém lá dentro, então ele passou toda a viagem de pé, espremido.
Quando desceu, teve que andar por alguns minutos até chegar no velho prédio em que trabalhava. Mais escadas, e então estava assinando o livro-ponto quando ouviu uma voz conhecida chamando-o. Ele levantou a cabeça para ver a figura conhecida aproximando-se dele.
— Oi, Pac — cumprimentou, e os músculos do seu rosto se recusaram a obedecer o comando do cérebro de sorrir para o amigo.
— Bom dia, Cellbit — ele respondeu com certo ânimo, que não devia ter sido fácil de conjurar naquele ambiente — Ei, queria falar com você. Escuta só, já que amanhã é sexta, o Mike tava querendo marcar de a gente passar naquele barzinho aqui perto depois do expediente amanhã, vai o mesmo grupo de sempre. Vamos?
— Não sei…
— Ah, cara, você recusa sempre. A gente tá ficando preocupado com você…
— Eu só tô cansado.
— Eu sei, mas todo mundo tá. Só pra gente se ver, não nos reunimos faz tempo por causa da correria, a gente queria muito a sua presença. Eu te dou carona, até.
Cellbit pensou sobre enquanto tampava a caneta e a recolocava em seu lugar ao lado do livro-ponto.
— … Tá, pode ser.
— Legal! A gente se encontra amanhã depois do expediente.
Pac apertou seu braço com afeição antes de se afastar. Cellbit caminhou até sua mesa roboticamente, o usual e sempre presente barulho de telefones tocando e máquinas apitando já invadindo seus ouvidos, e ele sentou-se em frente ao seu computador para começar oficialmente o expediente. Foi interrompido, no entanto, pelo seu chefe, Sr. Marrone, que veio lhe dar uma bronca por chegar atrasado, sem nem querer saber de suas justificativas plausíveis, e dizendo-lhe que precisaria ficar até mais tarde para compensar. Cellbit foi obrigado a engolir a raiva tão intensa que lhe doía o peito e se só virar para a tela do computador.
O dia correu normalmente. Sr. Marrone passava de tempos em tempos para vigiá-los como um urubu, muitas vezes corrigindo (e errado, diga-se de passagem) o que Cellbit já tinha feito. Depois de seu discurso idiótico, que apenas provava que, mesmo cobrando tanto dos funcionários, ele não entendia nada sobre o que estava falando, o chefe finalmente saía de perto.
No almoço, ele comeu uma coisinha ou outra em sua mesa para não interagir com ninguém, e então voltou para o computador. Os lucros da empresa não haviam sido tão altos quanto os do mês anterior, e Sr. Marrone agia como se Cellbit fosse parcialmente responsável por aquilo.
Ao fim do expediente, Cellbit pegou o mesmo ônibus da ida e desceu no mesmo ponto, e andou até seu prédio e subiu as escadas e entrou e se jogou no sofá, exausto. Mas não teve tempo de sentir alívio, porque logo depois, o casal do apartamento ao lado começou a discutir, para variar, tão alto que pareciam estar ao lado dele.
A cabeça de Cellbit parecia prestes a explodir. Devagar, levantou-se do sofá, foi até a cozinha, abriu a gaveta e encarou a grande faca que tinha ali. Mais memórias, que abafavam o som da discussão. Chegou a levantar a mão para pegar a faca, mas parou. Recolheu a mão e fechou a gaveta com tanta força que a desencaixou do lugar. Ele decidiu deixá-la ali e só ir tomar banho.
Debaixo do chuveiro sujo, frio e fraco, sua imaginação foi longe, pensando nas muitas atitudes precipitadas que poderia tomar e como elas mudariam sua vida. Ele saiu rapidamente do banho, forçando-se a censurar as próprias ideias.
Vestindo as roupas velhas que usava como pijama, ele encarou o teto do quarto, sem saber o que fazer, sem saber por que estava ali. Viu seus poucos livros empilhados na cômoda, mas não sentia determinação para ler. Decidiu ir dormir, só que ao fechar os olhos, o sono que o atormentara o dia inteiro não vinha. Não ajudava, é claro, o fato de que muitas motos barulhentas passavam na frente do prédio, acabando com qualquer possibilidade de silêncio.
O despertador tocou novamente às cinco na manhã seguinte, e ele repetiu toda a sua rotina mais uma vez.
Sufocado no ônibus, Cellbit só conseguia pensar no quanto era desesperador de um jeito muito particular a forma como ele se sentia preso, mesmo que já tivesse saído da prisão, porque não importava o que fizesse, algumas coisas simplesmente estavam fora do seu controle. Como sonhar com uma vida melhor quando sabia que jamais teria espaço na sociedade para as melhores oportunidades que ao menos ajudariam, que seriam um começo para poder trabalhar em direção a uma vida mais completa e satisfatória? O mito de que todos tinham uma chance de mudar de vida não passava disso, de um mito. Seu apartamentinho de merda alugado era o melhor que seu dinheiro podia pagar, e seu trabalho abusivo que pagava mal era o melhor que sua situação lhe permitia conseguir.
Na empresa, os olhos secos de Cellbit doíam de encarar a tela daquele computador por tantas horas, dando tudo de si por um trabalho que não recompensava em nada, tanto no sentido de seu salário quanto de seu impacto no mundo ou sociedade em um geral. Enquanto socava o teclado, a única forma viável de tentar extravasar um pouco que fosse sua raiva e frustração, um de seus colegas de setor, Guaxinim, puxou assunto com Cellbit contra sua vontade. Ele falava e falava, e Cellbit até tentou prestar atenção, talvez estivesse sendo amargo demais sobre a situação, até que Sr. Marrone apareceu e deu uma bronca nos dois, o que fez o colega voltar à sua função balbuciando reclamações quase inaudíveis. Cellbit precisou se levantar, ir ao banheiro para lavar o rosto, tentar dar uma resetada. Não ajudou.
Depois daquilo, ele só ficou plantado em frente à tela do computador até o fim do expediente, quando levantou, assinou o ponto e começou a ir embora. Parou a meio caminho quando Pac o chamou, correndo atrás dele, o que o fez lembrar de que havia concordado em ir ao bar com ele e seus outros amigos naquela noite. Os dois caminharam lado a lado até a saída.
— Eu sei que você não é muito de sair, mas é bom fazer algo diferente de vez em quando, né? Encher um pouco a cara depois de tudo o que a gente passa.
— É.
— Mas como você tá ultimamente? A gente nunca consegue conversar direito lá no escritório.
— Tô normal.
— Ainda tá vendo aquela psicóloga? Eu tava querendo o contato dela.
— Não mais — Cellbit respondeu, tentando manter-se apático, mas desviando o olhar.
— Ah… — Pac murmurou, e pareceu ter muito a dizer, porém não conseguiu falar nada.
Eles foram juntos até a rua de trás, onde a kombi de Pac estava estacionada. Ele, que era colega de quarto de Mike, dividia com o amigo aquele velho veículo que os dois compraram usado, pagando juntos um preço bem abaixo do normal. Precisaram fazer reparações e renovações na kombi, porém se divertiam com isso, e agora tinham um transporte particular, com o qual tinham tanto xodó que apelidaram a van de Carla. Por causa da natureza do trabalho atual de Mike, era Pac quem usava Carla para ir ao trabalho.
Durante o percurso, o som do rádio quebrou o silêncio entre eles, e Pac se distraiu facilmente com sua estação favorita. Cellbit, por outro lado, encarou as ruas que iam escurecendo, perdendo-se nos próprios pensamentos. Sua mente, vazia ou não, era sempre uma verdadeira oficina do diabo, e suas memórias estavam voltando à tona novamente.
Lembrava-se da sensação de matar, da gratificação. Era divertido, não era? Ele chacoalhou a cabeça, querendo afastar a ideia. Será que tinha sido divertido ou era só porque aquilo era tudo o que ele conhecia na época? Depois de voltar ao Brasil, ele havia matado uma pessoa de novo… E a sensação não tinha sido nem um pouco divertida, nenhum segundo daquilo.
Cellbit beliscou o próprio braço, querendo se trazer de volta à realidade. Virando a cabeça para o lado, ele viu Pac desafinadamente acompanhando a música do Abba que tocava na rádio, errando a maior parte da letra em inglês mas acertando o refrão: “So when you’re near me, darling, can’t you hear me, S.O.S? ” Ele estava em seu próprio mundinho também. Foco, Cellbit.
Não demorou muito para que a kombi fosse estacionada e eles descessem. No barzinho, Felps e Mike já os esperavam, com latinhas de cerveja em frente a eles na mesa dobrável de madeira.
— Aeee, chegaram! — Felps comemorou.
— Foi mal a demora, sabe como é.
— Como você tá? — Felps perguntou enquanto cumprimentava Cellbit.
— Normal. E você?
Felps levantou as sobrancelhas ao ouvir a resposta.
— Ah, eu tô bem, eu acho.
Cellbit aceitou uma cerveja, mesmo que não gostasse da bebida, e tomou alguns pequenos goles enquanto ouvia, em silêncio, os amigos conversando. Falaram sobre trabalho, fizeram piadas, se distraíram, mas ele não prestava total atenção. Felps, notando sua quietude, ficava observando-o de canto de olho.
— Espera, o Pac fez o quê ? — Felps de repente voltou a atenção aos outros dois, com Mike comentando entre risadas sobre uma situação constrangedora em que seu melhor amigo havia se colocado.
— Mike! Não torce a história desse jeito, você tá tirando tudo de contexto! — Pac protestou.
— Qual é o contexto pra você ter se insinuado pra uma MOÇA “do job”?
— NÃO É ASSIM, GENTE, EU SOU BEM RESOLVIDO COM A MINHA SEXUALIDADE, PELO AMOR DE DEUS, VOCÊS SABEM QUE EU SOU GAY! — Pac disse, seu rosto ficando todo vermelho — É só que, entendam, amigos… Perto da rua de casa tem uma travessa onde ficam muitas senhoritas que trabalham com a profissão mais antiga do mundo, e eu passo por ali a pé o tempo todo. Elas também são gente, ué, então sempre que vejo elas, eu dou boa tarde, boa noite, o que for. Questão de educação, galera! O único problema é que uma delas pensou que eu tava cumprimentando ela com segundas intenções…
— É, mas você entende por que elas interpretaram errado, né? — Mike falou, com um sorrisinho de lado meio escondido pela lata de cerveja.
Todos riram, e mesmo Cellbit não pôde conter um sorrisinho. Pac gaguejou e escondeu o rosto entre as mãos.
— GENTE, EU- argh que droga…
Quando pararam de zombar de Pac, pegos no momento de troca de assunto, Felps pareceu ver a oportunidade que vinha esperando. Ele virou para Cellbit e disse:
— E você, hein? Tá quieto aí.
Ele se ajeitou na cadeira.
— Cansado, só isso.
— Hm, sei.
— É, Cellbit, eu tô achando você quieto demais, mais do que o normal — Mike logo comentou.
— É só o trabalho, gente, tô falando sério.
— Eu entendo, lá é complicado — concordou Pac — Mas é só isso mesmo que tá te incomodando?
— Eu já falei que eu tô bem galera, meu Deus! — Cellbit exclamou, um pouco mais alto do que deveria, arregalando os olhos e se encolhendo — Porra, se eu tô falando que eu tô bem é porque eu tô bem, por que é tão difícil de entender isso?!
Seguiram-se alguns segundos em um silêncio desconfortável. Enfim, com a latinha a meio caminho da boca, Mike comentou:
— E desconta na gente.
Cellbit olhou para baixo.
— Desculpa. Não é nada com vocês.
Pac hesitou por um momento, e então formulou uma racionalização sobre a atitude do amigo.
— Não tá fácil mesmo lá no trabalho — ele admitiu — Mike, você não sabe a sorte que tem por ter conseguido sair daquele escritório.
— Ah, sei sim. O meu trabalho agora tá longe de ser mil maravilhas, mas eu não troco pro jeito que tava antes por nada. Claro que eu não quero ser cobrador de ônibus para sempre, mas por enquanto, tá ótimo.
— Bom, pelo menos é feriado logo logo. Vocês não trabalham não, né? — Felps perguntou.
— Eu não, graças a Deus — Mike respondeu — Já trabalhei no último feriado que teve, nesse agora vou descansar.
— Bom, lá no escritório, em teoria não era pra gente trabalhar no carnaval, não — Pac suspirou — Mas as coisas tão uma loucura por lá, então eu não sei ainda como vai ser.
— O Marrone é inimigo das leis trabalhistas — Mike comentou, rindo sem humor.
— Será que vocês não conseguem folga mesmo? — Felps insistiu — A gente podia aproveitar pra fazer alguma coisa juntos, dar uma descansada.
— Foda é ter o dinheiro para isso…
— Não, mas ó: se fosse só nós quatro, na estrada, dormindo na kombi de vocês mesmo, meio sem compromisso, a gente não gasta quase nada — Felps propôs, e então olhou para o amigo mais próximo — Que ‘cê acha, Cellbit?
Apesar da rotina massacrante e revoltante, a ideia de sair simplesmente não animava Cellbit, mesmo que no momento, não estando em casa como normalmente estaria, ele se sentisse menos miserável do que de costume.
— Não sei se a gente consegue…
Pac se animou de repente:
— Mas e se conseguir? Eu concordo com o Felps, acho que ia ser bom pra pra gente.
A verdade era que, pensando logicamente, Cellbit sabia que eles estavam certos, que se aceitasse viajar ele realmente se sentiria melhor. Só que havia dois problemas naquilo: 1) A expectativa de viajar era desagradável; e, não menos importante, 2) Ele teria que admitir que eles estavam certos.
Ao olhar nos olhos dos amigos, no entanto, era difícil ver o lado negativo. Eles eram algumas das melhores pessoas que existiam, o haviam ajudado muito, mesmo nos piores momentos, e eles provavelmente sabiam muito mais o que era melhor para Cellbit do que ele mesmo.
— Talvez…
— Olha só, a gente pega sexta, cai na estrada, aí a gente vai fazendo paradas onde parecer interessante — Felps ia propondo — Na segunda a gente volta, em teoria o feriado vai até terça. Só pra dar uma quebrada na rotina, pelo impulso de fazer algo diferente sem pensar muito sobre. Se o chefe de vocês realmente não der o feriado, a gente volta no domingo à noite.
— Por mim acho legal! — Pac disse, animado.
— Por mim também. Bora, por que não? — Mike deu de ombros — Vai ser da hora viajar na Carla.
Os outros três olharam para Cellbit, cheios de expectativa. Ele deu um grande gole na cerveja.
— … Ok, pode ser.
O grupo se animou. Entre drinks, cervejas e petiscos, eles foram propondo atividades e pontos a serem visitados na viagem de baixo orçamento.
Mais tarde, no caminho de volta, Cellbit pegou carona na kombi novamente, dessa vez com Mike também além de Pac. Os dois foram conversando entre si no banco da frente, enquanto o loiro ficava em silêncio na parte de trás. Melhor assim; Cellbit bebera três latas de cerveja e alguns shots de cachaça, portanto sentia-se extremamente tonto, e podia quase deitar no banco de trás.
Chegando ao prédio em que morava, subir os dois lances de escada foi mais inconveniente do que o normal. Eventualmente, ele, de alguma forma, conseguiu chegar ao interior do apartamento, e tropeçou nas contas que tinham sido entregues pelo vão da porta, incluindo o aluguel daquele exato lugar, mas Cellbit apenas ignorou tudo e deitou-se no chão frio da sala, encarando o teto.
Seu apartamento estava silencioso, sempre fora tão quieto assim? Seus pensamentos pareciam altos demais. Então, várias motos começaram a passar em frente à sua casa, para variar, fazendo muito barulho, barulho demais.
— Imagina — ele disse em voz alta, o que surpreendeu um pouco a ele mesmo — Se eu cortasse a cabeça dessas porra desses insuportáveis.
Aquilo, por algum motivo, lhe soou muito engraçado, e ele não reprimiu sua risada.
— Imagina… Imagina se eu descesse até onde estão esses desgraçados e chamasse atenção de um deles, pra aí quando ele parasse pra falar comigo, eu enfiar minha faca bem no coração dele, sem nem dar tempo dele reagir… e aí, quando o os outros se aproximassem pra ver o que aconteceu, eu pularia e colocaria minha faca na garganta deles, e eu ia fazer eles clamarem por misericórdia, só que aí… aí eu esfaquearia eles até meu braço cansar. E eu cortaria eles em vaaaaarios pedacinhos e entregaria pro cachorro que nunca para de latir do outro vizinho, e eu comeria a carne deles com o cachorro. E depois, eu bateria na porta do casal que só discute, e faria deles minha sobremesa.
E Cellbit gargalhou como se aquilo fosse a coisa mais engraçada do mundo. Naquela noite, ele caiu no sono no próprio chão da sala, bêbado, exausto e sonhador.
Os dias seguintes se arrastaram, e o chefe de Cellbit e Pac parecia nunca estar no escritório quando eles tentavam conversar com ele sobre a folga. Apesar da ausência dele tornar o escritório menos insuportável do que de costume, os dois amigos estavam ficando nervosos com a situação.
Na véspera da noite em que viajariam, Pac discretamente se aproximou da mesa do amigo, e cochichou
— Cellbit, é amanhã.
— Eu sei — ele respondeu, sem tirar os olhos do computador.
— O que a gente vai fazer? O Marrone não veio ainda!
— Por mim, a gente não cancela nada não. Qual é o pior que pode acontecer?
— É, você tem razão… — Pac concluiu, olhando ao redor, nervoso — Se for o caso, a gente volta de viagem antes, né? Como o próprio Felps sugeriu. Ele e o Mike não vão se importar, eles entendem.
A sexta-feira pré-feriado começou para Cellbit já trazendo um ar de mudança: o looping infinito que parecia ser sua vida finalmente tinha uma alteração na rotina. Acordou mais cedo para fazer as últimas arrumações antes de, se tudo desse certo, passar alguns dias fora. O pensamento da viagem estava começando a animá-lo um pouco — pelo menos, era melhor do que seus pensamentos usuais. Antes de sair, ele conferiu se tinha colocado tudo o que precisava em uma grande mochila, e de repente teve uma ideia.
Foi até seu guarda-roupa e, dentro de uma gaveta, encontrou uma caixinha levemente empoeirada. Abrindo-a, encontrou sua polaroid praticamente inutilizada, ainda com o cartãozinho que a acompanhava quando ganhou aquele presente:
Para instigar seu lado investigativo e curioso
de: Felps, Pac e Mike
para: Cellbit
Talvez aquela fosse a oportunidade para finalmente usá-la. Cellbit fechou a caixa de volta e guardou a polaroid na mala.
Depois de um banho rápido e uma generosa caneca de café, ele saiu de casa com uma mochila a mais além da sua do trabalho. Aquilo tornou a experiência no ônibus lotado ainda mais inconveniente do que de costume, mas, pelo menos, quando chegou no trabalho, Pac ofereceu que deixasse sua bagagem na kombi para passar o dia.
O expediente foi estranha e excepcionalmente rápido para os dois; o peso das horas não era o mesmo quando se tinha algo pelo que ansiar. Já era noite, quase a hora de ir embora, quando Pac recebeu uma mensagem dos outros dois amigos dizendo que já estavam por lá, e eles esperariam dentro da kombi, da qual Mike tinha uma cópia da chave.
A expectativa era grande, e eles já estavam ficando preocupados quando, finalmente, Marrone chegou, pouco antes do escritório fechar, claramente apenas para fazer presença, poder dizer que veio sim aquela semana, e para assinar o ponto. Muitos funcionários já tinham ido embora, e os que restavam logo foram também, apenas querendo ir para casa logo. Qualquer um que tentasse conversar com o chefe ouvia que “precisaria esperar”, que ele “estava ocupado”, o que com sucesso causou a desistência de muitos de pedir o feriado; mas não de Pac e Cellbit.
Finalmente, com o prédio já quase deserto, os dois tentaram conversar com ele mais uma vez e, provavelmente notando que aquela dupla não desistiria, Marrone deixou-os entrar em sua sala.
Sr. Marrone estava sentado em sua cadeira, mexendo em seu computador como se não houvesse mais ninguém lá. Ele tinha o cenho franzido e clicava o tempo todo. Os funcionários cuidadosamente sentaram nas duas cadeiras à frente dele.
— Boa noite, Seu Marrone — Pac começou, o mais carismático da dupla — O senhor está bem?
— Uhum — ele respondeu, ainda sem dar-lhes muita atenção, o foco em seu computador — E posso entender por que os dois queriam tanto falar comigo?
— Ah, sim, Seu Marrone. Assim, nós dois estávamos querendo a mesma coisa, na verdade: a gente pensou em usar nossas folgas acumuladas no feriado da semana que vem, né não? — Pac bateu o cotovelo de leve no amigo.
Aquilo fez com que Sr. Marrone levantasse o olhar para eles. Levantou uma sobrancelha e juntou suas duas mãos na frente do corpo.
— Os dois querem folga no carnaval?
Cellbit decidiu tentar.
— Senhor, nós dois andamos muito focados no trabalho, estamos aqui todos os dias sem falta. Considerando nosso desempenho nas últimas semanas, gostaríamos de usar duas das nossas folgas semana que vem, para que depois disso possamos ter ainda mais energia e melhorarmos ainda mais o nosso desempenho.
— Entendi. Bom, veja só — ele falou, usando o tom de quem explica o óbvio a uma criança — Vir trabalhar todo dia não é mais que a sua obrigação, certo? E o mundo não para só porque é feriado, as demandas continuam vindo. Então, levando tudo isso em consideração, eu temo que não possa deixar vocês faltarem. Espero os dois semana que vem no horário de sempre. Dispensados.
— Mas senhor! — Pac protestou — Nós temos direito a essas folgas! Eu estou há anos aqui no escritório, sempre cumprindo tudo…
— A coisa é muito simples — Marrone interrompeu — Se não vierem na semana que vem, vou ser obrigado a descontar do salário de vocês. Se não estão lucrando pra empresa, não vão poder lucrar no fim do mês.
— Senhor Marrone — Cellbit disse, tentando manter a calma — É o nosso direito.
Sr. Marrone olhou para os dois jovens à sua frente com nojo.
— Acho que vocês não entenderam, deixa eu formular de uma outra forma. Eu sou o chefe aqui. Vocês têm que fazer o que eu mando, é muito simples. Vocês não vão ter a folga semana que vem porque eu disse que não vou, e como chefe, eu posso fazer isso. Eu reconheço quem vocês são: dois ex-convictos, não é? Deveriam me agradecer de ter cedido a vaga pra vocês em primeiro lugar. Se não concordam com as políticas da empresa, então rua! É assim que funciona o mercado de trabalho. Não estão felizes com o emprego? Saiam então, tem pelo menos três pessoas mais qualificadas e menos exigentes do que vocês que tomariam seus lugares. E boa sorte conseguindo emprego em qualquer outro lugar que pague quem tem ficha criminal tão bem quanto aqui.
A dupla ficou em silêncio por alguns segundos. Então, Pac levantou, já caminhando em direção à porta, porém parou, perto da saída da sala, ao perceber que estava sozinho. Cellbit havia levantado e, entretanto, não fazia menção de sair. Olhou para baixo, para Marrone, ainda sentado, e podia sentir o próprio pulso acelerado, o sangue correndo por suas veias.
— Então você não vai dar as folgas?
— Jovem, você tem algum problema? Mais uma gracinha e eu vou ser obrigado a não dar mais a opção, e assino sua demissão agora mesmo. Dispensa-
Porém, Sr. Marrone nunca terminou a frase, porque Cellbit, instintivamente e mal percebendo o que fazia, agarrou seus cabelos castanho-grisalhos e bateu a cabeça dele na mesa repetidas vezes, com toda a força que tinha. Pac soltou uma exclamação assustada, quase um grito, e correu para segurar o braço de Cellbit, que tremia. A mesa estava cheia de sangue e, bem na frente deles, o chefe, com o rosto destruído, se encontrava imóvel.
Parte 2: Limpeza
Muito prazer em conhecer
O causador de todo o teu sofrer
— CELLBIT, QUE PORRA É ESSA? — Pac indagou com a voz rouca, os olhos arregalados intercalando entre o amigo e o chefe, ainda segurando as mãos dele.
Não houve resposta. Seus olhos azuis estavam vidrados na cena que acabara de causar, por mais que enxergasse muito além; na sua frente, quase podia enxergar o corpo da primeira pessoa que matara. Os ouvidos de Cellbit apitaram e ele engoliu em seco, imóvel.
Vinha sonhando com morte fazia tempo, sabia disso, era difícil reprimir. Foi um aspecto que fez parte da sua rotina por tempo demais para ser deixado para trás sem resquício. Agora que finalmente agira, no entanto, não se sentia menos vazio. Mais do que isso: o cheiro metálico do sangue espalhado, os respingos na sua cara, eram repugnantes. Por mais que Cellbit não se sentisse como uma pessoa normal como aquelas pelas quais passava na rua todos os dias, tampouco ainda era aquele adolescente sedento por sangue. Engraçado, parando para pensar agora, era como se o lugar de céu vermelho tivesse uma aura diferente, que fazia matar parecer bem mais divertido do que de fato era. Aquela vez em que se descontrolara, já no Brasil, e que fez com que ele fosse parar na prisão, também não havia sido gratificante, por mais que a confusão mental da época tornasse difícil entender isso direito.
— CELLBIT! — Pac gritou de novo, e dessa vez conseguiu atrair seu olhar, por mais que nenhum outro músculo dele tenha se movido — O QUE FOI QUE VOCÊ FEZ?
— Eu não sei — respondeu com sinceridade — Eu me descontrolei, eu… Nem racionalizei, meu corpo agiu sozinho.
— POIS TENTE ESSA DESCULPA COM OS POLICIAIS E VÊ O QUE ELES VÃO TE DIZER! — Pac respondeu, finalmente soltando-o e caindo sentado no chão, hiperventilando — Ai meu Deus, eu não quero voltar pra cadeia!
— Eu sei. Eu sei — Cellbit suspirou, finalmente se movendo — Me desculpa, deixa que eu cuido disso. Pode ir, mas vai logo, pra ter certeza de que não vai parecer suspeito.
— … Espera, como assim?
— Pac, eu fiz isso, eu cuido disso. Não vou te arrastar pra essa.
Pac ficou paralizado por alguns instantes. Seria fácil sair dali, deixar Cellbit arrumando a bagunça que ele próprio causara. Sim, havia impressões digitais dos dois no lugar, mas eles trabalhavam lá, ora, sem contar que Pac confiava que o amigo cuidaria para não deixar evidências.
E mesmo assim… Diante da perspectiva de escolha, Pac não conseguia parar de pensar em tudo pelo que já havia passado com Cellbit. O bom, o ruim, o estranho, o complicado…
Lembrava-se de conhecer Cellbit na prisão, quando ele sempre protegia e ajudava Pac e Mike, mesmo que não precisasse, porque a companhia deles apenas o prejudicava e o deixava mais vulnerável.
Lembrava-se do breve período, pouco depois do outro sair da cadeia em que os dois se conheceram, em que Pac e Cellbit, jovens, solitários e carentes, decidiram tentar levar o relacionamento dos dois para um nível além, e por alguns poucos meses, namoraram; não tinha dado certo, evidentemente, porém Pac lembrava-se perfeitamente da conversa branda que tiveram sobre o assunto, em que concluíram que a dinâmica de amizade funcionava melhor para eles, e que seguiriam amigos, nada precisava mudar. E não mudou mesmo — a conexão entre os dois era capaz de sobreviver e superar aquilo. Desde então, Cellbit sempre fora uma das primeiras pessoas a vir consolar Pac depois de suas decepções amorosas seguintes, oferecendo uma reunião do grupo de amigos para animá-lo, um bom vinho e um ombro para chorar.
Lembrava-se de Cellbit, em uma de suas crises, ter brigado com Mike, e a dupla ficando sem falar com ele por um tempo. Pouco depois, Pac e Mike tiveram problemas ao reencontrarem alguém que lhes conhecia da prisão, e Cellbit, que não apenas não andava falando com eles, como também sempre deixava claro que não gostaria de ser encontrado por ninguém daquela época além dos moços, veio ajudá-los. Se expôs, se arriscou, e resolveu a questão para eles.
Lembrava-se do primeiro momento em que Cellbit se abriu um pouco para os amigos; era um evento raro, nem mesmo quando estavam em um relacionamento tinha acontecido. E Pac soube o quanto o amigo devia estar confortável com eles, confiando neles, para falar um pouco de si e sua história.
E então, voltando ao presente, Pac olhou para a bagunça, para o chefe imóvel, e por fim para seu amigo, cujo rosto de expressão perdida apresentava espirros de sangue; seu amigo, cujos olhos se moviam de um ponto a outro, analisando a situação, agoniado.
— Cellbit… Não. Eu não posso te largar aqui.
— Claro que pode, eu que fiz merda.
— Não, mas… — Pac suspirou — Não. Ninguém vai deixar você passar por isso sozinho. A gente precisa pensar em alguma coisa. Eu…
Pac pegou o celular e discou o primeiro número que lhe veio a mente. Cellbit observava em silêncio.
— Mike! — Pac suspirou, nervoso — Mike, aconteceu uma coisa.
— Precisa colocar no viva-voz — Cellbit disse simplesmente.
— O quê? — Pac perguntou.
— Fala pro Mike colocar o telefone em viva-voz.
Pac fez o que ele pediu, ainda muito confuso, e Cellbit tomou o telefone da mão do amigo.
— Alô, Felps, Mike? É o seguinte: deu merda.
— … Tipo daquele tipo de merda? — Felps questionou.
— Sim.
Seguiram-se alguns instantes de silêncio. E então:
— Ok. Precisa apagar a filmagem das câmeras? — Mike perguntou.
— Definitivamente.
— Certo. Me dêem alguns minutos.
— Vou deixar a van estacionada perto da entrada dos fundos — Felps avisou, e a ligação foi encerrada. Cellbit lhe devolveu o celular, que Pac guardou de volta no bolso enquanto perguntava:
— Mas… E agora?
— Eu vou atrás dos produtos de limpeza que ficam naquela cabine perto do banheiro. Você se limpa e fica de olho pra garantir que, se ainda tiver alguém além de nós nesse prédio, a pessoa não vai chegar perto daqui.
— Cellbit…
— Eu vou ficar limpando sangue e impressões digitais, se você quiser, a gente pode inverter quem fica responsável por cada tarefa.
— … Não, é, você tem razão. Eu fico de guarda.
Cellbit, concentrado, começou a se mexer para fazer o que tinha que fazer. Pac chacoalhou a cabeça para tentar manter o foco, e marchou em direção ao banheiro.
Enquanto Pac lavava as mãos e via a água avermehada descendo pelo ralo, sentiu o peso de como alguns minutos poderiam mudar completamente sua trajetória de vida. Ele lembrou de ter acordado naquela manhã e dirigido até o trabalho, ouvindo algumas de suas músicas favoritas nos CDs do carro, ansioso para uma viagem com amigos. Aquilo não poderia parecer mais distante agora.
Balançando as mãos nervosamente, Pac vistoriou os corredores, sentindo-se um personagem de um filme de terror, seu estômago revirando a cada nova sala em que checava para ver se havia alguém. Estava começando a sentir-se um pouco mais aliviado, racionalizando a situação, quando ouviu:
— Olha quem tá aqui!
Pac cerrou os olhos com força e respirou fundo antes de se virar e dar de cara com Guaxinim. Ah, por que ele? Os dois eram amigos, Pac o adorava, mas aquilo não mudava o fato de que ele era um grandessíssimo fofoqueiro. Dentre todas as pessoas dessa empresa…
— O que você tá fazendo tão tarde ainda aqui, moço? — Guaxinim perguntou.
— Ah, tentando colocar as coisas em dia, sabe como é — riu nervoso. Concluiu que quanto mais tempo gastasse naquele assunto, mais se enrolaria, então seguiu em frente — M-mas e você, por que ainda não foi pra casa?
— O mesmo, o mesmo… Sabe, ando com tanta coisa pra fazer e sinto que não estou dando conta. Andei pensando se devo estar com burnout, não sei…
— Ah, Guaxi, é uma possibilidade! — Pac se agarrou ao novo assunto — Me diz, quais sintomas você tem experienciado?
E assim, a conversa foi se desenrolando enquanto, devagar, eles desciam as escadas. Foi difícil prestar atenção nela de fato, o que fazia Pac se sentir um pouco mal, vendo o amigo abrindo o coração ali. Depois de alguns dos minutos mais longos de sua vida, quando já estavam quase na recepção, Mike mandou mensagem no grupo dos quatro: “Podem descer ”.
— Ai, Deus — sem querer murmurou em voz alta.
— Eu sei, esses sentimentos são complicados, mas…
Pac não sabia o que fazer para despistar Guaxinim. Antes que pudesse surtar ainda mais, no entanto, Mike, como se pudesse ler sua mente — ou talvez tivesse simplesmente escutado sua voz reverberando pela escadaria —, mandou “Diz que esqueceu suas coisas no outro andar e volta lá, Pac ”
— Sei lá, será que o meu perfeccionismo tá ligado à pressão que eu sofri na infância? — o outro divagava.
— Guaxi, é… Desculpa, cara, eu esqueci minha mochila lá em cima. Tá meio tarde, vai indo pra casa, a gente conversa mais na segunda. O quê ‘cê acha?
— Tranquilo, cara. A gente se vê semana que vem então, né, já que nunca nos dão o feriado. Que merda, véi.
Pac riu nervosamente, talvez alto demais, e então correu escada acima para reencontrar Cellbit. Estava cheio de adrenalina agora e tentava, sem sucesso, afastar os vários pensamentos bem preocupantes sobre tudo o que poderia acontecer, como sua vida estava prestes a mudar drasticamente, de um jeito ou de outro. Mesmo aquele prédio que ele conhecia tão bem parecia um lugar completamente estranho no momento.
Voltando ao andar em que ficava a sala do chefe, ele chegou bem a tempo: Cellbit tentava inutilmente carregar o peso morto de Marrone, levantá-lo da cadeira para tirá-lo de lá, e a ajuda na tarefa seria muito bem-vinda. Depois de praguejar alguns grunhidos nervosos, Pac se apressou naquela direção e passou um dos braços de Marrone pelo próprio pescoço.
Descer os lances de escada seria muito complicado, então os dois foram obrigados a usar o velho elevador, que pareceu demorar uma eternidade para chegar. Quando as portas finalmente se abriram, os dois arrastaram o chefe até lá, e acabaram trocando a pose em que o seguravam: um com os braços, outro com as pernas. Cellbit, com dificuldade, apertou o botão do térreo. Do alto falante do elevador, eles ouviam:
Ah, se ela soubesse que quando ela passa
O mundo inteirinho se enche de graça
E fica mais lindo por causa do amor
Os dois se encararam em um momento silencioso que reconhecia a complexidade da situação. A frase seria cômico se não fosse trágico nunca se encaixara tão bem antes.
Chegando ao térreo, deram de cara com a entrada do prédio, e viram Mike mexendo rapidamente no computador da recepção, o segurança fora de vista. Ele levantou a cabeça com a chegada deles, e suspirou ao ver a situação.
— Ai, caralho.
E então, negando com a cabeça em desaprovação, voltou a mexer no sistema de segurança, se certificando de apagar os rastros. Cellbit e Pac seguiram arrastando o corpo até a saída de emergência, mais ao fundo, bem perto de onde a van estava estacionada, com Felps esperando por eles no volante.
— Oi, gente… Eita porra!
— Abre a porta aí — gemeu Cellbit. Felps pulou para a parte de trás e deslizou a porta da van, expondo seu interior bagunçado. Então, foi ajudar os dois a colocarem o corpo de Sr. Marrone ali dentro.
Como se já não houvesse informação demais para ser absorvida, o celular de Pac começou a tocar.
— Desliga isso! — Felps exclamou, grunhindo enquanto puxava o chefe dos amigos.
— Vou desligar, vou desligar! — respondeu, e no desespero, recusou a ligação o mais rápido que pôde — Cadê o Mike, hein, por que ele não vem logo?!
— Ele já vem — Cellbit garantiu — A gente só tem que decidir o que fazer agora.
— Ai, Jesus Cristo, um corpo na minha van, um corpo na pobre da Carla…
— Eu limpo ela pra você depois — Cellbit ofereceu, sem graça, sem saber exatamente o que mais poderia fazer naquela situação.
Antes que Pac pudesse responder que as possíveis manchas em sua van era o menor dos problemas dele no momento, a porta do passageiro foi aberta e Mike sentou com tudo no banco.
— Acelera, Felps!
Ele girou a chave sem hesitar, então mudou a marcha e pisou fundo no pedal. Todos sentiram um solavanco e se seguraram como podiam. O celular de Pac começou a tocar mais uma vez, mas ele recusou a chamada sem nem olhar para a tela. Logo em seguida, Sr. Marrone começou a abrir os olhos e piscar várias vezes.
— O q…
Pac foi o primeiro a notar, e deu um pulo.
— Cellbit do céu — murmurou, sua voz quase nem saindo.
Cellbit, que vinha tentando enxergar a estrada à frente, voltou os olhos para a cena em frente de si. Marrone falou enrolado:
— O quê? Eu…
— Ah mas puta que pariu.
— Porra, ele tá acordado? — Mike bradou do banco da frente — Faz alguma coisa!
Em retrospectiva, era óbvio que ele não tinha morrido. No entanto, Cellbit estivera tão focado em não deixar sua impulsividade incriminar seu amigo, que de certa forma entrou em piloto automático e logo de cara já foi criando um plano.
Quando seu olhar encontrou o de Marrone, o chefe murmurou, confuso:
— Você…? Seu maldito…
Seria fácil finalizar o trabalho. Estava diante do homem que havia feito dos últimos dois anos da vida de Cellbit um inferno, e ele já estivera no inferno, então falava com propriedade. Marrone era um merda que merece apodrecer, e estava agora completamente vulnerável bem na sua frente. Só que a voz da consciência de Cellbit, o lado racional, que por uma vez na vida tomava as rédeas, recordava que a última coisa de que precisava era mais sangue nas suas mãos.
— Cellbit, o que a gente faz? — Pac indagou, sua voz incrivelmente fina. Marrone olhou ao redor, e sua expressão raivosa que os dois já conheciam bem tomou conta do seu rosto sangrento enquanto ele tentava levantar e ir para cima de Cellbit, deliberadamente cuspindo na cara dele antes de dizer:
— Eu sabia que não devia ter contratado vocês, bandido bom é bandido morto. Viadinho de merda…
Aquilo foi suficiente. Pac, em um momento que surpreendeu até a si mesmo, levantou a perna e deu um chute na cara do chefe. Ele voltou a cair e bateu a cabeça de novo, com um baque que o fez ficar desacordado mais uma vez. Enquanto isso, a van voltou a tremer e chacoalhar.
— Vai pra esquerda, Felps! — Mike gritou do banco do passageiro, se inclinando para controlar o volante nas mãos do amigo.
— Não dá!
Felps freou repentinamente, e a inércia fez Marrone voar para frente, batendo a cabeça no vidro e o quebrando, o que o fez atravessar para fora, rolando pela frente do carro até o chão.
— FELPS! — Mike gritou.
— Merda — Cellbit murmurou, apressando-se em sair da van e ir checar o estado do chefe. Todos o seguiram.
Eles estavam no meio de uma estrada de terra escura e deserta, o melhor caminho que Felps poderia ter tomado. Sr. Marrone estava caído no chão, banhado em sangue, imóvel. Cellbit se agachou, checou a pulsação no pescoço dele e colocou-se de pé de novo, negando com a cabeça. Os quatro circulavam o corpo, olhando a cena sem dizer nada.
O silêncio foi cortado pelo celular de Pac tocando de novo. Seu coração deu um pulo, que timing terrível, e ele, meio que sem pensar, tirou o aparelho do bolso. A luz da tela iluminou seu rosto assustado quando ele leu o nome de quem ligava.
— Guaxinim.
— O quê? Do que você tá falando? — Mike indagou, e então se aproximou para olhar o celular do amigo.
— Que trabalha com a gente — Pac explicou, sua voz fraca, amedrontada — Ele foi a última pessoa a sair antes da gente, e ele puxou assunto comigo enquanto o Cellbit limpava a evidência.
Mike arregalou os olhos.
— Ele me cumprimentou enquanto eu mexia nas câmeras. Disse que não me conhecia, tentou puxar assunto, e eu disse que era o novo segurança. Fui meio grosso e ele desistiu. Só espero que ele não tenha encontrado o verdadeiro segurança enquanto ia embora… eu inventei uma desculpa e consegui convencer ele a ficar na rua ao lado, mas…
— Pac, atende — Cellbit pediu — Antes que pare de tocar. É melhor a gente saber.
Ele obedeceu, aceitando a ligação e colocando em viva-voz.
— Alô? — disse, trêmulo.
— E aí, Pac! — Guaxinim falou, mas algo em sua voz soava um pouco nervoso — Foi mal ficar te ligando assim, é só que… Bom, eu vi uma coisa meio estranha, e não custa perguntar, né? Quando eu tava fazendo o caminho pra ir embora, eu passei pela rua da entrada dos fundos, e eu realmente tive a impressão de que vi você e outra pessoa carregando alguma coisa bem estranha e colocando em uma van… Eu só queria perguntar, tá tudo bem? Talvez seja só loucura minha, né, mas não custa perguntar.
Em pânico, Pac encerrou a ligação, e encarou os amigos, aturdido.
— Acho que ferrou.
Continua…
Notes:
Música que inspirou o título do capítulo: Alibi
Músicas mencionadas: Garota de Ipanema e SOS
Chapter 24: Álibi (Parte 2)
Notes:
(See the end of the chapter for notes.)
Chapter Text
Parte 3: Consequências
I just killed a man, she's my alibi
São Paulo, 17 de fevereiro
Cellbit, Felps, Pac e Mike estavam em uma estrada de terra à noite, ao redor do homem que tinham acabado de matar. Um silêncio tenso se seguiu depois que Guaxinim, um colega deles da empresa, ligou para Pac revelando que vira o grupo antes de fugirem, e agora o quarteto absorvia o quão fodidos eles estavam.
— E agora, a gente larga o corpo aqui e finge que não sabe de nada? — Felps perguntou.
Sua voz despertou Cellbit, fazendo-o voltar ao modo sobrevivência: fora ele quem começara aquela história, e seria ele quem terminaria.
— De jeito nenhum. Quando o corpo for achado, não vai ser difícil descobrir quem ele é, qualquer teste de DNA vai revelar, e aí eles vão começar a investigar a rotina do Marrone e as pessoas com quem ele convivia, e logo as coisas vão começar a ficar bem complicadas pro nosso lado. Não, a gente precisa se livrar dele. E, na minha experiência, o melhor jeito de fazer isso é botando fogo, pra queimar rastros e dificultar identificações.
— “Na minha experiência” — Mike riu, passando a mão no rosto nervosamente, por baixo dos óculos — Às vezes eu esqueço desse detalhe. Ai, caralho.
— Queimar um corpo inteiro não é algo que demora bastante? — Felps perguntou, enquanto Cellbit se curvava para segurar o chefe pelas pernas e arrastá-lo.
— Sim, mas, como eu disse, é o que deixa menos rastros que nos conectem ao crime. Tem alguma coisa na van que me ajude a enrolar ele?
— A-a gente tem um lençol! — Pac se manifestou — Acha que serve?
— Com certeza. Precisamos também de álcool e um isqueiro ou fósforo. Conseguem?
— Sim.
Mesmo desesperados, os três foram em direção a Carla, a kombi, providenciar tudo, enquanto Cellbit arrastava o corpo para fora da estrada.
Horas depois, os quatro estavam em uma clareira no meio do mato, observando aquele corpo coberto por um lençol encharcado de gasolina, os panos usados para limpar o sangue da kombi jogados ali junto com ele, para que nenhuma evidência ficasse para trás. O grupo conseguiu preparar a área de um jeito que provavelmente não deixaria o fogo se espalhar para as árvores, pois um grande incêndio chamaria muita atenção. Cellbit acendeu o fósforo.
— Pra trás.
Dando um passo para frente, Cellbit jogou o fósforo aceso no lençol, que ardeu em chamas. O fogo iluminou a noite e fez os olhos de todos arderem, porém não conseguiam desviar o olhar; estavam hipnotizados pela cena.
— Tem certeza de que isso vai dar certo? — Pac perguntou.
— Eu vou fazer dar certo — Cellbit deu o veredito.
───────•••───────
Depois de se afastarem do que restara de Sr. Marrone, dirigiram a van para fora da estrada de terra e de volta à cidade, o que levou tempo, e pararam no estacionamento de uma vendinha fechada. Todos caíram no sono dentro do veículo pouco depois, a exaustão falando mais alto do que o trauma da experiência toda.
Na manhã seguinte, Cellbit foi o primeiro a acordar, e levou alguns segundos para que se lembrasse de onde estava. Conforme os eventos da noite anterior foram voltando à sua mente, ele sentiu todo o sono se esvaindo, a mente se agitando ao ser consumida por angústia e arrependimento. Ah, Marrone…
O que Cellbit tinha feito? Que emboscada, e arrastara todos os seus amigos para o buraco com ele. Enquanto se levantava, percebeu que não estava mais com sua blusa, apenas a camiseta que vestia por baixo, porque queimaram as roupas com resquícios de sangue junto com o corpo. Perceber aquilo o fez arrepiar, e ele levantou para ficar um pouco do lado de fora.
Quem acordou em seguida foi Mike. Ele piscou, se situando, e então colocou os óculos no rosto, o que lhe permitiu avistar Cellbit do outro lado da janela. Depois de um instante de hesitação, ele saiu da van e se postou ao lado dele, encostando o corpo na porta do veículo.
— Bom dia — disse, empurrando os óculos no nariz.
Cellbit olhava para as próprias mãos, perdido.
— Mike… Eu nem sei o que te dizer. Me desculpa, olha a nossa situação…
O moreno suspirou o ar poluído da cidade grande, sem olhar para o amigo, focando em um ponto à frente deles. Estava ensolarado e quente naquela manhã de verão, e pedestres passavam por eles, vivendo suas vidas normalmente, alguns deles fantasiados, a caminho de bloquinhos de carnaval.
— É ruim, eu sei que é. Mas… — Mike cruzou os braços, pensativo — Eu preciso dizer, ver alguém naquela condição não me deixou tão mal quanto eu achei deixaria, porque é impossível sentir dó do Marrone. Claro, é esquisito se sentir responsável por tirar a vida de alguém, e eu acho que no fim das contas, todo mundo meio que deu sua contribuição, de um jeito que é difícil dizer quem deu o golpe final…
— Só que a gente sabe que o golpe inicial foi meu — Cellbit o interrompeu — E agora vocês estão cobrindo pra mim…
— Estamos. Estamos mesmo. Mas existem amizades pelas quais você encobriria um assassinato. Depois de tudo pelo que a gente já passou, eu ajudaria qualquer um de vocês três nessa situação.
Cellbit o encarou, a culpa ainda fisicamente o reprimindo. Mike colocou uma mão amiga no braço dele, e sentiu que estava gelado, apesar do calor.
— E o Marrone era um filho da puta. Parte de mim diz que aquele arrombado mereceu o que teve.
— Eu sei que ele era filho da puta, mas mesmo assim…
— Olha, a gente tem noção da escolha que fez, e te ajudamos sabendo muito bem no que estávamos nos enfiando. Amigo tá aí pra isso, então não se coloca tanto pra baixo.
Cellbit ficou quieto, pois não havia nada mais a ser dito por nenhum deles. Depois de momentos dos dois pensando em silêncio, Mike olhou para o interior da kombi e viu os outros acordando também. Ele colocou um braço amigável ao redor do pescoço de Cellbit e propôs:
— Vem, vamos encontrar uma padaria pra gente tomar café.
Ninguém percebeu o quanto estava com fome até eles dirigirem até a padaria mais próxima, que estava vazia e servia uma comida meio questionável, mas foi mais do que o suficiente para o grupo. Depois que todos fizeram seus pedidos, Pac pegou seu celular novamente, e ficou encarando a tela com uma nova mensagem de Guaxinim: “A gente precisa marcar de se ver de novo qualquer hora!! ”.
— Acho que ele tá tentando me intimidar — Pac disse aos amigos, depois de ler em voz alta o que lhe fora mandado.
— Vamos torcer pra falta de provas contra nós ser mais forte que acusações dele sem nenhuma base sólida — Mike disse em tom descontraído, porém sua mão agarrava o banco em que estava sentado com tanta força que seus nós dos seus dedos empalideceram.
Foi impossível evitar, a mensagem trouxe grande tensão ao grupo. E com o assunto pairando no ar e a comida que pediram sendo entregue na mesa deles, surgiu a questão: deveriam voltar para casa ou seguir viagem? Entre pães na chapa e cafés pretos, eles debateram sobre. Não estavam mais no espírito de viajar, mas não seria suspeito cancelarem tudo bem depois do sumiço de poucas horas do chefe que odiavam, e com quem, portanto, em teoria, nem deveriam estar preocupados se fossem inocentes?
De barriga cheia e com o café da manhã/almoço pago no crédito, eles voltaram à van. Depois de minutos deles presos nos próprios pensamentos, Felps se manifestou:
— Será que seria tão ruim assim a gente fazer a rota do vinho agora?
Cellbit, Felps, Pac e Mike haviam considerado a possibilidade de passarem por regiões de vinícolas na viagem, porém aquilo meio que ultrapassaria completamente o orçamento deles, o que os fez desistir da ideia rapidamente. Mas o que fazer depois de matar seu chefe abusivo se não se embebedar? No ponto em que estavam, a alta fatura no fim do mês era o menor dos problemas deles.
E, diante de tudo aquilo, Pac, o motorista da vez, soube exatamente que caminho seguir. Como resultado, diga-se de passagem que eles encheram a cara de vinho naquele dia, o que certamente os ajudou a desestressar um pouco, mesmo que temporariamente, e fez valer a ressaca do dia seguinte.
Antes que pudessem se dar conta, já fazia trinta e seis horas que tinham queimado o corpo — era a segunda manhã. Pararam em um posto de gasolina para encher o tanque da Carla, e aproveitaram as lojinhas de conveniência para mais um café da manhã barato. Depois de pegarem a comida, enquanto esperava os outros procurarem remédio para ressaca, Pac decidiu folhear o jornal do dia, perto do caixa. O que viu ali, no entanto, foi como um balde de água fria, que imediatamente o fez voltar a passar mal de novo.
Em um cantinho da segunda página, dois parágrafos em fonte pequena fizeram seu sangue gelar: o desaparecimento de Marrone era citado, falando que seu carro permanecia estacionado na sede da empresa em que trabalhava, intocado, enquanto ele mesmo não havia sido avistado sequer deixando o local.
Pac engoliu em seco e subiu seu olhar, de repente sentindo-se observado. Dando uma rápida espiada na televisão da lojinha, ligada em um canal aberto, ele leu em letras grandes a palavra CRIME exibida na tela. Pac sentiu sua visão escurecer por um segundo, suas pernas fraquejando, e voltou os olhos ali para ler novamente; havia se enganado, a palavra era CHAVES , anunciando que o antigo programa mexicano estava prestes a começar. Apesar do alarme falso, o susto ainda o assolava, e Pac rapidamente pagou pelo jornal e deixou os outros para trás enquanto esperava na kombi.
— O que foi, Pac? — Cellbit perguntou quando eles voltaram ao veículo com algumas sacolinhas. Sem dizer nada, ele apenas entregou o jornal dobrado a eles, apontando os dois parágrafos.
Todos leram juntos e em silêncio. Então, Mike foi o primeiro a falar:
— Bom, eu apaguei os registros das câmeras de segurança…
Aquilo não contribuiu muito para acalmá-los. O grupo decidiu por unanimidade não fazer nenhuma parada naquele dia, e tomar cuidado para não serem vistos. Só que uma questão não deixava de assombrá-los: as duas testemunhas oculares, Guaxinim e o segurança que Mike distraíra. O fato de que três dentre as quatro pessoas do grupo eram ex-presidiárias não ajudaria muito se conseguissem de fato conectá-los ao que aconteceu.
Era impossível relaxar por um segundo que fosse. Naquela tarde, eles viram luzes coloridas acompanhadas sons altos, que por alguns instantes, pensaram se tratar da sinalização da polícia e de tiros; já estavam encolhidos no chão, quase aceitando seus destinos na cadeia, quando perceberam que eram apenas fogos de artifício, porque o Corinthians tinha ganhado.
O clima ainda pesava no dia seguinte, quando supostamente deveriam voltar de viagem. Quando ouviram a notícia do desaparecimento de Marrone passando no rádio, no entanto, concluíram que não poderiam voltar para casa, parecia arriscado demais. Depois de debaterem a respeito, a melhor escolha lhes pareceu, na verdade, fugir da cidade, nem que fosse temporariamente. Na noite de segunda-feira, pegaram a estrada sem olhar para trás, e só deram algum descanso a Carla depois do nascer do sol, quando já estavam no Rio de Janeiro.
Com isso, eles estavam de repente em um caminho realmente sem volta, a centenas de quilômetros de suas casas, levando consigo apenas algumas mudas de roupas, morando na van de Pac e Mike. Não muito depois, os restos queimados de Marrone foram encontrados, eles viram em notícias, e com a polícia focada anquela investigação, o quarteto começou a andar nas rua de boné e óculos escuros, só para garantir. Aquilo não era vida, e não tinham ideia de como dar a volta por cima; estavam encurralados, e cada dia mais.
Por pouco mais de uma semana eles viveram daquele jeito, e era impossível saber quando seriam descobertos, ou se seriam descobertos, mas chegavam atualizações nas notícias sobre o caso Marrone constantemente. Eles começaram a pensar na logística de viajarem para o norte, ficando ainda mais distantes de São Paulo, quando Felps teve uma ideia. Era uma solução drástica e definitiva, porém lhe parecia ser a saída mais garantida.
— Eu acho que eu sei como a gente consegue realmente escapar — Felps sugeriu, enquanto todos contemplavam a terrível situação em que haviam se enfiado — Mas é uma coisa bem definitiva.
Todos estavam ouvindo.
— Eu conheço um cara.
— Como assim você conhece um cara?? — Pac questionou, em alerta.
— … Digamos que ele me deve um favor. Acho que ele consegue tirar a gente do Brasil.
— Fugir do país?
Eles deixaram a pergunta pairar entre os quatro por alguns instantes.
— Ok — Mike finalmente se manifestou — Acho que tá bem claro que, se a gente não quiser ir preso, a gente vai ter que fugir. Mas fugir mesmo.
— Mas-- a gente vai só largar tudo aqui?! — Pac questionou, na defensiva — Deixar toda a nossa vida pra trás?
— O que exatamente a gente tem aqui, Pac? — seu colega de quarto questionou.
Pac abriu a boca para responder, porém não pôde pensar em nada. Mike continuou:
— O Felps tem a solução mais lógica pra gente realmente conseguir escapar dessa fuga impossível. A essa altura, a única garantia de que a gente vai sair mesmo dessa é recomeçando em algum lugar de qualquer jeito, isso nós já aceitamos, e se estivermos em outro país, melhor ainda pra nós.
— Eu sei, mas… Ugh, não é uma decisão tão simples assim.
Quando ninguém mais falou, Cellbit se manifestou:
— Me desculpa, gente… Eu não acredito que eu arrastei vocês pra isso…
— Não é assim também, Cellbit — Felps interveio — Você não obrigou ninguém a nada, nós sabíamos o que estávamos fazendo quando te ajudamos. Minha única questão é vocês aceitarem meu plano ou não. Vou dar um tempo pra vocês pensarem no assunto, ok? Mas eu acho que essa é a melhor escolha.
É claro que não era uma decisão fácil de ser tomada, como poderia ser? Ao mesmo tempo, quanto mais pensavam a respeito, mais lógico aquilo parecia: nenhum deles tinha família, e amigos eram poucos — os mais próximos estavam ali, com eles; tampouco tinham muitos bens materiais que estariam sendo deixados para trás; e o medo de serem pegos se tornava mais justificado a cada dia que passava. Cellbit mais uma vez ofereceu se entregar e levar toda a culpa, mas nenhum deles deixou.
Depois de um tempo de deliberação, todos acabaram decidindo seguir com o plano, antes que a situação deles se complicasse ainda mais. Felps precisou de alguns dias para conseguir deixar tudo combinado e certinho, e os outros usaram esse tempo para garantir que estavam prontos para a viagem, arranjando suprimentos, roupas e outras coisas.
Assim, estavam finalmente prontos para irem, e o mês de março se iniciou junto com um novo ciclo na vida dos quatro amigos. Felps deixou tudo combinado com o cara que lhe devia um favor, e a kombi foi dirigida até um píer com um navio cargueiro, onde dariam seu último adeus ao Brasil.
Estavam todos em silêncio com os próprios pensamentos, estacionados em frente ao mar e o barco. Mike foi o primeiro a falar:
— Acho que vamos ter que dar adeus a Carla então, né?
Pac apenas suspirou. Cellbit e Felps trocaram olhares
— Vamos deixar vocês se despedirem dela — Cellbit anunciou
E foram para o lado de fora, trazendo suas respectivas bagagens. O loiro olhava para baixo, envergonhado por ter desencadeado toda a reação em cadeia que deixou todos encurralados. Felps o observava.
— Eu quero falar com você, Cellbit. Eu sei o tanto que você tá se culpando por tudo isso, e eu entendo, porque eu também me culpo — Felps levantou a mão para pará-lo antes que Cellbit pudesse começar um contra-argumento — Não tô falando isso pra virar o jogo e ter que ser você quem vai me consolar, eu só quero te ajudar a ver as coisas por outro ponto de vista. Eu sinto que eu devia ter te ajudado antes que as coisas escalassem como escalaram, tava nítido que você não tava bem e eu demorei demais pra agir. Tenta não ser tão duro consigo mesmo por um segundo e toma o momento pra analisar o que foi a sua vida até agora: você primeiro foi largado em uma zona de guerra pra ser negligenciado, era só uma criança em uma situação completamente maluca que teria matado muitos adultos. Então, depois de anos você é finalmente resgatado e trazido de volta pro Brasil, só pra então ser, de novo, largado e negligenciado, e então jogado na cadeia pouco depois. E você ficou lá por mais um bom tempo, até que foi tirado de lá sem ter onde cair morto e precisou de novo se virar, e acabou numa situação complicada e mesmo assim demorou anos pra chegar ao seu limite, o que já te torna mais forte do que muita gente teria sido no seu lugar. Você não teve um momento de paz em toda a sua existência, cara.
Cellbit sentiu lágrimas silenciosas escorrendo por seu rosto, e Felps o puxou para um abraço. Ele esperou um tempo antes de continuar:
— A gente não vai deixar escalar assim de novo, ok? Vamos ajudar uns aos outros e tentar usar essa situação bem extrema e fora do comum pra realmente recomeçar, seja lá onde formos parar. E, olha… Eu sei que isso soa meio absurdo agora, considerando tudo, mas eu realmente sinto que as coisas vão melhorar pra nós. Não sei explicar o porquê, mas eu realmente sinto isso.
Cellbit apenas assentiu, tentando absorver tudo, e Felps deu tapinhas em seu ombro.
— Eu vou lá resolver as últimas coisas pra gente poder ir. Mas saiba que… vai ficar tudo bem, ok? Você vai ver. Eu te amo, cara.
E então ele foi de encontro ao homem que lhes aguardava, com quem tinha fechado o acordo. Pac e Mike desceram da kombi logo depois, para abraçarem e beijarem seu capô, acariciando-lhe. Em circunstâncias diferentes, a cena poderia ter sido cômica.
O conhecido de Felps lhe apresentou o homem que estaria pilotando o barco, e depois de conversarem um pouco, o capitão se afastou e Felps chamou seus amigos, gesticulando para que se aproximassem. Tudo estava pronto e eles deveriam entrar no navio. Os moços, antes de tudo, se aproximaram do conhecido de Felps antes que ele se afastasse, e pediram:
— Cuida bem da Carla… Ela é uma kombi excelente.
Ele ergueu uma sobrancelha, julgador, mas não disse nada.
Os quatro amigos inspiraram o ar brasileiro uma última vez, antes de se certificarem que estavam com todas as bagagens em mãos, e então entraram no navio cargueiro e viram as portas se fechando na frente deles.
Parte 4: Fuga
Somos la fuerza erigida
Por la diosa bendecida de este mar
Na parte coberta do barco, em meio a muitas caixas, o grupo encarou o lugar que seria o novo lar deles por sabe-se lá quanto tempo, até chegarem à terra firme. Não havia nada de aconchegante ou minimamente confortável ali, porém todos pensaram a mesma coisa — que antes algumas semanas ali do que anos na cadeia.
— Então, a boa notícia, galera — Felps anunciou — É que temos comida e água pra viagem inteira. O banheiro não é muito agradável, mas dá pro gasto.
Pac deixava nítido em seu rosto que algo o estava perturbando.
— Felps… desculpa perguntar, mas eu preciso muito saber. Esse barco aqui, ele não tá levando nenhuma carga… hm, nenhuma carga ilegal não, né?
— Quê? Ah, não! — Felps riu — Não, só tem comida. Frutas tropicais sendo exportadas. Mas o capitão mandou a gente não mexer nas caixas.
Pac não pareceu muito seguro com a resposta, principalmente com aquela última parte, porém não disse mais nada.
Depois do piloto terminar as vistorias e preparações finais, o barco finalmente iniciou a viagem; o destino deles estava oficialmente selado. O quarteto caminhou até o convés para ver o continente ficando cada vez mais longe deles, a última visão que teriam do Brasil pelo resto de suas vidas. Não tinham muito a dizer e, ao invés disso, optaram por cumprir com um combinado que haviam estabelecido, e todos lançaram seus celulares ao mar: não correriam o risco de serem rastreados.
Antes que pudesse se livrar do aparelho telefônico, no entanto, a curiosidade falou muito mais alto para Pac, e ele não pôde evitar de dar uma olhadinha na conversa com Guaxinim, que por sua vez, não recebia resposta alguma dele desde aquela ligação no dia do acidente. Surpreso, Pac percebeu algo que podia ou não ser apenas impressão sua, mas… em retrospectiva, nenhuma das mensagens mandadas pelo colega de escritório mostravam qualquer tom acusatório ou desconfiado. Por mais que a paranóia muito justificada de Pac tornasse difícil não desconfiar de tudo, objetivamente falando, as mensagens eram totalmente casuais. Mais que isso: além da existência de Marrone jamais ser mencionada, Guaxinim também parecia quase ter montado uma narrativa naquele diálogo sem resposta, criando uma perspectiva completamente falsa que tornaria impossível conectar Pac ao sumiço do chefe, e que inclusive parecia insinuar que os dois teriam se visto pessoalmente depois da ligação. Tudo indicava — e Pac realmente esperava que não estivesse sendo burro e/ou ingênuo sobre sua interpretação —, que Guaxinim se transformara propositalmente em um álibi naquelas mensagens registradas em texto.
Com base no que sabia sobre o amigo, não parecia loucura imaginá-lo conectando pontos o suficiente para ter uma noção do que poderia ter acontecido, e que, mesmo assim, tenha dado razão a Pac e tenha tentado protegê-lo tanto quanto possível, sem deixar rastros para trás, exatamente como o grupo agora fugitivo tentara fazer. Pac sentiu uma onda de sentimentos mistos: a volta do carinho que costumava sentir por Guaxinim antes de sua vida virar de cabeça para baixo, a tristeza por jamais poder vê-lo novamente e agradecer, além do medo, óbvio, de que tivesse interpretado tudo aquilo errado. De um jeito ou de outro, Pac olhou para o céu e murmurou:
— Guaxinim, vou sentir saudades…
E então, ele suspirou e, usando toda a força que tinha, jogou o celular no vasto oceano.
───────•••───────
Apesar de tudo, a adrenalina da fuga foi abaixando conforme os minutos e horas foram se arrastando, e a viagem se tornou monótona rapidamente. A sensação era esquisita, mas todos acreditavam estar tomando a melhor decisão que poderiam ter tomado na situação em que estavam. As distrações eram poucas, e o clima era de antecipação.
Já de volta na área fechada do barco, Felps logo pegou um livro, Mike tirou um cochilo, Pac estava tentando encontrar uma posição em que sentiria menos enjoo e Cellbit começou a brincar com sua polaroid, a qual ainda não tinha estreado. Decidiu testar: tirou uma foto de Felps lendo.
Enquanto observava a imagem se formando no papel, ouviu, a alguns metros de si, Pac grunhindo, deitado no chão, usando a mochila de travesseiro e cobrindo os olhos com o braço.
— Você não trouxe remédio pra enjoo? — Mike murmurou, sem abrir os olhos de seu descanso.
— Trouxe, mas não tem tanto remédio assim e eu não sei quanto tempo a gente vai ficar aqui, não quero usar tudo no primeiro dia. Até porque, assim meu corpo não se acostumaria com a maré.
Mike desaprovou com um movimento de cabeça e virou de lado, voltando a cochilar. Pac se sentou devagar.
— Será que se eu não ficar deitado é menos pior?
— Não sei não… — Felps respondeu.
Pac olhou ao redor, cansado daquela sensação horrível. Sua atenção ao ambiente, no entanto, o fez notar algo que o deixou em alerta.
— An… gente? Vocês sabem se enjoo pode causar alucinações?
— Do que você tá falando? — Cellbit indagou enquanto guardava a polaroid.
— Não, é só que… Aquela caixa ali parece estar se mexendo sozinha.
O tédio deles foi interrompido, todos virando-se para ver do que Pac estava falando. E, realmente, viram que Pac não havia imaginado aquilo: uma caixa bem menor do que as outras, que parecia meio fora do lugar em meio aos contêineres, parecia balançar. Cellbit se prontificou, caminhando devagar naquela direção, e com cuidado espiou o que estava ali dentro.
— Qual foi, tio? — disse uma voz infantil.
Uma criança que não devia ter dez anos estava ali dentro, agora de pé, revelando-se apenas do tórax para cima. Vestia uma camiseta da seleção brasileira, e seu cabelo black power volumoso cobria-lhe parte dos olhos.
— Por que tem uma criança aqui?! — Cellbit perguntou, exaltado.
— Me diz tu por que tem um monte de adulto aqui!
— Felps, era pra ele estar aqui?
— Eu acho que não?
— O que você tá fazendo aqui, moleque?
— Não é da sua conta.
— Eu vou informar o capitão.
— Não!
Apressadamente e de forma bem desengonçada, a criança fez um esforço e saiu completamente do caixote, de forma que foi possível ver que, enquanto no pé esquerdo ele usava um chinelo preto, no direito, tinha um tênis com plataforma.
— Por favor, não dedura que tô aqui! Por favor! — o pequeno implorou com voz chorosa e os olhos se enchendo de lágrimas.
— Amiguinho — Pac se aproximou dele — Eu entendo você não querer que a gente faça isso, mas é preciso.
— Por favor, não, tio…
— Vai ficar tudo bem, ok?
Com Pac bem ao seu lado, a expressão do moleque mudou completamente, revelando que o choro era falso. Ele chutou a canela de Pac e saiu correndo, rapidamente sumindo da vista dos outros.
— Ai!
— Como assim “ai”? — Mike estava confuso — Ele chutou sua perna com a prótese, não chutou?
— Sim, mas não foi a perna que doeu, foram meus sentimentos…
— A gente precisa achar ele — disse Felps, preocupado — Não deve ser difícil, ele não tem muito pra onde ir.
Os quatro adultos se dividiram, buscando pela criança. Mike e Felps ficaram no espaço em que já estavam, procurando entre os caixotes, enquanto Cellbit e Pac foram até o convés, a parte externa cheia de contêineres maiores.
Apesar de ainda sentir-se assolado pela culpa, Cellbit estava bem conformado com a situação anormal em que se encontrava; agora, um molequinho no barco de fuga era algo que ele realmente não poderia prever. Não tinha ideia de como aquilo afetaria a viagem, mas esperava que não os prejudicasse.
Depois de alguns minutos de busca, Cellbit o achou, sentado em um contêiner um pouco mais alto e se escondendo atrás de dois outros, a criança, encolhida.
— Olá — o adulto disse, calmamente.
O pequeno se assustou. Cellbit teve uma ideia, pensando no que ele mesmo gostaria de ter ouvido naquela situação se fosse criança.
— Fica tranquilo, eu não vim pra falar essas besteiras de te entregar pro capitão. Eu percebi que você é muito esperto pra cair nessa. Eu vim bater um papo.
Ele não respondeu nada, mas também não fugiu quando Cellbit escalou até o local em que ele estava e sentou-se ao seu lado.
— Qual é o seu nome?
— Richarlyson…
— Prazer, Cellbit — ele estendeu o punho, esperando um soquinho; o pequeno o fez — Eu quero te entender, Richarlyson. O que te fez querer embarcar em um navio de carga que vai pra tão longe do Brasil? Ou você veio parar aqui sem querer?
— Não foi sem querer! — a criança apressou-se em explicar — Foi o melhor jeito que eu achei de fugir.
— E de quem você tá fugindo?
— Do abrigo — Richarlyson se encolheu um pouco mais, abraçando as próprias pernas — Eu não aguentava mais aquele lugar. Mas sempre me achavam quando eu fugia, então eu tive que fazer alguma coisa mais assim.
— Mais extrema? — Cellbit sugeriu.
— Sim, isso. Ninguém acredita em mim quando eu digo que eu já sei me cuidar sozinho. Eu sei fazer miojo e brigadeiro, dormir eu consigo em qualquer canto se eu tô com sono, só preciso de um cobertor, mas eu dou um jeito.
— Hm, você tem razão. Me parece bom o suficiente.
— Eu sei! Agora que eu vou pra bem longe do abrigo, quero ver eles me pegarem de novo. Eu não sei onde a gente tá indo, mas eu me viro por lá.
— Cellbit? — Pac chamou ao encontrá-los. Richarlyson se recolheu de novo.
— Fica calmo — Cellbit tranquilizou — Pac, sobre aqui.
— Eu… Ehr, bom, posso tentar.
Depois de evidente dificuldade para chegar lá, Pac subiu no contêiner junto com os outros dois, e Cellbit pediu para que ele sentasse também. Ele ajustou um pouco a perna direita e sentou-se devagar, a criança observando-o atentamente.
— Sabe, Richarlyson… — Cellbit começou — Eu e meu amigo Pac aqui entendemos como é isso de ter que saber se cuidar desde pequeno. Não é, Pac?
— Não muito bem, na verdade eu e o Mike meio que sempre cuidamos um do outro e…
Cellbit interrompeu-o com o soco no braço antes de virar os olhos para a criança, mexendo um pouco a cabeça, alertando o amigo.
— Não, é, é, a gente era bem novo de qualquer forma — Pac tentou arrumar o que disse — Mas deu tudo certo no final! Quer dizer, certo certo não vou poder dizer né… Ai, droga, eu tô falando merda. Eu só queria te ajudar, é… Richarlyson, né? Bonito nome.
— Pac — Cellbit o interrompeu — Conta pro Richarlyson quem é Mike e da onde vocês se conhecem.
O de cabelos escuros lhe encarou, confuso, e Cellbit apenas assentiu com a cabeça, querendo que Pac falasse a verdade.
— Bom, a gente não tinha família, então nós viramos a família um do outro.
— E vocês ficavam lá no abrigo em que vocês moravam ou vocês fugiam?
Aquilo despertou o interesse do pequeno, que não soube nem disfarçar em suas expressões. Pac finalmente entendeu o que estava acontecendo.
— Não, a gente não gostava de lá e a gente ficava escapando o tempo todo. A gente sempre preferiu se virar sozinho. Quem sabe o que é melhor pra si mesmo é a própria pessoa.
— Richarlyson — Cellbit tocou sua mão de leve, o que fez a criança olhá-lo — Vai ficar tudo bem. Podemos descer daqui agora?
Pac se colocou de pé, com dificuldade, e a barra de sua calça subiu de um forma que sua prótese ficou aparente. O pequeno percebeu, porque olhou para a própria perna menor do que a outra.
— Podemos.
Os três desceram do grande contêiner com cuidado, enroscando-se nas cordas que prendiam as caixas para conseguir apoio. Richarlyson foi ágil e rápido, enquanto Pac precisou que Cellbit o ajudasse. Novamente no chão, Pac estava claramente cansado pelo esforço, e pediu para que os outros dois fossem descendo para avisar o resto do grupo que haviam encontrado a criança fujona. Enquanto Cellbit e Richarlyson se afastavam, ele trocou um olhar silencioso, mas significativo, com o amigo, que deixava explícito que estava indo fazer o que sabiam que deveria ser feito. Cellbit distraiu a criança e Pac caminhou mancando até a cabine do piloto.
— Oi, licença. A gente encontrou uma criança escondida em um dos caixotes.
───────•••───────
Richarlyson não ficou feliz ao ser dedurado, claro, mas o piloto já o conhecia.
— Esse moleque tá sempre zanzando perto do cais. Já tinha tentado entrar no navio várias vezes.
Porém o piloto optou por deixar o pestinha ali. Considerando o nível de legalidade do que estava sendo feito, parar na primeira fronteira que encontrassem, onde haveria monitoração de carga, tudo para jogar um órfão brasileiro por lá, não ia ajudar. E, apesar da ética questionável, ele tinha moral o suficiente para não querer se livrar da criança. Diante disso, Richarlyson oficialmente viajaria com eles até o destino da desembarcação, onde decidiriam o que fazer com ele.
— Acho que a gente vai ficar preso com a criança, então — Mike observou.
— Vai se foder, cara do moletom azul! — o pequeno bradou — Tu é mó traíra, cara, puta X9. Você disse todas aquelas mentiras e eu achei que você me entendia, mas era tudo pra me enganar!
Pac olhou para ele, ofendido em muitos níveis.
— Primeiramente, ok?! Eu sei que a gente tá num barco, mas não precisa xingar como um marinheiro! Eu, hein. Segundo: eu não menti em momento nenhum, e eu realmente entendo você achar que sabe o que é melhor pra você, mas acredite, menininho, justamente por já ter passado por algo tão parecido, eu consigo olhar pra trás agora e perceber que tem muita coisa que eu devia ter feito diferente.
— Pois eu não sou você, e eu sei muito bem o que tô fazendo! — Richarlyson respondeu, rancoroso, cruzando os braços — E eu vou provar!
Batendo o pé, ele caminhou até um ponto específico da parte coberta e, de uma caixa escondida entre os contêineres, ele tirou uma mochila azul surrada do Sonic e a chacoalhou na frente dos adultos.
— Eu vim preparado.
— Certo — Pac falou, em tom cansado, porque sabia muito bem o que viria a seguir — E o que tem aí dentro?
— Só o essencial.
— E o que é essencial, Richarlyson?
A criança se ajoelhou no chão e abriu a mochila: havia aproximadamente duas camisetas, um moletom, uma calça e uma cueca, com o resto do espaço sendo tomado por muitos doces, uma garrafinha de guaraná, salgadinho Torcida, várias revistinhas da Turma da Mônica, e um caderno e estojo. Pac suspirou, e Mike veio ajudá-lo no argumento.
— Olha, existem coisas que você ainda é novo demais pra entender, mas eu sei que tudo o que o Pac tava tentando fazer era não deixar que você acabasse como a gente. De qualquer jeito, isso nem importa mais, porque o capitão já disse que vai te deixar aqui.
— Não muda que ele foi X9! Ainda mais porque, se vocês estão aqui, é porque estão tão metidos em encrenca quanto eu, e eu tenho certeza de que você não ia querer que eu dedurasse vocês pra alguém.
— Ele tá tentando nos ameaçar…? — Cellbit olhou para os outros, indignado.
— Richarlyson, ninguém precisa entregar ninguém, ok? — Felps se manifestou, tentando usar o tom mais persuasivo que conseguia.
— Eu concordo… Mas como a gente vai confiar um no outro? Precisamos fazer um acordo. Eu aceito não dedurar vocês pra ninguém se vocês não me dedurarem pra ninguém também. A gente promete de dedinho, e assim dá pra saber que é uma promessa que não se quebra.
Richarlyson se aproximou deles, e enroscou seu dedo mindinho no de cada um. Ao terminar, ele colocou as mãos na cintura e encarou os rosto atentos e desconfiados dos adultos.
— Ok, acho que é isso. Agora tá prometido, a gente vai guardar o segredo um do outro. Boa sorte pras vocês — o pequeno relaxou e se afastou, caminhando até um cantinho, onde abriu uma das embalagens de salgadinho. Os quatro amigos se encararam.
— A porra de uma criança — Mike murmurou.
— Acho que a gente vai aprender a lidar com ele, tem muita viagem ainda pela frente — Felps concluiu — Vamos ver no que isso vai dar. Por agora, talvez devêssemos focar em pensar sobre como vamos fazer quando chegarmos ao continente.
───────•••───────
Os dois meses seguintes se arrastaram, por mais que a presença de Richarlyson os tenha tornado um pouco menos monótonos do que prometiam. Já estavam acostumados com a dinâmica e a vida no mar, porém esperavam ansiosamente pelo fim daquela viagem, para finalmente terem seus recomeçamos.
E, mesmo percebendo que poderiam alcançar a terra firme a qualquer momento, essa tão desejada mudança chegou quando eles menos esperavam. O mar estava calmo quando eles foram dormir àquela noite do final de abril, até a tempestade começar de repente. Os fugitivos acordaram com o barulho e com o movimento do barco — aquela parecia ser a pior tempestade que tinham enfrentado naquela viagem até então. O balanço começou a fazê-los se desequilibrarem como bêbados, e Pac correu até um caixote vazio para botar todo o seu jantar para fora.
Era difícil explicar, mas todos sabiam, de alguma maneira, que havia algo profundamente errado acontecendo naquele momento, o qual mal parecia real, mais se assemelhando a um verdadeiro pesadelo, no sentido literal da palavra. Richarlyson estava nervoso como jamais demonstrara antes, e enquanto Mike corria para socorrer Pac ao mesmo tempo que Cellbit se prontificava de abraçar a criança para lhe passar a sensação de segurança, Felps decidiu tomar a iniciativa de ir até a cabine do capitão para conferir o que deveriam fazer, e se certificar de que tudo estava sob controle.
Ao sair escorregando naquele convés balançante, a água vindo com tanta força pelos ventos da tempestade que quase parecia perfurá-lo, suas expectativas não eram positivas, porém ele jamais poderia imaginar o que de fato encontraria ali.
A cabeça do piloto estava caída no painel de controle, e antes que Felps pudesse confirmar se sua terrível suspeita estava correta, um enorme tentáculo verde surgiu quebrando a janela e agarrando o peso-morto do corpo do capitão antes de puxá-lo, em um movimento abrupto que revelou a boca do homem aberta em um ângulo sobrenatural e horripilante.
Antes que Felps pudesse sequer começar a processar tudo o que estava acontecendo, no entanto, o mar à sua frente pareceu se abrir como a boca desfigurada do capitão, tentando engoli-lo como um monstro. Ele fechou os olhos para protegê-los do sal, e o impacto do movimento o fez bater as costas na parede da cabine. Ao abrir os olhos novamente, a abstração digna de sonhos se intensificou, com as cores ao seu redor muito vivas misturando-se e deixando sua mente uma verdadeira confusão. Felps nunca imaginaria que ver o mundo ao seu redor rosa, amarelo, verde, azul e roxo poderia ser mais assustador do que a completa escuridão, mas aquele momento o fez ver que estava errado.
Felps se agarrou cegamente à direção do barco e começou a tentar guiá-lo para qualquer terra firme, sem ter a mínima noção do que estava fazendo. O borrão colorido que era sua visão trazia uma dor de cabeça insuportável, como se não bastasse a cortante chuva, o frio até os ossos e uma sensação de vazio e desespero como nunca havia sentido antes na vida.
Depois de parecer anos preso naquele momento agonizante, Felps olhou para trás por um instante, e quando voltou a encarar a paisagem à sua frente, estava em um porto: de alguma forma, alcançara a terra firme. Ele cambaleou até a área coberta do navio, onde se juntou aos outros passageiros e, juntos, eles pegaram suas bagagens e desceram do barco.
Conforme o grupo pisava em terra firme pela primeira vez em semanas, observaram a lua correr no céu roxo, transformando a noite colorida em um dia cinzento, e apesar do cenário ter mudado, continuava tão surreal quanto antes, tudo confuso e sem continuidade. Eles caminharam entre pessoas com rostos que pareciam nunca ficar nítidos, não importa o quanto se aproximavam de alguém para tentar distinguir algum traço. Os estranhos se moviam em grupos que mantinham sincronia, alguns entrando no barco para buscar a carga, outros, a certa distância, continuando seus trabalhos indecifráveis em looping, mas ninguém se direcionava a eles ou sequer se aproximava dos brasileiros, como se fossem todos fantasmas.
Os recém chegados não falavam, sentindo que não conseguiriam fazê-lo, e não ouviam nenhuma palavra concreta, apenas murmúrios ao longe; ao mesmo tempo, uma mera sugestão da mente parecia fazer a coisa se concretizar um pouco mais ao redor deles, e foi assim que surgiram os panfletos. Foi uma ideia, plantada no cérebro de cada um por sabe-se lá o que, e depois de imaginarem os papeis em suas mãos, estavam todos de repente segurando aqueles papeis, anúncios turísticos com fotos e o slogan:
Não procure mais além para achar o lugar que apenas seus sonhos mais loucos podem imaginar!
HATCHETFIELD - Michigan
E, de alguma forma, todos os cinco sabiam exatamente o que tinham que fazer.
Notes:
Se eu tivesse uma moeda pra cada vez que eu entrasse de férias e pensasse “Nossa agora eu vou escrever muito”, mas acabasse tendo um puta bloqueio criativo nas semanas seguintes… Eu teria duas moedas, o que não é muito, mas é estranho que aconteceu duas vezes.
Além da música "Alibi", "Fuga Impossível" do TazerCraft também me trouxe inspiração pra alguns detalhes do capítulo
Obrigada por ler :)
Chapter 25: De volta em casa
Notes:
(See the end of the chapter for notes.)
Chapter Text
Ninguém jamais ficou tão feliz por acordar em um quarto do Egg Carton Hotel em Hatchetfield quanto Cellbit no primeiro dia depois de ter voltado da sua missão de invadir a Federação, e com os rombos em sua memória sobre o tempo que passou preso na CCRP, ter sonhado com forças malignas novamente foi quase reconfortante.
Foi uma mistura de fatores que culminaram na combinação perfeita, tornando o alívio físico e psicológico de estar de volta incomparável. Aquele hotelzinho lhe parecia o melhor lugar do mundo depois de tanto tempo dormindo em uma kitnet que Cucurucho arranjara para ele perto da CCRP, onde vários trabalhadores sem rosto moravam, como se não bastasse estar longe de seus amigos e filho, tendo de agir como um cuzão com eles, sem sequer saber se Felps estava de fato vivo.
Claro, apesar desse contentamento momentâneo, uma voz irritante em sua cabeça ainda repetia: Sim, as coisas parecem ter se ajustado por agora, mas isso nunca dura muito na sua vida antes que tudo comece a dar muito errado. Outra voz, no entanto, mais alta que essa primeira dizia: VOCÊ BEIJOU O ROIER ONTEM!!!
Só de pensar em Roier de novo, Cellbit sentiu seu coração feliz. Além do fantástico beijo, abrir o jogo com ele sobre seus vários esqueletos no armário e ouvir da própria boca de Roier que estava tudo bem, foi um passo delicado e complicado a ser tomado, porém extremamente necessário, um pulo de confiança que os aproximou.
Agora, Cellbit sentia-se preparado para mergulhar novamente em suas investigações sobre os segredos que Hatchetfield guardava, pois o supernatural não descansava, e ele também não podia. Não, precisava mudar aquela mentalidade, ou entraria naquela espiral doentia novamente… Cellbit iria sim descansar, de tempos em tempos, para lembrar das coisas e pessoas que faziam a vida valer a pena.
— Pai? Não vai sair da cama não? Eu tô com fome.
Richarlyson o observava curioso, já propriamente vestido, ajustando o sapato com palmilha elevada para um dos pés.
— Eu vou, claro que eu vou, Richas — Cellbit se espreguiçou — Só tô aproveitando um pouco a sensação boa de estar de volta.
— Eu tô com fome demais pra ficar aqui ouvindo essa viadagem.
Cellbit sentou-se na cama, lançando-lhe um olhar indignado.
— Richarlyson!
Mas a criança estava inabalada:
— O pai Felps já tá pronto pra ir pro café da manhã, a gente vai te largar aí e descer sem você.
— Eu tô indo, tô indo! — ele falou, levantando-se, sem opção, e indo trocar de roupa.
Assim que Cellbit saiu para o corredor do hotel com os outros, já foi notando mudanças em relação à última vez em que estivera lá; com o início das férias de verão e os dias contados para o Festival do Mel, a maior atração turística de Hatchetfield, o Egg Carton se encontrava com um número considerável de hóspedes novos. Aquilo em si só já tornava o ambiente levemente estranho, menos confortável.
Chegar ao salão de refeições apenas aumentou exponencialmente aquela sensação, e trouxe à tona a lembrança de que o mundo não ficava parado no tempo durante sua ausência. Primeiro, ele observou Richarlyson correndo para longe da mesa dos pais para conversar com a menininha francesa, de quem parecia ter se aproximado bastante nas últimas semanas; a garota, por sua vez, agia com confiança e falava alto, o oposto de como Cellbit a vira da última vez, tímida e quieta. Depois, ele notou que Pac e Mike cumprimentaram o francês de cabelos verdes com uma casualidade que insinuava certa proximidade daquele estranho; eles receberam como resposta um comentário sobre supostos treinamentos de artes marciais que ele lhes oferecia, e quando o francês se afastou, Mike brincou sobre a quedinha que o amigo teria pelo homem, a qual Pac negou, dizendo que já havia superado. Então, na hora do café da manhã ser servido, quem trouxe a comida não foi Bad Boy Halo, como de costume, mas dois homens que Cellbit nunca havia conhecido, e o mais novo deles também parecia ter criado uma amizade com os moços.
Era estranho se pensar daquela forma, porque na verdade estavam em Hatchetfield há menos de dois meses, porém Cellbit sentiu certa melancolia ao ver que muito com o que rapidamente se acostumara, havia mudado no tempo que passou fora. Queria ter estado lá, visto a amizade de Richarlyson e da menina evoluir, ter conversado direito com o francês que parecia tão simpático, ter visto Pac se apaixonar e desapaixonar, ter conhecido os novos funcionários. Tudo tinha um preço na vida, e pelos amigos Cellbit faria tudo de novo sem pensar duas vezes, mas Cucurucho iria pagar por fazê-lo perder ainda mais tempo de sua vida que já fora tão desperdiçada.
— E aí, bonitão.
Cellbit foi abruptamente tirado de sua melancolia vingativa quando aquelas três palavras o atingiram como um balde de água fria. Deixando a confusão evidente em sua expressão facial, o brasileiro de cabelos claros virou a cabeça para seguir a voz e constatou que um dos novos funcionários do Egg Carton Hotel — o que usava óculos, não o que parecia ter se tornado amigo de Pac e Mike —, estava parado ao seu lado, posando com a mão no encosto de uma das cadeiras.
— Tô só brincando! — o homem riu e gesticulou com a mão para que desconsiderasse, porém continuou com o peito estufado e as mangas curtas da camiseta levantadas para exibir seus braços musculosos — Não acho que a gente se conheça, você é um hóspede novo?
— An, não exatamente… Meio que é uma longa história.
— Hm, saquei. Bom, podemos sair juntos e você me conta enquanto a gente bebe uma cerveja, o que acha? Eu sou o Charlie, aliás, mas pode me chamar de Slime.
Aquilo despertou a memória do loiro no mesmo instante — era o cara que presenciou o desaparecimento da filha do Quackity! E, além disso…
— Pera aí. Desculpa, mas você não tem um marido ou coisa assim?
— QUEM TE DISSE ISSO? — Slime respondeu, chocado, como se o brasileiro tivesse acabado de executar um incrível truque de mágica bem na sua frente.
— Não importa. E, olha, cara, eu já tenho um… alguém — Cellbit hesitou por um momento, sem ter certeza de como rotular seu relacionamento com Roier.
— Bom, se eu não tô deixando isso me parar, você também não precisa deixar! — Slime respondeu, beirando ao desespero. Cellbit, por sua vez, não podia acreditar que havia encontrado alguém tão sedento quanto o Quackity.
— Mas você provavelmente deveria. E eu realmente não tô interessado.
Charlie suspirou.
— Tá bom… Se você mudar de ideia algum dia, já sabe onde me encontrar.
E com aquela deixa, o funcionário do hotel se afastou até entrar na cozinha. Todos os outros brasileiros, que ficaram em silêncio para assistir à cena, encararam Cellbit.
— Eita que o Roier vai ter que se cuidar, hein — Felps comentou, e todos os quatro se deixaram rir.
— Cara, parece que eu só fico atraindo esquisito. Ainda bem que pelo menos eu consegui também o Roier.
— Ou seja, só atrai esquisito mesmo — Mike deu de ombros.
— EI!
— Aliás, Cellbit — Pac interviu, arrastando sua cadeira mais para frente, colocando a mão no queixo, dobrando uma perna e sorrindo, como um bom fofoqueiro — Você ainda não nos contou o que tá rolando entre você e o Roier.
— Um passarinho nos contou que você deu um beijo nele antes de voltar pro hotel, qual é dessa aí? — Mike perguntou, colocando o óculos na ponta do nariz e fazendo uma cara debochada de curiosidade. Em resposta, Cellbit deu uma risadinha.
— Por enquanto não teve muito mais do que isso, mas eu só vou entrar em detalhes se vocês me contarem qual é a do Pac com aquele francês lá.
— Iiiiih! — Felps provocou.
Lembrar das coisas e pessoas que faziam a vida valer a pena… No fim das contas, só de estar reunido com eles, Cellbit já conseguia deixar a amargura de lado por um momento. Mesmo tendo passado pelo que passou e tendo o sentimento de ter desperdiçado tanto o seu tempo, Cellbit precisava se lembrar dos bons momentos que de fato viveu, e que continuava vivendo. E exatamente quatro meses depois do fatídico café da manhã na padaria brasileira, quando aquele mesmo grupo precisou debater o que fariam para escapar da emboscada que tinham acabado de criar, eles estavam agora vendo a vida deles finalmente se ajustando, por mais que ainda tivessem muito a fazer.
Ali ficaram, na conversa, sem se preocuparem com a hora, e só levantaram para sair do salão de refeições quando lhes deu vontade. Para voltarem aos quartos e à rotina, passaram pelo hall de entrada do hotel, onde Bad Boy Halo permanecia atrás do balcão, resolvendo em seu computador burocracias que surgiam ao se gerenciar um hotel. Quando viu Cellbit passando, no entanto, ele o chamou, e o loiro se separou dos outros brasileiros para ir falar com ele.
— Oi! I mean- Yeah? — Cellbit disse, tendo que reajustar os pensamentos depois daquele tempo falando apenas sua língua materna.
— Eu queria te dar uma coisa… — Bad anunciou, abrindo uma gaveta à sua frente e buscando algo, até finalmente encontrar o que procurava no meio da bagunça — Aqui, isso é pra você. É meu antigo celular.
Cellbit observou o aparelinho, muito semelhante ao que tinha no Brasil antes de jogá-lo no Oceano Atlântico.
— O q- Por quê?
Bad suspirou.
— Olha, depois que você foi na sua missão e nos assustou daquele jeito, eu queria ter certeza de que você vai ter uma forma mais rápida de entrar em contato com as pessoas, ok? E também, eu sinto que incidentes como aquele em que o Roier me ligou só pra pedir pra falar com você, vão acontecer com maior frequência agora, então tá aí. Mais fácil pra nós dois.
— An… Obrigado?
— Por nada.
E então, ele voltou a concentração ao computador novamente, e a Cellbit só restou a opção de voltar ao seu quarto, onde precisou explicar a situação aos seus amigos.
— O Bad Boy Halo é muito estranho, véi — Mike disse, simplesmente.
Cellbit decidiu explorar seu novo aparelho. Nos contatos, encontrou registrados o telefone fixo do hotel, o número pessoal de Bad, bem como de Foolish e Max, e também o número de Roier. A primeira coisa que Cellbit fez foi mandar-lhe mensagem para avisá-lo sobre o celular, porém não esperava receber uma resposta tão em breve, considerando que a alta temporada aumentava significativamente o movimento da Starkid Gift Shop. E, todavia, a resposta veio um minuto depois, com Roier expressando empolgação pela perspectiva de se comunicar mais facilmente com o brasileiro, e então perguntando se estava confirmada a presença dele àquela noite.
— Olha lá, deve ter encontrado coisa do Roier no telefone — Felps advinhou, notando o rosto do amigo se iluminando.
— Para com isso — Cellbit respondeu, sem tirar o sorriso do rosto — Inclusive, esqueci de avisar, mas hoje à noite vou sair com Roier.
Apesar de muito empolgado, Cellbit sentia-se igualmente ansioso. No dia anterior, depois de toda sua conversa com Roier, o mexicano havia proposto que eles se encontrassem no sábado à noite, porém aquela não seria apenas a primeira vez que se encontrariam depois do primeiro beijo dos dois, como também a primeira em que Cellbit estaria completamente exposto, de certa forma, sem mais esconder mistérios sobre sua vida. Mesmo que Roier tivesse reagido positivamente, oferecendo apoio e dizendo que permaneceria ao seu lado, não obstante, a tensão era inevitável.
Mas ele ainda tinha o dia inteiro pela frente antes disso, e tinha muito o que fazer. Cellbit tirou o resto do dia para se reajustar à rotina e reorganizar tudo o que havia largado para prosseguir em sua missão de resgate. Quando saíra do hotel dramaticamente, jurando lealdade à Federação, ele não havia levado consigo seus itens mais importantes, decidindo por mantê-los guardados no lugar menos suspeito possível, aos cuidados de alguém de confiança.
— Richas, me empresta sua mochila?
Richarlyson pegou, do fundo de uma das gavetas do armário, sua surrada mochila azul do Sonic, e a entregou ao pai. Cellbit acariciou os cabelos da criança afetuosamente.
— Valeu, cabeçudo. Você mandou muito bem, meu plano de resgate não teria funcionado sem você. Tô orgulhoso.
A afirmação o fez estufar o peito, se achando. Na hora de Cellbit tirar todos os seus itens estimados da mochila, Richas permaneceu por perto, curioso para ver o que eram, já que nunca havia espiado por medo de estragar o esconderijo.
A primeira coisa que Cellbit pegou foi seu leal bloquinho de anotações, cheio de garranchos e rabiscos, tanto que ainda precisava ser investigado… Fechando o caderninho, ele partiu para a pasta, que estava abarrotada de documentos, porém em cima de tudo, tinha a foto de Felps lendo seu livro no navio de carga, tirada para testar a polaroid, e o desenho que Richarlyson havia feito de Cellbit.
— Você guardou! — o pequeno notou, sentindo-se honrado.
— Claro que eu guardei, eu te falei que eu achei muito da hora.
A última coisa a ser resgatada da mochila era o boné escuro enfeitado com as palavras Hatchetfield Nighthawks e o desenho de um pássaro: o “amuleto de proteção” que Roier lhe havia dado de presente. Cellbit decidiu colocá-lo na cabeça.
— É só isso? — Richas perguntou, agarrando a mochila para espiar lá dentro.
— Como só isso, tem coisa pra caramba!
— Mas já acabou?
— Acabou, ué.
— Ah, tá bom.
Dito aquilo, a criança pegou sua mochila vazia e a socou de volta no armário. Então, caminhou até a porta do quarto.
— Tchau, tô indo brincar.
E simplesmente saiu. Para Cellbit, não deixava de ser reconfortante que, mesmo com tantas mudanças, algumas coisas permaneciam do mesmo jeito…
───────•••───────
Quando o céu começou a escurecer, Cellbit precisou se preparar para sair. Ele guardou cuidadosamente o boné que manteve na cabeça a tarde inteira e então tomou um banho, escovou os dentes e tentou dar um jeito no cabelo — ainda não estava acostumado com a mecha branca, apesar dela lhe cair bem. Às vezes, ele se cansava um pouco do próprio reflexo, porém ainda era capaz de reconhecer que estava bonito e apresentável. Sentindo que estava pronto, ele precisou se lembrar de que agora tinha um celular novamente, e o colocou no bolso da calça antes de se despedir da família e sair.
O lugar em que encontraria Roier não era tão perto do trem, então Cellbit precisou se preparar para uma caminhada depois de chegar na estação mais próxima. Morador de cidade grande, ele ainda não estava acostumado a andar à noite sem medo do assalto, porém a vivacidade da pequena cidade em alta temporada acalmava um pouco seu coração, garantindo que não seria necessário usar a faca que roubara da cozinha de Bad depois de perder a sua própria em algum momento durante a missão de resgatar Felps.
No fim, ele soube calcular bem a distância e o tempo que demoraria para chegar, pois conseguiu ser pontual. Assim que avistou a placa neon com letra cursiva que dizia Las Casualonas, mandou uma mensagem avisando Roier que tinha acabado de chegar, e se aproximou da entrada.
— Boa noite, Cellbit! Como você está, meu amigo? — disse o homem à entrada.
— Oi, Vegetta — ele respondeu, tentando evitar olhar para seu corpo semi-nu — Tô bem, vim aqui pra ver o Roier.
— Ohhh, eu sei, ele me contou. Você é nosso convidado especial, venha, entrada grátis!
Cellbit estranhou.
— Tem certeza?
— ¡Sí, sí! — o homem respondeu com sua voz suave, abrindo espaço para ele passar.
E quem era Cellbit para recusar uma entrada de graça, afinal? Talvez fosse por isso que Roier tivesse escolhido o Casualonas para se encontrarem: porque o fato de ser afilhado do dono lhe dava vantagens como aquela.
Depois de descer as escadas, Cellbit entrou no ambiente colorido e barulhento, com suas luzes piscantes azuis e roxas e música alta. Uma drag queen performava energicamente no palco, dublando versos que diziam algo sobre “My pussy is on fire, now kiss the flame”, enquanto pessoas da plateia jogavam dinheiro nela. O lugar estava cheio, porém Cellbit não viu Roier em lugar algum, o que o fez pegar o celular para falar com ele. Assim que estava com o aparelho em mãos, viu que havia uma mensagem dele, dizendo que já estava vindo, que ele devia esperar.
Cellbit olhou ao redor mais uma vez, procurando um lugar livre. Então, seus olhos pararam no bar, onde avistou Maximus trabalhando, e decidiu sentar-se em um dos banquinhos próximos ao Theory Bro, que logo mais percebeu sua presença.
— Cellbit, olá! — ele gritou para ser escutado.
— Oi, Max! Eu não sabia que você também trabalhava como bartender aqui.
— Normalmente eu só sou DJ, mas com tantos turistas na cidade, me pediram pra ajudar no bar.
— Entendi.
Maximus continuava sua preparação de drinks enquanto eles conversavam, e Cellbit se ajustou no banquinho.
— Você está esperando pelo Roier, né? — Max indagou, balançando a coqueteleira em suas mãos.
— Estou, ele me disse que logo estaria aqui.
O barman achou graça, e o brasileiro não entendeu.
— O que foi?
— Eu só acho que o Roier pode ser meio exagerado às vezes. Enfim, quer beber alguma coisa?
Cellbit pensou enquanto Max finalizava a bebida que já havia começado, e a entregava a alguém da multidão. Por fim, o loiro arriscou:
— Sabe fazer caipirinha?
— Essa é a bebida brasileira com limão, né?
— Isso.
— Já te faço uma.
E então, lhe restou esperar. A primeira drag queen terminou sua performance, e pouco depois dela, veio uma segunda. Cellbit assistiu, e assim que Maximus lhe entregou seu drink, Roier mandou outra mensagem: Dois minutinhos eu tô aí.
Cellbit deu um gole na caipirinha enquanto a segunda drag queen agradecia a plateia e voltava para o camarim. Então, a pessoa que estava trabalhando como DJ àquela noite anunciou no microfone:
— A nossa próxima queen coloca o cu em servir cunt… Ééé, isso fez mais sentido na minha cabeça. Enfim, uma salva de palmas para: Melissa!
Melissa… coincidentemente, Cellbit tinha quase certeza de que tinha sido ela quem ele havia visto da outra vez, quando Bad o levou lá para conhecer Max e Foolish pela primeira vez. Porém, antes que ele tivesse tempo de pensar mais sobre, a música começou a tocar, e isso só confundiu muito seu cérebro.
É, é que eu queria muito ela
Ela não me dava atenção
Fiz de tudo por ela pra manter uma relação
A música em português, o funk brasileiro saindo da caixa de som do Casualonas, foi um choque enorme. Melissa havia entrado no palco usando um shortinho curto, uma blusa cropped, botas de salto alto com cadarços, e um boné cobrindo os cabelos esvoaçantes. Não era possível saber se ela de fato falava português ou não, porém sua lip sync da música estava bem convincente.
Eu, parado no bailão (hum, no bailão)
Ela com o popozão, e o popozão no chão
O popozão no chão, e o popozão no chão
Melissa acompanhou a letra, rebolando e descendo até o chão, o que fez a plateia ir à loucura. Enquanto Cellbit ainda tentava associar o que estava acontecendo, uma luz do palco foi lançada na plateia, focando nele, o que fez a drag notá-lo e sorrir em meio à dublagem. Outra luz focou em Melissa, enquanto ela devagar desceu do palco para a plateia.
Conforme ela se aproximava cada vez mais, Cellbit foi notando alguns detalhes que eram difíceis de ser distinguidos à distância, e percebeu que o boné preto que ela usava tinha o desenho de um pássaro e as palavras Hatchetfield Nighthawks bordados. O brasileiro ficou em alerta, e começou a entender o que estava acontecendo.
Melissa caminhou até bem perto dele, o que desmistificava cada vez mais as ilusões de drag. Suas pernas na verdade estavam cobertas com meia-calças de um tom muito similar ao da sua pele, seu cabelo lustroso tinha um lace de peruca, e seu rosto continuava reconhecível mesmo com toda aquela maquiagem. A performer parou na frente de Cellbit e tirou seu boné para colocar na cabeça dele, aproximando seu rosto dele.
— Roier? — Cellbit perguntou baixinho, sorrindo para ela.
Melissa assentiu com a cabeça e se curvou para beijar sua bochecha, o que fez o público aplaudir, e então ela continuou a performance. Melissa foi para a parte de trás do bar e, com a ajuda de Maximus, que lhe ofereceu a mão, subiu uma escadinha para ficar de pé na bancada com as bebidas, onde ela posou enquanto dublava a música, para grande entretenimento do público.
Depois de rebolar um pouco ali em cima, ela desceu novamente, tudo a tempo de finalizar a música de volta no palco, agradecer a plateia, pegar os trocados que lhe deram e voltar ao camarim.
Cellbit observava cada movimento atentamente, até ela sumir atrás das cortinas e Maximus cutucar seu braço.
— Pega seu drink, eu vou te mostrar como chegar no camarim.
Enquanto a próxima drag era anunciada pelo DJ, Max guiou o amigo até uma portinha escondida. Ele a abriu para revelar que atrás dela havia fios, equipamentos de som, uma máquina de fumaça e outras coisas do tipo, e Maximus apontou para a direita.
— Vai por ali que você acha o Roier.
Cellbit assentiu e o espanhol lhe lançou um sorrisinho simpático antes de fechar a porta e voltar ao seu trabalho.
Cellbit seguiu o caminho indicado, e logo se viu no camarim pelo qual já tinha passado quando foi espiar a conversa com Quackity, porém à noite e cheio de performers, o lugar parecia muito mais agradável e cheio de vida. Pessoas retocavam a maquiagem, trocavam de roupa, colocavam espumas de enchimento em meia-calças para mudarem a silhueta do próprio corpo, ajustavam perucas… Observando ao redor, seu olhar parou por um momento no espelho cercado de luzes, e Cellbit notou que o beijo de Melissa havia deixado uma marca de batom vermelho em sua bochecha. Ele tocou o rosto, e então voltou a procurar, até, logo em seguida, avistar Roier, ainda montado, sentado em uma cadeira para ajustar os cadarços da bota. Depois de deixar seu drink ali perto das maquiagens, Cellbit se aproximou.
— Guapito.
Ele levantou a cabeça e abriu um sorriso.
— Oi, Gatinho! O que você achou da minha performance, hein?
— Foi bem incrível, na verdade. Você é muito bom nisso!
Roier ficou de pé, e com aquele salto, ficava mais alto que o loiro. Ele casualmente colocou os braços ao redor do pescoço de Cellbit, que por sua vez, devolveu o boné à cabeça dele.
— Fico feliz que gostou — Roier admitiu — Eu achei que a melhor forma de te contar sobre o meu segundo trabalho seria te mostrando logo de uma vez, e eu eu vim ouvindo bastante essa música brasileira nas últimas semanas, então eu pensei: “é isso!”.
— A música realmente combina muito com você, falando de uma bunda grande.
Roier fingiu uma vergonha caricata diante do comentário, dando uma risadinha exagerada, e os dois riram.
— Mas só pra eu entender direito como isso funciona — Cellbit disse, olhando-o no olho — Você vem pra cá à noite, se veste de mulher, faz seu show, depois volta pra sua vida normal como Roier?
— Basicamente isso. Drag é uma arte e a Melissa é uma personagem. Em muitos sentidos, é meio como a Hannah Montana, sabe? Você coloca uma peruca e monta essa persona, que pode ou não se parecer com você, ou pelo menos com uma versão de você, e então performa e se diverte, até que no fim do dia você volta pra casa e continua a viver sua vida normal como si mesmo.
— Hmm, acho que entendi.
— Você pode sempre me perguntar a respeito se tiver mais dúvidas. E você é bem-vindo pra vir me ver sempre que quiser, você tá na lista VIP agora, e nunca vai ter que pagar pra entrar.
— Que honra.
Foi possível ouvir os aplausos do outro lado da parede, e uma drag saiu do palco enquanto outra se posicionou nas coxias, pronta para entrar quando chamassem seu nome.
— Você vai fazer mais alguma performance? — Cellbit perguntou, observando o movimento perto da cortina.
— Hoje eu disse pra eles que faria só uma performance.
— Então isso significa que eu vou te ter comigo pelo resto da noite?
Os rostos dos dois estavam próximos, e os lábios de Roier moveram-se, abrindo um sorriso.
— Eu não te faria vir até aqui só pra te deixar sozinho em um nightclub a noite inteira. Quer sair daqui pra gente jantar junto?
— Eu adoraria.
Roier acabou com a pouca distância que ainda existia entre os dois, puxando-o para um beijo. Cellbit estranhou um pouco a sensação dos longos cabelos quando suas mãos passearam pela cabeça de Roier, mas seu cheiro familiar permanecia o mesmo de sempre, e a sensação dos lábios dele nos seus era tão agradável quanto da última vez.
— Vou lá colocar minhas roupas normais pra gente poder sair. Espera aqui — Roier pediu ao se afastar, e então pegou uma mochila do camarim e entrou por uma portinha.
Cellbit foi pegar seu drink de volta para esperar, e aproximando-se do espelho, viu novamente a própria imagem: sua boca estava cheia de batom borrado. Parando para analisar tudo e percebendo que a melhor palavra para descrever o que sentia naquele momento seria felicidade em sua forma mais pura, ele concluiu que poderia se acostumar com aquilo.
Roier voltou um tempo depois, com a mochila nas costas, suas roupas normais, marcas da maquiagem ainda visíveis no rosto e o boné de proteção na cabeça.
— Vámonos, Gatinho?
Cellbit riu sozinho, não por ver graça em alguma coisa, apenas pela alegria de ter aquele homem em sua vida. É, ele definitivamente poderia se acostumar com aquilo.
Notes:
OKAY, TENHO MUITO A DIZER ENTÃO VOU TENTAR SER BREVE
- A música mencionada rapidamente quando o Cellbit chega no Casualonas é Sissy That Walk
- A música da lip sync do Roier é Parado No Bailão, escolhida por causa de quando ele foi atormentar as pessoas no Purgatório 2 como Ratoier e ficou cantando isso aí, como vocês podem assistir neste clip
E AGORA… EU ESTOU MTO MTO FELIZ DE ANUNCIAR QUE HATCHET TOWN OFICIALMENTE TEM UMA CAPA!!!
![]()
OLHA PRA ELA, É TÃO LINDA AAAAAAAAA
Eu só aprendi a colocar imagem no ao3 alguns dias atrás, e foi bem a tempo de meu incrivelmente maravilhose amigue R terminar isso pra mim!! Eu ainda tô desacreditada, não consigo parar de ficar olhando pra capa
E como referência, os visuais foram inspirados em um poster de uma mídia original de Hatchetfield
![]()
Tipo cara 🥺🥺🥺😭😭😭 ok eu tô bem eu sou muito normal sobre isso
A capa foi adicionada ao capítulo de Prólogo, mas eu quis incluir aqui pra garantir que vai ser visto. Ah, e tbm tem uma nova imagem acrescentada no capítulo 1!! É a placa da entrada da cidade dizendo “Bem-vindo a Hatchetfield”
Ok, pode continuar seu dia agora~
Chapter 26: Recém-chegada
Chapter Text
Um ônibus de viagem passou pela Ponte Nantucket, entrando em Hatchetfield. Estava cheio de turistas, a maioria da cidade vizinha, Clivesdale, ou de outras regiões próximas — crianças e adultos empolgados com o famoso Festival do Mel que estava por vir. Dentre eles, entretanto, havia uma mulher sentada na última fileira de bancos, encarando a paisagem pela janela, e ela era a única que viera de muito, muito longe, e que sequer tinha o conhecimento prévio de que haveria um festival naquela cidadezinha aleatória.
Assim que pararam na estação de ônibus, Bagi pegou sua bagagem e desceu do veículo. Diferentemente do país que ela deixara, o clima nos Estados Unidos era quente naquela época do ano, de forma que o longo casaco marrom que ela havia usado ao entrar no avião para a viagem internacional estava agora amarrado em sua cintura. Ela ajeitou o chapéu na cabeça para proteger-se um pouco do sol forte, que fazia seus olhos arderem, e então seguiu o caminho. Bagi havia conseguido um mapa da cidade quando comprou a passagem de ônibus em Clivesdale, o que lhe era muito útil no momento. Ela andou pelas ruas de Hatchetfield com a cabeça abaixada, observando os caminhos desenhados.
A última semana havia sido confusa, para dizer o mínimo, já que Bagi sentia uma névoa em sua mente ocultando todas as suas memórias anteriores ao momento em que acordara em seu apartamento alguns dias antes. Foi preciso juntar as informações disponíveis ao seu redor para entender o contexto de sua vida e, mesmo assim, ainda não entendia quase nada, e não tinha ideia do que poderia ter feito para que acabasse com amnésia. Ela apenas sabia, de alguma forma sabia que precisava ir para Hatchetfield, no Michigan, por mais que não soubesse o motivo, nem o que deveria fazer ali. Esperava encontrar as respostas que buscava sobre si mesma, afinal, aquela era a única explicação lógica para ela ter tão forte dentro de si aquele sentimento, aquela localização marcada em seu cérebro.
Bagi decidiu não se precipitar, havia muito a ser feito e ela iria atrás de tudo, mas primeiro… precisava fazer check-in em seu hotel. Ela ignorou as atrações ao seu redor, como a loja de souvenirs Starkid Gift Shop, e foi direto até a estação de trem. Comprou uma passagem, entrou no veículo e esperou, até descer no ponto mais próximo de seu destino.
Depois da caminhada guiada pelo mapa, ao chegar no endereço desejado, ela encarou o lugar em que ia se hospedar. Uma boa forma de descrever o Egg Carton Hotel era medíocre, no sentido literal da palavra: mediano, modesto — era um prédio cinza com um terraço meio vazio, e uma entradinha com algumas plantas que tentavam trazer um pouco mais de vida ao lugar. Considerando que era o hotel mais barato da região e que ela não tinha certeza de quanto tempo teria de passar lá, definitivamente valia o preço. Bagi seguiu o caminho de pedra com cercas de madeira e entrou no hotel.
Algumas pessoas passaram por ela, saindo para turistar pela cidadezinha, mas o balcão de recepção estava vazio. Bagi se aproximou, olhou para os dois lados e então apertou a campainha de mesa, cujo ding ecoou pela sala. Quem apareceu, para a sua surpresa, foi uma criança, vestida como se estivesse a caminho de um evento formal, usando até uma cartola.
— Sim? — o pequeno perguntou.
— Ah, oi. Estou procurando alguém que trabalhe aqui pra eu fazer o check-in.
— Hmmm, entendi. PAAAAAAAI! — ele berrou de repente, dando um susto em Bagi. Ninguém apareceu, então ele deu as costas à moça e caminhou até outra sala, voltando a gritar — PAAAAAAI, TEM UMA NOVA HÓSPEDE AQUI!
Enquanto Bagi esperava, duas outras crianças vieram do mesmo lugar que a primeira, e a espiaram como se não pudessem ser vistas, por mais que se escondessem muito mal. O pequeno de cabelos crespos e touca de vaca pareceu quase assustado ao vê-la, e apontou para ela antes de cochichar algo para sua amiguinha loira, que também fez cara de surpresa. Bagi não sabia como deveria reagir diante daquilo, então simplesmente desviou o olhar.
Finalmente, depois de alguns minutos, um adulto chegou. Sua chamativa aparência não era o que a mulher esperava de um funcionário de hotel, com sua cabeça inteira e parte do rosto escondidos pelo capuz de um moletom, além de uma camisa florida amarela de manga curta, esteriotípica de turista, por cima da roupa. Desastrado e apressado, ele correu para trás do balcão.
— Oi! Desculpa pela demora, o hotel está uma loucura. Coisa da alta temporada, entende.
— Sem problema.
O homem fez todo o processo de check-in, de tempos em tempos desviando o olhar do computador para olhar as crianças e gritar coisas como “POMME, DESCE DAÍ!”, “JÁ FALEI PRA NÃO CORRER AQUI DENTRO, RICHARLYSON!” e “DAPPER, PARA!”. Bagi observou, curiosa e um pouco preocupada com o bem-estar daquelas crianças.
Depois de receber a chave do seu quarto, Bagi subiu as escadas e foi deixar sua bagagem lá. Não era muito espaçoso, já que escolhera uma das menores acomodações disponíveis, mas tinha o essencial: uma cama de casal com mesa de cabeceira, guarda-roupa, televisão e uma porta que levava ao banheiro particular.
Largando as malas em um canto, a mulher caminhou até a janela. A visão dali de cima era de carros passando, pedestres conversando e prédios e comércios ocupando a paisagem. Devia ser só uma cidadezinha comum, mas algo sobre ela incomodava Bagi… Era inexplicável: assim como havia sido assolada pelo sentimento de que precisava ir para Hatchetfield, agora que estava lá, sentia que Hatchetfield escondia um enorme segredo.
Bagi se afastou da janela e olhou ao redor do quarto mais uma vez, pensando: e agora? Suas fortíssimas intuições eram vagas demais, estavam longe de lhe dar qualquer indicação concreta do que deveria fazer a seguir. Sentindo-se de repente muito cansada e parando para contemplar a situação em que se encontrava, ela se jogou na cama e encarou o teto. Objetivamente, era tudo muito assustador: estava em uma cidade desconhecida, em outro país, completamente sozinha e sem saber quem era. Bagi sentiu uma forte vontade de chorar, o que estava fazendo?
Ela respirou fundo, tentando se acalmar. Mesmo se ainda estivesse no Brasil, continuaria perdida e sozinha de qualquer forma, então fazia diferença? Nossa, aquele era um péssimo consolo. Certo, uma coisa de cada vez. Ela se levantou da cama e recuperou o chapéu que havia caído da cabeça ao se jogar no colchão, então tirou o sobretudo da cintura, o dobrou e o jogou no guarda-roupa vazio. Depois, pegou seu bloquinho de anotações na mochila, só para garantir, e decidiu caminhar pelo hotel, buscando dicas, inspiração, ou simplesmente uma distração, qualquer coisa.
Assim que fechou a porta do quarto atrás de si e se viu novamente nos corredores, Bagi acabou optando por ir ao terraço, pois talvez o ar fresco ajudasse a esclarecer as coisas. Subindo até lá, ela encontrou algumas mesas e cadeiras sem ninguém, além de dois homens que pareciam estar treinando algum tipo de arte marcial.
— Ah, foi mal — Bagi se adiantou — Não quero atrapalhar vocês aí.
— Não, não se preocupe, você pode usar o espaço também — o professor lhe garantiu, falando com uma voz suave e sotaque carregado.
— A gente usa essa área pra treinar, mas não é nada formal, somos hóspedes também — concordou o aluno em tom simpático.
Bagi deu de ombros e decidiu caminhar até a mesa mais distante dos dois, porém, distraída por seus próprios pensamentos, acabou batendo a perna em uma das cadeiras a caminho de lá.
— Ai, caralho — murmurou.
O aluno de artes marciais imediatamente direcionou sua atenção a ela, surpreso. Ele gesticulou ao outro, pedindo que esperasse, e então se aproximou dela.
— Hi, sorry. Did you just say “ai caralho”?
— Yeah?
— Are you Brazilian?!
Pergunta difícil, ele nem imaginava o quanto. Bagi achava que era, sim, brasileira, mas como saber de fato? De qualquer forma, para os propósitos daquela conversa, o melhor era responder:
— Yes, I am.
O rosto dele se iluminou.
— MEU DEUS, OUTRA BRASILEIRA! Não acredito, cara, qual a chance? Eu sou o Pac, qual o seu nome? Ah, e aliás, tudo bem aí com a sua perna?
— Tudo, tudo sim — ela respondeu, passando a mão no lugar da batida — Meu nome é Bagi. E como assim, quantos brasileiros tem por aqui?
— Eu e minha família somos um grupo de cinco, todo mundo ficando aqui no Egg Carton. Mas a gente jamais imaginaria que ia encontrar outros brasileiros por aqui!
Só então Pac pareceu se lembrar que estava fazendo outra coisa até então, e se virou para o professor de artes marciais, que vinha assistindo à conversa em português sem entender. Pac o chamou, e ele veio cumprimentar a recém-chegada.
— Oi, outra brasileira — ele disse em inglês, apertando sua mão. Então, virou-se para o outro homem — Vou deixar vocês dois conversarem, na aula que vem a gente continua da onde a gente parou, ok?
— Ah, ok. Tchau, Etoiles! — Pac se despediu e voltou a atenção à moça enquanto seu amigo se afastava e saía do terraço — Você veio pra cá com alguém?
— Não, eu vim sozinha. Na verdade, é que eu ganhei uma passagem pra Michigan em uma promoção que eu participei, daí quando ouvi falar sobre a pequena cidadezinha do mistério ilhada no lago Michigan, fiquei curiosa e decidi reservar uma estadia — Bagi usou a desculpa que já havia criado — E você? Tá aqui há quanto tempo? Vai ficar até quando?
Pac foi incapaz de esconder o nervosismo diante daquela pergunta. Ele encolheu os ombros e cruzou os braços na frente do corpo, como se tentasse se esconder.
— A gente…? Bom, na verdade o nosso caso é um pouquinho complicado, é, sabe, porque a gente já queria se… Sabe, se mudar pra cá, né, pros Estados Unidos e tudo mais, né, daí…
— Espera, vocês moram aqui? — Bagi questionou, tentando disfarçar o quanto pôde sua voraz curiosidade.
— Tipo, tipo isso! É que, bom… A gente ia se mudar de qualquer forma, certo? E aí descobrimos Hatchetfield quando…
Subitamente, a postura de Pac mudou, porém não para um comportamento menos estranho. Os braços cruzados com força na frente do tórax relaxaram aos poucos, enquanto seu rosto mudava do nervosismo para a mais pura confusão, um olhar perdido de quem tenta veementemente recordar de algo, porém vê as memórias escorregando do próprio alcance bem à sua frente — algo que Bagi entendia melhor do que a maioria das pessoas.
— Eu… Pra ser sincero, não lembro exatamente como chegamos ao consenso de que iríamos a Hatchetfield… — Pac franziu a testa, tentando forçar-se a lembrar. Então, começou a cochichar, falando consigo mesmo — A tempestade, a sensação de estar preso em um pesadelo… Terra firme, tudo era tão estranho, os panfletos sobre Hatchetfield… A viagem de ônibus até Clivesdale pra de lá atravessar a ponte que leva a Hatchetfield…
A vontade de Bagi era de pegar um gravador e enfiar na cara daquele homem no mesmo instante, ou pelo menos poder escrever tudo o que ele dizia. Precisava se lembrar de anotar em seu caderninho depois, e começou a repetir pra si mesma na própria mente tudo o que era capaz de lembrar. Pac chacoalhou a cabeça, voltando a si.
— Desculpa, qual era a pergunta?
— Eu só queria saber se você e sua família estão em Hatchetfield pra ficar ou só de passagem.
— Ah, não, é permanente, é permanente — Pac se agarrou àquilo, rindo de nervoso e colocando as mãos nos bolsos da calça — Ainda estamos nos ajustando, mas até que tá dando certo. Meu amigo Mike até abriu uma barbearia aqui no nosso quarto mesmo, deixa eu ver se ainda tenho algum cartãozinho aqui comigo…
Pac bateu nos próprios bolsos, procurando. Bagi, enquanto isso, reforçou as palavras-chave em sua mente mais uma vez: tempestade, preso em um pesadelo, panfletos sobre Hatchetfield. Enfim, Pac estalou a língua e suspirou.
— É, eu não trouxe nenhum aqui comigo. Posso ir te mostrar a barbearia, se quiser. Ah! — o rosto dele ficou vermelho — Acho que soa meio estranho um cara que acabou de te conhecer te convidar pro quarto de hotel dele, né? Ai meu Deus, me desculpa mesmo, viu, moça, eu juro que tem uma barbearia lá, pode perguntar por aí… E eu sou gay, aliás! Não tem nenhuma malícia por trás, eu juro!
— Não, tudo bem, podemos ir.
Pac virou de costas para guiá-la até o quarto, e bateu a mão na própria testa, com vergonha alheia de si mesmo. Antes de seguir aquele estranho, Bagi procurou por algo em seu alcance com que poderia se defender, caso fosse preciso, porque mesmo curiosa e confiante de que estava caminhando na direção certa para entender mais sobre si mesma, ela ainda tinha noção o suficiente de não se deixar completamente vulnerável.
Olhando ao redor, ela viu que uma das mesas do terraço havia sido largada com uma brincadeira de criança incompleta: bichinhos de pelúcia colocados em frente a pratos de plástico e copinhos de metal, prontos para um chá da tarde. As crianças tinham pegado itens reais de cozinha para acrescentar à sua historinha, e dentre eles, havia uma frigideira de metal. Perfeito. Antes de ir com o homem, Bagi correu até ali, agarrou a frigideira e tentou escondê-la debaixo da camisa, o que deu mais ou menos certo. Então, se apressou para voltar a seguir o brasileiro.
— Só, desculpa, não sei se entendi direito… — Bagi puxou o assunto ao alcançá-lo, comentando como quem não quer nada — Você disse que veio aqui com a sua família, mas é seu amigo tem uma barbearia?
— Ah, “família” é jeito de falar, sabe? Eu e meus quatro amigos nos juntamos platonicamente e adotamos uma criança, então somos todos meio que família.
Aquilo realmente parecia muito suspeito. Bagi se colocou a postos, pronta para sacar a arma improvisada se fosse necessário.
Assim que chegaram no quarto e Pac abriu a porta, Bagi tirou a frigideira de baixo da blusa e ficou em posição, pronta para atacar. O que viu do outro lado da porta, no entanto, foi exatamente o que lhe fora prometido: um homem de óculos com tinta rosa ainda molhada na cabeça, cortando os cabelos cacheados e escuros de outro homem, cujo corpo estava coberto por uma capa de cetim. Os dois observaram a entrada do quarto, confusos, e enquanto Bagi abaixava a frigideira e ajustava a postura, como se nada tivesse acontecido, uma criança passou correndo por ela e entrou no quarto — era um dos pequenos que a brasileira avistara perto do hall de entrada.
— Pai Mike, eu quero ajudar a cortar o cabelo do Pai Felps! — a criança pediu, parando ao lado do barbeiro.
— Quem é a maluca da frigideira, Pac? — o moço de cabelos cor-de-rosa indagou, despreocupado, entregando um espanador ao mais novo para que ele tirasse o excesso de cabelo cortado caído na capa de cetim, e então voltando a atenção ao seu trabalho.
— Ela é uma brasileira que chegou no hotel hoje… Bagi, qual é a da frigideira?
— Ah, bom… — ela limpou a garganta — Melhor prevenir do que remediar.
— Pac, o que você disse pra moça? — o cabeleireiro perguntou, rindo.
— Não disse nada, Mike! Bom, ahn, sinta-se à vontade — Pac anunciou timidamente, deixando a porta aberta e entrando no quarto para sentar em uma das cadeiras.
— Outra brasileira chegou na cidade? — o homem que estava tendo seu cabelo cortado questionou — Bem-vinda a Hatchetfield! Senta aí.
Hesitante, Bagi entrou. Definitivamente, a presença de uma criança e o ar descontraído a ajudaram a relaxar um pouco e a sentir-se menos desconfiada.
No fim das contas, o grupo era gentil e acolhedor: se apresentaram, fizeram algumas perguntas para conhecê-la melhor, comentaram sobre os melhores lugares a serem visitados em Hatchetfield e se colocaram à disposição caso ela precisasse de algo. Bagi decidiu não tocar muito no assunto do porquê eles estavam naquela cidade, pelo menos não por enquanto, e se contentou em conversas triviais e em observá-los em suas rotinas. O pequeno — seu nome era Richarlyson — pareceu gostar dela logo de cara, o que apenas deixou Bagi confusa, considerando que no hall de entrada, ele parecia tão desconfiado dela.
— Se você ficar entediada, tia, eu tenho umas revistinhas da Turma da Mônica, pode me falar que eu te empresto. Mas devolve depois, tá bom?
Ali, acomodada no quarto, ela conseguiu pegar seu bloquinho de anotações e discretamente anotar: tempestade, preso em um pesadelo, panfletos sobre Hatchetfield. Não podia perder o foco.
— Estão todos os brasileiros de Hatchetfield aqui? Achei que o Pac tinha dito que vocês estavam em cinco.
— Tem o Cellbit também, mas ele saiu ontem à noite com o namorado e não voltou ainda — Felps explicou.
Interessante. Bagi começou a tirar algumas conclusões: aquele grupo devia estar em Hatchetfield há algum tempo, considerando que um deles já havia criado seu próprio pequeno negócio e outro, já encontrara um namorado; ao mesmo tempo, não devia ser tanto tempo assim, afinal, ainda moravam naquele hotel.
Depois de algum tempo que Bagi estava lá, teorizando em silêncio e eventualmente interagindo com os outros, todos ouviram um som de porta abrindo — alguém entrava no quarto anexado.
— Gente? Voltei.
— Olha lá, chegou o apaixonadinho — Mike explicou, movendo a cabeça na direção da portinha que separava aqueles dois quartos.
O moço vinha entrando alegremente, mas parou ao ver Bagi, pois a presença de uma completa estranha em um espaço seu deixava-o em alerta. Pac se apressou para apresentá-los um ao outro:
— Cellbit, olha só, tem uma nova brasileira hospedada no hotel!
Bagi se levantou da cadeira e foi até ele. Os dois tinham a mesma altura, a mesma cor de olhos e, estranhamente, ela notou, o padrão de cores do cabelo dele parecia completar o seu próprio. Depois de alguns momentos em que todos simplesmente olharam para os dois em silêncio, confusos, Pac decidiu comentar, tentando quebrar a tensão:
— Nossa, que coincidência, né, os cabelos de vocês combinam, qual a chance?
— Haha, verdade, né? — Cellbit comentou, fingindo achar a coisa toda divertida, porém em sua mente, apenas conseguia pensar no quão suspeito aquilo lhe parecia.
— Haha, qual a chance? — Bagi acrescentou, escondendo o quanto ficou desconfiada daquilo. Precisaria investigar.
Os dois apertaram a mão um do outro.
— Sou a Bagi.
— Cellbit.
Richarlyson olhou de um para o outro e então concluiu:
— Eu vou ter que ir contar pra Pomme, pessoalmente eles são mais parecidos ainda!
───────•••───────
Seu primeiro dia em Hatchetfield deu a Bagi muito no que pensar. Os brasileiros certamente deviam ter alguma conexão com suas memórias, porém ela sabia que precisava ter paciência e levar as coisas aos poucos, porque o que pensariam dela, alguém que acabaram de conhecer, se descobrissem que ela perdeu todas as memórias, viajou até o outro lado do mundo simplesmente por pura intuição, e agora achava que eles tinham algo a ver com seu passado desconhecido? O grupo acharia que ela era maluca.
Então, depois de muita divagação e uma boa noite de sono, Bagi concluiu que ao invés de ficar trancada esperando as respostas caírem em seu colo, ela deveria sair e explorar a cidade. Afinal de contas, a verdade sobre sua história de vida certamente seria mais complexa do que uma explicação guardada por um simples grupo de pessoas poderia prover, ainda mais levando em conta a tamanha estranheza e possibilidade de mistérios guardados por aquela cidadezinha.
O Egg Carton Hotel oferecia café da manhã aos seus hóspedes, porém ao acordar na manhã seguinte, Bagi decidiu sair cedo, explorar Hatchetfield antes que as ruas ficassem muito lotadas de turistas. E, já que saía de casa em jejum, por onde começar seu dia se não pela cafeteria? Poderia passar o caminho todo até lá explorando.
Bagi foi andando, seguindo o mapa, e tentando notar qualquer indício mais tangível que validasse seus sentimentos sobre a estranheza da cidade. Como esperado, ela logo encontrou cartazes muito esquisitos falando sobre “desfrutar a ilha”, dos quais ela não hesitou em tomar nota. O que poderia significar aquele logo de sorrisinho? Sua desconfiança apenas aumentava…
Eventualmente, Bagi chegou ao Beanie’s, que até que parecia ser uma cafeteria agradável. Ela entrou no estabelecimento, e foi surpreendida ao ouvir música sendo cantada ao vivo, acapella. Olhando ao redor, ela entendeu: havia um pote de vidro acompanhado de uma plaquinha que dizia Dê gorjeta e ganhe uma canção, e alguém acabara de colocar uma moedinha ali.
A fila não estava grande, mas a cantoria evidentemente atrasava as coisas. Quando a coitada da barista entregou o pedido à pessoa que acabara de lhe dar a gorjeta, foi atender um grupo de três adolescentes, que fizeram seus pedidos com pressa apenas para poder colocar uma moeda de dez centavos no pote, segurando a risadinhas maldosas. A funcionária — uma plaquinha em seu avental tinha o nome Tina — suspirou fundo e cantou novamente a mesma canção, sem ânimo algum, e então, sem ninguém notar, fingiu derrubar algo no chão e se abaixou para, escondida pelo balcão, abrir os copos com os pedido dos adolescentes e cuspir em cada um deles.
As bebidas deles foram entregues e eles se afastaram rindo da moça, fazendo com que houvesse agora apenas uma pessoa na frente de Bagi na fila. Era um homem apressado que sequer levantou o olhar do celular antes de fazer seu pedido cheio de exigências, falando rápido, e só olhou para a funcionária na hora de pagar e para confirmar se a barista havia mesmo compreendido seu pedido. Enquanto a moça virava de costas para preparar o frappe, ele olhou o pote de gorjeta e achou graça, então deixou uma notinha ali dentro.
— Ei, eu te dei gorjeta — ele disse, dando uma risadinha e voltando a atenção ao celular novamente.
Tina fechou os olhos com força e precisou usar todas as forças dentro de si para ajustar o tom de sua fala antes de virar de frente para ele novamente e dizer:
— Ah, obrigada.
— E então? Você não tinha que cantar não?
Ela começou a secar as mãos suadas de nervoso no avental verde, usando aquilo como desculpa para desviar o olhar.
— Ah… Ahn, é, eu só, hm, sabe… Já que você acabou de me ouvir cantando três vezes seguidas, eu imaginei que você não ia querer ouvir de novo, haha.
Ele tirou os olhos do celular e franziu a testa em uma expressão sarcástica.
— É, não, na verdade eu quero sim ouvir de novo.
— Você… tem certeza, senhor? Sabe, tem fila, tem gente trabalhando aqui, eu não quero atrapalhar ninguém…
O homem revirou os olhos, perdendo a paciência.
— Bom, se você não quer cantar, então eu não quero dar gorjeta.
— Tudo bem, sem problemas.
A barista voltou a atenção à máquina de café para continuar o pedido. Ao perceber que sua ameaça não funcionou, o cliente sentiu-se ofendido.
— Ah, então você REALMENTE não quer o meu dinheiro, né? Tudo bem, eu vou pegar o meu UM DÓLAR de volta então.
— É direito seu, senhor.
Tina estava quase terminando o pedido, e o homem a encarou sem acreditar, com uma mão na cintura e o pé batendo no chão sem paciência.
— Então você tá falando sério? Quer saber, eu nunca mais volto aqui, essa plaquinha aí é uma mentira do caralho!
E, pisando forte, ele se afastou. Tina colocou o copo no balcão e, nervosa, se virou na direção da saída, se colocando na ponta do pé e levantando a cabeça para enxergá-lo enquanto balançava a mão para chamar sua atenção e falava alto:
— Não, senhor, por favor! Eu canto a música, eu… — mas ele já havia se afastado, e Tina foi perdendo a voz — canto a música… Bosta.
Ela passou a mão no rosto, frustrada, e jogou o frappe no lixo. Tina queria chorar, sair pela porta daquela maldita cafeteria e nunca mais voltar, jogar seu avental verde na cara da chefe dizendo “EU ME DEMITO!”, mas não tinha coragem para fazê-lo. Bagi esperou até que ela se recuperasse, e quando Tina voltou à realidade e notou que havia mais alguém na fila, ela tentou se recompor o tanto quanto pôde.
— Bom dia, senhora, desculpa pelo incômodo. Qual vai ser o seu pedido?
Bagi conferiu o cardápio rapidamente e então disse:
— Eu vou querer um… um chá gelado, por favor
— Claro.
Bagi pegou uma nota em sua carteira e silenciosamente a colocou no pote de vidro, sem querer que a moça notasse; no entanto, com o canto de olho, ela viu. Tina abriu um sorriso notavelmente forçado e raivoso, e então começou a cantar:
— Get your cup of roasted coffee--
— Ah, não, não, não, eu não quero que você cante! — Bagi a interrompeu logo de cara, e a barista parou na hora, olhando-a com expectativa — Eu só te dei gorjeta porque, sabe… É isso que as pessoas deviam fazer sempre.
— Ah! — ela deixou escapar um risinho muito aliviado — Obrigada.
A funcionária se virou para fazer o pedido, visivelmente um pouco mais relaxada. Bagi sentiu-se revoltada por ela, e decidiu vocalizar o que estava em sua mente:
— Eu acho bem injusto te obrigarem a cantar pela gorjeta. Tipo, se você tem que fazer um trabalho a mais por ela, então deixa de ser uma gorjeta, não é?
Tina respirou fundo e balançou as mãos no ar, olhando a cliente com os olhos arregalados.
— É ISSO O QUE EU SEMPRE DIGO! — exclamou, e então voltou a preparar o chá. Parecia ter muito a dizer, mas achou melhor se segurar… Não, ela precisava botar para fora — Tipo assim, a maioria das gorjetas é menos do que um dólar, o que significa que, depois de dividir entre todas as funcionárias, eu ganho menos por música do que a porra de uma jukebox.
— … Só que uma jukebox não precisa preparar café pra cuzões que nem aquele — Bagi completou.
— EXATO, OBRIGADA! Argh, eu odeio essa merda de emprego…
Tina de repente percebeu que talvez tivesse se empolgado demais, e virou para espiar a cozinha, apenas para ter certeza de que a chefe não a estava ouvindo. Ao perceber que a barra estava limpa, voltou ao assunto, desta vez contendo mais seu tom de voz.
— Sabe, quando eu comecei a trabalhar aqui, essa merda de ficar cantando não tinha sido criada ainda, era só uma cafeteria normal. Mas aí, a dona foi viajar e visitou um lugar que fazia isso, e ela achou que era uma ótima ideia, por algum motivo e… é, agora eu tô aqui.
— Menina, ninguém merece isso não, sério mesmo.
— Eu sei, mas… Eu preciso pagar minhas contas enquanto eu me viro na faculdade comunitária, e eu tô procurando outro emprego, de verdade, mas por enquanto… estou presa aqui.
E, dizendo aquilo, Tina lhe entregou o copo com chá. Bagi aceitou, não sabendo o que poderia dizer a ela, porque aquela era simplesmente uma situação muito merda. Sem mais ninguém na fila, as duas ficaram alguns segundos ali, sem falar nada, até que a barista se manifestou novamente.
— Ei, valeu por me ouvir, e por não pedir pra eu cantar e… Bom, por não ser uma cuzona.
— Que isso, eu só fiz o mínimo.
— Mesmo assim, é mais do que eu recebo da maioria das pessoas.
— Bom, eu espero que você consiga sair logo daqui.
Tina suspirou, arrumando o boné verde do uniforme.
— Eu também espero.
O sininho da porta tocou, anunciando a chegada de um novo cliente. Bagi não queria atrapalhá-la, portanto, cochichou:
— Boa sorte!
E então se virou de costas para sair da cafeteria, mas parou no meio do caminho ao ouvir Tina chamá-la.
— Espera, você não me disse o seu nome!
— É Bagi!
— Eu sou a Tina!
— Até depois então, Tina!
— Até, Bagi!
E a brasileira saiu do estabelecimento. Ali fora, observou novamente os cartazes e outdoors esquisitos, e então deu um gole em seu chá e deu uma última olhada para a cafeteria atrás de si. Não podia deixar as pessoas gentis em seu caminho distraí-la dos seus objetivos. Próxima parada: biblioteca de Hatchetfield.
Chapter 27: Drag up your life!
Notes:
Só um pequeno aviso: esse capítulo é completo fan service… pra mim mesma. Espero que você goste do aspecto drag dessa fic, porque olha, já vai se preparando. Mas eu prometo que faz sentido pro plot, e sinceramente tem muita inspiração do QSMP cannon como você logo mais verá. Ok, bom capítulo!
(See the end of the chapter for more notes.)
Chapter Text
Muitas pessoas considerariam segunda-feira à noite um dos momentos mais monótonos da semana inteira; para os Theory Bros, no entanto, era muito pelo contrário, pois suas noites de segunda eram reservadas para se encontrarem em suas reuniões semanais, em que discutiam teorias e tentavam desvendar os mistérios de Hatchetfield.
Mesmo com tanta coisa acontecendo no hotel, Bad se recusava a abrir mão do encontro, em parte porque seria a primeira vez em que todos os membros, novos e antigos, estariam reunidos, e havia muito a ser debatido, principalmente considerando que Cellbit acabara de voltar de nada menos do que uma missão de infiltração à Census of Communication, Research & Power. Dessa forma, com o horário combinado se aproximando, os três membros do grupo que moravam no Egg Carton Hotel se encontraram no hall de entrada antes de partirem para o velho sedan vermelho de Bad Boy Halo e darem início à curta viagem.
Ao chegarem no ponto de encontro de sempre, a casa de Maximus, todos já sabiam o complicado caminho que deveriam seguir para chegar à sala de reuniões, onde esperavam encontrar os dois outros membros do Theory Bros. Havia, no entanto, três pessoas esperando-os no subsolo da casa.
— Roier?!
— ¡Hola, mi gente!
Os três recém-chegados trocaram olhares surpresos, com Cellbit deixando um sorriso transparecer enquanto ia até a visita surpresa e dava-lhe um selinho antes de perguntar, animado:
— O que você tá fazendo aqui, Guapito?
Os outros dois moradores do Egg Carton não tinham saído do lugar, ainda permaneciam perto da porta.
— Max?? — Bad lançou um olhar ao dono da casa, desacreditado — A gente vai mesmo começar a aceitar um novo membro toda semana?
O espanhol, sentado em frente à mesa de reunião, levantou os braços, se rendendo.
— Foi você quem trouxe os últimos dois.
— Nah, para de chorar, Bad Boy Halo — Roier interviu — Eu não quero que o seu clubinho especial vire uma responsabilidade pra mim ou algo assim, eu só fiquei curioso pra saber o que vocês fazem aqui toda semana, e se eu achar interessante, eu talvez apareça uma vez ou outra, mas eu não sou um “novo membro”.
Bad suspirou com impaciência enquanto dava alguns passos para colocar suas coisas na mesa e fingia se organizar para não precisar olhar para ninguém diretamente.
— Sabe, houve uma época em que os Theory Bros eram um grupo secreto, e os membros não saíam por aí contando pros seus namorados os segredos do clube depois de menos de uma semana de namoro.
Cellbit, já sentado ao lado de Roier, virou as palmas da mão para cima e olhou ao redor, confuso com a acusação.
— Ei, por que você acha que eu tenho algo a ver com isso? O Roier sabe da existência dos Theory Bros há mais tempo que eu, foi o Foolish quem contou pra ele.
— Espera, Foolish, você contou pra ele?!
Foolish estava sentado na posição menos séria possível, mantendo as duas pernas da frente de sua cadeira no ar enquanto apoiava as próprias pernas na mesa e usava os braços de apoio para a cabeça. Ele tinha um pirulito na boca, e deu de ombros distraidamente, despreocupado, enquanto seu amigo lançava-lhe o olhar mais dramático possível, de saco cheio.
— Carambola, sério mesmo?! — Bad balançou as mãos no ar, indignado.
— Ok, chega, para — Maximus pediu, se levantando — Olha só, todo mundo que já se juntou a nós é, hm… como eu digo isso… son personas que merecen su lugar aquí.
Cellbit sugeriu uma tradução para o inglês, e Max agradeceu.
— Isso, exatamente. E o Roier também mereceu o lugar dele aqui, porque ele me contou uma informação importante que precisamos discutir. Roier, por favor.
Todos estavam atentos a Roier, que deu um passo a frente e projetou sua voz pela sala para revelar a notícia:
— Gente… Tem dois Quackitys.
Aquilo trouxe um imediato burburinho entre os membros. Foolish arrumou sua cadeira e se sentou direito, então tirou pirulito da boca para perguntar:
— O que caralhos isso significa? Um Quackity já não é mais do que suficiente?
Para Baghera, no entanto, a informação pareceu fazer muito sentido, como se uma lâmpada se acendesse em sua cabeça.
— AH, então isso explica o que aconteceu naquele dia em que eu tava investigando sozinha. Eu achei que o Quackity simplesmente tinha um gêmeo do mal.
— Não, eu conheço ele há anos, eu tenho certeza absoluta de que ele é filho único — Roier afirmou — E recentemente o Quackity me contou que andava teorizando que existia um clone dele tentando roubar a vida dele, então a gente criou um plano pra testar isso e ver com os nossos próprios olhos… Agora ele quer minha ajuda, mas eu não tenho certeza do que fazer, e é por isso que eu decidi vir aqui e pedir a ajuda de pessoas que são mais inteligentes do que eu. Ah, e tem o Bad Boy Halo também, eu acho.
— Oi?! — Bad ofendeu-se profundamente — Por favor, né, o Foolish claramente é o mais burrinho daqui.
— Arrombado! — o de cabelos dourados lhe respondeu, batendo as mãos na mesa e dobrando o torso para frente, pronto para uma discussão acirrada. Maximus os interrompeu, todavia, antes que pudessem começar a brigar, e falou alto o suficiente para chamar a atenção de todos presentes.
— Antes da gente falar do caso do Quackity, tem uma coisa que eu preciso resolver, uma coisa muito importante… Cellbit?
— Sim?
De pé, com as mãos apoiadas no centro da mesa e a cabeça abaixada, Max apertou os lábios antes de falar, para reunir a paciência que precisava para fazer a pergunta sem se descontrolar.
— … Você destruiu minhas evidências do quadro branco?
Todos os olhos estavam em Cellbit e a sala entrou em completo silêncio. Afinal, assim que começara a missão de resgate a Felps, os Theory Bros rapidamente notaram que muitas das informações que tinham compilado e mantinham no esconderijo haviam sumido, e Maximus vinha se segurando muito para deixar o assunto quieto até então. Cellbit precisou escolher suas palavras com cuidado.
— Não, eu não destruí nada, suas evidências estão intactas.
— … Mas?
— Não tem nenhum “mas”. Eu queria convencer vocês de que eu estava realmente trabalhando pra Federação, porque se não acreditassem, seria mais difícil de eu manter a fachada.
— Ok, então onde estão as minhas evidências agora?
— Calma! Elas estão aqui.
Devagar, ele pegou sua mochila e tirou de dentro a pasta da qual havia se apossado. Embaixo do desenho de Richas e da foto de Felps, estava a antiga lista de cidadãos suspeitos feita pelos Theory Bros meses antes, e também, para o grande alívio do dono da casa, tudo o que Cellbit havia tirado do esconderijo. Maximus deu um suspirou ao ver seus arquivos sãos e salvos, e os pegou abruptamente das mãos do amigo para checar um por um.
— Onde você deixou eles esse tempo todo??
— Bom, eu entreguei eles pro Richarlyson e…
— VOCÊ DEIXOU UMA CRIANÇA DE SETE ANOS DE IDADE TOMANDO CONTA DOS MEUS PRECIOSOS DOCUMENTOS?!
— Ele tem oito anos, na verdade.
Indignado, Maximus virou as costas para ele e foi guardar seus documentos de investigação de volta nos lugares onde ficavam originalmente, murmurando xingamentos em espanhol. Bad Boy Halo tomou as rédeas para voltarem a focar nas discussões importantes.
— Certo, então Roier, o que você ia dizendo sobre ter visto dois Quackitys?
— Nah, pendejo, agora você quer minha ajuda, né?
— Ugh, desculpa pela forma como eu reagi à sua presença mais cedo, tá? Agora pode por favor elaborar com mais detalhes o que você viu?
Cellbit se apressou para pegar seu bloquinho de anotações e registrar o relato, Maximus pegou o canetão para ir escrevendo pontos-chaves no quadro branco, e Foolish girava uma caneta entre seus dedos como uma baqueta de bateria. Roier relatou aos membros do clube toda confissão de Quackity, bem como os detalhes do plano dos dois para flagrar a duplicata.
— … E aí a gente seguiu o segundo Quackity até ele entrar na Federação.
— Foi aí que eu vi vocês dois no meio da minha investigação solo — Baghera notou, ouvindo atentamente — E logo depois do segundo Quackity entrar na CCRP, nós vimos o Cellbit saindo de lá e indo pra cabine telefônica! Cellbit, você não passou pelo Quackity em algum momento?
Ele colocou a caneta perto da boca e franziu a testa, forçando a memória.
— Eu… eu não me lembro… Algumas coisas, principalmente as que aconteceram nos últimos dias da minha missão, simplesmente sumiram da minha memória.
— Espera, você disse que o Cellbit foi pra uma cabine telefônica?— Bad perguntou — Que dia foi isso?
Todos pensaram por um momento.
— Na primeira semana de junho, eu acho? Foi a primeira semana de férias do Bobby — Roier foi relembrando.
— Ah, esse com certeza foi o momento que o Cellbit me ligou, logo antes de ser abduzido pela Federação. Então você tá me dizendo que uma duplicata do Quackity, que tá tentando tomar o lugar dele, estava na Federação no dia em que o Cellbit foi sequestrado? Ai, Deus, como essas coisas se conectam?
Maximus olhou para as anotações que havia feito na lousa branca, a partir das quais foi formulando seus pensamentos.
— Precisamos pensar em um jeito de investigar a Federação sem deixar eles saberem que os estamos investigando, mas a gente está mais exposto do que nunca depois do que o Cellbit fez, trabalhando lá e tudo o mais… Não tô dizendo isso pra te criticar, mas é um fato.
— Bom, acho que eu sei o que dá pra fazer — Foolish se manifestou — Logo mais vai rolar o Festival do Mel, daqui a alguns dias… E como já sabemos, a Federação é o principal patrocinador e organizador do evento. Vai ter um montão de gente lá, vai ser fácil pra gente investigar sem ser notado.
Maximus voltou a encarar a lousa, pensativo.
— É, eu tentei investigar o festival no ano passado, quando não tinha bem um “Theory Bros”, era só eu sozinho… Eu não encontrei nada lá, mas até aí, eu também não tinha tanto conhecimento quanto eu tenho agora…
— Essa é uma ideia interessante! — Baghera opinou — A gente tá em um grupo grande, mas ninguém vai se importar se a gente estiver no meio da multidão do maior festival da cidade, e a Federação nem vai prestar atenção em nós.
Foolish continuou:
— É isso que eu tô dizendo! Aposto que tem muito a ser feito lá, por mais que eu não saiba como o festival pode nos ajudar a entender o que tá acontecendo com o Quackity e o clone dele… Talvez se ele deixar de ir ao festival de propósito…
— Mas aí quem é que ia querer ficar fazendo companhia pra ele? — Roier questionou — Todo mundo vai estar no Festival do Mel, e provavelmente não é seguro isolar ele assim.
— Ok, mas de qualquer forma eu acho que todos nós concordamos que deveríamos ir ao Festival do Mel disfarçados? — Bad perguntou.
Todos concordaram, unanimemente. Posto aquilo, o dono do hotel trouxe mais um ponto.
— Certo, agora só precisamos pensar em como vamos nos disfarçar,
— Turistas, de novo? — Foolish sugeriu.
Maxo negou na hora.
— Não, a gente já fez isso recentemente, é muito arriscado repetir. Além disso, o Cellbit é muito facilmente reconhecível com esse gozo no cabelo.
— Para de dizer isso! — Cellbit pediu, mesmo que entre risadas, e passou a mão nos cabelos para arrumá-los.
Enquanto todos ponderavam sobre possíveis disfarces, Roier já havia pensado em algo no momento em que foi mencionada a ideia. Depois de hesitar por alguns instantes, ele decidiu finalmente falar:
— Gente… ok, eu tive essa ideia meio maluca…
O grupo inteiro estava prestando atenção. Sem conseguir conter um sorrisinho, Roier olhou Maximus nos olhos:
— Mano, disfarces? No Festival do Mel? Tú sabes lo que pensé.
Era evidente que os dois sabiam de algo a que os demais estavam alheios. Maximus, mesmo entendo logo de cara, parecia receoso quanto à ideia.
— Roier, estás loco.
— Loco, crazy? — Foolish traduziu com incerteza — Por que, no que vocês pensaram?
Roier mudou a posição em que estava sentado, agitado pela empolgação:
— Existe sim um jeito de deixar vocês todos irreconhecíveis e fazer com que se misturem bem no ambiente do Festival do Mel. Bom, de certa forma.
— No sé si es una buena idea… — Maximus lhe disse, por mais que sua postura corporal indicasse que estava começando a considerar aquilo.
— ¿Por qué no? Do jeito que você falou, foi impossível não pensar nisso…
— Só falem logo pra gente! — Baghera pediu. Roier tomou a liberdade de explicar:
— Bom, você e o Cellbit não vão saber disso, mas os outros vão. O Festival do Mel oferece muitos tipos de entretenimento pros turistas e pra população, e dentre eles tem muitos eventos, como por exemplo… — seu sorriso aumentou e Roier levantou os braços dramaticamente para fazer uma pose — Um show de drags!
Max olhou para todos cheio de expectativa, sem ter ideia de como eles iam reagir. Foolish foi o primeiro a falar:
— Espera, você acha que a gente se montar de drag é uma boa ideia de disfarce?
Roier foi defender sua ideia:
— Como eu disse, vocês não vão ser reconhecidos e ninguém vai achar estranho, porque vão ter várias artistas drag lá. Mas isso é só se vocês toparem, e eu entendo se preferirem pensar em outra coisa.
— Mas e eu? — Baghera perguntou — Eu ia me disfarçar do quê?
— Ah, você não quer se montar de drag?
— Não é isso, é só que… — ela apontou para si mesma — Tipo, eu como mulher posso fazer isso? E mesmo se fizesse, ia dar alguma diferença significativa na minha aparência?
Roier ficou feliz em explicar.
— Claro que você pode se montar também! Drag não é “se vestir de mulher”, ou pelo menos, não precisa ser. Eu definiria mais como um exagero da performance de gênero, como uma forma de brincar com o conceito de gênero da forma que quiser, e encontrar confiança em si mesmo. E saiba que eu tenho várias amigas que são mulheres e que fazem drag, porque pessoas de qualquer gênero podem fazer! Eu garanto, é super possível te deixar irreconhecível.
— Bom, nesse caso, então sim! Eu adoraria me vestir de drag! — Baghera se empolgou rapidamente.
— Ok, mas e quanto aos outros?
— Ahn… Claro, por que não? — Foolish deu de ombros e mordeu o pirulito em suas mãos para mastigá-lo.
— É, eu não me importo de deixar o Roier me maquiar — Cellbit decidiu, olhando para ele e então para os outros e assentindo com a cabeça.
— Hmm… Esse plano poderia funcionar… — Bad divagou.
Roier olhou para o único que ainda não havia se manifestado, e Maximus suspirou.
— Ok, Roier, você venceu.
O mexicano bateu palminhas.
— Ah, eu tô tão empolgado pra isso! — exclamou, com um enorme sorriso.
───────•••───────
Os dias seguintes passaram voaram, e os Theory Bros mantiveram-se ocupados. Cellbit, pessoalmente, estava ajudando Pac e Mike, porque os dois queriam aproveitar o Festival do Mel para conseguirem dinheiro extra e, ao mesmo tempo, trazerem um pouquinho do Brasil para Hatchetfield — para isso, abririam a própria barraca no festival, ofertando comidas típicas brasileiras e brincadeiras, tudo inspirado na estética da Festa Junina. Os brasileiros passaram dias preparando tudo, até que finalmente chegou o dia.
— Vai ajudar a gente na barraca, Cellbo? — Pac perguntou no sábado. Ele e Mike estavam vestidos com camisas xadrez e chapéus de palha, com bigodinhos falsos e monocelhas desenhados com canetinha. Cellbit, no entanto, precisou responder:
— Foi mal, moços, mas não vou poder. Tenho uma Reunião de Churrasco importante hoje.
— Você não precisa do churrasco ruim desses gringos não, fi, a gente vai ter churrasquinho no palito na nossa barraca — Mike notou, levantando a grande caixa térmica que segurava.
— Eu sei, mas… Foi mal, gente, é que é importante.
— Tá bom, né, fazer o que — Pac deu de ombros, um pouco decepcionado — Mas vocês pelo menos vão dar uma passadinha no festival?
— Acho improvável.
A dupla claramente o julgou, mas seguiu na organização para que os dois conseguissem levar tudo o que precisavam até o local do festival. Todos os brasileiros — menos Cellbit — saíram juntos, por mais que Felps não fosse ficar na Barraca Junina, porque seria o responsável por cuidar de Richarlyson naquele dia, e curtiria o festival com o pequeno.
Pouco depois da saída deles, Bad bateu na porta do quarto dos brasileiros: estava na hora dos Theory Bros se prepararem.
Baghera, Bad e Cellbit chegaram às portas do fundo da Las Casualonas mais ou menos ao mesmo tempo que Max, Foolish e Roier; todos foram pontuais dessa vez. Com todos presentes, Roier estendeu a mão para Foolish, que lhe entregou a chave que mantinha no pescoço com um cordão, e as grandes portas foram destrancadas e abertas dramaticamente.
— ¡Vamonos, gente!
Os Theory Bros o seguiram para dentro, e Baghera, a única que nunca havia passado por ali antes, observou empolgada as perucas, maquiagens, espumas de enchimento, saltos e roupas brilhosas; ela tinha passado os últimos dias estudando a estética e cultura drag para se preparar para aquele exato momento, então estava achando muito legal ver tudo aquilo de perto. Mesmo que os outros já tivessem visto aquela área, mesmo eles ficaram surpresos pela presença de uma cadeira giratória no meio do cômodo, de costas para eles, a qual foi girada por quem sentava nela para revelar:
— Olá, queridos — o dono do estabelecimento os cumprimentou, alegremente.
— VEGETTA! — Foolish animou-se.
— Bem-vindos ao camarim da Las Casualonas! Siéntanse como en casa.
Roier foi até o lado dele e apoiou o braço no encosto da cadeira.
— Esse é um grande grupo, eu precisei pedir ajuda porque se não a gente nunca ia ficar pronto a tempo. Vamos, mãos à obra! ¿Ya tienen ideas, gente?
— Ahn, mais ou menos… — Foolish respondeu — Sei lá, eu pensei em talvez usar uma roupa dourada…?
— Aham, aham! — Roier assentiu, empolgado, encorajando-o.
— Tipo algum vestido dourado, e talvez a gente possa usar glitter.
— Aham, ok! Ok, vamos trabalhar ao redor disso. Vegetta, muéstrale las ropas mientras hablo con los demás.
— ¡Pues claro!
Vegetta ofereceu a mão para Foolish, que aceitou e deixou-se ser guiado. Roier encarou os outros.
— Eu também sei o que eu quero! — Baghera já se adiantou — Eu quero uma roupa colorida, uma maquiagem bem drag e cabelo vibrante!
— Ooh, eu gosto disso! Certo, segue o Vegetta e vê com ele quais são as nossas opções — Roier disse, e enquanto Baghera fazia como lhe foi instruído, ele continuou — E você, Bad Boy Halo?
— Posso usar jeans?
— ¡Ah, no mames, pendejo! — Roier jogou os braços ao alto — Jeans? Sério mesmo?
— Eu acho confortável, ok?!
— E pra parte de cima?
— Eu pensei em um moletom rosa.
— Você vai continuar com a mesma cara, estúpido, o motivo pra gente estar fazendo tudo isso é justamente pra te deixar diferente!
— Não se preocupa, eu sei o que eu tô fazendo. Eu tenho um plano.
Roier não ficou satisfeito.
— Tá, né. Vai lá ver como o Vegetta pode te ajudar.
Ele seguiu os outros e Roier olhou para o próximo na fila:
— Maximus?
— Voy a hacerlo, Roier. Volveré con Valentina.
Aquelas palavras fizeram o mexicano abrir um enorme sorriso empolgado.
— ¡Eso, Maximus, eso!
— Ya vengo — disse Maximus, seguindo por um caminho diferente dos outros, por mais que parecesse saber o que estava fazendo. Cellbit o observou até ele desaparecer de vista.
— Valentina?
— Ya te explico. ¿Pero tienes ideas para ti, Gatinho?
— Nada específico, na verdade. Só sei que preferiria roupas escuras.
— Claro, claro — Roier deu alguns passos para frente, chegando bem próximo do outro homem e colocando seus braços ao redor do pescoço dele — Eres emo.
— Callate — Cellbit disse em uma risadinha.
— Venga, voy ayudarte — falou, segurando-lhe a mão e levando-o.
Enquanto isso, no banheiro, Maximus se apoiou na pia de cabeça baixa, levantando o olhar para o espelho logo em seguida. Encarou a própria imagem por alguns segundos, muito sério e pensativo, antes de tirar os óculos escuros e recuperar de dentro do bolso o barbeador elétrico que trouxera.
Roier, no outro cômodo, tinha levado Cellbit até uma sala apertada, cheia de araras de roupa. Lá dentro, Foolish segurava um vestido dourado em um cabide e procurava sapatos, enquanto Bad reclamava.
— Esse aqui é o único moletom que vocês têm?
Vegetta pensou um pouco antes de responder:
— É.
— … Tá bom. Você tem uma mochila ou algo assim?
Foolish cutucou o namorado para mostrar-lhe um par de sapatos que havia pegado.
— ¿Estes zapatos?
— Muy altos para ti, mi amor. No sé si podrás caminar con estos tacones.
— Tacones?
— Esse salto aí é bem alto, Foolish — Roier traduziu, entrando na salinha apertada — Você já andou de salto antes?
— Não…
— Então você precisa escolher direito. Coloca esse daí e vê se você consegue andar com ele.
— Oh…
Foolish sentou-se em um velho puff no canto e começou a tirar os sapatos. Perto dele, Baghera parecia muito concentrada decidindo como construir seu look, e Cellbit procurava dentre as roupas da arara algo que lhe agradasse.
— Que tal essa, Guapito?
— Tienes que ver si esto te queda bien. Hay un probador de ropa a la izquierda.
Cellbit entrou no provador enquanto Vegetta ajudava Foolish com o fecho do sapato e, uma vez calçado, ele ofereceu a mão ao namorado para dar-lhe apoio enquanto ele se colocava de pé. As pernas de Foolish tremeram um pouco e Roier riu.
— Tenta andar!
Foolish segurava firme na mão de Vegetta. Quando foi dar um passo, parecia um astronauta andando na lua, e Bad desviou a atenção de sua procura para assistir à cena e rir, o que fez Foolish perder a paciencia na hora.
— Tenta você andar com isso, filho da puta!
— Por que tá tão bravo, Foolish? — ele respondeu com humor.
— Mira, Foolish — interveio Roier — Eu vou te mostrar como se faz.
Roier buscou entre os sapatos enquanto Foolish, com cuidado e ajuda, sentava-se de volta. O mexicano encontrou o par com saltos igualmente altos aos escolhidos pelo amigo, e rapidamente calçou-os, com a casualidade de quem está acostumado a precisar se preparar rapidamente para uma apresentação. Com os sapatos no pé, ele andou sem dificuldade até o meio da sala e, encarnando Melissa, desfilou graciosamente, fazendo Baghera aplaudir.
— Ah, mas você faz parecer fácil — Foolish reclamou.
— Mas é justamente isso que eu tô falando, pendejo, o salto que você pegou é alto demais pra alguém sem experiência.
— Tá bom, eu vou provar outro.
— Olha, olha, Foolish — chamou-o Vegetta — Esse aqui vai combinar com a sua roupa.
— Mas é prateado, eu queria dorado.
— Sim, mas prova.
Somente para agradá-lo, Foolish fez o que ele pediu. Cellbit, enquanto isso, saiu do provador com suas roupas normais, e se aproximou de Roier, falando baixo o suficiente para que apenas ele o ouvisse:
— Essa não ficou boa.
Então, voltou para a arara, e Roier se virou para tentar ajudá-lo a encontrar alguma coisa. Os dois acharam uma roupa que lhe interessou a tempo de Foolish ficar de pé com o novo sapato e dar alguns passos enquanto o brasileiro voltava para o provador.
— Esse é um pouco mais confortável — Foolish admitiu, olhando para os próprios pés.
— Tá vendo? — disse Roier — E você consegue andar com eles?
— Sim, eu não sinto mais que eu vou cair.
— Mesmo assim a gente vai ter que trabalhar na sua caminhada, você parece a porra de um alien.
— Ei!
— Esse vai ser o sapato?
— Eu não sei, ele vai combinar com o vestido?
— Não se preocupa, meu bem — Vegetta falou — Eu tenho uma ideia pro seu look. Confia em mim.
— Ahhn, se você diz… Confío en tú. Digo, en ti.
Alguns minutos se passaram, todos separando aquilo que iriam usar para seus disfarces, até que Cellbit finalmente abriu uma fresta das cortinas do provador e colocou somente sua cabeça para fora.
— Guapito! — ele chamou, e Roier se aproximou — Essa aqui parece boa, mas é meio decotada.
— No te preocupas, é pra ficar assim mesmo. Depois de colocar enchimento, vai ficar certinho.
— Ah, ok.
Ele recolocou suas roupas de antes e saiu do provador com o figurino do disfarce na mão. Ainda estava pegando mais alguns acessórios que acrescentaria ao seu visual, mas Bad e Foolish já tinham escolhido tudo, e saíram da salinha acompanhados de Vegetta.
Cellbit não demorou até se dar por satisfeito, e virou para Roier segurando tudo o que havia escolhido.
— Muy bonito — ele aprovou — ¿Entonces estás listo para el maquillaje?
— Acho que sim.
— Baghera, e você? — ele virou a cabeça para encarar a suíça, que analisava tudo o que tinha pegado, pensando qual dentre as roupas selecionadas por ela seria de fato usada na construção de seu look final.
— Tem tantas boas opções, é difícil escolher…
— Se for o caso, você pode deixar pra decidir depois de ver o resultado da maquiagem.
Ela deu uma última olhada nas roupas, pensativa, e então disse:
— Hm… Tá bom, vamos lá.
E saiu da salinha com os braços cheio de roupa.
De volta à parte principal do camarim, Vegetta testava diferentes bases em Foolish para achar seu tom certo, Bad sentava-se em um canto segurando as roupas que escolhera e Maximus, recém-barbeado, mexia em uma espécie de caixa de madeira, de onde tirou uma peruca castanha comprida guardada em um saquinho plástico.
— Vocês já escolheram suas perucas? — ele perguntou, ainda agachado em frente à caixa.
— É, o Vegetta disse que pensou em uma boa pra mim — Foolish respondeu, sentado em uma das cadeiras em frente aos espelhos enquanto assistia ao namorado testando a maquiagem nele.
— Eu não acho que eu precise de peruca — disse Bad.
— O quê? Por que não?
Bad abaixou seu capuz pela primeira vez desde que qualquer um dos presentes se lembrasse. Seu cabelo estava preso, mas ao soltá-lo, ele revelou longos e sedosos fios loiros.
— Acho que dá pra gente trabalhar com isso, né?
— Com certeza.
Enquanto Bad ia para frente do espelho e testava diferentes formas de arrumar seus longos cabelos, Roier colocou Cellbit sentado perto de Foolish.
— Puta madre, tu barba — ele bateu a mão na própria testa ao perceber o que precisava ser feito e, dramaticamente, fez uma falsa voz chorosa — ¡No mames, ya no vas a tener más barba el Gatinho!
— Não se preocupa, cresce rápido.
— ¡Pero tu mentón se vá a quedar desnudo por algunos días! — Roier continuou o drama, passando as mãos no rosto do seu querido, o que fez Cellbit dar uma risadinha.
Ao lado deles, Vegetta inclinava-se para maquear o namorado, seu rosto mostrando concentração e foco diante do canvas que era o rosto de Foolish. O espanhol parou seu trabalho por um momento e levantou a cabeça.
— Maximus — ele chamou, com uma mão segurando a franja de Foolish fora da testa e a outra agarrada a um pincel — ¿Puedes encargarte de el maquillaje de Baghera? Estoy con Foolish y creo que Roier vá maquillar a su novio y Bad está ocupado con su pelo.
— Vale. Baghera, eu posso fazer sua maquiagem, você já sabe o que quer?
— Uou, uou! — a mulher se encolheu, abraçando as roupas que havia escolhido — Você vai fazer minha maquiagem?
Maximus suspirou.
— Eu não sou o melhor nisso, mas eu sei o básico por causa de quando eu performava nas Casualonas.
Bad, na frente do espelho, já começando a dividir as mechas do prórpio cabelo para começar seu penteado, se virou para o amigo, confuso
— Espera, você fazia drag?! Eu te conheço há anos, como eu nunca soube disso?
— Faz anos que eu parei. Bom, eu ainda fazia quando te conheci, mas é.
Bad lhe lançou um último olhar chocado antes de se virar de volta para o espelho. Baghera sentou em uma terceira cadeira perto dos outros, enquanto Maximus buscava o que precisava em uma grande maleta de maquiagem. Roier ligou o barbeador elétrico e inclinou-se perto do rosto de Cellbit para usá-lo.
Vegetta delicadamente moveu a cabeça de Foolish, deixando-o de queixo erguido para checar se estava fazendo um bom trabalho. Em seguida, com o pincel, passou mais base ali.
— Sem barba — explicou — Se eu não tomar cuidado, a maquiagem vai fazer parecer que você tem uma barba.
— Ah, ok.
Enquanto ele lutava com a base e o corretivo, Maximus pegava um tubo de cola bastão do meio das maquiagens.
— Isso aí pra quê? — Baghera questionou, confusa.
— Isso vai fazer com que seja mais fácil esconder suas, ehh… cejas — Maximus explicou, apontando a parte a qual se referia.
— Minhas sobrancelhas?
— Isso. A gente faz isso pra pintar outra sobrancelha por cima.
Seguiram-se alguns momentos de silêncio, quebrado apenas pelo som da máquina de barbear, pois os profissionais estavam concentrados em seus trabalhos. Roier, terminando de raspar a barba de Cellbit, continuou seu drama, “¡Mirenlo!”, e abraçou a cabeça dele, com mais de seu escandaloso choro propositalmente falso. O brasileiro deu uma risadinha, Deus, como gostava daquele homem.
Ao fim de sua pequena novela mexicana, Roier voltou seu foco para a maleta de maquiagem, olhando-a, pensativo. Enfim, pareceu decidir o que queria e virou-se para começar o trabalho no rosto de Cellbit.
Houve mais momentos de silêncio concentrado, nada além dos pinceis e esponjas de maquiagem contra as peles. Vegetta formulou alguns pensamentos, lutando um pouco para vocalizá-los em inglês.
— O rosto do Foolish é díficil de maquiar. É um desafio, mas é divertido.
— Espera lá! — Foolish riu, nervoso e indignado — É sério? Isso parece um insulto.
— Não! Tipo — Vegetta riu também, envergonhado, parando um pouco com a maquiagem e deixando sua testa encostar no ombro de Foolish para se esconder — Desculpa, desculpa!
Os dois se recuperaram da situação e Vegetta tentou se explicar.
— É que o seu rosto é bem diferente do meu. O jeito como eu coloco maquiagem em mim é diferente, entendeu? Eu preciso ficar parando pra pensar um pouco mais antes de fazer qualquer coisa, não posso só sair pintando de qualquer jeito o seu lindo, lindíssimo rosto.
— Aham, sei… — Foolish soava cético, mas sorria.
— Não se preocupa, mi amor, eres el hombre más guapo del mundo.
— “O homem mais bonito do mundo”?
— Exactamente.
Foolish acreditou nas palavras de Vegetta, principalmente quando ganhou um beijo dele no final.
Maximus, tirado de seus devaneios pela conversa, decidiu checar a hora, e percebeu que precisariam se apressar — ele e Bad Boy Halo estavam ficando atrasados em relação aos outros Theory Bros. Ele avisou Roier e Vegetta, que concordaram e se esforçaram para acelerar o processo, mesmo entre reclamações dos que eram maquiados sobre a aflição do lápis, rímel e delineador passando perto dos olhos.
Com as maquiagens dos três prontas, chegou a hora de Baghera, Foolish e Cellbit se trocarem, enquanto Maximus começava a pintar o próprio rosto e Vegetta ia cuidar de Bad. Roier também precisava começar a se arrumar, mas foi ajudar os outros com as espumas de enchimento para moldarem a silhueta, e encontrou espartilhos que não fossem machucá-los.
Quando isso já estava resolvido, Roier os ajudou a vestirem as roupas escolhidas. Baghera precisou fazer a decisão final sobre como montaria seu look, e Foolish e Cellbit precisaram pedir para o mexicano fechar zíperes a arrumar o tecido do que vestiam.
Finalmente, a tempo de Max e Bad já estarem maquiados, chegou a hora dos outros três colocarem as perucas. Todos se ajudavam, e quando Roier mexeu nos cabelos de Cellbit para colocar uma wig cap, foi atingido por memórias, que fizeram-no sorrir.
— Eu cheguei a te contar sobre como eu comecei a fazer drag? — perguntou, seu rosto bem próximo ao de seu amado, garantindo que escondia o cabelo dele por completo.
— Não, acho que não.
— Então… No meu último ano do ensino médio, meus planos eram me mudar pra outra cidade pra fazer faculdade, cursar psicologia. Mas aí, eu acabei perdendo minha bolsa de estudos que tinha conseguido pra universidade que eu queria, e eu fiquei… — ele suspirou — Cara, eu fiquei devastado. Eu não tinha como pagar uma faculdade integralmente. Mas, bom, quando o Vegetta viu como eu tava triste, ele me falou pra passar uns dias na casa dele, pra ele me fazer companhia e me animar. Quando Vegetta precisou passar na Las Casualonas no fim de semana à noite, eu fui com ele, e foi assim que eu vi uma performance drag pela primeira vez… Parecia tão divertido! Um dos artistas àquela noite era o Maximus, inclusive, a Valentina jamais será esquecida.
A última parte da frase foi dita mais alta, para que o amigo ouvisse. Max, que estava atrás de um biombo divisor de ambientes, respondeu:
— Você está prestes a ver ela de novo hoje.
— E eu tô tão ansioso pra ver isso! Enfim, mas é, depois disso, eu conversei com o Vegetta e disse que queria tentar fazer aquilo, ver como é performar. Ele me disse que desde que eu prometesse que não ia beber, porque tinha menos de vinte e um anos, e desde que eu não fizesse nada idiota desse tipo, ele me ajudaria a me vestir de drag. Eu prometi, e ele cumpriu a parte dele. Isso faz dele minha mãe drag, é assim que a gente chama. Eu fico tão triste que ele já tinha parado de se montar a essa altura, ele parou antes de eu ter uma chance de ver por mim mesmo, só vi fotos. ¡Oye, Vegetta! Dejastes de hacer drag antes que yo pudiera verlo, ¿sí?
O espanhol ajudava seu namorado em algum lugar da sala, a alguns metros deles.
— Sim, já faz anos que não faço isso. Hoje em dia meu foco é em ser dono da Las Casualonas, não performar, sabe?
— Posso ver uma foto? Você nunca me mostrou — eles ouviram a voz de Foolish pedindo.
— Te muestro después, mi amor.
Roier continuou:
— Fazer drag foi muito bom pra mim. Ainda é. A Melissa é a forma que eu achei de me expressar artisticamente. E fazer arte me deixa muito realizado, sem contar que me ajudou a ver as coisas por uma perspectiva diferente depois que os meus planos anteriores não eram mais possíveis. Fez eu me lembrar que a vida continua independentemente, e que tudo ainda pode dar certo no final, mesmo se as coisas não acontecem do jeito como você imaginava. E eu sou grato por ter ficado perto da minha família e amigos.
Definitivamente, o único motivo pelo qual Cellbit estava fazendo aquilo tudo era em prol da investigação, por mais interessante que fosse entender um pouco da realidade de Roier, e compartilhar com ele algo de que o mais novo claramente gostava tanto. Mesmo assim, a história não deixava de aquecer seu coração, e Cellbit podia se identificar com aspectos dela, mesmo que fosse tão diferente do curso de sua própria vida.
Não deu tempo da conversa entre os dois se estender muito, porque logo, performers regulares das Casualonas começaram a chegar para se arrumar para o evento — afinal de contas, o motivo pelo qual estavam se montando era justamente porque o Festival do Mel contava com muitos números de artistas drag, o que tornava aquele o disfarce perfeito.
Quando finalmente todos os Theory Bros ficaram prontos, Roier e Vegetta exigiram um pequeno desfile para ver o resultado final dos disfarces. Os dois foram até a área principal do Nightclub, e sentaram o mais próximo do palco que podiam.
— Bem-vindos a Las Casualonas! — Roier projetou sua voz pelo ambiente, falando em um tom exagerado como um narrador — Senhoras e senhores, preparem-se para o melhor desfile drag que o mundo já viu. A categoria é: Theory Girls! Primeiramente, vocês o conhecem como Bad Boy Halo… Digam olá para Barbie Girl Halo!
Ao ouvir seu nome sendo chamado, ele foi até o palco. Bad usava um moletom cor-de-rosa estilo cropped, calça jeans, bota rosa com uma pequena plataforma e uma mochila da My Melody para ainda poder carregar seus materiais de investigação. Seu longo cabelo loiro estava dividido em dois e trançado com flores, mas ele não havia aberto mão do capuz.
— Você vai cantar música da Barbie Girl? — Roier indagou, de bom humor.
— Só se você me pagar.
— Eu pago! — Vegetta disse no mesmo instante, levantando a mão.
— Não.
E então desceu do palco para sentar-se perto deles. Roier continuou sua narração:
— Próximo: vocês o conhecem como Foolish… Digam olá para La Reyna!
Ele passou pelas cortinas e pisou no palco. Foolish estava banhado em glitter, com um vestido dourado longo, luvas prateadas que iam até seu cotovelo e sapatos da mesma cor. Sua peruca era loira platinada com ondas, indo até abaixo dos ombros, e alguns acessórios combinados a várias pedrinhas brilhosas espalhadas por todo o seu look finalizavam bem o visual.
— Eu me sinto como uma estatueta do Oscar da vida real.
— Você está fabuloso, mi amor! — Vegetta elogiou, fazendo-no sorrir antes de descer do palco.
— E o próximo — Roier continuou — Vocês o conhecem como Cellbit, ay, Gatinho! Digam olá para Selma!
Cellbit surgiu no palco. Estava com um vestido cor de vinho, bem curto, porém tinha uma blusa branca de manga comprida e gola alta por baixo dele, além de uma meia-calça preta-transparente e sapato aveludado preto. Sua peruca castanha era longa e ondulada, enfeitada com uma tiarinha que só estava ali pelo valor estético, porque não estava impedindo os fios de irem parar em seu rosto.
— Menina gostosa — Roier disse em português, colocando-se de pé e o abraçando de lado — Parabéns, você me fez virar hétero.
Entre risos, Cellbit beijou a bochecha dele.
— Você tá me fazendo perder o foco, ai — Roier falou, antes de limpar a garganta e continuar sua narração, ainda nos braços do brasileiro — Enfim, eh, próxima: vocês a conhecem como Baghera… Digam olá para Catty Fuckmachine!
Baghera foi aos holofotes. Sua maquiagem era a mais colorida até então, com blush amarelado combinando com a cor da sombra de olho. Ela vestia uma camisa amarela de manga curta por baixo de um macacão roxo-claro, tudo acompanhado de diversos acessórios coloridos, incluindo tantas pulseiras que elas ocupavam metade do seu antebraço. A peruca que usava era curta, repicada, com uma franja de lado, em um tom de lilás quase rosa.
— Isso é divertido — ela anunciou, toda sorrisos, descendo do palco com as mãos no bolso.
Roier havia sentado novamente, mas fizera Cellbit sentar ao seu lado, e segurava a mão dele.
— E agora: vocês o conhecem como Maximus, mas eu pessoalmente estou muito animado de vê-lo de volta como… Valentina!
Ele pisou na passarela, irreconhecível. Maximus usava um maiozinho que imitava a roupa da Mulher Maravilha, com meia-calças que mal podiam ser notadas de longe, por serem do tom da sua pele, e botas vermelhas de cano alto. Além da longa peruca castanha lisa, a tiara dourada que imitava o acessório da super heroína e um cintinho com uma imitação de laço da verdade, ele também tinha colocado lentes de contato de um azul quase assustador.
— Eu encontrei algumas coisas minhas de quando eu fazia drag em uma caixa pegando pó no armário. Decidi usar o que tinha ali, por que não?
E assim, ali estavam eles: os membros dos Theory Bros reunidos, disfarçados e pronto para um dia de investigações sem o mínimo risco de serem reconhecidos. Roier juntou suas mãos, olhando para o grupo com orgulho.
— Agora é minha vez de me montar. Espero que estejam prontos, pendejos: é hora do Festival do Mel!
Notes:
Eu mal consigo expressar o tanto que eu amo esse capítulo. Eu tive essa ideia já faz um tempo e eu mal podia esperar pra descobrir em que parte da timeline de Hatchet Town ela se encaixava, porque reler ela era sempre um escapismo confortável pra mim.
Todos os nomes de drag deles têm um motivo pra terem sido escolhidos — assim como o conceito de muitos desses personagens se montarem não veio do nada, e é só uma versão mais polida e direta de ideias que foram plantadas no QSMP cannon.
- A Barbie Boy Halo eu imagino que nem precisa de explicação;
- No caso do Maximus, ele uma vez entrou no servidor vestido de Mulher Maravilha e se chamou de Valentina, antes de revelar que era só ele mesmo vestindo uma fantasia (uma coisa meio Melissa da vida, na minha opinião, só que no caso dele não se tornou frequente);
- O nome do Cellbit veio de um clipe que eu não tô achando de jeito nenhum, mas é de uma vez que o Roier tinha usado um filtro tipo FaceApp numa foto do Cellbit e fez ele ficar com aparência feminina, e aí chamaram ela de Selma;
- O do Foolish eu forcei a barra só um pouquinho, mas o dele é o nome que ele deu pra uma das Capivaras que apareceu pra ele quando ele foi oficialmente declarado KOC (e eu tenho quase certeza de que essa era a capi controlada pela ADM da Leo). Além disso, significa “Rainha” (ou QUEEN, veja bem) em espanhol, então eu achei que combinou;
- O da Baghera tem o sobrenome (imagino eu) autoexplicativo, Fuckmachine, e Catty é só porque o nome “Baghera” significa algo como pantera, que não deixa de ser um gato grande.E antes de você sair do capítulo, eu preciso também dizer que o título foi inspirado pela música/performance que começa nos 2:15 desse vídeo aqui: Drag Up Your Life, simplesmente só porque quando eu tava escrevendo o capítulo ela ficava grudando na minha cabeça o tempo todo, e um dia eu percebi que as personagens desse girl group imaginário meio se que encaixam muito bem nos Theory Bros? Pode ser loucura minha também, até porque eu acabei de anunciar de uma vez que eu sou mega fã de Rupaul’s Drag Race, se é que já não tava óbvio… Olha, eu faço o que eu posso pra encaixar em Hatchet Town tudo com o que eu sou obcecada, ok? Não é culpa minha que tudo combina tanto com o cannon — ou, pelo menos, pra mim combina…
Pages Navigation
Willywil22h on Chapter 1 Sat 31 Aug 2024 03:55AM UTC
Comment Actions
honeyyyqueen on Chapter 1 Sat 31 Aug 2024 12:57PM UTC
Comment Actions
serena_v on Chapter 1 Mon 18 Nov 2024 08:25PM UTC
Comment Actions
honeyyyqueen on Chapter 1 Mon 18 Nov 2024 09:11PM UTC
Comment Actions
Roubador_De_Carros on Chapter 1 Sat 17 May 2025 11:44PM UTC
Comment Actions
Lauraal13 (Guest) on Chapter 2 Sun 01 Sep 2024 01:17AM UTC
Comment Actions
honeyyyqueen on Chapter 2 Sun 01 Sep 2024 12:15PM UTC
Comment Actions
meldysama on Chapter 2 Sun 01 Sep 2024 10:43AM UTC
Comment Actions
honeyyyqueen on Chapter 2 Sun 01 Sep 2024 12:15PM UTC
Comment Actions
Roubador_De_Carros on Chapter 2 Sat 17 May 2025 11:59PM UTC
Comment Actions
Roubador_De_Carros on Chapter 3 Sun 18 May 2025 12:14AM UTC
Comment Actions
Roubador_De_Carros on Chapter 4 Sun 18 May 2025 12:50AM UTC
Comment Actions
honeyyyqueen on Chapter 4 Sun 18 May 2025 01:11AM UTC
Comment Actions
Roubador_De_Carros on Chapter 5 Sun 18 May 2025 01:04AM UTC
Comment Actions
honeyyyqueen on Chapter 5 Sun 18 May 2025 01:14AM UTC
Comment Actions
Roubador_De_Carros on Chapter 6 Sun 18 May 2025 01:15AM UTC
Comment Actions
honeyyyqueen on Chapter 6 Sun 18 May 2025 01:22AM UTC
Comment Actions
meldysama on Chapter 7 Fri 04 Oct 2024 11:00PM UTC
Comment Actions
honeyyyqueen on Chapter 7 Fri 04 Oct 2024 11:28PM UTC
Comment Actions
Roubador_De_Carros on Chapter 7 Sun 18 May 2025 01:33AM UTC
Comment Actions
honeyyyqueen on Chapter 7 Sun 18 May 2025 01:38AM UTC
Comment Actions
meldysama on Chapter 8 Thu 17 Oct 2024 11:33AM UTC
Comment Actions
Roubador_De_Carros on Chapter 8 Sun 18 May 2025 01:42AM UTC
Comment Actions
honeyyyqueen on Chapter 8 Sun 18 May 2025 02:15AM UTC
Comment Actions
Roubador_De_Carros on Chapter 9 Sun 18 May 2025 01:53AM UTC
Comment Actions
honeyyyqueen on Chapter 9 Sun 18 May 2025 02:17AM UTC
Comment Actions
meldysama on Chapter 10 Thu 31 Oct 2024 01:56PM UTC
Comment Actions
Roubador_De_Carros on Chapter 10 Sun 18 May 2025 02:06AM UTC
Comment Actions
Roubador_De_Carros on Chapter 11 Sun 18 May 2025 02:18AM UTC
Comment Actions
honeyyyqueen on Chapter 11 Sun 18 May 2025 02:31AM UTC
Comment Actions
Roubador_De_Carros on Chapter 12 Sun 18 May 2025 02:30AM UTC
Comment Actions
honeyyyqueen on Chapter 12 Sun 18 May 2025 02:37AM UTC
Comment Actions
Roubador_De_Carros on Chapter 13 Sun 18 May 2025 02:42AM UTC
Comment Actions
honeyyyqueen on Chapter 13 Sun 18 May 2025 03:06AM UTC
Comment Actions
Pages Navigation